Mostrar mensagens com a etiqueta tortura. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta tortura. Mostrar todas as mensagens

sábado, 24 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14182: Casos: a verdade sobre... (5): Soldados metropolitanos "desaparecidos" ou torturados, depois da sua captura pelo inimigo... (José Belo, ex-alf mil inf, CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70)

1. Mensagem de José Belo [,ex-alf mil inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70; cap inf ref, é jurista, vive Suécia há quase 4 décadas, e onde formou família: e, ultimamente, reparte o seu tempo com os EUA, em Kew West, Florida, aonde família tem negócios; autor do blogue Lapland Near Key West]:

Data: 20 de janeiro de 2015 às 16:18
Assunto: Prisioneiros de guerra.

Caro Luís Graça.

Tenho verificado que,  nos inúmeros postes publicados no blogue (*),  näo existem referências a sevícias exercidas pelos guerrilheiros do PAIGC sobre militares metropolitanos (e chamo a atenção para o adjetivo "metropolitanos"),  aquando de capturas efectuadas em combate, ou sobre elementos que desertaram,  entregando-se ao inimigo.

Näo terão sido muitos os casos, mas suficientes para a existência de um grupo de prisioneiros em Conacri.

Näo se poderá esquecer que, em todas as guerras, no calor e ressaca imediatas do combate, dão-se explosões, difíceis de controlar, de ódio, vingança, raiva e frustração  perante os corpos de amigos e camaradas mortos ou estropiados.

Mas sevícias "a frio" depois de os prisioneiros terem sido retirados das zonas dos combates,.  pouco ou nada à referido quanto ao PAIGC.

As normas e directivas estabelecidas pelo programa do PAIGC estavam bem explícitas nos detalhes quanto ao uso dos prisioneiros em acções de propaganda a nível internacional.

A nossa deontologia a este respeito näo seria diferente.

Muitos dos que estiveram colocados em zonas de contacto frequente com os guerrilheiros poderão referenciar casos de elementos inimigos "apanhados à mäo" que,  depois de entregues à polícia política local [PIDE]... desapareciam.

Os números de tais "desaparecimentos" não são dispiciendos,  pois as histórias contadas á volta deles säo inúmeras.

Nas situações extremas em que nos encontrávamos,  pouco tempo, vontade ou paciência haveria para aprofundar tais conjecturas. Obviamente as nossas preocupações eram dominadas por tantos outros acontecimentos envolventes e,não seria então (também!) muito "saudável" questionar a polícia política local.

Meio século passou e... muitas destas perguntas  não têm respostas documentais. Não somos de modo algum únicos nestes silêncios."Desaparecimentos" têm sido uma constante necessária (?) em todas as guerras do tipo da travada na Guiné.

 Mas a pergunta aqui levantada não se situa à volta de ontologias bélicas universais mas simplesmente sobre o número de soldados metropolitanos "desaparecidos" ou torturados, depois da sua captura pelo inimigo.

Como foi referido em comentário ao poste P14160 (*) : "Excluindo a situação aparentemente (!) atípica que levou ao bárbaro e desnecessário assassinato dos [3] Majores e [1] Alferes (no chão Manjaco), aquando do encontro onde se iria discutir a PAZ, em aparente represália-exemplo espelhando as profundas divergências político-militares internas então existentes no PAIGC".

Todos sabemos o que se passava em relação a muitos elementos das milícias, ou soldados africanos, aquando da sua captura pelo inimigo durante todo o período da guerra. Estão também bem documentados os fuzilamentos e sevícias que foram exercidas nos anos posteriores à independência sobre ex-militares que tinham servido no Exército colonial.

Mas, quanto aos soldados metropolitanos capturados... algo falta.

Um grande abraco do
José Belo.
___________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 18 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14160: Casos: a verdade sobre... (4): Jaime Mota (1940-1974), combatente do PAIGC, natural da ilha de Santo Antão, Cabo Verde, morto em 7 de janeiro de 1974, em Canquelifá por forças da CCAÇ 21 - Parte IV: "Guerra é guerra, meu irmão", dizia-me em 2008 o antigo guerrilheiro Braima Cassamá que reencontrei em Guileje (José Teixeira)

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13520: "Francisco Caboz", um padre franciscano, natural de Ribamar, Lourinhã, na guerra colonial (Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1913, Catió, 1967/69): Parte V: (i) uma boleia de Spínola; (ii) rezando o terço com os açorianos; (iii) a tropa, a PIDE e a tortura de prisioneiros; (iv) um guarda-costas chamado Estado; (v) a tropa vai e vem, os administradores ficam...



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Um aspeto parcial do quartel


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Parada do quartel


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel >  "Vista aérea da Rotunda e Avenida de Catió antes de 1967. O edifício à esquerda na foto era a escola primária que em 1967 já tinha sido modificado".

Fotos (e legendas) de Catió: Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados


1. Continuação da publicação do testemunho do nosso camarada, o grã-tabanqueiro Horácio Fernandes.que foi alf mil capelão no BART 1913 (Catió, 1967/69) (*)


[ Horácio Fernandes: foto à direita tirada pelo nosso saudoso Victor Condeço, 1943-2010, que foi fur mil mec armam, CCS/BART 1913].


Esse tstemunho é um excerto do seu livro autobiográfico, "Francisco Caboz; a construção e a desconstrução de um padre" (Porto: Papiro Editora, 2009, pp. 127-162). O livro já aqui foi objeto de recensão crítica por parte do nosso camarada Beja Santos.

O Horácio Fernandes vive há 4 décadas no Porto. Vestiu o hábito franciscano, tendo sido ordenado padre em 1959. Deixou o sacerdócio no início dos anos 70. É casado, tem 3 filhos. Está reformado da Inspeção Geral de Educação onde trabalhou 25 anos na zona norte. Em 2006 doutorou-se em ciências da educação pela Universidadfe de Salamanca, Espanha.

