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quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20144: Controvérsias (137): Craveiro Lopes em Bolama, em visita de Estado... Era presidente da câmara municipal o Júlio [Lopes] Pereira, que passa, em dez anos, de cidadão respeitável a proscrito social... (Recorte de imprensa: "Diário Popular", Lisboa, 6 de maio de 1955)















Notícia do "Diário Popular", de 6 de maio de 1955, relativa à viagem do Chefe de Estado,  general Craveiro Lopes, à Guiné, com passagem por Bissau e Bolama e depois visita ao interior. Em Bolama, era presidente da Câmara o Júlio Lopes Pereira, colono e comerciante em Bolama, condecorado em 1947, ao tempo do governador Sarmento Rodrigues,  com o grau de Cavaleiro da Ordem do Mérito - Classe de Mérito Industrial. (Decreto de concessão publicado em D.G. de 29 de abril de 1947). Já nos anos 30 estava radicado em Bolama.


1. Presumimos que seja o mesmo Júlio [Lopes] Pereira, morto em novembro de 1965, em Farim... Foi acusado pela PIDE e pelas autoridades militares de Farim (comando do BART 733) de ser o "autor moral" do atentado terrorista de 1 de novembro de 1965, em Farim.

A tratar-se da mesma pessoa, o Júlio [Lopes] Pereira,  radicado em Bolama,  desde os anos  30 e depois em Farim (nos anos 60), seria o pai da jornalista Ana Emília Pereira (,"Milocas" Pereira, para os amigos), jornalista e docente universitária da Guiné-Bissau, a viver em Luanda desde 2004 e entretanto desaparecida, "misteriosamente", em 2012.

A tratar-se da mesma pessoa, verifica-se terá passado de cidadão respeitável a "proscrito social", tendo sido morto às mãos da PIDE em Farim, na sequência do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965. cuja autoria nunca foi reivindicada.(*)

As circunstâncias da morte do Júlio [Lopes] Pereira, de Farim, já aqui foi relatada por Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai" (n. 1929), seu amigo (**):

(...) "Em 1964, requeri terreno onde se encontram as minhas actuais instalações e iniciei as obras. Então o número de contactos aumentou. Concentrávamo-nos frente às minhas obras, com o perigo a aumentar passamos a organizar jantares e mais festas. O grupo engrossou, com Júlio Pereira (que vinha de Farim), Armando Lobo de Pina, Domingos Maria Deybs, João Vaz, Elisée Turpin, Pedro Pinto Ferreira, Duarte Vieira, Aguinaldo Paquete, eu, Carlos Domingos Gomes, etc.

Estes encontros organizavam-se sempre que o Júlio Pereira vinha de Farim para nos trazer as notícias da evolução da luta, que já estava muito avançada. Tudo estava sob perigo, sob vigilância da PIDE.

(...) Como uma bomba soou-nos a notícia da prisão de Júlio Pereira em Farim, na sequência de uma granada atirada a um ajuntamenmto numa festa de tambor em Farim. Foi sovado que nem um animal e obrigado numa cela a lutar com um companheiro até à morte.

Eu era vereador da Câmara Municipal de Bissau, com o velho companheiro Benjamim Correio, Dr. Armando Pereira e Lauride Bela. Ninguém me fazia acreditar que seria preso, dada a forma isolada como actuava durante a distribuição de arroz. Atendia tudo e todos, até às pessoas que desmaiavam oferecia arroz, punha no meu carro e levava-as a suas casas, mas sempre de cara amarada (sic), porque sabia que a minha actividade estava sendo vigiada.


(...) Com a morte de Júlio Pereira, a raiva que gerou,  atingiu-nos a todos, Benjamim Correia que era meu colega, também vereador da Câmara [de Bissau], todos muito vigiados, colocou-me os anseio da filha, Luisa Pereira, esposa do  Júlio Pereira, de pedir o corpo do marido. 

Dirigi.me ao gerente da casa onde trabalhava, a Ultramarina, de nome Figueiredo, a transmitir-lhe a mensagem de Benjamim Correia e da filha. Telefonou para o director da PIDE, e este para me perguntar quem nos informou da morte. Situação que aumentou ainda mais as suspeitas da minha atuação, isto já no decorrer dos anos 1965/66. Esta onda passou." (...)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá >  Saltinho > Ponte General Craveiro Lopes > Lápide, em bronze, evocativa da "visita, durante a construção" do então Chefe do Estado Português, general da FAP Francisco Higino Craveiro Lopes, acompanhado do Ministro do Ultramar, Capitão de Mar e Guerra Sarmento Rodrigues, em 8 de Maio de 1955. Era Governador Geral da Província Portuguesa da Guiné (tinha deixado de ser colónia em 1951, tal como os outros territórios ultramarinos...) o Capitão de Fragata Diogo de Melo e Alvim... Craveiro Lopes nasceu (1894) e morreu (1964), aos 70 anos.  Foi presidente da República entre 1951 e 1958 (substituído então pelo Almirante Américo Tomás). Não morria de amores por Salazar.

Como se pode ler na página do Museu da Presidência da República:

(...)  Após a eleição de Américo Tomás para a Presidência, em 1958, Craveiro Lopes é, em Novembro desse ano, promovido a marechal.

Apesar da promoção, torna-se progressivamente crítico do regime. Logo em 1959, alguns militares que lhe são próximos, participam activamente no "golpe da Sé", movimento militar revolucionário, promovido por oficiais ligados a Humberto Delgado, desmantelado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Esta mesma polícia não deixará de o manter sob apertada vigilância, controlando todos os seus movimentos até ao final da sua vida. É com total envolvimento que o vamos encontrar ligado à chamada "Abrilada" de 1961 ("golpe de Botelho Moniz"). Craveiro Lopes é um dos militares presentes no plenário dos comandantes militares, na Cova da Moura, convocado por Botelho Moniz. O plano delineado previa que Craveiro Lopes voltasse a ocupar a chefia do Estado, e que Marcelo Caetano pudesse vir a tornar-se chefe do Governo. Considerando a situação irremediavelmente perdida, e perante a desistência dos outros implicados na conspiração, o marechal é um dos poucos que defende a desobediência e o confronto militar com as forças fiéis ao regime.

(...) O seu ressentimento em relação a Salazar e a certas figuras do regime será (...),  até ao fim da sua vida, profundo e irremediável. (...) As suas últimas intervenções com peso político dão-se em 196[2]: o prefácio que aceita fazer ao opúsculo da autoria de Manuel José Homem de Mello "Portugal.  o Ultramar e o Futuro", no qual defende a necessidade de se encontrar uma "solução verdadeiramente nacional" e promover uma "livre discussão", para o que uma maior liberdade de imprensa constituía factor fundamental; a entrevista que concede, meses depois, ao Diário de Lisboa, publicada na edição de 10 de Agosto, onde leva as suas críticas mais longe, defendendo a livre discussão dos principais problemas do país, "a evolução gradual do regime", a abolição da censura" e a "liberdade de expressão e discussão", apelando ainda à "coragem" e ao "bom senso", no âmbito da política ultramarina, a fim de que se reconheçam "as realidades da hora presente". (...)

