Porra, meu irmão, meu herói, estou no teu velório!... Ainda não estou em mim!... Afinal, nunca me preparei, em vida, para este momento, para este papel!... Mesmo que já tenha feito o luto do pai, da mãe, do Jorge... Estou de coração destroçado!... Mas sou incapaz de chorar... Vim logo que soube da notícia. Foi a mana que me telefonou ontem.
Bem podia ser eu a estar aí esticado que nem um carapau seco, de botas altas, já gastas, cambadas, engraxadas para a ocasião!... A cerimónia fúnebre, a tua última parada, a tua última formatura!... As mãos em oração, elevadas ao céu qual estátua jacente de um agora apeado condestável!... O caixão aberto, o rosto coberto de lenço de linho, bordado, da nossa mãezinha!
Os gatos pingados, os safados, sabem do seu ofício. Vestiram-te a farda nº 1, já muito puída do uso e dos anos, com os amarelos dos galões de coronel desbotados... A cruz de guerra ao peito e as tuas demais medalhas e condecorações de uma vida dedicada à tropa. E até a espada, não se esqueceram da tua espada de defensor do Império e da Nação. Espada ou sabre ? Estavas sempre a dar-me nas orelhas, porque eu confundia a espada e o sabre...
Tu, que noutra encarnação só poderias ter sido um cavaleiro andante, um temível condestável, um bravo e fero guerreiro do Império!... Desculpa a ironia, estou a ser cruel, mesmo que saibamos, tu e eu, que nem sempre líamos as coisas pela mesma cartilha... O catecismo foi o mesmo, o batismo, a primeira comunhão, o crisma...
Porra, meu irmão, meu amigo, meu companheiro, meu camarada... Chegou a tua vez, como chegará a minha. A avaliar pelas estatísticas da morte dos homens em Portugal já estavas na linha da frente com os pés para a cova... Mas eu não me conformo com isso, nem dou qualquer valor às médias estatísticas com que nos infernalizam a vida... Ou talvez não, matematicamente falando, se calhar já tinha chegado a tua hora, o teu dia, o teu mês, o teu ano. Há a predestinação, há o deve-e-haver do Criador e dos seus "informáticos"... (Desculpa a blasf+emia, mas eu acho que até Deus já tem cimputador.)
E, no entanto, era uma morte anunciada, diz a tua viúva alegre, encolhendo os ombros, conformada, e fingindo limpar uma lágrima furtiva, tão afetiva e socialmente hipócrita como as falinhas delicodoces de amor com que te engatou no Rio de Janeiro... Mas quem sou eu, afinal, para julgá-la?!.. A ela e a ti, que aos 65 ainda te julgavas um garanhão!
O teu médico oncologista, esse, não te escondeu (nem podia esconder) a verdade... "A verdade nua e crua, doutor!", foste tu a implorar-lhe, qual quê!, a dar-lhe uma ordem taxativa!... Como se o médico fosse o teu pobre alferes miliciano, que chorava baba e ranho quando sofreu a primeira baixa mortal, lá na serra do Mapé, no planalto dos Macondes!... Ainda guardei esse aerograma, um dos poucos que me escrevias de Moçambique... Sempre foste muito preguiçoso para escrever para mim e para os pais.
Que atroz ironia, que insulto, como se a gente soubesse como isso se faz!... Isso, de um gajo despedir-se da vida, e ter direito a uma boa morte. Como se nos tivessem ensinado, na família, na escola, na catequese, na igreja, no seminário, na Academia Militar, na tropa, na guerra…, a arte de bem morrer!... Ensinaram-te, isso sim, a andar a cavalo em toda a sela... E a jogar bridge. E a dansar o tango. E a fumar um bom charuto. E a pegar num copo de cognac. Ou a conduzir um descapotável.
Também lá andei, na guerra, mas nunca pensei na minha própria morte, mesmo vendo a morte, ali tão pertinho, a meu lado. Aos vinte e poucos anos, em qualquer guerra, não há combatente que não tenha desenvolvido um forte sentimento de imortalidade... Terrível ilusão!...É por isso que há heróis!... E soldados desconhecidos, mortos aos milhares, nas trincheiras e nos desembarques anfíbios das Grandes Guerras...
Imagina, mano, pediram-me para te fazer o teu elogio fúnebre, amanhã, na igreja, na missa de corpo presente!|... Mas eu não sei se serei capaz de dizer duas coisas a teu respeito, que valha a pena dizer, em público, e que não sejam meras palavras de pompa e circunstância, como vocês, militares, gostam.