Francisco Caboz é o "alter ego" do Horácio Fermandes (n. 1935, Ribamar, Lourinhã). O livro começou por ser uma tese de dissertação de mestrado em ciências da educação, pela Univeridade do Porto, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, (1995): Francisco Caboz: de angfélico ao trânsfuga, uma autobiografia (147 pp.) (A tese de dissertação, orientada pelo Prof Doutor Stephen R. Stoer, já falecido, está aqui disponível em formato pdf).

Nesta V parte (pp. 148-152), o autor relata-no alguns episódios da guerar no sul da Guiné: (i) uma boleia de Spínola;  (ii) rezando o terço com os açorianos; (iii) a tropa, a PIDE e a tortura de prisioneiros; (iv) um guarda-costas chamado estado; (v) a tropa vai e vem, os administradores têm que se amanhar...

Foi o nosso camarada e amigo Alberto Branquinho quem descobriu o paradeiro do seu antigo capelão . Tenho a autorização verbal do autor, dada por altura do nosso reencontro, 50 anos depois da sua missa nova (em 15 de agosto de 1959, em Ribamar, sua terra natal), para reproduzir esta parte do livro, relativa à sua experiênciade como capelão militar na Guiné, muito marcante e decisiva para o seu futuro como homem e como padre. Ele irá abandonar o sacerdócio ainda no início dos anos 70, depois de regressar da Guiné e fazer uma curta experiência como capelão da marinha mercante aos serviço do Clube Stella Maris.

Eu e o Horácio somos parentes, pertencemos ao clã Maçarico, de Ribamar, Lourinhã: a minha bisavó paterna e do seu bisavô paterno, nascidos por volta de 1860, eram irmãos. (LG)


Episódios da guerra no sul da Guiné em 1967/69...









(Continua)


______________

sábado, 20 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11429: Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) (1): os meus picadores e guias, Seco Camará e Mancaman Biai




Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > António Fernando Marques e Arlindo Teixeira Roda, dois camaradas. furrieis,  da 1ª geração da CCAÇ 12 (1969/71), junto ao monumento da CCAÇ 1550 (1966/68), unidade de quadrícula do Xime que antecedeu a CART 1746 (1968/69), a CART 2520 (1969/70), a CART 2715 (1970/71), a CART 3494 (1972/73) e a CCAÇ 12 (1973/74)... A CCAÇ 12 conheceu bem e duramente, o subsetor do Xime, entre 1969 e 1974, primeiro como  subuniddae de intervenção ao setor L1 e depois, no final da guerra, como subunidade de quadrícula...  Não sei se a CCAÇ 1550 foi a primeira  subunidade de quadrícula do Xime: estivera antes em Farim,  era comandada pelo cap mil inf Agostinho Duarte Belo; no monumento estão inscritos os lugares (de diferentes setores) por onde passou: Binta, Guidage, Xime, Ponta do Inglês, Galomaro, Candamã, Taibatá, Farim, Dembataco, Samba Silate, Bissau... (LG)


Foto: © Arlindo Roda (2010)/ Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos 



reservados.

1. Texto enviado pelo nosso camarada António Vaz, ex-cap mil, cmdt da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69), com data de 18 do corrente:

 Assunto: Seco Camará

Olá,  Camaradas Tertulianos

Depois da minha ausência prolongada,  já contada anteriormente,  e ao reler páginas antigas do Blogue,  nomeadamente o poste P5578 (*), ocorreu-me relatar o seguinte:

Quando cheguei ao Xime, em Janeiro de 1968,  na "passagem do testemunho" que a CCAÇ 1550 fez da situação material e do pessoal adstrito (Pel Caç Nat, Milícia e picadores), foi-me dito que o picador Seco  Camará era o melhor da zona e que, nessa época, já levava 56 minas detectadas,  o que para mim, nessa altura, era um número respeitável pois até à data, vindo de Bissorã, não tinha tido contacto frequente com tais engenhos.

Fiquei sabedor e considerei que a chefia do grupo de picadores estava, continuaria, bem entregue. Assim sucedeu durante alguns meses e o Seco era sempre convocado para as operações que pareciam mais complicadas.

Numa delas, em Julho de 68, talvez a Op Golpear, com a paragem da coluna veio-me a informação:  MINA!!!

Ao chegar-me aos ouvidos,  avancei para junto do Seco pois fora ele que a tinha detectado e operava. Aproximei-me dele com o cuidado requerido e fiquei a observar o seu procedimento. (Será que que a adrenalina que se liberta tem cheiro? O mato molhado parecia-me sempre adocicado mas naquela altura tinha mudado).

Estava o Seco semideitado no chão e com a "pica" fazendo perfurações quase horizontais no terreno pois achava que este estava mais brando que o normal. Os gestos comedidos, o cuidado imenso e a tensão elevada ao máximo contagiaram-me. Tentava perceber se aquela textura do terreno correspondia ao que pensava ser uma "caminha" de mina.

Não mais esqueço a transformação que nele se operou:  o seu semblante e a própria cor mudaram; o Seco estava cinzento de tão pálido que estava. Levantou-se lentamente dizendo:
– É mesmo mina,  Capitão!

A minha norma foi sempre "Mina rebenta-se, não se levanta". Arriscava contudo a perca do segredo da progressão mas era assim. Assim se procedeu mas o Seco teve o seu prémio pecuniário.

Vieram mais operações e num delas um Alferes nomeado veio dizer-me que havia problema com a escala dos picadores, não queriam que o Seco fosse naquele dia e nos subsequentes porque não o queriam como chefe.
– Grande berbicacho –  pensei eu.