Foto: © Albano M. Costa (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20142: Controvérsias (136): Não consta que o Amílcar Cabral, o "pai da Pátria", tenha reivindicado a autoria (moral e política) do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim, e muito menos denunciado ou condenado esse ato monstruoso... Pelo contrário, até lhe convinha, para memória futura, que as criancinhas de Farim continuassem a repetir, em coro, estes anos todos, na escola, que esse ato foi obra maquiavélica e tenebrosa dos "colonialistas portugueses"...

(**) Vd. poste de  10 de agosto de  2010 > Guiné 63/74 - P6843: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (5): Júlio Pereira, preso, torturado e morto na prisão pela PIDE, suspeito de estar por detrás dos graves acontecimentos de Farim, em 1/11/1965

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20135: Controvérsias (134): os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, em 1 de novembro de 1965: a memória das vítimas e o risco de falsificação da história... Excertos de reportagem do jornal "O Democrata", Bissau, 13/11/2014


Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 2015 > Memorial e largo Mártires do Terrorismo >  Alguns dos sobreviventes do massacre de Morocunda (ou Morcunda), em 1 de novembro de 1965. Foto de Armando Conte, um dos organizadores da homenagem às vítimas. Cortesia de TV Guiné-Bissau (*)


1. Parece que ainda há, na Guiné-Bissau, e em especial em Farim, quem pense, mais de meio século depois, que os trágicos acontecimentos do dia 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim (**), foram provocados pelos "colonialistas portugueses"... 

Nessa noite teria havido "uma série de rumores que indicavam que um avião militar 'Dakota' (sic) iria efetuar uma rusga para perseguir e consequentemente prender pessoas nos bairros de Morcunda, Nema, Sintcham, Gã-sapo e Praça." (**)

Consequentemente, "o massacre de Farim" terá resultado de um "bombardeamento", indiscriminado, efetuado por um Dakota (!)... Indiscriminado, não, digamos... cirúrgico!... As vítimas, sobretudo mulheres e crianças, terão sido apanhadas "no meio da dança do 'Djamdadon' uma das manifestações culturais da etnia Mandinga"... Mas também houve, entre os militares presentes, um ferido grave e vários feridos ligeiros..., o que é omitido na reportagem do jornal 'O Democrata'.

Alguns dos sobreviventes, entrevistados em 2014 pelo jornal 'O Democrata' (**), admitem honestamente que são incapazes de atribuir responsabilidades ao PAIGC ou aos "colonialistas"... O próprio jornalista [,Filomeno Sambú,] reconhece que até agora [, 2015,] não há informações concretas sobre a verdadeira origem do ataque. 

Mas outros são perentórios: "Sobreviventes ilesos e testemunhas reclamam que se tratou de um ato bárbaro e premeditado perpetrado pelos colonialistas portugueses devido às perseguições contra certas pessoas ligadas ao partido PAIGC. (...) Ao mesmo tempo {que] pedem a intervenção do Governo guineense junto de Portugal para indemnizar todas as vítimas do atentado que ceifou as vidas de dezenas de pessoas e cerca de cem feridos."

Há óbvias contradições nos depoimentos: Malam Sané, um dos sobreviventes, diz que "depois do bombardeamento, na mesma noite do dia 1 de novembro, o primeiro grupo dos feridos foi evacuado de imediato para Bissau num avião" [, avião esse que sabemos que foi um Dakota, a única aeronave da FAP que estava em condições de voar à noite]. A explosão do engenho, lançado para a fogueira, terá sido tão violenta que algumas testemunhas tê-la confundida com a de um "bombardeamento aéreo"..., o que nos parece totalmente inverosímil. O 'Dakota', o avião de transporte (e não propriamente um "bombardeiro"),  que aterrou nessa noite em Farim, veio fazer as evacuações dos feridos mais graves... Na memória de alguns sobreviventes, na altura crianças, poderá ter ficado a imagem aterradora de um Dakota que provavelmente nunca tinha visto antes, muito menos à noite...

Naturalmente  também temos sérias reservas em relação à versão "oficiosa" dada na altura pelas autoridades portuguesas, neste caso o comando do BART 733 (***)... Bom seria que, ainda hoje, passados estes anos todos, o exército português fizesse uma investigação independente ao ocorrido em 1 de novembro de 1965. Alguns camaradas nossos, como o António Bastos e o Virgínio Briote, estavam lá, em Farim, nesse fatídico dia, mas não exatamente em Morocunha (antigo bairro, afastado do centro da vila).

O segundo grupo de feridos, onde se incluía Malam Sané, foi evacuado "de Farim em direção a Bissau às 8 horas do dia seguinte".

Que foi um ato de terrorismo, hediondo, foi, estamos todos de acordo. Perpetrado por quem, não sabemos. O PAIGC nunca o reivindicou. AS NT, por sua turno, acusam elementos locais,  como o comerciante Julio Lopes Pereira, de estarem por detrás deste atentado, que vitimou sobretudo mulheres e crianças, vítimas inocentes.

2. Aqui vão alguns excertos da reportagem de Filomeno Sambú (**), com a devida vénia:

(...) Depois de quarenta e nove (49) anos do Massacre de Morcunda, uma tabanca situada nos arredores da cidade de Farim, no norte do país, um grupo de pessoas decidiu trazer à memória os acontecimentos ocorridos a 1 de novembro de 1965 com registros de mais de trinta vítimas mortais e cerca de cem feridos, na sua maioria mulheres e crianças.


Na cerimónia de homenagem às vítimas deste bombardeamento de 1965, foi depositada uma coroa de flores em memória dos falecidos. O Governo central, a administração local e os deputados da nação eleitos em Farim nas últimas eleições legislativas de abril fizeram-se representar na cerimónia.


Segundo informações de testemunhas, o atentado que matou civis inocentes, aconteceu à noite, no meio da dança do “Djamdadon”, uma das manifestações culturais da etnia Mandinga.



A dança ocorria ao ritmo de sons de tambores tocados pelos “Djidius” com a multidão à volta do local. Dados recolhidos no terreno pelo Jornal 'O Democrata' revelaram ainda que o número das vítimas poderá não ter sido o que consta dos documentos coloniais [27 mortos e 70 feridos graves, todos civos, mais um ferido grave entre os militares portugueses] .

Depois do bombardeamento houve pessoas que tentaram resistir aos ferimentos, mas acabariam por morrer, ficando fora dos dados oficiais disponíveis nos boletins de informações coloniais.