E depois, meu mano, ao fim e ao cabo, o que é que eu sei de ti, depois destes anos todos de separação, física e emocional ? (O teu casamento separou-nos.)...
Porra, poderia estar eu no teu lugar. E no meu íntimo só posso regozijar-me por estar vivo... Ou ainda vivo, aos setenta (que vou fazer dentro de semanas)!... Podia lá ter ficado, na Guiné, morto por uma roquetada ou uma mina. Pergunto-me: quantos anos ainda me restam ?... "Temei a velhice, porque ela nunca vem só!", dizia-nos o nosso avô de Ponte de Lima.
Quando olho para ti, ou para o que ainda sobra de ti, aí deitado na urna aberta, no teu esquife, arrepio-me… O raio da morte não tem pudor… E exala um cheiro tão forte, a cabra, que afugenta os vivos... Daí as flores, as coroas de flores, e as ervas aromáticas, os sprays de perfume com que a gente a tenta esconjurar, afugentar, enganar, porventura engalanar, e sobretudo negá-la e esquecê-la...
Os guineenses, animistas, no meu tempo, faziam o "tchoro", comiam, bebiam, dançavam, choravam e homenageavam o morto, com bandos de jagudis à volta da morança para partilharem também as migalhas da festa...
É verdade, és o “mano velho”, o “morgado”, e eu sou o “caçula” da família, como tu me chamavas, quando vieste de Angola, lembras-te ?…"Coberto de pó e glória!", exclamava eu, quando recebia uma fotografia tua, já adolescente e e a estudar para padreco. Pouco mais de uma década nos separa, mas podíamos ter sido irmãos gémeos, sempre o disseste ou, se calhar, o desejaste… E eu sempre te admirei, nessa altura. Incondicionalmente.
Porra, não morreste de pé, e ainda bem, de espada em riste, a defender o "quadrado", como os nossos gloriosos antepassados, nas ditas guerras de pacificação do Império, agarrados à bandeira das quinas, branca e azul, no caso do tio-bisavô António, em Chaimite, em Moçambique, e já a verde-rubra, no caso do tio-avô José, no Cunene, em Angola…
Claro que tinhas de seguir a carreira das armas, estava inscrito no teu ADN, numa família de nobres tradições como a nossa, mas arruinada, que deu alguns bravos soldados à Pátria… Desde 1640, oriundos do terceiro estado, o povo, que o novo rei, o Senhor Dom João IV, o primeir0 da dinastia de Bragança, irá nobilitar... Tinha um lugar especial na nossa sala de jantar, com o retrato sobre o topo da nossa mesa comprida que só se usava em dias de festa... A casa cheia, a alegria dos nossos pais, a reunião anual da família extensa, do clã...Lembras-te ?
Porra, mano, não sei se foste um bom cristão. Assalta-me agora essa dúvida. Não pesei o teu saco de pecados, nem sei se os pecados têm peso… Acho que sim, há alguns hediondos, que devem pesar toneladas.
Porra, mano querido, olho para o teu cadáver, ponho a mão na tua testa, gelada como o granito da nossa casa, e causas-me horror e dó: o que fazem a um gajo depois de morto!... Com milhões de micróbios em marcha para, na linha de desmontagem, te limpar a carcaça, por dentro e por fora...
E a tua gaja, a viúva alegre, essa, ainda vai gozar metade da tua pensão de reforma de herói nacional, com um marmanjo qualquer que ela há-de conhecer no Facebook ou no ginásio onde faz Pilates e olhinhos sofridos de Barbie, a pestanejar de rimel, aos putos de vinte anos, cheios de testosterona… (Não tive sorte com as tuas mulheres.)