[Foto à esquerda: Seco Camará, em Mansambo. Foto:  ©Torcato Mendonça (2007) ]

As razões que me apresentaram não me convenceram, invocavam que aquele posto - chefe dos picadores - devia ser desempenhado por alguém superior na hierarquia tribal. Prometi que resolveria o assunto depois daquela operação pois não era altura de estar com mais conversa. O Seco foi como estava determinado mas com os resmungos dos outros picadores que acalmaram, talvez por eu ir nessa operação. Esta como outras foi "sem contacto, com vestígios" e num dos dias seguintes falei com o Seco que me disse que ele próprio não estava interessado em viver no Xime e preferia ir para outro lado.

(Eu à época não estava a par de eventuais "trabalhos sujos", já invocados neste blogue, que Seco desempenhara anteriormente. O comandante que me antecedeu nada me referiu, embora quando arrumava as minhas coisas tivesse encontrado,  na secretária a mim atribuída,  um objecto formado por um cabo de madeira com 40 ou 50 centímetros ao qual estavam presos 3 ou 4 pedaços de arame farpado de idêntico comprimento formando sinistro chicote. Destruí-o,  pois não tinha como conduta torturar prisioneiros e achei que tal objecto prefigurava situações que sempre repudiei por princípio. Nos primeiros meses da comissão, em Bissorã, tive de travar, nem sempre com êxito, atitudes condenáveis por parte de milícias que facilmente se propagavam pelo pessoal da Companhia.)

Quanto ao Seco, não consegui arrancar-lhe mais explicações e,  falando no Comando do Batalhão, em Bambadinca [, CCAÇ 2852], consegui arranjar-lhe um sítio para morar e que ele seria o Picador do Capitão e que seria convocado de vez em quando por mim, coisa que lhe agradou. Depois,  falando com os picadores,  vim a saber que, embora já desconfiasse, o chefe por eles desejado era o filho do Chefe da Tabanca,  o Mancamam Biai, que desempenhou o papel até ao fim da comissão.

O Mancaman foi sempre uma pessoa reservada, discreta, embora entre o pessoal existisse certa desconfiança que me foi transmitida por diversas maneiras. O mesmo se passava com o Chefe da Tabanca que na noite do ataque ao Xime,  na passagem do ano 68 para 69, que foi o mais forte da minha época, foi trazido para dentro do "quartel" por haver fortes suspeitas a seu respeito (não esquecer que a morte do Furriel Dias e os muitos feridos na emboscada passara-se 1 mês antes). As coisas serenaram mas a desconfiança com altos e baixos.

No dia da minha retirada, já com a LDG atracada no Xime, veio o Mancamam ter comigo se eu não lhe deixava uma recordação:
 –Não, Mancamam,  não tenho nada para te dar, mas já dei a ti e ao teu pai a possibilidade de não terem sofrido represálias que numa certe altura pareciam mais que prováveis.

Compreendia que as populações estavam divididas com a guerra e que era natural que familiares ou antigos amigos seus vivessem naquilo que à época eram bases In e que isso era agora a realidade.
 –  Adeus,  Mancamam.

Ele percebeu.

Um abraço do
António Vaz
________________

Nota do editor:

(*) 2 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5578: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (7): Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz
(...) era um homem algo complexo e não facilmente transparente aos nossos olhos europeus, atraindo mesmo algumas suspeitas, para as nossas tropas, de que mantinha contactos com o «outro lado» e dizendo-se, até, que tinha «arroz turra» a vender na tabanca.

Nunca galgou a graduado de 2.ª linha; negou-se, certa vez, a ir numa operação para além de Ponta Varela; odeia os militares portugueses que maltrataram prisioneiros «turras» para obter declarações; condena com grande revolta as chacinas praticadas pelas tropas prtuguesas nos primeiros anos da guerra; e sempre que os oficiais de artilharia fazem fogo para o acampamento do Poidon, que ele deu a entender estar muito fraco e já não ser o que foi em tempos atrás, ele olha-os com uns olhos de fúria, o que poderia sugerir a presença de membros da tabanca ou mesmo de pessoas de família naquela área.

(...) não aprecia Amílcar Cabral nem Sekou Touré, da Guiné ex-Francesa. Tem consideração, porém, por Senghor, do Senegal, porque «ele não quer um Estado só de pretos, mas tem muitos brancos a ajudá-lo», referiu.

(...) Para Mancaman, certamente com uma dose de idealismo, mas não sem uma visão, na essência, válida e humana, o processo para a consecução da paz na Guiné passava pelas conversações directas com os turras - importante para ele, que se realizassem através de elementos da população da mesma etnia - e a aplicação de tácticas defensivas, evitando todas as acções violentas e arrasadoras da parte do exército e das forças portuguesas. (...)

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã




Guoleghal, a ave peralta do conto de Canhánima ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina), dizem os nossos especialistas José Corceiro, Mário Dias, Nelson Herbert... Conhecida na Guiné, coloquialmente,  como ganga...

Foto: Armando Pires (2010)



Guiné-Bissau > Bissau > 2004 > Cherno Baldé e família, no Tabaski  ou festa do carneiro (i)


Guiné-Bissau > Bissau > 2006 > Família Baldé > Construir hoje e amanhã...


Fotos: © Cherno Baldé (2010). Direitos reservados


1. Mensagem do Cherno Baldé (ii)

Data: 16 de Junho de 2010 17:20

Assunto: Envio de mais uma crónica

Caro amigo e irmão Luís Graça,

Envio mais uma das minhas crónicas habituais, cabendo a vocês, da incansável equipa do blogue, a decisão de publicar ou não.

Juntamente envio, também, a imagem de uma ave pernalta, que encontrei no poste (P6536) do Sr. Armando Pires, onde ele pede ajuda para a identificação da ave. Esta ave pernalta corresponde exactamente à descrição da 'gueloghal' do conto que acabo de vos enviar.