A equipa de 'O Democrata' que se deslocou a cidade de Farim,  viu o local e pôde ainda constatar a tristeza e as lágrimas a caírem dos olhos de crianças depois de vários depoimentos de testemunhas ainda em vida. Este facto revela que o que aconteceu foi muito doloroso e que ainda abala a memória dos cidadãos daquela terra.



Os organizadores pretendem que no futuro a iniciativa seja institucionalizada como dia de Farim, porquanto é um dos maiores massacres da história do povo local.



Malam Sané, um dos sobreviventes do ataque, recorda de 1 de novembro de 1965 com muita tristeza e mágoa. O sobrevivente disse que estava inconsciente e que apenas se lembra dos momentos ocorridos antes do ataque.



Depois do Bombardeamento, na mesma noite do dia 1 de novembro, o primeiro grupo dos feridos foi evacuado de imediato para Bissau num avião [, um Dakota}. A segunda equipa que incluía Malam Sané saiu de Farim em direção a Bissau às 8 horas do dia seguinte.



Malam Sané informou ainda que antes do rebentamento, estava ainda em casa com a sua mãe e que de repente chegaram-lhes uma série de rumores que indicavam que um avião militar 'Dakota' iria efetuar uma rusga para perseguir e consequentemente prender pessoas nos bairros de Morcunda, Nema, Sintcham, Gã-Sapo e Praça.


Mas sobretudo Gã-Sapo e Praça, não especificando contudo as razões porque os dois últimos bairros foram sublinhados. Poucas horas depois de chegar no local, por volta das 22 horas, aconteceu o ataque que vitimou civis inocentes e feriu perto de cem pessoas, explicou Malam Sane com lágrimas nos olhos: “não posso prosseguir, chega” – concluiu.

Sadjo, também uma das sobreviventes do atentado, conta a sua versão na primeira pessoa. Disse que foi atingida por um estilhaço de granada que lhe cortou a barriga e que, em consequência dos ferimentos, não conseguiu comer nem beber água durante um mês. E enquanto recuperava desses ferimentos foi ajudada por médicos que administraram um soro. “Até agora padeço de dores devido aos ferimentos na barriga. Não consigo fazer nada nem jejuar”, notou a vítima.

Ela fez parte do primeiro grupo evacuado para Bissau. Referiu que depois da detonação que ouviu, nada mais soube e não pode avançar com explicações se foi algo preparado internamente ou pelos colonialistas, porque “estava no ponto da morte”, assinalou.


Armando Conté, um dos membros da organização [da cerimónia de homenagem aos 'mártires do terrorismo'], referiu que o motivo fundamental da comemoração do dia é solidarizar-se com todas vítimas e também informar as pessoas que não tinham nascido, quando o triste acontecimento sucedeu em Farim, para poderem se informar daquilo que realmente se passou no sítio do monumento. ainda em construção.


Lembra que é um primeiro passo apenas para que agora em 2015, quando se completam 50 anos, que o Governo central declare o dia 1 de novembro, curiosamente dia dos fiéis defuntos, como um dia de “ reflexão de Farim”, referiu.

“Penso que o Governo vai estar na posição de nos ver, ouvir e dar a voz a quem não tem voz. Acredito que esse ato vai ser o princípio de muitas coisas que virão para Farim e com a iminência da exploração do fosfato local”, disse.

Armando Conté disse ainda que, em 2015, a organização está construindo um monumento com nomes de todas as vítimas, para que sirva de informação aos mais novos e as gerações vindouras.

Entretanto, até agora não há informações concretas sobre a verdadeira origem do ataque. Vítimas sobreviventes do atentado dizem desconhecerem por completo a proveniência desse bombardeamento e os seus motivos específicos.

Sobreviventes ilesos e testemunhas reclamam que se tratou de um ato bárbaro e premeditado perpetrado pelos colonialistas portugueses devido às perseguições contra certas pessoas ligadas ao partido PAIGC.

As vozes que se levantaram agora atribuem o ataque aos portugueses. Ao mesmo tempo pedem a intervenção do Governo guineense junto de Portugal para indemnizar todas as vítimas do atentado que ceifou as vidas de dezenas de pessoas e cerca de cem feridos.

O registo do atentado está nas duas páginas deste livro [, história da unidade, BART 733 ?] que 'O Democrata' conseguiu fotografar, com a solidariedade de um dos elementos da equipa de reportagem da RTP-África em Bissau. (...)

[Essas imagens das supracitadas páginas não constam da edição eletrónica desta reportagem, de que reproduzimos o essencial. LG]
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Notas do editor:

(*) TV Guiné-Bissau > Memória: Farim e o massacre de 1965. Reprodução de texto de Filomeno Sambu, jornal "O Democrata", 13/11/2014

(**) Vd. O Democrata, Guiné-Bissau > 13/11/2014 > Filomeno Sambú > Reportagem: Farim recorda o massacre de 1965 com mágoa.


sábado, 7 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20130: Controvérsias (133): Os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, de 1 de novembro de 1965, um brutal ato de terrorismo, cuja responsabilidade material e moral nunca foi apurada por entidade independente: causou sobretudo vítímas civis, que estavam num batuque: 27 mortos e 70 feridos graves


Guiné > Região do Oio > Mapa de Farim (1954)  > Escala de 1/50 mil > Posição de Morocunda, bairro de Farim.



Guiné- Bissau > Região de Oio > Farim > Março de 2008 > Cádi ou Cati, uma sobrevivente dos trágicos acontecimentos de 1 de novembro de 1965. O António Paulo Bastos conheceu-a, ma Missão Católica, na altura da sua 3ª viagem à Guiné-Bissau.

Fotos (e legenda): © António Paulo Bastos (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Excerto de relatório sobre o período de 1 a 30 de novembro de 1965,  inserido na história do BART 733, Bissau e Farim, 1964/66). Cortesia do nosso camarada e grã-tabanquerio António Paulo Bastos,
ex-1º Cabo do Pelotão de Caçadores 953 (Cacheu, Bissau, Farim, Canjambari e Jumbembem, 1964/66) (*).

1.  Ainda está envolta em controvérsia a responsabilidade material e moral dos trágicos acontecimentos de 1 de novembro de 1965, em Morocunda [e não Morucunda...], nas imediações de Farim (**), aqui relatados em primeira mão pelo António Bastos, em 2009, em 3 postes (*) mas já referidos antes pelo Virgínio Briote (***)... 

Só conhecemos a versão da PIDE e do BART 733,  atribuindo a responsabilidade do atentado a "elementos subversivos"... Tanto quanto sabemos, o PAIGC nunca reivindicou a autoria deste horrendo atentado, que teve um balanço trágico, segundo o documento acima reproduzido: 27 mortos e 70 feridos graves, além de feridos ligeiros, entre a população civil; um ferido grave, entre as NT. 


