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segunda-feira, 20 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"


A velha Universidade de Coimbra, uma das dez mais antigas do mundo. Mas há um provérbio que diz(ia): "Mais vale um ano de tarimba do que dez de Coimbra". E um outro que avisa: Salamanca a uns cura e a outros manca". Mais cáustico, o terceiro denuncia: "Em Valência muitas fraldas,  pouca ciência". 



1. Continuação da publicação de uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que podemos tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença e os prestadores de cuidados de saúde, mas também a sobre a proteção e a promoção da saúde,  incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer"...

Por razões de força maior, ele está temporariamente com menos disponibilidade (física e mental) para editar o blogue, encontrando-se no Norte (Madalena, Vila Nova de Gaia). Conta com os outros coeditores, e nomeamente com o sempre fiel e incansável Carlos Vinhal, para ir mantendo  todos os dias a "montra do blogue"  atualizada e renovada. 

São textos que foi buscar ao seu "baú", a sua antiga página na ENSP/NOVA onde ensinou e investigou, durante quase quatro décadas, ajudando a formar médicos de saúde pública, médicos do trabalho, medicos de  clinica geral e famiiar,  administradores hospitalares, gestores de serviços de saúde, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, técnicos de higiene e segurança,  educadores e promotores de saúde, engenheiros, mestres, doutores, etc.... A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça, (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Espera-se,  ao menos, que a  leitura destes textos desperte algum interesse e tenha algum  proveito para os nossos leitores, lusófonos... Incluindo os medicos: afinal, e parafraseando um deles, o Abel Salazar (perseguido pelo  Estado Novo) mal vai o médíco que só sabe de medicina...
 LG.


Graça, L. (2000) - Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em Língua Portuguesa. Parte II : 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro'

(Continuação) (*)

3. Estereótipos em Relação aos Médicos e à Medicina

3.1. O "mata-são"

A descrença em relação aos médicos e aos seus meios de diagnóstico e de terapêutica traduz-se em ditos mais ou menos jocosos como "Deus cura os doentes e o médico recebe o dinheiro" (Quadro VI) ou, noutra variante (tendo porventura como objeto o cirurgião), "Deus é que sara e o mestre é que leva a prata".

Aos olhos do homem comum, a razão de ser e de existir dos médicos é a doença que, por seu turno, representa, para eles, um verdadeiro "celeiro" ou um "bornal" (ou ainda "gamela", uma imagem típica do mundo rural, significando, neste contexto, fonte de rendimento, de enriquecimento - muitas vezes ilícito - e de saciedade).

O vil metal intromete-se subrepticiamente na relação terapêutica, ao insinuar-se que:
  • "A desgraça de uns é a fortuna de outros";
  • "De São Martinho ao Natal, o médico e o boticário enchem o bornal";
  • "Mostarda na horta, médico à porta";
  • "Quando o doente escapa, foi Deus que o salvou; e quando morre, foi o médico que o matou";
  • "Quando os doentes bradam os médicos ganham".

Daí o aviso aos incautos, para que não se metam nem com o homem de leis (o advogado) nem com o praticante da arte médica (o "mata-são#):
  • "Deus te guarde do parrafo de legista, do infra de canonista, et-caetera de escrivão e de recipe de mata-são".
A incerteza quanto ao diagnóstico e ao prognóstico dos médicos (e, portanto, a falta de confiança na medicina, no passado) está ilustrada em ditos como "Emenda de jogador e prognóstico de médico serão o que for" ou "Hipócrates diz que sim, Galeno diz que não" (Quadro VI), muito embora se trate de dois provérbios de raiz mais erudita do que popular.
Hipócrates  (460-377 a.C.) como Galeno (129-199 d.C.)
f oram, praticamente até ao Século XVIII, o alfa e o omega da arte de curar.

A propósito, refira-se que tanto Hipócrates como Galeno foram as duas grandes autoridades do conhecimento médico que herdámos da Antiguidade Clássica e para cuja preservação e divulgação até à Renascença muito contribuíram os arabistas (judeus, árabes e persas que traduziram os originais gregos para árabe e para latim).

Daí a referência, por ex., a Avicena (980-1037): "Avicena e Galeno trazem a minha casa o bem alheio". Recorde-se que o seu Cânone da medicina (ou inventário geral das doenças do ser humano) foi um dos tratados que marcaram o ensino e a prática médicas até muito para lá da Renascença.

A experiência da negligência médica e do erro clínico ('efeitos adversos', como se diz hoje), por seu turno, é documentada através de ditos,  espirituosos uns, sarcásticos outros, que ainda hoje nos chocam pela sua crueza (Quadro VI):
  • "Com o que sara o fígado, enferma o braço";
  • "Erros médicos a terra os cobre" ou, noutra versão, "O médico e o calceteiro cobrem os erros com terra";
  • "Guarde-nos Deus do físico esperimentador (sic) e de asno ornejador";
  • "O bom médico é o do terceiro dia";
  • "O melhor médico é o que se procura e se não encontra";
  • "Pior é ter mau médico que estar enfermo";
  • "Salamanca a uns sara e a outros manca";
  • "Se tens físico teu amigo manda-o a casa do teu inimigo".
Salamanca era famosa, no Século XVI, pela sua escola médica, sendo muito procurada por estudantes portugueses (Lemos, 1991; Mira, 1947). Nela se formaram (ou doutoraram) nada menos do que dois dos nossos três maiores médicos até ao Século XVIII, todos aliás de origem hebraica e obrigados a refugiarem-se no estrangeiro por causa da Inquisição: referimo-nos a Amato Lusitano (1511-1568) e a Ribeiro Sanches (1699-1782).