Com um grande abraço

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)



2. Memórias do Chico, menino e moço (16): Canhámina, o  fim do triângulo da vida e do poder de Sancorlã 

por Cherno Baldé (ii)

Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. Só agora começamos a compreender todo o tamanho do trama em que estamos metidos. Pessoalmente, estou na fase da readaptação de uma nova vida.

Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança não há lugar para a saudade.

Não é fácil para os outros também. Os antigos serviçais do quartel (ii) estão a morrer lentamente, inexoravelmente. O Primeiro foi o Sadjo, coitado, com a sua enorme barriga e a gordura acumulada ao longo da sua vida de cozinheiro, debaixo do sol, não conseguia obter o mínimo para sustentar os filhos e as suas três mulheres. Resultado, morreu. Sem jeito para mendigar, sem forças para trabalhar a terra, passava dias a fio metido no mato, escondido, a cogitar milagres. Além do mais, sofria de diarreia constante devido a fome e a mudança do regime alimentar.

Depois, foi a vez do Mamadu, profissão, ex-cozinheiro. Depois foi o Samba, profissão, ex-padeiro. O Maudhô Uri, esse, conseguiu safar-se trabalhando como mecânico de velocípedes. Por pouco tempo.
- Tcherno!...Tcherno Adulai!... Adulai shall!...

Ė a minha avó que me vem acordar. Todos os dias é a mesma coisa. Ela insiste de que a porta do meu quarto deve estar aberta de manhã cedo, antes da primeira oração do dia, altura em que a sorte nos bate à porta. Apesar de tudo, ela sabe que não pode entrar no meu quarto, pois o estatuto de circunciso me protege. Fica-se à porta a cacarejar. A contra-gosto levanto-me para ir lavar o rosto. Não é por causa dela, é que hoje temos um desafio de futebol contra a equipa de Canhámina. Tento encontrar, na confusão do quarto, a minha escova de dentes.
- Menino, levante-se! Olha que os teus colegas já passaram na estrada e chamam por ti dizendo: Tchernó!...Tchernó…

Era inventiva a minha avó, os alunos em marcha para Canhámina, na verdade, clamavam: 
- Um, dois, três!... Um, dois, Três!...A esquerda!...A esquerda!...Quem somos nós?! Somos pioneiros!...Quem somos nós?! Somos pioneiros!...

Rapidamente, meto os calções, meto as sapatilhas e agarro a camisa indo ao encalço dos colegas. Já estão longe e tenho que correr sem parar. Felizmente é um percurso já habitual e a minha vida é feita de corrida. Entro no pelotão pouco antes da última subida para a aldeia.

Em Canhámina, esperava-nos um espectáculo desolador. Em pleno centro da aldeia e debaixo de um poilão gigante, estavam agrupadas algumas pessoas formando um círculo, ao meio se encontrava um homem relativamente jovem, amarrado por trás, com as cordas de nylon penetrando na carne dos braços inchados, o peito todo bombeado para a frente.

Era o chamado “peito de pomba”, método preferido dos Comissários do PAIGC. Tinha sido preso no posto de controlo da fronteira com o Senegal. Via-se pelo aspecto do corpo e pelo sangue seco nas têmporas e no rosto que estava assim havia muito tempo e tinha levado porrada a valer. Da multidão, alguém lhe sussurrou na língua local:
- Diga que tu és! Diga que tu és! Senão ainda te matam, palerma!

Como não reagia, o homem levou ainda com uma coronhada na cara ensanguentada que o derrubou ao chão. Levantou-se com dificuldade mas levantou-se pois, ele era um homem e devia continuar a sê-lo enquanto tivesse o mais leve sopro de vida no seu corpo, é o que lhe ensinaram desde a mais tenra idade. Olhando, desta vez, para os seus torcionários, falou com a boca a escorrer sangue, em língua Fula:
- Eu sou!..
O Comissário perguntou-lhe:
- Tu és o quê?
- Eu sou! - respondeu.
-Tu és da FLING, não é? - sugeriu o Comissário.
-Eu sou, sim!.. sou isso mesmo. Isso que você disse.

Finalmente, ele tinha confessado o seu crime. Todos acabam por confessar. O Comissário, cuspiu para o chão o resto do tabaco que tinha na boca e, com desdém, ordenou que o levassem dali. Levaram-no para o acampamento dos guerrilheiros, ali, um pouco metido na mata que circundava a aldeia. Mesmo regressados a casa, estes, por força do hábito, ainda se sentiam melhor e mais seguros entre as árvores como os animais selvagens, com as suas inseparáveis Akas (iii)  na mão.

Um grupo de curiosos, na maioria crianças, acompanhou o cortejo. Nós seguimos para o campo de futebol, situado ao lado do acampamento militar.

No terreno, frente a Canhámina, ganhamos o jogo sem grandes problemas mas, em vez da satisfação habitual estava invadido por uma tristeza vinda de não sei onde. O meu espírito ainda não se tinha libertado do choque do que tinha presenciado. Assaltavam-me a memória muitas coisas que não me permitiam acompanhar a alegria dos colegas. Estes, na corrida de regresso a casa, gritavam, transformando as palavras do prisioneiro em slogan de vitória:
- Eu sou!... Eu sou aquilo!... Eu sou isso mesmo!... Eu sou o que você disse!... - E riam, desgraçadamente.

Ao chegar perto do cruzamento, procurei a sombra de um poilão e, com o rosto virado para a entrada principal de Canhámina, fiquei durante alguns minutos a olhar para a aldeia que alguns anos antes, fora o símbolo da coragem e do poder de Sancorlã. Esta era a terra do meu pai, também, onde recebeu o baptismo e foi circuncidado. Alguma coisa me roía por dentro. A sabedoria popular nos ensinou que: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado.

No contexto da vida de Fuladu, a história de Canhámina é invulgar e toca a todos os habitantes do antigo regulado, pequenos e grandes. Uma História breve, colorida de enigmas e que teve um fim trágico.