(i) Poste P5203, de 3 de novembro de 2009:

CARNIFICINA EM FARIM

1 de Novembro de 1965

Camaradas,

No passado dia 1 [de novembro de 2009]  completaram-se 44 anos, sobre um ataque que me marcou profundamente. Tenho duas fotos de uma das sobreviventes e lembrei-me de enviar para serem publicadas no blogue.

Tudo aconteceu em Farim, resultante do rebentamento de um engenho explosivo, em pleno batuque na tabanca do Bairro da Morocunda.

Eram 21h30, quando um elemento da milícia lançou um fornilho (uma granada embebida em pregos, lâminas e bocados de ferros), para o meio do pessoal presente.

27 mortos e 70 feridos graves, uma deles era uma senhora que podem ver nas fotos e que, nessa altura, era ainda uma criança de 10 anos. Chama-se Cáti, mora atualmente em Farim e, em março de 2008, fui encontrá-la numa festa na Missão Católica em homenagem a um grupo de turistas “tugas”, que por ali passaram 2 dias.

Como tudo aconteceu: eu pertencia ao Pelotão Caçadores 953 e estava nesse dia de passagem por Farim, a caminho de Canjambari. No momento da explosão,  eu estava junto à porta da caserna do pelotão de morteiros. Logo de seguida, começaram a passar viaturas com corpos em cima, a caminho das enfermarias civil e militar.


A maioria das vítimas eram crianças e, entre elas,  estava a Cáti. Foi chamado um Dakota e recorreu-se à iluminação da pista de aterragem, com os faróis das viaturas, para se evacuar aquela gente toda.

Agora, passados estes anos, fui encontrar uma das sobreviventes e, como não podia deixar de ser, estivemos a falar do assunto, tendo ela permitido que eu obtivesse as 2 fotos do seu cicatrizado corpo. (...)

(ii) Poste P7205, de 1 de novembro de 2010:

 (...) Neste fatídico Dia 1 de novembro de 1965, pelas 21:30, horas estava eu de passagem por Farim esperando transporte para Canjambari, quando se dá um rebentamento no Bairro da Morocunda em Farim que causou a morte a 27 pessoas, 70 feridos graves e vários ligeiros, todos civis. As NT sofreram 1 ferido grave e um ligeiro.

O engenho, duas granadas reforçadas com explosivos, pregos e lâminas, foi lançado para o meio do batuque onde era suposto estar muita tropa, o que não aconteceu, porque se tinha feito uma operação e o pessoal estava ainda a descansar.

Pela primeira vez na Guiné um Dakota levantou de noite para proceder à evacuação dos feridos.

No dia seguinte já se encontravam presos na 1.ª Companhia de Caçadores em Nema (Farim), 60 indivíduos entre eles: Pedro Mendes Fernandes, Bernardo da Cunha, Raul Teixeira Barbosa, José Maria Jonet, Dionísio Dias Monteiro, Pedro Tertuliano, Dionísio da Silva Pires (este empregado dos CTT)  e muitos mais, todos empregados das repartições públicas e casas comerciais.

As prisões foram feitas pelo agente da Pide, de nome Prodízio e militares da CCS do BART 733. (...)



(...) No relatório falam de um agente da PIDE. O seu nome era Prodísio (nunca mais me esqueci) e, em conversa com a Cáti (ou Cádi,  não me lembro exactamente), ela confirmou-me que, depois de recuperada dos graves ferimentos que sofreu, regressou a Farim, tendo sido empregada na casa dele.
No mês de narço de 2008, ao passear com a Cáti em Farim, ela disse-me onde tinha morado o tal PIDE e onde trabalhava.

Sobre relatórios, tenho em meu poder, ainda, os do BART 733 e do BCAV 490, pois foram os batalhões onde estive adido. (...)


Em 2007, o Virgínio Briote já se te tinha referido a este ato de terrorismo,  citando o testemunho de um preso político entrevistado pela historiógrafa Dalila Cabrita Mateus (**): Pedro Pinto Pereira, nascido em Bissau, em 1926, preso e desterrado para São Nicolau, Angola (1966-1969), libertado no tempo do Spínola. Será mais tarde preso depois da independência da Guiné-Bissau, acusado de colaboracionismo.

O Virgínio Briote também estava lá nessa altura, em Farim (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


4 de novembro de  2009 > Guiné 63/74 - P5211: Efemérides (32): 1 de Novembro de 1965 – Relatório Oficial da Carnificina em Farim (António Paulo Bastos)

(...) Que assistira ao fabrico de uma bomba. Quando eles (PIDE) é que tinham deitado uma bomba em Farim, onde mataram muita gente,

(...) (quem lançou a bomba?) Foi a PIDE que mandou, tenho a certeza disso. Lançou a bomba para depois dizer que nós até matávamos africanos. Ali não havia quartéis, só havia casas comerciais, onde era fácil lançar bombas e fugir. Porque é que não lançavam as bombas nos quiosques, frequentados pelos militares portugueses? E iam deitar onde só estava a população? Queriam arranjar pretexto para fazer prisões. Havia, então, uma festa numa tabanca e morreram mais de cem pessoas. Isto passou-se no dia 1 de Novembro de 1965. (...)

(...) Nota da historiadora: Confirmado o incidente, a PIDE, em mensagem por rádio existente nos arquivos de Salazar, afirma que, no dia 1 de Novembro de 1965, cerca das 20 horas, fora lançado um engenho explosivo para o meio dos africanos que se encontravam num batuque em Farim. A explosão teria provocado 63 mortos e feridos, na sua maioria mulheres e crianças.

Foi detida meia centena de pessoas. Confissões obtidas levaram à detenção de um tal Issufo Mané, que declarou pretender atingir militares (?). Para o fazer, teria recebido 14 contos de Júlio Lopes Pereira, o qual, por seu lado, actuara por indicação do chefe da Alfândega de Farim, Nelson Lima Miranda. E este teria vindo a declarar que a bomba fora lançada a mando da direcção do PAIGC.

(AOS/CO/UL- 50-A, Informações da PIDE, 1965-1966, 86 subdivisões, pasta 2, fls. 636, 637, 638, 641 e 642).

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17843: Convite (14): Palestra subordinada ao tema "Terrorismo", a ter lugar no Salão Nobre do Comando do Pessoal do Exército, antigo Quartel General do Porto, Praça da República, no próximo dia 13 de Outubro de 2017, pelas 15 horas

Comando do Pessoal do Exército

C O N V I T E

Palestra sobre o tema que preocupa a sociedade actual em todo o mundo, o terrorismo, a ter lugar no Salão Nobre do Comando do Pessoal do Exército, antigo Quartel General do Porto, sito na Praça da República, no próximo dia 13 de Outubro de 2017, pelas 15 horas.
A Conferência será proferida pelo Major-General Rodolfo António Cabrita Bacelar Begonha.