Em todo o caso, era fraca a reputação da universidade, aos olhos da gente comum (Quadro VI):
  • "Mais vale experiência que ciência";
  • "Mais vale um ano de tarimba do que dez de Coimbra";
  • "Mais vale um burro vivo do que um doutor morto";
  • "Médicos de Valência: grandes fraldas, pouca ciência".
O médico (ou físico, mais tarde facultativo) faz parte, de resto, da vasta galeria das figuras vicentinas. Gil Vicente devia conhecer bem o meio profissional da medicina a ponto de escrever um Auto dos Físicos (1524) onde caustica a classe médica da época por causa da sua linguagem esotérica e da sua crença na astrologia. Como também conhecia o Hospital Real de Todos os Santos onde seria representado, pela primeira vez, o Auto da Barca do Inferno (1517), perante a Rainha Dona Leonor, sua protectora.

A sátira à medicina é, aliás, um tema recorrente na literatura europeia da época (por ex., Molière e Boileau, em França) como até na própria pintura. Na cidade holandesa de Leiden, no museu de Boerhaave (o professor de quem o nosso Ribeiro Sanches foi um dilecto discípulo), o visitante tem a oportunidade de observar um espantoso painel dum pintor holandês anónimo do Séc. XVII, The four guises of the physician (Os quatro rostos  do médicos). 

Visto pelos olhos do doente (um burguês rico) e da sua família, o médico vai assumindo a forma de diferentes personagens (ou rostos):
  • No momento de aflição, ele é o salvador, representado pela figura de Cristo (1) , enquanto examina um boião com as águas (urina), rodeado pelos seus assistentes e tendo aos pés uma panóplia de instrumentos cirúrgicos;
  • Após a recuperação do doente, o médico transforma-se primeiro em anjo (2) para surgir depois sob a forma de um vulgar ser humano (3);
  • Por fim, no último quadro, o doente acaba por morrer: enquanto a sua alma se liberta do corpo, o médico, em primeiro plano, regressa para reclamar os seus honorários, desta vez vestido de diabo (4) (Graça, 1996)


Quadro VI — Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o médico, a medicina e a ciência

Objeto

Provérbio

Anato-mia/ Corpo

  • "Anda em capa de letrado muito asno disfarçado"

  • "Antes burro vivo que doutor morto" (Séc. XVIII)

  • "Com dinheiro, língua e latim, vai-se do mundo até ao fim"

  • "Com latim, rocim e florim andarás mandarim"

  • "De livro fechado não sai letrado"

  • "Discípulo, com cuidado, e mestre, bem pago"

  • "Doutor da mula ruça"

  • "Em casa do letrado tanto se paga de pé como sentado"

  • "Mais vale experiência que ciência"

  • "Mais vale um ano de tarimba que dez de Coimbra"

  • "Mais vale um burro vivo do que um doutor morto"

  • "Mascarado de doutor anda por aí muito burro zurrador"

  • "Moça que casa com bacharel não tem quartel"

  • "Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras"

  • "O saber não ocupa lugar"

  • "Quem ler leia para saber; quem souber saiba para obrar"

  • "Um burro carregados de livros é doutor"

Físico/ Médico

  • "A crença dos médicos que falta nos sãos sobeja nos doentes"

  • "A desgraça de uns é a fortuna de outros"

  • "A despeito dos médicos viveremos até morrer"

  • "A doença é o celeiro do médico"

  • "À falta de médico não morre o doente"

  • "Ao médico, ao letrado e ao abade falar verdade" (Séc. XVII)

  • "A médico, confessor e letrado nunca enganes"

  • "Aos trinta anos quem não é tolo é médico"

  • "De médico e de louco todo mundo tem um pouco"

  • "De médico, engenheiro e louco todos temos um pouco"

  • "De poeta, médico e louco cada um tem um pouco"

  • "Deus, assim como dá a doença, dá o médico"

  • "Deus cura os doentes e o médico recebe o dinheiro"

  • "Deus é que cura e o médico leva o dinheiro"

  • "Deus te guarde do parrafo de legista, do infra de canonista, et-caetera de escrivão e de recipe de mata-são"

  • "Do São Martinho ao Natal, o médico e o boticário enchem o bornal"

  • "É médico ou pregador de dúzias"

  • "Emenda de jogador e prognóstico de médico serão o que for"

  • "Enfermo paciente faz o médico cruel"

  • "Erros de físicos a terra os cobre"

  • "Erros de médicos a terra os cobre"

  • "Guarde-nos Deus do físico esperimentador e de asno ornejador" (Séc. XVI)

  • "Médico novo e puta velha, todos gostam de experimentar"

  • "Médico velho, advogado novo"

  • "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo"

  • "Médicos de Valência: grandes fraldas, pouca ciência"

  • "Mostarda na horta, médico à porta"

  • "Não há melhor médico do que o fiel amigo"

  • "Nem com cada mal ao médico, nem com cada trampa ao letrado"

  • "O bom médico é o do terceiro dia"

  • "O médico deve ser prudente, o enfermo paciente e o criado diligente"

  • "O médico e o calceteiro cobrem os erros com terra"

  • "O médico é o pai da crença"

  • "O médico quando é pago por ricos é considerado criado; quando recebe dos pobres, é ladrão"

  • "O melhor médico é o que menos fala e mais observa"

  • "O melhor médico é o que se procura e se não encontra"

  • "O melhor médico é, por vezes, o pior doente"

  • "Pior é ter mau médico que estar enfermo"

  • "Por causa do fedor ninguém vai ao doutor"

  • "Quando é de morte o mal, não há médico para curar tal"

  • "Quando o doente diz ai, o físico diz dai"

  • "Quando o doente diz ai, o médico diz dai"

  • "Quando o doente escapa, foi Deus que o salvou;  e quando morre, foi o médico que o matou"

  • "Quando o médico é piedoso é o doente perigoso"

  • "Quando os doentes bradam os médicos ganham"

  • "Quanto mais médicos, mais moléstias"

  • "Quem sempre traz má cor não é médico nem doutor"