***
Ainda hoje, a primeira coisa que nos chama a atenção quando visitamos a localidade de Canhámina é a sua mata de poilões bem no centro da aldeia. Ė impressionante.

Contam que, em tempos idos, quando a relação dos homens com a natureza ainda era muito próxima e viva, aqui habitava uma miríade de aves de diferentes espécies e a sua vozearia era audível a quilómetros de distância. A mais importante, dentro do imaginário colectivo era, sem dúvida, a Gueloghal ou ave real, cuja presença testemunhava a sacralidade e proeminência do lugar no contexto do mundo espiritual dos homens da época, onde tudo era importante e tudo fazia sentido.
-
Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti ! Maudhô yannô to dourôh, banenguél wilti ! Si bhô uri men ganda, banenguél wilti ! Si bo may men ganda, banenguél wilti … (1)

A
Gueloghal, para além de se distinguir pela sua beleza e graciosidade que lhe valeram o epíteto de ave real, também, era conhecida como ave mensageira, dotada de capacidades de transportar mensagens de partes incertas e/ou de revelar aos homens, acontecimentos vindouros. A sua presença nesse lugar misterioso se revestia de uma auréola simbólica e ancestral de confiança na probabilidade de uma vida de paz e tranquilidade. Não se deve admirar muito pois, todos os povos que chegaram até aqui, vindos do interior do continente, sem excepção, vieram na vã esperança de encontrar a paz e a tranquilidade a que ansiavam.

Quem terá sido o primeiro habitante de Canhámina? Uma pergunta difícil de responder porquanto, os actuais habitantes de Sancorlã seriam capazes de jurar, a pés juntos, que foram os seus antepassados e com provas provadas dentro do esquema mitológico habitual do tipo: “Era uma vez, a família de caçadores do grupo dos nossos antepassados que, após um longo percurso, em perseguição de um animal de caça, acabaram por desembocar neste local milagroso…”

O que, porém, não deverá suscitar muita controvérsia, é o facto de que estas paragens já eram habitadas quando os Fulbhé (fulas) chegaram com as suas manadas de gado, vindos de Macina (Mali), de Tekrur (Senegal) ou Futa-Djalon (Guiné-Conacri).

Conta-se que, no seu périplo pela região na primeira metade do século XIX, El-Adj Omar, imperador do Sudão, teria passado por aqui a caminho de Futa-Djalon acompanhado do seu
djatigui (2) e futuro rei de Firdu, Alfa Moló a quem ele teria dado todas as terras situadas entre as bacias dos rios Gâmbia e Geba, mais concretamente até ao local designado Dandum (Dandum Cossará?), à condição que as pudesse retirar aos “infiéis” reis Soninquês, claro. Despediram-se após ter recebido das mãos do grande homem de letras a promessa de que a sua aventura seria coroada de êxito.

De regresso a casa, Alfa Moló convocou os grandes de entre os Fulbhé [, fulas,] e disse-lhes:
- Como todos sabem, desde que vivemos entre os Soninquês [, ou Saracolés, gravura à direita, 1890, co
rtesia de Wikipédia], não somos mais os donos das nossas vacas, das nossas ovelhas nem das nossas próprias mulheres, por isso, vamos combatê-los e acabar com os seus abusos de poder.

Os grandes de entre os Fulbhé após terem escutado e, cheios de medo, responderam:
- Nós não vamos combater os Soninquês e tão pouco iremos ajudar aquele que o irá fazer. 

Então o Alfa Moló levantou-se em toda a sua altura e, sacudindo o fundilho das calças, disse a frase que ficaria para sempre gravada nos anais da história épica do reino de Firdu:
- Se não me ajudarem a combatê-los, então ajudar-me-ão a fugir.

E foi assim que tudo começou, Alfa Moló e os seus apoiantes atacaram os Soninquês e, com o apoio decisivo dos
Almamis de Futa-Djalon, acabariam por conquistar a região e instalar o reino de Firdu (Fuladu), repartido em pequenos regulados entre os quais o de Sancorlã que ele confiou aos seus aliados locais (Samba Shábu?) e que escolheram para capital a localidade de Canhámina. (3).

Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana, nada acontece por acaso, tudo se justifica e se fundamenta em fórmulas simples e ao mesmo tempo complexas, e neste caso concreto de Canhámina/Sancorlã, conta-se que a origem da força e do poder local se devia à conjunção de determinados factores de ordem mística e que, por conseguinte, a perda daquela força e do poder, verificada mais tarde (1974),  se deveu a violação do princípio regulador do equilíbrio ou pacto inicial estabelecido, que começou com a penetração de elementos estranhos ao meio, entrando nesse leque tudo o que veio a ligar-se com o processo da dominação colonial, da submissão e da penetração do sistema mercantilista da produção e comercialização (borracha, coconote, amendoim etc.); de elementos novos de sujeição, de opressão e alienação cultural e espiritual que se lhe seguiram os passos, onde os impostos de capitação e a balança dos comerciantes eram os elementos mais nocivos dentro do sistema de exploração e empobrecimento das populações, terminando com a entrada silenciosa e criminosa dos guerrilheiros do PAIGC que transformaram o recinto dos poilões num campo de tortura e de exterminação dos próprios filhos de Sancorlã.

***

Conta-se que, antigamente, da mata de poilões situada no centro de Canhámina, descia uma linha de força para sul até a floresta de palmeiras (
surumael), situada nos limites do regulado e no meio da qual se encontrava uma nascente cujas águas abasteciam a população da aldeia, estando ligada, por sua vez, à bolanha, (prolongamento da bacia hidrográfica do rio Farim-Canjambari).

Surumael (matagal) representava o ângulo feminino do triângulo de Canhámina onde se praticavam não só a produção do arroz nas terras baixas mas também todos os rituais femininos ligados a educação e/ou reprodução social (cerimónias de casamento, fanados etc.).