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Nota do editor CV

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15724: Convite (13): I Peregrinação Nacional dos Combatentes a Fátima, dia 1 de Maio de 2016

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17244: Fotos à procura de uma... legenda (83): "Nha Terra!", foi o grito de júbilo de um vendedor ambulante de origem guineense, quando encontrou turistas portugueses na "promenade" de Agadir, Marrocos... (Luís Graça)













Marrocos, Agadir, 30 de março de 2017 > "Promenade", passeio marítimo, já cheio de turistas, quer marroquinos do norte, quer estrangeiros nesta altura do ano... Por aqui andaram portugueses na 1ª metade do séc. XVI, a abrir a estrada da globalização, mas acossados pelas tribos bérberes de Tarudante . (A cidade teve o seu apogeu no século XVI, sob Mohammed ech-Cheikh, fundador da dinastia saadiana, que faz de Tarudante a sua capital e uma base para as ofensivas contra os portugueses instalados em Agadir, então chamada Santa Cruz do Cabo de Gué, leio na Wikipédia). (*)

Hoje encontramos, além dos marroquinos,  africanos subsarianos, vendedores ambulantes... Um deles gritou: "Nha Terra!", quando negociávamos com ele uma peça de artesanato, e  lhe dissemos que éramos de Portugal, e que tínhamos estado na Guiné-Bissau... Fez-nos uma festa de todo o tamanho, fez questão de tirar um fotografia com a nossa grã-tabanqueira Maria Alice Carneira (e a mana do Porto), e disse-nos logo que tinha duas tabelas de preços, uma para alemães, e outra para nós, portugueses...

Segundo ele, oriundo de Dakar, a mãe era guineense de Bissau e o pai senegalês... Esta cumplicidade foi boa para o negócio (**)... Em Marrocos (e na África subsariana), tudo se regateia... Nas barbas das autoridades (polícia e militares) que patrulham a cidade e e em especial esta "promenade", a Alice lá comprou a peça que queria, por 20 euros...

Agadir, é depois de Marraquexe, a cidade que recebe mais turistas estrangeiros... É uma cidade "cosmopolita", de planeamento e arquitetura ocidentais... Foi destruída pelo terramoto de 1960. Na altura teria cerca de 40 mil habitantes, dos quais terão perecido metade. Hoje a cidade e arredores terá 600 mil habitantes. Todas as praias à frente à "promenade" são privativas dos hotéis... É o "preço" que se paga pelo desenvolvimento da indústria do turismo, muito importante para a economia de Marrocos. (Agadir está geminadacom Olhão, e lá encontrámos o "jardim de Olhão")... Portugueses e marroquinos vão redescobrindo muitos laços que os approximaram e afastaram no passado...

No norte de África, no Magrebe, Marrocos parece ser um "oásis de paz".. No sudoeste do país,  ao longo da cordilheira do Atlas por onde andei em finais de março de 2017, com muitas horas de autocarro, a fazer em média 50/60 km  (Marraquexe, Ouarzazate, desfiladeiro do Dadés, Tagora, desfiladeiro do Todra, Erfourd, Mersouga, Rissani, vale do Draá, Marraquexe...) , não encontrei um polícia ou um militar, com exceção de Marraquexe,  o principal centro turístico do país... (LG)


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Leio na Wikipédia, sobre Agadir:

(...) "Em 1505, os portugueses edificam ao pé do monte, em frente do mar, a Fortaleza de Santa Cruz do Cabo de Gué de Agoa de Narba, onde foi mais tarde o bairro hoje desaparecido de Founti, (chamado assim a partir da palavra portuguesa fonte porque aí encontraram uma).

"Rapidamente, os Portugueses encontraram dificuldades com as tribos da região, sofrendo longas lutas e cercos, até que em 12 de março de 1541 o xerife, Mohammed ech-Cheikh toma a fortaleza. Seiscentos sobreviventes são feitos prisioneiros, entre estes o governador D. Guterre de Monroy, seus filhos, e sua filha Dona Mécia. Os cativos são resgatados por religiosos vindos especialmente de Portugal. Dona Mécia, cujo marido, D. Rodrigo de Carvalhal, foi morto durante a batalha, tornou-se mais tarde mulher de Mohammed ech-Cheikh. Mas, depois de ter dado à luz uma filha que apenas viveu oito dias, faleceu ela também pouco mais tarde, em 1543 ou 1544, havendo suspeitas de envenenamento pelas outras mulheres do Xerife. Nesse mesmo ano de 1544, Mohammed ech-Cheikh fez libertar o governador D. Guterre de Monroy, com quem tinha amizade (...).

"Depois da perda de Agadir, os portugueses acabam por abandonar Safim et Azamor. Marrocos começa a ter menos importância para Portugal, cada vez mais voltado para a Índia e o Brasil. Depois de 1550, com a perda de Arzila, apenas lhes fica Mazagão, Tânger e Ceuta."(...)


(**) Último poste da série > 9 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17226: Fotos à procura de... uma legenda (82): Meninas de Zagora, no sudeste de Marrocos, às portas do deserto do Saara... (Luís Graça)

sábado, 14 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15365: Blogpoesia (424): Uma hecatombe virá... (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf)

1. Em mensagem de hoje, 14 de Novembro, o nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), enviou-nos um poema alusivo aos trágicos acontecimentos de ontem em Paris.


Uma hecatombe virá…

A hora soou. 
Explodiu em Paris.
Arrasou a esperança na paz
Que cobria este mundo.
Uma bomba satânica,
Em nome de Alá!…
Explodiu sangrenta e mortal.
Ameaça alastrar.

Não há reflexões a fazer.
A fantasia acabou.
Agora é a valer.
O domínio total
É o que eles pretendem.
Sem bombas atómicas.

Se não se lhes fecham as portas,
Enquanto há tempo…

Ontem, Paris.
Amanhã… numa aldeia remota
No nosso País,
À beira da porta.

É hora de darmos as mãos,
Em nome da esperança e da paz!...

Berlim, 14 de Novembro de 2015
8h3m
Ouvindo “Claire de Lune”

O sol está raiar
Joaquim Luís Mendes Gomes

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15326: Blogpoesia (423): E é esta a História de Portugal (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11599: Manuscrito(s) (Luís Graça) (3): O país que via passar os comboios



Lisboa > Museu da Electricidade > 2006

Foto: © Luís Graça (2006). Todos os direitos reservados.


O país que via passar os comboios

14:13h.
Coimbra B.
Estação da CP.
Deprimente.
Como todas as estações B do mundo.
Como todas as estações da CP.
B de 2ª classe.
B, segunda letra do alfabeto.
Como todas as estações da CP urbanas, suburbanas e rurais.
Deprimentes.
Todas as estações de caminho de ferro do mundo são deprimentes.
Abro talvez uma excepção para os apeadeiros.
São bonitos, os apeadeiros.
Ou eram bonitos os apeadeiros da CP,
Quando havia o cavador, o burro, o boi, a charrua,
O camponês, o zé povinho, camponês e burro,

Besta de carga.
A horta, a saída direta para os campos.
As hortas.