  • "Se tens físico teu amigo, manda-o a casa do teu inimigo"

  • "Serigaita sã não precisa médico"

  • "Tratem-nos à moderna, que eles morrem à antiga"

  • "Um médico cura, dois empatam, três matam"

Medi-

cina

  • "A vida é curta e a arte é longa" (1);

  • "Avicena e Galeno trazem a minha casa o bem alheio" (Séc. XVII)

  • "Com o que cura o fígado adoece a bolsa"

  • "Com o que Pedro sara Sancho adoece"

  • "Com o que sara o fígado, enferma o braço" (Séc. XVII)

  • "Doença bem tratada poucas vezes é demorada"

  • "Hipócrates diz que sim, Galeno diz que não"

  • "Mais matou a ceia que sarou Avicena"

  • "Mais matou o céu que sarou Avicena"

  • "Mal com mal se cura"

  • "Mastigar marmelada para os tísicos"

  • "O bom remédio amarga na boca"

  • "Quem tem doença abra a bolsa e tenha paciência"

  • "Salamanca a uns sara a outros manca"

  • "Saúde o come que não boca grande"


(1) Aforismo hipocrático: referência à arte de curar arte de curar


Os próprios médicos satirizavam certas práticas e crenças dominantes , como por exemplo o uso e o abuso da uroscopia (exame das águas ou urina), ainda largamente difundida entre nós em meados do Séc. XVII a avaliar por este trecho, em verso e em castelhano, de Domingos Pereira Bracamonte (1606-1658), médico de Amarante, que acusa os "medicastros [ médicos charlatães ] urináuticos" (sic) de enganar os pobres doentes:

(...) porque desenganara

Tanta rustica gente que enganada

Piensa que en la urina está cifrada

De Esculápio la sciencia

Y en un canuto solo


Oraculos de Apolo

Y sin mas relacion de su dolencia

Por bien poco dinero

Quiere que sea el medico echicero

Culpa de medicastros urinauticos

Que hipocritas seran, mas no hippocraticos

Bracamonte (1642)
 



3.2. "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo

Em traços físicos e simbólicos, o médico é descrito como "velho", enquanto o cirurgião é "novo" e o boticário, "coxo". Mas mesmo que a medicina seja inútil ("Ciência é loucura se o bom siso a não cura"), o médico sempre é um letrado, o único aliás com formação universitária (...e "ao letrado não o tenhas enganado").

É claro que o prestígio do médico está mais relacionado com a idade e os longos anos de estudo ("Aos trinta anos quem não é tolo é médico") do que com o saber livresco ("Quem ler leia para saber; quem souber saiba para obrar") e com a frequência da universidade ( "Mais vale um ano de tarimba que dez de Coimbra" ) (Quadro VI).

No Séc. XIV bastava saber ler e escrever e pouco mais para se ter acesso à Universidade:

Com três anos de aproveitamento, era-se bacharel; o bacharelato (do latim bacalaureatus, "coroado de louros com bago") era, pois, o primeiro grau académico;

Com mais dois ou quatro, conforme os cursos, era-se licenciado, detentor de licentia docendi ubique, ou seja, licenciatura reconhecida em toda a cristandade;

Só ao fim de muitos anos - já na casa dos trinta, no caso da Teologia -, é que se atingia o cume da pirâmide do saber, o grau de doutor ou mestre, não sendo muito clara a distinção entre um e outro título académico (O termo original magister dá lugar a doutor).

No limiar do Séc. XVIII, a um médico, "para chegar a curar" - no dizer do Doutor Frei Manuel de Azevedo (c. 1600-1672) (cit. por Pina, 1938.21) - seriam necessários "treze anos de estudo, com três ou mais exames muy apertados", assim discriminados:
  • "Quatro anos para bem saber o Latim, delle o examinam para depois entrar na Filosofia, nesta gasta ao menos tres annos, fazendo no discurso delles diversos actos de Conclusões";
  • "No fim o examinarão com todo o aperto, & achando-o habil, lhe dão grau de bacharel em Filosofia" (No total, sete anos de ensino preparatório, dando acesso à Faculdade de Medcina);
  • Com este [ bacharelato ] entra a aprender medicina, nella cursa quatro anos, & nelles com diversos actos de Conclusões, que defende";
  • "No fim de todo este tempo o examinarão apertadissimamente todos os Medicos Doutores da Universidade";
  • Uma vez aprovado, fazia o equivalente ao actual internato geral hospitalar, "onde aprenderia as enfermidades e os pulsos durante dois anos" (Ou sejam, seis anos de ensino pré e pós-graduado de medicina) (Itálicos meus).
Em resumo, aos 23 ou 24 anos era-se médico, o que para a época era já uma idade provecta (se consideramos a baixa esperança média de vida, à nascença, dos portugueses).. Daí também o natural despeito dos físicos em relação aos cirurgiões:

"Como poderà hum Cyrurgião, que mal sabe ler, & escrever, com hum ano, ou pouco mais, que assistio no hospital, aprendendo só a curar feridas e chagas, como poderá curar enfermidade alguma" ?, pergunta Manuel de Azevedo (Itálicos meus).

Já na altura, o diagnóstico do doente (o "conhecimento do pulso") era um acto médico por excelência:

"Em toda a medicina não ha cousa mais dificultosa, que o conhecimento do pulso. E ha tanta ignorância popular, que aos barbeiros, & cristaleiras se dão os pulsos, para lhos tomarem & lhes dizerem se tem febre grande, ou pequena", comenta Azevedo (cit. por Pina, 1938. 22).

"E peyor he, que se dous Medicos disserem ao enfermo, que não tem febre, & vier o barbeiro, ou a crystaleira [ que ministrava clisteres ] a dizer que a tem, lhe dão mãyor credito, que aos ditos Medicos".

De qualquer modo, qual era o sentido de provérbios como "Aos trinta anos quem não é tolo é médico" ou "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo"?