Mas o que estás para aí a rosnar entre dentes ? Oiço já mal, mas mesmo assim sou capaz de reconstituir o teu pensamento, a tua voz, cavernosa, de ventríloquo, que vem, senão das profundezas do Inferno, pelo menos do outro lado do rio que acabas de atravessar, na barca de Caronte…
“Meu sacana!, desta vez passaste-me a perna!... Não pediste a bênção ao mano velho, como te ensinaram os nossos pais. Foste um cobardolas de merda, podias ter sido solidário comigo... Podíamos ter feito a nossa viagem juntos, sempre era menos penosa. Iríamos empoleirados, divertidos, na minha Chaimite, a cantar as canções da nossa alegre infância que eu te ensinei, na Mocidade Portuguesa... Tu, um lusito de palmo e meio!. Sempre tínhamos as férias grandes para estarmos juntos, na nossa quinta, apesar da diferença de idades!... Essa seria a tua derradeira (e verdadeira) prova de fraternidade, de amor e de amizade!... Mas não tenho esse direito, o de te pedir o supremo sacrifício da vida, nem que fôssemos irmãos gémeos verdadeiros!... Espero que ainda tenhas, ao menos, uma longa vida para te poderes ir lembrando, de quando em vez, com saudade, deste teu pobre amigo, mano e mentor”…
E como vais querer ser lembrado ? Como um herói?!
“Sim, justamente como um herói. Lembras-te como tu me dizias ?!... Sempre tiveste a mania de recorrer à mitologia grega, com referências eruditas, chatas p'ra burro, para um gajo como eu que era de cavalaria, e que nunca gostei de estudar: ‘Meu herói, mais do que um homem, menos do que um deus’... Sempre me chamaste 'meu herói’... E eu até gostava, confesso, mas sem nunca te levar a sério. Quero, por isso, que te lembres de mim como um herói. Sempre gostei da tua definição de herói, mais do que homem, menos do que deus...”
Seja, então, feita a tua última vontade, grande cavaleiro!
“Podia ter morrido pela Pátria!?... Com Honra e Glória!... Mas, não, acabei por ser um burocrata da tropa, no fim da carreira, num daqueles serviços do Exército que ninguém quer chefiar"...
Deixa-te de tretas, tivemos muitas discussões em vida, sobre isso. E sobre o teu militarismo. Sempre foste um bocado militarista. Que tu tenhas recebido a cruz de guerra, tudo bem. E foi bem merecida. Felizmente que não foi a título póstumo... Estou a ser egoísta, desculpa lá, queria eu dizer: não fiquei, assim, privado de conviver contigo, mais estes quarenta e tal anos...
“É doce morrer pela Pátria”: ensinaram-me na Academia Militar, uma escola de valores e virtudes que tu nunca tiveste o privilégio de conhecer… E, se bem me lembro, onde nunca me foste ver, a não ser no juramento de bandeira, com os pais e a mana. Sem esquecer o Colégio Militar, de que guardo as melhores recordações e onde fiz amigos para a vida. Chamas a isto militarismo ?”
Não, aí já não te acompanho, nem nunca te acompanhei, a partir dos meus 18 anos, quando rompi com o passado. Bem sabes que nunca tive jeito para a tropa, como tu e os nossos antepassados que seguiram a carreira das armas. E fiquei com fobia aos internatos. Fiz o que tinha a fazer, como português e cidadão, que foi o serviço militar obrigatório. Honrei a palavra dada ao nosso pai... Não fugi. E fui "infante", tropa-macaca, como a gente dizia na Guiné...
“A nossa querida e saudosa mãe queria que eu fosse para padre, contrariando o avô, o pai dela, que era anticlerical, como sabes... E o nosso pai, esse, queria que eu seguisse a tradição da família… Acabei por ir para o Colégio Militar e entrar na Academia, graças aos pergaminhos da nossa casa e à nobreza da nossa linhagem… Mas sei que o nosso pai, que Deus lá tem, teve de fazer das tripas coração. Vivíamos acima das nossas possibilidades, com as míseras rendas dos caseiros e os roubos do feitor... Mais uma vez, valeu-nos a cunha do nosso primo general, que foi sempre um grande e leal amigo da família...”
O seminário sempre era mais barato. Ir para Lisboa era um pesado encargo para a família. E a nossa mãe, com a sua intuição, o seu sexto sentido, parece que estava a adivinhar que os tempos que aí vinham, não eram propriamente cor de rosa...
Sobrou para mim, que acabei por ir para Montariol, em Braga... Já que tinha um filho oficial do Exército, um garboso oficial e cavalheiro, faltava-lhe, à nossa mãe, um missionário, barbudo, de sotaina branca, para dilatar a fé e o império. Mas eu cedo percebi que os votos de pobreza, obediência e castidade eram um fardo demasiado pesado para um jovem que não tinha cometido nenhum crime lesa-família ou lesa-pátria, só queria afinal viver, e viver a vida do seu tempo… E que tempos, esses, os dos anos 60, meu irmão!