Os azulejos azuis  e amarelos Viúva Lamego 
Nas quatro estações do ano.
O termo apeadeiro eternece-me,

Faz-me lembrar os tempos
Em que se ia às hortas.
Eu já não sou desse tempo.
Mas os alfacinhas iam às hortas dos saloios.
Benfica, Porcalhota, Pontinha, 
Sintra, Caneças, Colares ...
Faziam piqueniques, cantavam o fado.
Gosto do termo apeadeiro.
E da ideia de ir passear às hortas.
Em família, aos domingos, de comboio.
Ronceiro, o comboio.
Ronceira, a vida da gente.
Li isso algures numa história qualquer sobre os comboios
Que unificaram o país de norte a sul.
Há uma dívida de gratidão que é devida aos comboios.
E aos homens dos comboios.
E aos engenheiros das estradas e pontes.

E aos operários que as construíram.
Ao zé povinho da cidade e dos campos.
Ao engenho e à obra.
Ao Fontes.

Ao Pereira.
Ao Melo.
Ao fontismo.

Ao positivismo.
Ao génio organizativo.
Mesmo que a minha professora 
De Sociologia Histórica das Classes Laboriosas,
Discípula do E.P. Thompson,
Só gostasse dos corticeiros
Que eram anarcossindicalistas.
Sempre suspeitei que ela não gostasse dos cavadores.
Nem de comboios.
Nem de hortas.
Nem do Fontes.
Nem dos ferroviários,
Nem dos camponeses e dos burros e dos bois.
Naquele tempo parava-se em todas estações e apeadeiros.
E havia tempo, não havia pressa.
Não havia stresse naquele tempo.

Colhiam-se papoilas vermelhas no meio do trigo.
Não havia tempo para se ter stresse.
Morria-se cedo. 
Ou nascia-se tarde.
Sem tempo de ver crescer filhos e netos.
O stresse é uma construção social do meu tempo.
E não havia bombas nos comboios.

Ao alcance de um qualquer toque de telemóvel,
Da Nokia, da Samsung ou da Siemens, tanto faz.
Que as novas tecnologias quando nascem 
(não) são para todos.
Ou talvez houvesse stresse
Mas chamavam-lhe outra coisa.
Afinal, essa coisa é tão velha como a vida.
E morria-se cedo naquele tempo.

A esperança média de vida é um artefacto estatístico.
E há sessenta e tal anos, na França ocupada,
Os ferroviários também punham bombas. 

Nas linhas de caminhos de ferro.
Matavam os seus postos de trabalho em nome da liberdade.
Punham bombas para fazer descarrilar os comboios.
Sabotagem.
Resistência ao ocupante nazi.
Hoje seriam caçados como terroristas internacionais.
Não sou ferroviário nem resistente nem terrorista.
Nem anarcossindicalista.
Estou numa estação deprimente.
Coimbra B.
Coimbra merecia, pelo menos, uma estação A.

Este país, bom aluno da Europa,
Devia merecer uma letra A.
Nem que fosse Coimbra A.
Ouço uma voz gritante.
Alfarelos.
Com paragem não sei onde.
Nunca soube, ao certo, onde fica Alfarelos.

É algures no país profundo.
Assim como Freixo de Espada à Cinta
Que ninguém conhece.
Não, vim de boleia.

Muito obrigado.
De Viseu.
Aguardo o Alfa Pendular para Lisboa.
Aliás, Lisboa SA.
Deve chegar às 15:16h.

── Lisboa, Santa Apolónia ?
── Não, Lisboa, Sociedade Anónima!
 Corrijo o portuga por detrás do guiché.
── Não, não quero Santa Apolónia.
Quero a Estação de Lisboa Oriente.
E depois... o que diria o Zé (Cardoso Pires)!

── Lisboa, SA!

Pergunta o portuga, 
Caixa de óculos, por detrás do bunker, 
Que fala em nome da CP.
── Conforto ou turística ?
Olha para mim, como se quisesse me tirar as medidas.
Ou adivinhar a minha secreta conta bancária.
──  2ª classe, se faz favor!
──  Turística...
... 2ª classe, por defeito.
Para quem não ostenta sinais exteriores de riqueza.
Classe B.
E eu a pensar ingenuamente que já não havia 2ª classe.
Comboios de 2ª classe. 

Gente de 2ª classe.
País de 2ª classe no desconcerto das nações.
(Ah!, meu velho José Rodrigues Miguéis,
E a tua gente de 3ª classe
Nos porões nauseabundos dos cargueiros
Que rumavam às Américas!).

Devo ter percebido mal.
Os comboios e a CP também se democratizaram.
Agora só há conforto e turística.
No alfa pendular de todas as emoções e condições.
O Portugal SA já não é mais classista.
Para ter classe basta ter dinheiro no multibanco,
Minha querida professora.

Mas, mais seguro, é na Suiça ou num off shore qualquer.
É o que se chama mobilidade social.
Fugir à condição de besta de carga.
── Vê-se mesmo que o senhor é um utente acidental da CP,
Já não há 2ª classe.

── Sou um mau utilizador do comboio, peço desculpa ──.
Comprei um bilhete de 2ª classe.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
── O senhor, desculpe, mas eu sou fã dos comboios.
Tenho uma dívida histórica para com os comboios,
Que unificaram o meu país.
Pode não ser seu, mas é meu.
Tenho orgulho nele.
E tinha que lhe dizer isto.
Vou para Lisboa, SA,

Capital do reino,
Desço na Gare do Oriente...





Lisboa > Museu da Água > Aqueduto das Águas Livres  > 18 de abril de 2013

Foto: © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados.

Tenho tempo.

Ou penso que tenho tempo.
Nada como esperar um comboio 

Numa estação de tipo B, Coimbra B
Para saber o que é isso de ter tempo.
É bom ter tempo.

Uma hora de avanço.
Nada de stresse.
Não penses na morte.
Que o stresse mata
Como uma bala de Kalash.
Peço uma sandes manhosa no bar da esquina.
Bebo uma topázio que é uma cerveja local.
Compro o Zé Cardoso Pires no quiosque.
A república dos corvos.
Um livro de contos.
Jornal Público.
Colecção Mil Folhas, ao preço de hipermercado.
Redescubro o meu velho Dinossauro Excelentíssimo.
Que li na revista Almanaque, se bem me lembro.
Deambulo no cais de embarque 

Como o prisioneiro no pátio da prisão.
E leio a única coisa interessante
Que está afixada na parede da estação de Coimbra B.
Alguém mandou afixar.
Creio que em bronze (sou mau em metais):

"Neste cais da estação de Coimbra, embarcou,
No dia 15 de Maio de 1982, Sua Santidade,
O Papa João Paulo II"
.
O artista não quis desqualificar a estação nem a cidade.
Coimbra B ?, 

O que diria a corte papal!
Os grandes deste mundo!
E os turistas que visitam a cidade dos doutores!
E os vindouros!
Mas lá fica a tabuleta.
Para a história.
Para o viajante distraído, apressado ou deprimido como eu.