De
Surumael, seguindo sempre o percurso da bolanha para poente até à distância de três  km, estava situado o terceiro ângulo ou o complexo masculino, Djunkoré, formado, por uma extensa área alagada durante a estação das chuvas e no meio da qual se encontrava um grande lago bem no centro da bolanha.

As populações das aldeias mais próximas e as aves pescadoras vinham aqui encontrar os peixes que subiam com as águas do rio Farim. Também aqui davam de beber as grandes manadas de gado (vacas, ovelhas, cavalos) que faziam a fama da região, acompanhadas de crianças nuas e barulhentas, com a flauta numa mão e a varra noutra.

Na margem esquerda do lago
Djunkoré encontrava-se um poilão bem alto e que, durante o período nocturno, irradiava uma luz florescente provocando o efeito bômina (claridade), que era visível a uma grande distância. Djunkoré funcionava como o refúgio dos homens e das aves, onde se praticavam as cerimónias e rituais masculinos. Todas as gerações passadas fizeram-se homens neste espaço mítico e verdejante.

Deste ângulo subia outra linha de retorno à aldeia, formando assim uma espécie de triângulo, o triângulo de vida de Canhámina. O conjunto formava um ambiente natural propício para a vida animal, em particular das aves selvagens. Mas, também constituía o centro da vida económica, social e cultural da aldeia e seus arredores.

E, numa escala maior, reproduzindo fielmente o triângulo de Canhámina, a organização social e política do regulado, também, se apoiava em três pilares ou áreas geográficas (
diwal): A área de Canhámina (ângulo sudoeste), a área de Lenkebembe/Cambaju (ângulo noroeste) e a área de Panambo/Kerwane (ângulo nordeste) e, cada uma das quais gozando de uma certa autonomia.

Esta divisão administrativa fomentava muitas rivalidades, algumas das quais ainda hoje subsistentes, mas também era factor de concorrência e de dinâmica criativa que permitia manter a necessária coesão social e política assim como a chama guerreira do regulado.


***

Todavia, a sucessão de Alfa Moló na segunda metade do Séc. XIX, não viria a ser nem bem sucedida e muito menos pacífica, obrigando ao seu sucessor, o intrépido Mussá Moló, a disputar não somente o trono com outros pretendentes dentro da família, como fazer face a pretensões autonomistas dos pequenos regulados em que estava dividido o reino de Fuladu, (com particular incidência naqueles cuja liderança era chefiada por Fulas-Forros, antigos suseranos e pouco inclinados a aceitar a vassalagem
vis-a-vis dos Fulas-pretos cujo poder representava Mussá Molo), sob o olhar atento dos Almamis de Futa e ainda a presença cautelosa mas insidiosa das potências europeias (os Portugueses a partir de Farim e Geba, e os Franceses a partir do Senegal) que cobiçavam a região meridional do Firdu. (4).

Nestas circunstâncias, os pequenos regulados Fulbhé do nordeste e leste Guineense tinham que escolher entre submeter-se à tirania de Mussá Molo, apoiado subrepticiamente pelos Franceses,  ou aliar-se aos Portugueses. Assim nasceu a aliança de interesses entre os Fulas e Portugueses que, tudo somado, pareciam distantes e sem quaisquer interesses em comum.

Porém, esta aliança fortuita não estava isenta de algumas contradições. Os Fulas, de um lado, precisavam dos Portugueses para se proteger das ameaças e razias constantes dos homens de Mussá Molo mas, sendo muçulmanos,  eram portadores de um inevitável “proselitismo religioso” que estava na base da sua libertação e do seu poder conquistado perante os Soninquês. 

Os portugueses, por seu turno, precisavam de aliados no interior onde não conseguiam chegar para fazer valer as suas pretensões para lá do Geba mas, também, tinham na bagagem a Bíblia e o compromisso da salvação de almas perdidas para justificar as suas conquistas de além-mar.

Mas tarde e, sempre que se sentiriam aflitos, os portugueses não hesitariam em recorrer aos seus aliados muçulmanos do interior (Fulas e Mandingas) para reprimir os povos guerreiros “animistas” do litoral Guineense mas, logo que se sentiam minimamente aliviados da pressão, se apressavam a afastá-los destas zonas para não espalhar a sua indesejada influência religiosa.

Com Teixeira Pinto e seus auxiliares muçulmanos, os portugueses fecharam o capítulo da conquista e pacificação (?) do território da Guiné no início do século XX, impondo de seguida,  a todos os habitantes da Guiné, a obrigação do pagamento de impostos. Com estes, veio a necessidade de produzir excedentes comerciais abrindo, desta forma, uma porta de entrada a produção do amendoim que,  juntando-se a colecta da borracha,  se transformariam, durante muito tempo, nas actividades obrigatórias de toda a região do interior.


***

Com o florescimento do comércio nos anos 40 e 50, houve a necessidade de abrir vias de acesso e de ligação com as zonas portuárias de Farim e Bafatá. As medições feitas determinaram que a estrada tinha que passar no meio da mata de poilões de Canhámina, que seria o ponto de convergência das três estradas (Cambaju ao norte, Bafata ao sul e Farim a Oeste,). Esta foi a primeira abertura (ferida) no triângulo de Canhámina, o primeiro sinal inquietante da mudança dos tempos, que abriu as portas para a penetração de elementos estranhos no círculo de vida de Sancorlã.

Com o intuito de preservar Canhámina da invasão do novo mundo e das suas consequências inevitáveis, Fajonquito serviu de escoadouro e aldeia satélite para canalizar todos os elementos que não se enquadravam no pacto de equilíbrio do mundo antigo. Foi assim que as casas comerciais que queriam instalar-se em Canhámina, foram empurradas para lá, a três quilómetros a oeste a fim de preservar o triângulo.