Fui aguentando, à custa de muitos sacrifícios pessoais, de muito ranger de dentes, com muito cinismo à mistura, só para não dar um desgosto à nossa mãezinha... Quando ela morreu, precocemente, ainda tão jovem, tão cedo e tão linda, eu já estava em teologia, no Seminário da Luz, em terra de mouros... Há muito que tinha perdido a vocação ou percebido que não tinha jeito nem feitio para missionário franciscano desterrado para Angola, Guiné ou Moçambique...
Voltei ao Norte. Mal tive tempo de respirar o ar livre da noite do Porto (que na altura era uma chungaria), chamaram-me para a tropa e, de seguida, meteram-me num barco, misto de carga e passageiros, direitinho à Guiné.
“Já eu tinha passado por Moçambique, foi lá que me cobri de honra e glória, e ganhei esta cruz de guerra que ostento, com orgulho, ao peito... E já tinha trinta e muitos”…
Em boa verdade, eu tive infância (e tão feliz!), mas não tive nem adolescência nem juventude... Tal como tu, que passaste os teus melhores anos entre a caserna e o ultramar… Envelheci, pelo menos uma década, no seminário, na tropa, na guerra...
Quando voltei da Guiné, fui à procura do tempo perdido... Andei na noite, na má vida, com más companhias, desperdiçando o resto dos meus verdes anos, dando cabo do fígado e arriscando a saúde, com uísque marado e as gajas da noite... Felizmente, ainda não havia, nesse tempo, o VIH/Sida... Ou estava em incubação...
À beira do abismo, na 23ª hora, conheci a Manela, que me levou, de novo, para o caminho do bem... Estamos casados há 40 anos. Foi o segundo anjo da guarda que conheci na vida, depois da enfermeira paraquedista que me levou para o hospital militar de Bissau, e me salvou do inferno de... Ai!, porra, já não me lembro (ou não quero lembrar ?!) do raio do sítio onde apanhei uma mina anticarro que matou uma meia dúzia dos nossos… Começava por um G, de Guiné... Guigiti? !... Peço-te desculpa pela branca... Como também não me lembro do nome desse anjo que veio do céu, para me salvar. Imperdoável!... A minha memória já não é o que era... Ainda gostava de a conhecer, a essa enfermeira paraquedista, se por acaso ainda for viva, como espero...
Acabou-se a guerra, para mim, nesse dia. E lá percorri as estações do calvário: Hospital Militar, em Bissau, Hospital Militar Principal, na Estrela, depois o Centro de Reabilitação de Alcoitão... Muitos meses em tratamento e recuperação, uma prótese no calcanhar, enfim, foram as medalhas que eu trouxe da Guiné... E tenho uma pensão de merda como Deficiente das Forças Armadas.
Nunca ninguém me foi visitar, nem sequer as senhoras do Movimento Nacional Feminino... E muito menos o meu pai, o que eu entendo e até perdoo: Vila Nova de Cerveira ficava longe da capital e o pai, não sei se te lembras, já estava doente... A nossa mãe, essa, já tinha partido para a beira do Padre Eterno.
“Tiveste azar, irmãozinho… Os manos do meio, esses, lá se foram desenrascando, pior ou melhor. O António foi 'a salto' para França, para grande desgosto dos pais, era refratário e tornou-se um comuna de merda… O Jorge, depois do magistério primário, livrou-se da tropa, com um grande cunha de um médico militar do Porto; a mana, essa, lá casou, tarde e a más horas, com um servidor público, chefe de finanças de Braga”…
Sabes ?!, nunca te contei isto!... Aos dez anos quis ficar órfão e depois morrer, quando fui para o Seminário de Montariol. É monstruoso, tenho que o admitir: desejei a morte dos nossos pais!... Eles, coitados, já não estão cá, e espero que não me oiçam... Mas, se me estão a ouvir, que me perdoem!... Agora, eu não sei é se Deus me vai perdoar. Nunca contei o segredo, nem sequer ao meu confessor nem ao meu diretor espiritual... Estou-te a contá-lo, pela primeira vez, e sei que me vais saber escutar, entender e perdoar....
"Achas que é normal um puto querer morrer na flor da idade ? Ou sentir um secreto prazer em imaginar-se órfão de pai e mãe ?... Eras um monstrozinho!"...