Numa amostra de 15 médicos portugueses que viveram entre 1501 e 1859, e para os quais dispomos de informação biográfica, apurámos os seguintes dados que, no mínimo, são curiosos e podem revelar algumas tendências sobre o desenvolvimento histórico do ensino e do exercício da medicina em Portugal (Quadro VII):

Neste período os médicos viviam em média 66,3 anos (Mínimo: 50; máximo: 83), seguramente mais tempo do que a esperança média de vida da população portuguesa;

Acabavam o curso de medicina aos 24,3 anos (Mínimo: 18; máximo: 29);

No período compreendido entre 1523 e 1717, antes portanto da reforma pombalina da Universidade de Coimbra (1772), a idade média de conclusão do curso de medicina seria mais baixa , andando nos 22,7 anos (Mínimo: 18; máximo:26) (n=8);
  • Depois da reforma pombalina, e no período entre 1787 e 1814, a formação dos médicos terminava por volta dos 26 anos (em média) (n=7);
  • Um terço, pelo menos, dos médicos da amostra era de origem cristã-nova e teve problemas com a inquisição (entre eles, estão os nossos médicos mais notáveis do Ancien Régime como, por exemplo, Zacuto Lusitano, Jacob Castro Sarmento ou Sanches Ribeiro);
  • Quatro dos 15 médicos estudaram em Espanha (nomeadamente em Salamanca).
  • Pelo menos até à Renascença, os físicos eram classificados no grupo social, especificamente urbano, dos que "usa(va)m dalgumas artes aprovadas e mesteres" (D.Duarte, O Leal Conselheiro).
  • Os mesteres ou artesãos também eram conhecidos como oficiais mecânicos, distintos todavia dos homens de artes aprovadas que já exerciam claramente uma actividade liberal (caso do jurista e do médico).
Uns e outros pertenciam ao terceiro estado (o povo), donde pouco a pouco se começam a destacar, com a criação e a expansão da universidade, os letrados, bacharéis ou doutores:
  • "Ao médico, ao letrado e ao abade falar verdade";
  • "Com dinheiro, língua e latim, vai-se do mundo até ao fim"
  • "De livro fechado não sai letrado";
  • "Discípulo, com cuidado, e mestre, bem pago";
  • "Em casa do letrado tanto se paga de pé como sentado";
O termo físico, por que eram conhecidos os médicos na Idade Média (em inglês physician, que aparece entre 1175 e 1225), tem, a ver com o facto da medicina, a partir do Séc. IX, ter passado a ser considerada pelas escolas monásticas uma arte liberal (a oitava), a seguir à gramática, a retórica e a dialéctica (que formavam o trivium) e da aritmética, da geometria, da música e da astronomia (que constituíam o quadrivium).

A medicina, integrada na Física, passou a ser ensinada no âmbito do quadrivium.

O papel da universidade, depois da reforma joanina de 1537, era sobretudo o de formar gente que iria depois engrossar as fileiras da burocracia régia, e gerir os negócios do reino e do império. Por outro lado, começava a tornar-se evidente a importância que já era então atribuída à instituição universitária como forma de ascensão social. Daí a maior procura do direito:
  • Mais de 87 % do total das matrículas, neste período de 1573 a 1771 respeitam aos cursos jurídicos (cânones e leis);
  • Contra apenas 6,8% de medicina e 5,3% de teologia (Graça, 1996).
D. Francisco de Lemos que teve um papel importante na reforma da universidade de Coimbra e foi seu reitor, antes e depois de 1772, dava aliás conta do pouco prestígio social que ainda então tinha a Faculdade de Medicina, ao escrever, em 1777, que era "pouco frequentada por quem tem meios de preparar-se para outros destinos mais bem reputados no conceito dos Povos, e pela maior parte abandonada a estudantes mizeraveis e pobres" (Lemos, 1777, cit. por Pina, 1937.7, itálicos meus).

Na época, o estatuto social do estudante de Coimbra media-se pelo número de criados e de cavalos (ou mulas) ao seu serviço. O estatuto social e económico do médico estava ainda longe de ser elevado, o que é bem patente no ditado que diz :

"O médico quando é pago por ricos é considerado criado; quando recebe dos pobres, é ladrão".

Por fim, o médico é homem: com uma nuance mais burguesa do que fradesca, é conveniente lembrar que "não provam bem as senhoras que se metem a doutoras".

De facto, a universidade (criada entre nós em 1289) era interdita às mulheres, de tal modo que será preciso esperar mais de 600 anos (!) até que apareça a primeira mulher portuguesa diplomada em medicina (Amélia Cardia dos Santos Costa, em 1891, não ainda pela Universidade mas pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, que fora criada em 1836).

A arte de curar era, pois, predominantemente masculina, pelo menos nas principais cidades do reino. Quanto aos médicos, letrados e aprovados, esses eram exclusivamente homens. O mesmo se passava com os cirurgiões (Quadro VIII, próximo poste) e os barbeiros-sangradores.

Sabe-se, entretanto, muito pouco sobre a assistência prestada às populações dos campos (e, em particular, às mulheres camponesas). Nos sítios mais recônditos, elas não tinham outra alternativa senão recorrer a bruxas, curandeiras, mezinheiras, parteiras ou aparadeiras, comadres ou simples curiosas, da aldeia ou das redondezas (Joaquim, 1983).

Há toda uma medicina tradicional, de raiz popular, de que as mulheres se tornaram as fiéis depositárias e que exerceram, com algum proveito mas não sem riscos, já que na época era bem pesada a mão da justiça do rei e da Igreja.

Nos arquivos das chancelarias régias, de D. Manuel I a D. Filipe III, há curiosos documentos sobre a prática da arte de curar por parte de mulheres. Reis (1996) identificou uma dúzia de mulheres que exerciam, para todos os efeitos, a medicina, embora sem autorização legal.