Foi assim que, pelas mesmas razões, tanto a escola portuguesa (1964) assim como a primeira companhia de tropas metropolitanas (1965) enviada para reforçar o regulado com o início da luta para a independência, ficaram pouco tempo na aldeia, tendo sido, de seguida, transferidas para Fajonquito. Era preciso manter o equilíbrio do pacto, tanto assim que, pese a vontade de o fazer, os guerrilheiros do PAIGC nunca conseguiriam penetrar no triângulo e atacar Canhámina, o coração de Sancorlã, mesmo desguarnecida de tropas. Eram desviados para longe por uma força misteriosa.



***

Mas, nem tudo correu tão bem como se pensava, e o mal já estava feito e pouco a pouco assistir-se-ia ao desmoronar da vitalidade do sistema que vigorara até ali. O primeiro sinal de alarme foi a diminuição drástica do barulho das aves e das chuvas, também. As espécies mais inteligentes simplesmente tinham desaparecido dos poilões de Canhámina, entre as quais a famosa Gueloghal. Em seguida, veio um outro alarme do sudoeste com a extinção da luz de Djunkoré e do seu lago que parecia inesgotável. O velho poilão florescente, completado o seu ciclo de vida, tinha cessado as suas actividades de faroleiro para as aves viajantes.

Por fim, as mulheres, alarmadas, vieram informar que os olhos da fonte de Surumael tinham secado e já não corria água da nascente. Também, os macacos (babuínos, pára-quedistas,  etc.) que espantavam as crianças no seu interior, já não viviam no matagal. Era o fim do pacto de equilíbrio? Parecia incrível, e os olhos virados para Canhámina não encontravam nenhuma resposta. Decididamente, os ventos da história tinham mudado de direcção e com esta viragem, acontecia o fim de um ciclo histórico e, por coincidência, também climático.

Tudo parecia combinar para acelerar as mudanças. Em 1974, aconteceria o improvável. Os portugueses, cansados de ver seus filhos morrer longe da sua terra natal, por uma causa cada vez mais difícil de defender, tinham descoberto uma nova pátria, mais pequena desta vez mas, assim mesmo, a pátria mãe, abandonando a guerra nos territórios do ultramar com o seu calor infernal e seus insuportáveis mosquitos. E numa coluna como nunca dantes visto, levaram consigo todo o equipamento de guerra. Canquelifá… Gabu…Canjufa…Pirada…Canjadude… Piche…Bafatá…Bambadinca…Farim…Guidaje, tudo.

As milícias, eternas sacrificadas, voluntárias da sua própria desgraça, num repente incompreensível, se pasmaram na vã gesticulação de mãos vazias. Adeus, camaradas, nada se pode fazer, é o virar de uma época. Os tempos mudam e os homens também.

Com a conquista da independência, os guerrilheiros do PAIGC, qual exército de Gengis Cã, silenciosa e furtivamente instalaram-se nos portões de Canhámina bem no centro dos poilões, tecendo paciente e meticulosamente a sua teia de morte, desafiando insolentemente os deuses de Sancorlã, completando a missão histórica que Amílcar Cabral lhes tinha legado: “A sociedade fula é do tipo vertical, em cima estão os régulos, no meio os Djilas ambulantes e, em baixo, os camponeses. Entre os vários segmentos sociais, uma coisa os une fortemente, são contra a luta armada…”

Enfraquecida pela guerra que quase esvaziou as suas aldeias, ferida mortal e traiçoeiramente pela abdicação dos seus aliados, Sancorlã não conseguiu reagir atempadamente ao infortúnio que se abateu sobre ela e, em menos de dois anos completou-se a destruição (decapitação) das suas forças vivas e da sua elite dirigente, encurralada, fragilizada e justamente vitimada. O mundo aplaudia a Guiné-Bissau independente, pais onde não havia lugar para aqueles que tinham fraquejado. O acordo de Argel, uma quimera e, não se esqueçam: ”Nem toda a gente é do povo”.

Todos os valorosos que não quiseram pactuar com o novo regime e eram demasiado orgulhosos para fugir dos seus ex-inimigos, entregaram seus peitos às cordas de nylon dos comissários políticos de PAIGC e mais tarde as suas vidas, fazendo a viagem sem regresso para os cárceres de Bafatá e Bambadinca. As justificações teóricas e práticas não faltaram. As festas também. “Páa-nô-uni! Páa nô mamáa… Páa-nô-uni, Pa-nô-mamáá, Panó terráá…”.

Em Fajonquito, ainda continuamos durante muito tempo, a pescar e a nadar no lodo do que restava do rio Farim/Canjambari e, sem pudor, ao sabor da brisa, mudamos também de camisola e hino. Continuamos a pedir as armas mas já não eram contra os canhões mas contra os colonos e seus aliados. Os heróis de mar não tinham aguentado tão bem em terra firme. Os peixes também, assim como os ex-soldados, para se adaptarem ao novo clima, se metamorfosearam em coisas pequenas e escuras escondidas na imundície da lama das bolanhas, escorregadios como o sabão chinês que invadiu os nossos mercados.

Alguns realizaram a proeza de, em tempo recorde, arrastando seus bubus brancos, transformar-se em Marabus de esquinas e mesquitas com salmos e cuspo na testa, pedindo a perdão dos nossos pecados colectivos. Outros passaram as fronteiras. Mas, muitos foram os que morreram sufocados nas prisões de Farim, brigando por escassos graus de cereais crus. Os deuses estavam a ouvir? Aláau…akbaar!

Os tempos, verdadeiramente, tinham mudado e nós vivíamos ou melhor sobrevivíamos sem dar por isso. Aconteceu exactamente como no poema ecológico de Júlio Roberto (5):
 - Onde se encontra o matagal?... Destruído!
- Onde está a água, o lago e o poilão?... Desapareceram!
- Onde estão os valorosos de Sancorlã?... Morreram!