Sim, quis matá-los!... Sentia-me só, abandonado, terrivelmente só, perante Deus Todo Poderoso… Para trás de mim, e cada vez mais distante, ficava o mundo… Um a um via desaparecer, separados por vidro fosco e espesso, os rostos que me eram familiares e queridos, os dos meus pais, irmãos, tios, primos, mas também os dos meus amigos e colegas de escola… Um vidro cada vez mais grosso transformado em muralha instransponível...
“Também passei por esse choque, essa angústia, a da separação, quando fui para o Colégio Militar, lá longe, na capital do império… Passava da nossa casinha, da nossa quinta, da nossa querida família extensa, onde conviviam três gerações, para um casarão, uma instituição castrense dominada, aos meus olhos de puto, por seres poderosos, prepotentes, mesquinhos... Tive medo, sobrevivi às praxes, enfim, sabes como era naquele tempo... Mas nunca me passou pela cabeça essas ideias malucas de suicídio ou de orfandade... Sempre foste, afinal, um puto mimado, sobretudo pela mãe e pelo avô Francisco que te queria fazer doutor de letras!"...
Em boa verdade, eu sentia-me abandonado por todos, e até por ti, que eras o meu herói, o meu ídolo, o meu anjo da guarda!...
“Não te podia valer, por muito que o quisesse!... No início do último trimestre de 1958, eu já estava na Índia como alferes... Uma eternidade para lá chegar, seguimos o caminho de Vasco da Gama, deixámos tropa e material em Angola e em Moçambique…”
E tu, meu sacana ?!... Sempre foste um mulherengo, um escravo do gineceu, um gajo fraco com as mulheres, como eu mais tarde vim a descobrir!...Na altura, fiquei chocado e dececionado contigo, que eras o meu ídolo, quando te apanhei, nu em pelota, no espigueiro, montado na filha de um dos nossos caseiros... 'Boa como o milho', rías-te tu, meu safado... Armado em pinga-amor, um Dom Juan minhoto, caíste mais do que uma vez como a mosca no vinagre…
"Cala-te, não sejas ingrato!... Ainda te quis levar às putas em Vigo!...Mas, tu, parolo, quiseste ficar virgem até à ordenação de padre!... Ah!, ah!, ah!... Eh!, e nada de aldrabices, essa filha do caseiro era a Joaquina das Bouças, ficámos até bons amigos. Estamos quites, tratei-lhe do passaporte e paguei-lhe a passagem de comboio para França, lá casou com um mouro de Moura ou Mourão, um gajo do Sul..."
Abelhudo, era o que tu eras!... Sempre atrás do mel, sem te importares com os sarilhos de saias que arranjavas e as aflições que causavas à nossa pobre mãezinha... Ficas a saber que não posso com a gaja que te caçou há 15 anos, no carnaval do Rio de Janeiro, ainda estavas viúvo de fresco... Nem sei que idade tem, a tua 'coronela', muito mais nova do que tu!... Deve ter a idade dos teus filhos mais velhos, os do teu primeiro e trágico casamento... E que eu mal conheço, nunca ou raramente foi às últimas festas da família. Felizmente que não tens filhos da brasileira...
“Não te admito que fales assim da minha legítima esposa, e agora viúva, face à lei de Deus e dos homens… Se me pudesse pôr de pé, ainda te dava com o pingalim na cabeça e depois um valente murro nas ventas”…
Desculpa, mano velho, não tenho o direito de me intrometer na tua vida privada e na vida da tua família, e das tuas mulheres com quem, se calhar por ciúmes, nunca simpatisei…
Mas que falta de pudor, de compostura e sobretudo de respeito por ti, que estás em câmara ardente, recebendo a derradeira homenagem dos teus familiares, amigos e camaradas de armas!...
Acho que me vou retirar, com a tua licença... Durmo mal, vou descansar um pouco, estou zangado, volto amanhã, para rezar por ti e encomendar a tua alma... Vais ter com o nosso pai e a nossa mãe, e o nosso Jorge, coitado, que Deus também já lá tem... Espero amanhã estar mais calmo e pedir a Deus que me perdoe, se me excedi e se O irritei. Deus não gosta que O irritem.
Vou rezar por ti e pedir a Deus perdão pelos teus e pelos meus pecados. Nunca me hei esquecer das palavras que a nossa mãezinha nos obrigava a rezar: antes de irmos para a cama, e depois da oração ao anjo da guarda, vinha a Avé Maria que terminava com o "E na hora da nossa morte, ámen!".
(*) Último poste da série : 5 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24726 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (10): I want you, dead or alive!