O conteúdo dessas cartas régias é muito interessante, para quem quiser conhecer a terminologia nosológica da época, e sobretudo perceber melhor a jurisprudência relativa ao exercício das "artes médicas" e ao seu controlo por parte do poder régio e da própria corporação médica.

Na maior parte dos casos (12) trata-se de concessão de licenças para praticar a cirurgia (5) ou para tratar do mal das boubas (sífilis) (2), do mal da raiva (1), da doidice (1) e de outras enfermidades (2).

Numa dessas cartas, com data de 18 de Setembro de 1611, o rei Filipe II concede licença a Ana Marques, residente em Ceira, no termo de Coimbra, para "no dito concelho de Seira e seus arredores, não sendo para a parte de Coimbra nem onde haja fisico letrado ou examinado" [ poder ] tratar de certas enfermidades com alguns remédios que ela aprendera e sabia", depois de tais remédios bem como a requerente terem sido examinados pelo físico-mor, Doutor Baltasar de Azeredo, catedrático de prima jubilado na Universidade de Coimbra". Além da restrição territorial, a requerente não podia "entermeter-se em mais coisa alguma nem ordenar de beberagens nem outras mezinhas sob pena de se proceder contra ela" (cit. por Reis, 1996).



Quadro VII - Idade de conclusão do curso de medicina, segundo uma amostra dos médicos portugueses do Séc. XVI ao Séc. XIX (n=15)


Nome do médico

Período de vida

Idade em que se formou

Antes da Reforma Pombalina  da Universidade  (entre 1523 e 1717)

Abraão Zacuto Lusitano1575-1642De origem hebraica, fez estudos de filosofia no Colégio das Artes, em Coimbra, e medicina em Espanha, onde se doutorou aos 21 anos pela Universidade de Siguenza. Morreu em Amsterdão. Era neto do grande Abraão Zacuto (1450-1525), médico e astrónomo no tempo de D. João II e D. Manuel II.
Amato Lusitano1511-1568João Rodrigues Castelo Branco, mais conhecido por Amatus Lusitanus, licenciou-se em Salamanca por volta de 1529 (com 18 anos). De origem hebraica, refugiou-se em Antuérpia  em 1533 ou 1534. Terá morrido de peste.
Ambrósio Nunes1529-1611Filho de um físico-mor do Reino, terminou o curso em Coimbra em 1555 (portanto, com 26 anos). Foi professor em Salamanca. Lente de "vacações" (1555), é autor de Enarrationum in priores Aphorismorum Hippocratis cum paraphrasi in Comentaria Galeni tomus prior (Coimbra,  1601).
António Ribeiro Sanches1699-1782Oriundo de família de cristãos-novos, de Penamacor, estudou filosofia e medicina em Coimbra, entre 1716 e 1719. Aos 25 anos obtinha o grau de doutor em medicina por Salamanca. Em 1726 saiu definitivamente do país.
Francisco da Fonseca Henriques1665-1731Também conhecido pelo Dr. Mirandela, terminou o curso de medicina em Coimbra, com 19 anos  (1684), depois de estudar as primeiras letras na sua terra natal (Mirandela). É autor do Aquilógio Medicinal (1726), considerado o primeiro trabalho sistemático sobre a riqueza hidrológico do Reino.
Garcia de Ortac.1501-1568Filho de cristão-novo, natural de Castelo de Vide, frequentou as universidades de Salamanca e de Alcalá de Henares, por volta de 1515-1523 (Ter-se-á, portanto, licenciado em medicina aos 22 ou 23 anos). Só em 1526 obteve autorização do físico-mor para exercer medicina.
João Marques Correia1671-1745Estudou Humanidades e Filosofia em Évora e Medicina em Coimbra onde recebeu o grau de mestre em Artes (1692) e se formou-se em 1696 (com 25 anos).É autor do Tratado Physiologico médico-physico e anatómico da circulação do sangue.
Jacob de Castro Sarmento1691-1762Depois de obter o grau de mestre em Artes na Universidade de Évora (1710), estudou medicina em Coimbra. Conclui o curso em 1717 (com 26 anos). Cristão-novo, fixou residência em Londres em 1721 e aí morreu.

Depois da Reforma Pombalina da Universidade (entre 1787 e 1814)

António de Almeida1767-1839Nascido em Coimbra, matriculou-se no curso de medicina em 1787, que conclui com 24 anos (1791). Foi médico do partido da Câmara de Penafiel.
Francisco Inácio dos Santos Cruz1787-1859Matriculou-se em 1804 em Filosofia e no 1º ano de Matemática, da Universidade de Coimbra, como preparatório do curso de Medicina que terminou em 1814 (com 26 anos).
Francisco Xavier de Almeida Pimenta1775-1839Terminou o curso de medicina de Coimbra em 1799 (com 24 anos).Foi deputado às cortes em 1820 e zeloso propagandista da vacina.
Joaquim Xavier da Silva1778-1835Estudou medicina em Coimbra, onde se doutorou com 26 anos (1804). Publicou um tratado de higiene militar.
Jorge Gaspar de Oliveira Roldão1783-1833Estudou em Coimbra. Recebeu o grau de bacharel em 1808 e formou-se no ano seguinte (com 26 anos). Médico de província.
José Lino dos Santos Coutinho1784-1836Nascido no Brasil, concluiu o curso de Medicina de Coimbra em 1813 (com 29 anos). Foi político e professor na Escola de Medicina da Baía.
José Pinheiro de Freitas Soares1769-1831Frequentou, em Coimbra, as Faculdades de Filosofia e de Medicina. Formou-se na primeira em 1793  (com  24 anos) e na segunda em 1797 (com 28 anos). Autor do Tratado de Polícia Médica.