Ou se calhar para ninguém.
Só para a História.
Afinal, quem lê neste país placas de bronze 
Afixadas em estações B da CP ?
Aliás, quem lê neste país, perguntaria a minha professora ?

Histórias aos quadradinhos 
Mas não a História com H grande.
Um dia um arqueólogo, um historiador ou um antiquário
Desaparafusa a placa e leva-a para casa,
Para o museu ou para a loja de antiguidades.
Não, nada acontece em Coimbra B.
Mas por aqui passou um peregrino.
João Paulo II.

Um dia,  em 1982.
Por aqui passou Jesus Cristo,
Na pessoa do seu representante na terra.
Sou mau em metais e em teologia.
Mas esta é a minha leitura.
Peço desculpa aos poetas mais doutos  do que eu.
Peço desculpa aos lentes de Coimbra.

Chega o Alfa.
Just in time,
Como na linha de montagem automóvel pós-taylorista da AutoEuropa.
Entro no Alfa e sinto-me quase europeu
Na ponta mais ocidental da Europa acidental.
Com o lusitano Mondego aqui ao lado.
Admiro a eficiência
Das sociedades pós-tayloristas e cosmopolitas.
A nossa nunca chegou a conhecer o Sr. Taylor,

Nem os seus principles of scientific management.
Nem a ética protestante nem o Max Weber.
Provinciana e ronceira, a tua terra,

Lá diriam o Eça e a minha professora, 
Que é queirosiana e estrangeirada.
Acelera o Alfa.
Tenho um secreta vertigem suicidária pela alta velocidade.
Dou por bem empregues os meus 17 euros,

IVA incluído à taxa de 5%.
Isto faz bem à minha autoestima.
Sobretudo depois da sandocha manhosa e da topázio morna
Que engoli, de pé, ao balcão, do bar manhoso
Da estação deprimente de Coimbra B.

── Quanto vai dar ?
──  Chega aos 200 ou mais!, ──
Diz-me um puto de brinco na orelha...
Não apostei.
Nem gosto de apostas.
Deixei de ser solidário, que me desculpe a Santa Casa

Da Misericórdia.
── Umas cartas para passar o tempo ?
── Não, obrigado, não jogo, não aposto, não fumo. 
Tenho livros para ler. 
Abranda o Alfa lá para os lados da Albergaria dos Doze.
Regresso à idade média da minha memória coletiva.
O caminho de Santiago.
As albergarias.
Já em terra dos mouros.
La folie meutrière de la réligion.
A tua, a minha.
Deus é grande e tem muitos profetas.
São bons hortelãos, os mouros e os moçárabes.

── Chega à tabela.
Dezassete e seis na Estação do Oriente,
Diz-me o pica, orgulhoso.

── Até que enfim que os comboios partem e chegam à tabela,
Na nossa terra.
Fico sempre com inveja
Quando vou a Amesterdão e a Leiden.
Quando ia à Holanda, que agora já não vou.
Quero dizer, ao estrangeiro de fora.

── Já não te calha na rifa, ó Ramalho!,
Agora são vinte e cinco cães a um osso, ó Ortigão!

── Vai desejar tomar alguma coisa ?,
Pergunta no futuro próximo o homem-do-chá-café-laranjada...

── Um Prozac, por favor.
── Lamento, mas já não temos. Esgotou-se.
── Sim ?
── Esgotou-se na última viagem que fizemos ao inferno.
11 de Março último.
Estação de Atocha.
Madrid.

── Atocha ?
── Sim, Atocha...Não lê os jornais ? 
── Não, acabo de chegar doutro planeta.
── En Madrid existen dos estaciones principales de tren:
Chamartín y Atocha.
Ambas son estaciones de trenes de largo recorrido y de cercanías
...

── Muchas gracias!, não sabia.
Não vou a Madrid há anos.

Estou de costas para a Europa.
── Atocha está situada en la zona sur de la ciudad,
Muy cercana al centro.
Desde ella salen todos los trenes de largo recorrido
Que van a levante y al sur de España.
También algunos trenes de los que pasan por la estación
Se dirigen luego a Chamartín
Y luego a destinos en la mitad norte de la península.
Dentro de la estación hay otra estación llamada Puerta de Atocha
Desde donde sale el tren de alta velocidad (AVE)
Que va a Andalucía
...

── Muchas gracias! Vejo que é um homem viajado.
── Só faço a península ibérica.
── Ah!, a jangada de pedra...
── Perdão ?!... Sabe, nasci no Entroncamento,
Filho e neto de ferroviários.
Os comboios estão-me na massa do sangue...
Mas a Espanha para mim é pura emoção.
Uma tragédia horrível, aquela...

── E não tem medo do futuro dos comboios ?
── Não... Com os aviões passou-se o mesmo.
Enfim, um homem tem que ganhar a vida.
De qualquer jeito.

── Deixe, a vida continua... As guerras passam.
Olhe, já agora dê-me um compal de maçã.
Fico sempre deprimido quando tomo o comboio.
Ou quando parto. 

Ou penso em bombas nas casas de banho
Das carruagens dos comboios.
Ou quando bebo compal de maçã.
Não sei por que pedi o raio do compal.
Reflexo condicionado.

Empatia.
Compaixão.
Que é coisa rara, tomar o comboio.

E pensar em bombas.
Houve um tempo em que pensava em minas.
Anticarro. Antipessoais.
Minas. Bailarinas. O ballet da morte.
Nasci numa terra onde não passavam comboios.
É um estranho sentimento, esse,
Que me acompanha desde pequeno.
Mas o compal de maçã até é bom.
E dizem que vale mais do que uma chávena de café 
Para te tirar o sono.
Antes de partires às 3 da manhã,
Para a Ponta do Inglês.
── Ponta do Inglês ?!...
Já sei, saíste cedo da casa de teus pais, 
Ainda menino e moço!
── É a voz do sangue, 
O meu lado de marinheiro que nunca fui.
Em boa verdade, detesto os entroncamentos.
Rodo ou ferroviários.

As picadas. Os trilhos.
Detesto o Entroncamento.
Da primeira vez que lá passei.
Meia de dúzia de casas mal caiadas, 
Uma feixe de linhas e cheiro a óleo e a sucata.
Mas tenho a nostalgia dos cais de embarque.
A nostalgia do mar e da maresia.
Uma palavra que mexe comigo.
Cais.
Cais de embarque.
Cais de partida.
Niassa.
Rocha Conde de Óbidos.
Num comboio que veio da noite, silencioso e triste.
Do Campo Militar de Santa Margarida.
Destino: Lisboa.
Com carga para outro destino: Bissau.

