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segunda-feira, 7 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2729: Estórias de Guileje (10): os trânsfugas de Guileje, humilhados e ofendidos (Victor Tavares, CCP 121/BCP 12, 1972/74)

1. Extracto de um poste do Victor Tavares, natural de Águeda, onde é presidente de junta da freguesia de Recardães, sua terra natal. Foi 1º cabo pára-quedista, da CCP 121 /BCP 12 (Guiné, 1972/74).

Justifica-se a reprodução deste excerto: o Victor dá-nos aqui o retrato do abandono e da humilhação, a que foram sujeitos, em Cacine, os militares que, sob as ordens do Comandante do COP 5, major Coutinho e Lima, abandondaram Guileje, em 22 de Maio de 1973, chegando a Gadamael, também fortemente atacada pelo PAIGC, a seguir a Guileje, e salva pelos pára-quedistas e a Marinha -, refugiando-se depois em Cacine. (LG)


Estórias de Guilele (10): Gadamel Porto, o outro inferno a sul

por Victor Tavares

Depois de regressada do inferno de Guidaje (2), a Companhia de Caçadores Pára-quedista (CCP) 121 encontrava-se estacionada em Bissalanca [, na Base Aérea nº 12], gozando um curto período de descanso, após a desgastante acção que tivera no norte da província.

Daí o Comando Chefe entender que os 4 a 5 dias de descanso concedidos já eram demais e ser necessário o reforço das nossas tropas aquarteladas em Gadamael por se encontrarem em grandes dificuldades. Acaba, por isso, por dar ordens para rumarmos a Gadamael, para onde partimos a 12 de Junho de 1973.

Partindo de Bissau em LDG [Lancha de Desembarque Grande] com destino a Cacine, onde chegámos a meio da tarde deste mesmo dia. Como a lancha que nos transportava, não conseguia atracar ao cais por falta de fundo, fomos fazendo o transbordo por várias vezes em LDM [Lanchas de Desembarque Médias] para aquela localidade.

Foi então, logo na primeira abordagem da lancha, que me apercebi que na mesma estava um indivíduo que pela cara me pareceu familiar. No entanto, como o mesmo se encontrava vestido à civil calções, camisa aos quadradinhos toda colorida e sandálias de plástico transparente - pensei ser porventura algum civil que andaria por ali no meio da tropa, o que seria natural e podia eu estar errado.

Depois de toda a tropa estar desembarcada, indicaram-nos o local onde iríamos ficar, num terreno frente ao quartel de Cacine. Instalámo-nos e de seguida fomos dar uma volta pelas redondezas, até que no regresso deparo com a mesma criatura, sentada no cais com ar triste e pensativo, típico da pessoa a quem a vida não corre bem. Eu vinha acompanhado do paraquedista Vela, meu conterrâneo – e hoje meu compadre. Perguntei-lhe:
- Ouve lá, aquele tipo ali não é nosso conterrâneo?
Responde ele:
- Sei lá, pá, isto é só homens.


"Gadamael ?!...Vocês vão lá morrer todos!"

Por ali estivemos na conversa mais algum tempo, até que tomei a iniciativa de me dirigir ao fulano uma vez que ele continuava no mesmo sítio. Acercando-me dele, perguntei-lhe:
-Diz-me lá, camarada, por acaso tu não és de Águeda ?
Responde-me ele:
- Sou.
E pergunta-me de seguida:
- E você, não é de Recardães?

Digo-lhe que sim, cumprimentamo-nos e vai daí perguntei-lhe o que é que ele estava ali a fazer, porque de militar não tinha nada. Respondeu-me que não sabia o que estava ali a fazer, de uma forma triste e ao mesmo tempo em tom desesperado e desanimado.

Entretanto com o desenrolar da conversa, ele perguntou o que estávamos ali a fazer, eu respondi que na madrugada seguinte íamos para Gadamael Porto... Qual não é o meu espanto quando ele põe as mãos à cabeça, desesperado e desorientado, e me diz:
- Não vão, porque vocês morrem lá todos!

Tentei acalmá-lo, dizendo-lhe para estar descansado que nada de grave ia acontecer, pedi-lhe para me contar o que se passava, vai daí, começa ele a relatar o que tinha passado em Guileje e Gadamael até chegar a Cacine. Na verdade depois de o ouvir, não me restaram dúvidas que ele tinha mais do que sobejas razões para estar no estado psicológico aterrador em que se encontrava .