Fonte: Adapt. de Lemos (1991) e Mira (1947) (entre outros)

Bibliografia a publicar no fim desta série temática

(Continua)
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Nota do editor:

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23977: "Una rivoluzione...fotogenica" (6): Roel Coutinho, médico neerlandês, de origem portuguesa sefardita, cooperante, que esteve ao lado do PAIGC, em 1973/74 - Parte V: os "hospitais" do mato e o pessoal de saúde cubano

 

Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC,  cubano, o dr. António,  auscultando uma idosa/ Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 17 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Cuban doctor Antonio checking up heartbeat - 1974 (Nesta altura havia mais um cirurgião e um enfermeiro cubanos, cujos nomes não são conyecidos, na base de Sara, para além do dr. António, de apelido também desconhecido.)



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC,  cubano, o dr. António auscultando uma criança ao colo da mãe  / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 18 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Cuban doctor Antonio checking up heartbeat - 1974



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC,  cubano, o dr. António auscultando uma rapariga / Foto ASC Leiden - Coutinho Collection - B 20 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Heartbeat check up by doctor Antonio - 1974



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC, cubano, o dr. António,  auscultando uma jovem mulher / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 21 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Heartbeat check up by doctor Antonio - 1974



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC, cubano, o dr. António,  falando doentes, sempre na presença de um intérpetre (ao centro)  / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 22 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Heartbeat check up by doctor Antonio - 1974.



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > PAIGC: uma enfermaria no mato.  Doenets acamados.  / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 14 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Patients in infirmary - 1974



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > PAIGC: uma enfermaria no mato. Cama com rede mosquiteira. / Foto : ASC Leiden - Coutinho Collection - B 16 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Patients in infirmary - 1974



G
uiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 >: PAIGC: Enfermaria ou posto médico : "sala de espera" ao ar livre / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 19 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - “Waiting room” - 1974






Fonte: Wikimedia Commons > Guinea-Bissau and Senegal_1973-1974 (Coutinho Collection) (Com a devida vénia...) . Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. O PAIGC munca controlou 2/3 do território da antiga Guiné Portuguesa, na altura da luta armada pela independência. Foi um mito habilmente fabricado e explorado por Amílcar Cabral.   Nem nunca teve "hospitais" no interior do território, em zonas como a base de Sara, a sudeste do Morés e a nordeste de Mansoa. Teve, isso sim, pequenas enfermarias do mato, guarnecidas por um ou outro médico cubano e enfermeira local, formada "ad hoc"... As condições de higiene, segurança, assepsia e antissepsia, eram deploráveis. Fazia-se, excecionalmente, alguma pequena cirurgia ambulatória (sem banco de sangue, anestesia geral,  gerador elétrico, ou simples material  para desinfeção e esterilização, ou até simples água potável, etc.) e consultas, "públicas", de clínica geral, como as fotos de Roel Coutinho (*) documentam. 

O médico holandês deve ter passado por aqui  algumas semanas, pelo menos fotografou os seus colegas cubanos a trabalhar em condições inacreditáveis...  O arsenal terapêutico era extremamente rudimentar. Em casos mais graves mas excecionais,  os doentes podiam ser  transportados até à fronteira do Senegal, de padiola (operação que levava 4 dias), e depois   em viatura automóvel até ao hospital de Ziguinchor.

Estas fotos também fazem, de algum modo, parte daquilo a que chamos uma "estética da guerra de libertação"... A saúde, a educação, os "armazéns do povo", etc., foram temas bastante focados pelos fotojornalistas e outros visitantes das "regiões libertadas" do PAIGC (***)... 

Sabemos, de resto, que "não há revoluções sem propaganda".  Sem mitos, rituais,  "folclore", "mentiras piedosas",  etc.  Mas, no caso do médico Roel Coutinho, acreditamos na sua boa fé. As suas fotos (mais de 700) pretendem documentar uma realidade, exótica para ele, mas sobre a qual não parece fazer juízos de valor. As suas fotos só foram doadas à ASC Leiden e tornadas públicas na Net quando a "revolução...fotogénica" de Amílcar Cabral e do seu PAIGC já há muito tinha passado de moda...


2. Já aqui transcrevemos em tempos o depoimento de um médico-cirurgião cubano,  Domingo Diaz Delgado (n.1936), respeitante à sua  passagem, no segundo semestre de 1966, pelas bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Sará, na Frente Norte (**).



[…] "Luís Cabral levou-me até Ziguinchor. Aí permaneci dois ou três dias, tendo-me encontrado com os chefes militares mais importantes que actuavam no Norte da Guiné, entre eles Osvaldo Vieira (1938-1974) porque, como era o primeiro cubano que ali chegava, estavam à minha espera.

Despediram-se de mim [6 de julho de 1966] e saí com um grupo de combatentes. Era noite quando cruzei a fronteira por essa zona escoltado por uns quantos. A caminhada, feita por um terreno acidentado, para mim foi terrível. Demorei quatro a cinco horas até chegar à primeira base guerrilheira que se chamava Sambuiá. Passei a noite nessa base, já com os pés bastante maltratados.

Essa caminhada que fiz em quatro ou cinco horas, quando regressei fi-la em cinquenta minutos, porque tinha menos trinta quilos e levava já um ano caminhando naquele terreno.

Passada a noite nesse lugar, de madrugada retomámos a caminhada até à próxima base da guerrilha, penetrando profundamente no território da Guiné (Bissau).

À volta de quarenta minutos caminhámos com uma vegetação que nos protegia da aviação, mas para alcançar o rio Farim, que teríamos de atravessar para chegar à base de Maqué, faltava ainda percorrer sete quilómetros muito planos, e sem qualquer protecção natural".

(...) "Pouco habituado a estas tarefas, caminhava lentamente face ao estado em que estavam os meus pés e todo o corpo. O meu estado de desespero também começou a dar sinais e que não me deixava ficar tranquilo, e não dava conta que olhavam para o céu, uma vez que naquele lugar os helicópteros armados e os jactos (aviões de guerra), metralhavam e matavam quem fosse detectado. Os guerrilheiros estavam desesperados porque tinham que zelar pela minha segurança, pois era o primeiro médico que ali chegava.