Mercadoria=carne para canhão,
Alguém escreveu, a spray,  
Um grafito na última carruagem.
Na primavera de 1969.
Numa outra primavera que não chegou a haver.

── Política, meu estúpido!,
A primavera política do Marcelo Caetano.
Eras jovem
E não vias a luz ao fundo do túnel.
Nem muito menos as luzes da cidade-luz.
Paris.
Perdeste o último comboio para Paris.
Com o teu amigo que queria ser pintor.
Fernando Nobis.
Com paragem, talvez em Atocha,
Para visitar o Greco, o Velasquez, o Goya,
Os grandes de Espanha que estão no Prado...

── És doido, ou quê ?!
Com a pide à perna,
Mais os carabineiros da guardia civil!



Portugal > Alto Douro Vinhateiro, Património Mundial da Humanidade > Vila de Foz Coa > Pocinho > 3/9/2010 > Estação terminal da linha de caminho de ferro do Douro (Porto-Pocinho) > Pormenor dos azulejos da estação, da Fábrica Sant'Anna (fundada em 1741): a vindima...

Foto: © Luís Graça (201o). Todos os direitos reservados.


Fazia sol e frio em Viseu.
O país profundo.
O país que mexe, dizem-te.
Gosto sempre de ler os jornais da terra
Quando estou no hotel.
Duas estrelas, o hotel. Novo, a cheirar a tinta.
Bom serviço. Comida caseira. Faces rosadas.
Mas faz frio à noite.

── Voyeurismo!  ── pensa ela.
A rapariguinha do bar.
Oito páginas,
Entre notícias locais e os pequenos anúncios classificados.
Duas páginas de anúncios pessoais.
"A brasileira do bumbum"...
"A universitária que faz oral"...
"A mulatchinha dengosa"...

Linguagem de código.
A semiótica da solidão.
Do sexo triste e solitário.

── Mue bem, ligue para o meu telemóvel,
Que a crise bate a todas as portas,
Sem distinção de género, etnia, cor, condição ou religião.

── A crise também chegou ao teu país profundo, baby.
── Ah!, mas Viseu, como cresceu, meu Deus!
── Não sei se cresceu bem...
Não sou de cá.
O Politécnico. 
O túnel de Viriato.
Os colóquios. 
Os debates. 
As ideias.
Os intelectuais e artistas que vêm de fora.
O comércio.
O fórum, que há-de vir.
A Grande Área Metropolitana de Viseu.
Quase 400 mil.
O orgulho de se ser do Kavaquistão.

O que é feito do RI 14 ?
Não sei, a guerra acabou. 
Foi bom para cidade,
A tropa,
O regimento.
── Ruas, estás de granito!,
Diz o grafito.
(Ruas é o chefe da tribo, presumo).
Nada como um bom grafito na terra do Grão Vasco:

── Apreciem o lado empreendedor dos beirões. 
── Só falta a Universidade,
Que mais de 10 mil estudantes do politécnico  já cá temos.

── Tiraram-nos a Faculdade de Medicina,
Os gajos da Covilhã.
Outro lóbi beirão, o da Covilhã.
Registo o orgulho dos  miúdos e miúdas
Da Associação de Estudantes 
Da Escola Superior de Enfermagem de Viseu
Que realizam anualmente as suas jornadas.

O país mexe.
Viseu mexe.
O país profundo mexe.

O Kavaquistão.
Os jovens deste país mexem.
Mesmo com capa e batina,
Vestidos de preto como o corvo do Zé (Cardoso Pires).

16:30h. Passei o corpo pelas brasas.
Perdi um pedaço de mundo.

Revisitei outros infernos.
── O Alfa vai a 140, ó puto.
Temperatura: 19º interior. 20º exterior,
Leio no tabelau de bord.

── Mas agora abranda. 129, 101, 74, 52...
Está parado.

── Porquê ?
Uma placa com um S, outra com um M.
Não percebo nada da sinalética dos comboios.
Obras.
Modernização da linha.
Tenho um pensamento piedoso e nobre 

Para com os trabalhadores anónimos
Que constroem as novas linhas dos caminhos de ferro do futuro.
Ucranianos ? Africanos ? 
Guineenses ? Ex-camaradas teus ? 
Imigras ? Clandestinos ?
── Não lhes vejo nem a cara nem o passaporte.
── Podiam estar a trabalhar na estufas de Almeria, 
O inferno na terra.
Mas aí são magrebinos.

── O novo proletariado do Século XXI.
── Desço na Oriente.
Mandem alguém da empresa buscar-me.

── Dá o Benfica na esporte tê vê.
E de novo o Alfa em marcha...
A paisagem muda.
A paisagem industrial da bacia do Tejo.
A ocupação selvagem da lezíria.
Mataram os campinos e o gado bravo.

E os flamingos. E as ostras,
Les petites portugaises.
O branqueamento de dinheiro
Que vai por essa nova Lisboa do Póximo Oriente.
A luxuriante estação do Oriente.

A ostentação dos ricos.
Just in time.
17:06h.
Cheguei.
Balanço do cliente:

── Pensei que já fosse o TGV.
O TGV é que é.

── Não é o TGV,
Mas por mim não desgostei.
De viajar no Alfa Pendular.
Turística, claro.

Que é como quem diz, 2ª classe.
De Coimbra B a Lisboa SA.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
Mais 10% de desconto nos Hotéis Tal &Tal.
Tive tempo para (des)arrumar algumas ideias.

── O país que via passar os comboios...
E o puto tinha razão:

── Na ponta final, o Alfa Pendular dá mesmo
Os 210.
Um dia ainda vou ter orgulho na CP.
E na terra onde nasci
E onde nunca vi sequer passar os comboios.
Os comboios não passam na minha terra.
Nem chegam a Viseu.
Um abraço aos Viriatos.
Até para o ano.
Voltarei, se me convidarem,
De Expresso, por esses ipês acima.
Com regresso de comboio.

Se não sabotarem o comboio que pára em Coimbra B.
E prometo ao barman

Que não me esquecerei de Atocha.
Sobretudo não esquecerei Atocha.
Quando voltar a Coimbra B.

Outra vez.
Não esquecerei as bombas de Atocha.
Nem as minas e armadilhas da Ponta do Inglês.

25/3/2004. Revisto nesta data.


_______________

Nota do editor:


Último poste da série > 14 de maio de 2013 >Guiné 63/74 - P11566: Manuscrito(s) (Luís Graça) (2): Humor com humor se (a)paga: RIP... Requiescat In Pace... Lápides funerárias da minha coleção!