 Bissau, Junho de 2010.

[ Revisão / fixação de texto / bold a cores: L.G.]
______________


Notas de Cherno Baldé:


 (1) Canto das aves mensageiras “Guelodhé” em língua fula: A árvore da vida floriu! Ao velho que tinha visitado as terras altas, informamos: A árvore de vida floriu! Se estiver em vida que nos informem! Se não estiver em vida, que nos elucidem! A árvore da vida floriu de novo! 

 (2) Djatigui – Anfitrião, palavra de origem incerta utilizada em quase todas as línguas de África do oeste.

(3) Crónicas guerreiras dos reis de Firdu (Fuladu)

 (4) Ver René Pélissier: Historia da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegambia. (1841-1936), vol. I e II, Imprensa Universitaria, Editorial estampa, Lisboa, 1989.

(5) Carta do chefe Seattle (Índio) em 1884 ao grande chefe branco de Washington, inserido no poema ecológico de Júlio Roberto
 _______________

 Notas de L.G.:

 (i) Tabaski ou festa do carneiro: comemoração da vontade de Abraão de sacrificar o seu filho por vontade de Alá... Uma das mais importantes festas do calendário religioso muçulmano.

 (ii) Vd. último poste da série > 18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!

Vd. os postes anteriores, e em especial o de 13 de Julho de 2009 >  Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

 (...) A minha família, descendente de Fulas originários de Macina, no espaço territorial do antigo Sudão Ocidental (actual Mali), e que se consideram a si mesmos de Fulbhê Arábbhê, cujo significado se deve ter perdido na noite dos tempos e que, no entanto, tem uma similitude muito próxima da palavra Árabe, vivia em Kerewane (uma deformação de Kairuan?), localidade situada entre Kumakara (Senegal) e Saré Bacar (Guiné-Bissau), mesmo na linha da fronteira entre os dois países.

Dessa época não sei quase nada que possa transmitir. Mais tarde, a familia mudou-se para Canhámina, capital do regulado de Sancorlã, [a nordeste de Fajonquito, carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line' ,] o que aconteceu após a morte do nosso avô paterno, Morô Baldé (Morseide), ocorrida, provavelmente, entre os anos de 1922/23.

Os seus descendentes eram sobrinhos directos da casa reinante de Sancorlã (Soncoia?), através da mãe, nossa avó paterna, Eguê Mariama Baldé, facto que certamente terá pesado na decisão de se mudar para esta localidade. Em Canhámina, durante muito tempo, a nossa família viveu sob protecção da casa do régulo, tendo beneficiado de algumas regalias daí inerentes, encabeçada pelo mais velho dos irmãos, Naor, que foi pajem de seu tio Braima Djame Baldé, mais conhecido por Burandjame (ou Brandjame?), o régulo de Sancorlã, e era colega e amigo íntimo de Abdu Buram, o príncipe herdeiro do trono, que encontrou a morte na última guerra de Canhabaque entre 1935/36 [, nas Ilhas Bijagós, referência à repressão de uma das últimas revoltas dos habitantes locais] . (...)


(iii) AKA - Kalash, Espingarda Automática Kalashnikov (AK),  Calibre 7,62 mm

 (iv) Soninquês (também chamados Saracolês): grupo etnolinguístico mandinga maioritarimente islamizado. Habitam a África ocidental. Em francês, Soninkés.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5908: Agenda Cultural (62): Seminário Lusófono Que Fazer com Estas Memórias ?, Centro de Estudos Sociais-Lisboa, 5 e 6 de Março de 2010 (Diana Andringa)



Seminário Lusófono
QUE FAZER COM ESTAS MEMÓRIAS?



Local: Centro de Estudos Sociais-Lisboa


Data: 5 e 6 de Março de 2010

Programa > Sexta-feira, 5 de Março

9:30 - 10:30 -

Abertura – Porquê um Seminário Lusófono sobre Tortura e Memória?
José Manuel Pureza, Representante do Centro de Estudos Sociais – Lisboa,
Raimundo Narciso, Presidente da Associação Movimento Cívico Não Apaguem a Memória,
Cecilia Coimbra*, Representante do Movimento Tortura Nunca Mais (Brasil),
Simonetta Luz Afonso, Presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, CES-Lx

10:30 - 12:00 - Projecção do filme “48”, de Susana Sousa Dias

12:00 – 12:30 - Comentário pelo Dr. Afonso Albuquerque (Médico psiquiatra, autor de um livro sobre o impacto da tortura sobre presos políticos portugueses)

12:30 – 13:30 - Debate sobre o filme, com a presença da realizadora Susana Sousa Dias

13:30 – 15:00 - Pausa para almoço

15:00 – 16:30 - Projecção do filme “Memória para uso diário”, de Beth Formaggini

16:30 – 17:30 - Comentário pelo Dr. Carlos Martin Beristain (Médico especialista em Saúde Mental, Universidade de Deusto, Bilbao) e por Alípio de Freitas (português, preso e torturado no Brasil.)

17:30 – 18:30 - Debate sobre o filme, com a presença da realizadora

Sábado, 6 de Março

10:00 – 11:30 - Projecção do filme “ Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta”, de Diana
Andringa

11:30 – 12:00 – Comentário por Miguel Cardina, historiador, investigador do CES e Víctor Barros, investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20).

12:00 – 13:00 - Debate sobre o filme, com a presença da realizadora

13:00 – 13:30 - Sessão de encerramento: Como fazer da memória partilhada da tortura uma alavanca pela defesa da Cooperação e dos Direitos Humanos?, Secretário Executivo da CPLP, Eng. Domingos Simões Pereira*.

* A confirmar
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5899: Agenda Cultural (61): Exposição Portugal nas Trincheiras - A I Guerra da República, de 23/2 a 23/4/2010, em Lisboa