Finalmente chegámos ao rio Farim, onde o abundante caudal tornava difícil a sua travessia nas pequenas canoas que eles fabricavam com troncos de árvores. Atravessámos o rio e chegámos pela noite à base de Maqué, onde levava dois dias a andar e estava bastante mal.

No trajecto tivemos de beber água em más condições. Ali a água potável era a dos rios, e eles habituaram-se a fazer uns buracos na terra, bem localizados e escondidos para encherem quando chovia. Ao longo do itinerário realizado sabiam onde tinham os buracos para tirar a água com terra e era a que, a partir desse momento, comecei a beber.

Como era o primeiro grupo cubano na Guiné (Bissau), não tínhamos antecedentes. Quando cheguei à base de Maqué já as diarreias começavam a fazer estragos, mas nem por isso deixámos de comer o que encontrávamos pelo caminho. No dia seguinte, antes de amanhecer, reiniciámos a caminhada, avançando pelo país até alcançar a base de Morés. Nesse lugar estivemos um dia, seguindo, depois, uma nova caminhada até chegar à base onde permaneci cerca de seis meses: Sará". […]





Guiné - Bisssu > Região do Oio > Base de Sará > 1966 > Cubanos:  da esquerda para a direita, o instrutor militar tenente Alfonso Pérez Morales (Pina); o ortopedista Tendy Ojeda Suárez; o cirurgião Domingo Diaz Delgado e o médico de clínica-geral Pedro Labarrere. (In: Hedelberto López Blanchi - "Historias Secretas de Médicos Cubanos", La Habana, Ediciones "La Memoria", Centro Cultural "Pablo de la Torriente Brau", 2005, 237 pp. Com a devida vénia...)

Acrescente-se que o Domingo Dias Delgado, nome de guerra Demétrio (passou dois anos na Guiné=, escreveu ainda recentemente um livro de memórias (2018): "Memorias de Demetrio : un médico guerrillero en Guinea Bissau" (La Habana, Cuba : Editorial Capitán San Luis, 2018, 189 pp,, + ilustrações)




(...) "A base de Sará estava praticamente no centro do território. Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo [1966] estivemos na Zona Norte. De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [Senegal] e não era fácil transportar coisas para lá.

Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo.

O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.

De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base [até dezembro de 66] e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital [enfermaria no mato] para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base". […]




Mapa da Frente Norte – região do Oio – assinalando-se as bases por onde passou o médico Domingo Diaz Delgado, no 2º semestre de 1966: Sambuiá, Maqué, Morés, Sará.

Infografia: Jorge Araújo (2018)



Guiné > PAIGC > 1970 > Algures, numa "área libertada" >  "Dzsungel lakók", em húngaro, gente do mato...  A guerra de libertação teve muito pouco de romântico. Os militares portugueses que combateram o PAIGC na Guiné, sabem quão duras eram as condições de vida, tanto dos seus combatentes como da população sob o seu controlo, dentro das fronteiras do território da antiga província portuguesa da Guiné ... A foto é do fotojornalista húngaro Bara István (n. 1942) que visitou, a partir de Conacri, algumas dessas regiões, no sul, em 1970, embebbed nas fileiras do PAIGC.

Foto: Foto Bara (http://www.fotobara.hu/galeria.htm)  
(já não está disponível "on line", a não ser no Arquivo.pt: https://arquivo.pt/wayback/20090707123742/http://www.fotobara.hu/galeria.htm)


3. Escreveu o António Graça de Abreu ("Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura". Lisboa: Guerra e Paz, Editores, SA, 2007, p. 94):

Mansoa, 3 de Maio de 1973

Na região de Mansoa, as NT capturam mais elementos IN, ou aparentados com os guerrilheiros, do que em Canchungo. Normalmente chegam ao nosso CAOP com um aspecto lastimável, a subnutrição, as doenças, a miséria têm tomado conta deste pobre povo que vive nas regiões libertadas.

Os prisioneiros são quase sempre mulheres que se deslocam às povoações controladas pelas NT, a fim de venderem por exemplo mancarra (amendoim), óleo ou vinho de palma, e são capturadas nas estradas ou nos caminhos em volta dos nossos aquartelamentos.

Chegam descalças, andrajosas, às vezes com filhos pequenos às costas a chupar os peitos secos e mirrados. Dói, só de olhar. 

São interrogadas, é-lhes pedido todo o tipo de informações sobre os acampamentos, o armamento, as aldeias controladas pelo IN onde vivem os seus maridos, os seus familiares. 

Como é natural, estas mulheres falam muito pouco e também magoa o coração ver como são tratadas. É minha tarefa comprar-lhes uns trapinhos novos para tapar o corpo, umas sandálias de plástico para protegerem os pés.

Também se capturam elementos IN dos sexo masculino. Há dias um deles, que gozava de um regime de semi-liberdade, foi apanhado a fugir do quartel, já do outro lado do arame farpado, Deu a desculpa de que ia cagar.

Alguns prisioneiros são utilizados como guias nas operações das NT contra os santuários IN. Quando começa o tiroteiro, têm o hábito de escapar e de se refugiar na mata, por isso, às vezes seguem à frente das NT levando uma corda grande amarrada em volta da cintura. Se tentam a fuga,  procurando desligar-se da corda, são por norma abatidos.(...)

(Seleção e negritos: LG)

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(***) Vd. poste de 4 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23947: "Una rivoluzione... fotogenica" (1): Uma reportagem e um livro decisivos, e que consagram a estética da "guerra de libertação", "Guinea-Bissau: una rivoluzione africana" (Milano, Vangelista, 1970, 200 pp.), dos italianos Bruno Crimi (1940-2006) e Uliano Lucas (n. 1942)

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22462: António Damásio: um português nos EUA que muito honra Portugal e a nossa geração (José Belo, Key West, Florida)


O médico neurologista e neurocientista 



Um dos livros mais livros de António Damásio, 
"Ao Encontro de Espinosa" (2003)



Capa do livro de António Damásio,  edição portuguesa, 
Temas & Debates, 2012 "Ao Encontro de Espinosa: 
as emocões sociais e a neurologia do sentir" (364 pp, 
preço de capa, em papel: 19,90 euros)

Sinopse:

«A minha [anterior] invocação de Descartes foi puramente emblemática de uma perspetiva sobre um problema científico e filosófico e pouco tinha a ver com o personagem histórico. A minha relação com Espinosa, porém, é inteiramente diferente. Espinosa é uma pessoa impar e as suas ideias e maneira de ser fundem-se com os problemas psicológicos que aborda e com a correspondente neurociência.»


1. Mensagem de José Belo, o nosso luso-sueco, cidadão do mundo, membro da Tabanca Grande, que reparte a sua vida entre a Lapónia (sueca), Estocolmo e Key-West (Flórida, EUA). Foi nomeado por nós régulo (vitalício) da Tabanca da Lapónia (. Na outra vida, foi alf mil inf, CCAÇ 2391, "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); é cap inf ref. ; durante anos alimentou a série "Da Suécia com Saudade"... Agora escreve sobre o que lhe apetece, dentro da(s) temática(s) do nosso blogue, onde também cabem descritores como "EUA",  "Suécia", "Portugal", "diáspora", "médicos" e "lusofonia".)


Data - sábado, 24/07, 20:10



Assunto - António Damásio: Um português nos Estados Unidos a não esquecer

Não sendo propriamente desconhecido em Portugal,  não creio haver, por parte de muitos, consciência de quão considerado e admirado este nosso compatriota é.

Isto não só nos Estados Unidos como também pela comunidade científica mundial especializada
na sua área de investigação.
 
Não creio existir hoje, nem mesmo nunca (!) ter existido anteriormente, representante científico português com tais prémios, louvores e cargos docentes ao mais alto nível.

Infelizmente o nosso único prémio Nobel de Medicina (1949), Egas Moniz (1874 - 1955), está hoje bastante desvalorizado após os seus estudos e práticas sobre a lobotomia serem agora  olhados de modo muito crítico pelos actuais especialistas internacionais.

Não tendo andado ultimamente muito preocupado quanto à “Busca de Espinoza”  (por o ter encontrado há muito ),  contínuo a sentir a falta de uma referência, no Blogue,  ao tão nosso António Damásio.

Ele é um dos grandes portugueses na diáspora, da nossa geração, e felizmente ainda está muito activo tanto na sua vida de investigação como na carreira de docente e, não menos importante, como  escritor.

Nunca será demasiado salientar que a sua educação básica e superior foi adquirida em Portugal! E é hoje figura científica de topo tanto nos meios norte-americanos como mundiais.

António Damásio:

Professor universitário, Professor de Psicologia, Filosofia, Neurologia e Neurociência. | Director do Instituto do Cérebro e Criatividade da Universidade da Califórnia do Sul | Professor do Instituto Skalk em La Jolla, Califórnia.

Damásio têm contribuído para uma compreensão fundamental dos processos cerebrais subjacentes às emoções, sentimentos, decisões e consciência.

É autor de inúmeros trabalhos científicos. (O seu Índide h no Google Scholar é de 99 com um total de mais de 170 mil citações). 

A sua actividade como nvestigador  tem vindo a receber contínuo subsídio económico federal (EUA) nos últimos 30 anos.

É Doutor Honoris Causa em inúmeras Universidades, entre outras: Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2013); Universidade de Leuven (2013); Universidade C’a Foscari/Veneza; Escola Politécnica Federal de Lausanne (2011); Universidade de Coimbra (2010); Universidade de Leiden (2010); Universidade Raman Llull (2010); Universidade de Copenhagen(2009); Universidade de Nangin (2005); Universidade de Aachen(2002).

Entre outros, recebeu os seguintes prémios:

Prémio Príncipe das Astúrias em Ciências e Tecnologia (2005); Prémio Gravwemayer(2014);
Prémio Honda Fundation (2010); Prémio Melhores Médicos Americanos; Prémio da Associação Internacional de Psicoanálise,  por extraordinários resultados científicos (2004); Prémio Sigoret em Neuro-Ciência Cognitiva (2004).

É membro do Instituto de Medicina da Academia Nacional de Ciências e da Academia Americana de Artes e Ciências. Membro da Academia Bávara de Ciências e da Academia Europeia de Ciências e Artes.

Foi nomeado “Investigador Altamente Citado” pelo Instituto de Informação Científica (USA); Prémio da Universidade da Califórnia de Criatividade e Escolaridade (2012); Prémio Jimenez (2012); Prémio Literário Corine International (2011).

Nomeado membro do Conselho Escolar da Livraria do Congresso (2009/USA); Leitor Distinto da Universidade da Califórnia do Sul (1985); Primeiro prémio Pfizer para o melhor artigo de investigação nas ciências médicas (1974); Prémio do Conselho Britânico de Pesquisa e Treino (1970); Prémio Boleeringer para o melhor estudante em Farmacologia Médica (1966).

António Damásio é um dos reconhecidos líderes internacionais em neurociências. As suas investigações têm vindo a ajudar a compreender a base neural dos sentimentos e emoções. Tem também demonstrado o papel central do afecto na consciência social e na tomada de decisões. O seu trabalho têm contribuído e influenciado a actual compreensão dos sistemas neuronais subjacentes à memória, linguagem e consciência.


- A Estranha Ordem das Coisas (2018)
- O Erro de Descartes (2005)
- Na Busca de Spinoza (2003)

Um abraço do J. Belo