Os militares portugueses que abandonaram Guileje, foram tratados como desertores e traidores à Pátria

Entretanto, informa-me da sua situação militar daquele momento tal como a de outros camaradas que abandonaram Guileje. Neste grupo estava também outro meu conterrâneo, que o primeiro foi chamar, vindo este a confirmar tudo.

O que mais me chocou foi a forma desumana como estes militares foram tratados, depois da sua chegada a Cacine, sendo considerados como desertores e cobardes, quando, em meu entender, se alguém tinha que assumir a responsabilidade dessa situação, seriam os seus superiores e nunca por nunca os soldados.

Estes homens foram humilhados por muitos dos nossos superiores - que eram uns grandes heróis de secretária! -, foram proibidos de entrar no aquartelamento, não lhes davam alimentação, o que comiam era nas Tabancas junto com a população. As primeiras refeições quentes que já há longos dias não tomavam, foram feitas por estes dois homens juntamente com os pára-quedistas, porque o solicitei junto do meu Comandante de Companhia, Capitão Pára-quedista Almeida Martins – hoje tenente general na reserva - ao qual apresentei os dois camaradas do exército que lhe contaram tudo por que passaram.


Os dois desgraçados de Guileje eram meu conterrâneos: o Carlos e o Victor Correia

Solicitei ao meu comandante para eles fazerem as refeições junto com o nosso pessoal, prontificando-me eu a pagar as suas diárias, se fosse necessário. Ele autorizou os mesmos a fazerem as refeições connosco enquanto não tivessem a sua situação resolvida e a nossa cozinha que dava apoio ao Bigrupo que estava de reserva, ali se mantivesse.

O meu comandante expôs o problema destes homens ao comandante do aquartelamento do exército, solicitando que o mesmo fosse resolvido com o máximo de brevidade uma vez que a situação não era nada dignificante para a instituição militar.

É de salientar que estes dois homens já não escreviam aos seus familiares há mais de um mês, porque não tinham nada com que o fazer. Fui eu que lhes dei aerogramas para o fazerem e os obriguei a escrever, porque o seu moral estava de rastos e a vida daqueles militares já não fazia sentido. Dormiam debaixo dos avançados das Tabancas enrolados em mantas de cor verde, não tendo mais nada para vestir a não ser o camuflado.

Estes meus dois conterrâneos que atrás refiro eram o Carlos (que infelizmente já faleceu, natural do lugar de Perrães, Oliveira do Bairro) e o Victor Correia (de Aguada de Baixo, Águeda, e que hoje sofre imenso de stresse pós-traumático de guerra)(3).
______________

Notas dos editores:

(1) Vd. poste de 19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista)

(2) Vd. postes de:


25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto


9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

(3) Estes camaradas devem ter pertencido à CCAV 8350 (ou a sub-unidades adidas, como o Pel Art, do Alf Mil Pinto dos Santos). Os Piratas de Guileje foram os últimos deixar Guileje, por ordem do comandante do COP 5, o então major Coutinho e Lima (4). A esta unidade pertencia o nosso querido amigo e camarada, o ex-Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho, membro da nossa tertúlia:

Vd. post de 2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73) (Magalhães Ribeiro).

Recorde-se que, de 18 a 22 de Maio de 1973, o aquartelamento de Guileje foi cercado pelas forças do PAIGC (Op Amílcar Cabral), obrigando as NT (CCAV 8350, 1972/73 e outras), a abandoná-lo, juntamente com cerca de 600 civis (3)
A Companhia Independente de Cavalaria 8350/72 foi a unidade de quadrícula de Guileje entre Outubro de 1972 e Maio de 1973. Viu morrer em combate nove dos seus homens, entre algumas dezenas de feridos.

Foi seu Comandante o Cap Mil Abel dos Santos Quelhas Quintas, o qual escreveu numa carta dirigida ao Senhor Chefe do Estado Maior do Exército, sobre o Furriel Miliciano de Operações Especiais José Casimiro Pereira Carvalho, com o seguinte teor (data omissa ou desconhecida):

"Exmo Senhor Chefe do Estado Maior do Exército:

"Por, quando Comandante da Companhia Independente da Cavalaria 8350, em serviço na Guiné entre 1972 e 1973, sedeada em Guileje, ter sido ferido em Gadamael, nunca me foi possível propor uma homenagem pública ao Furriel de Operações Especiais Casimiro Carvalho.

(...)"Quando fui ferido, foi este homem que me ajudou a deslocar para junto do Rio Cacine, pois eu mal me podia movimentar, deslocando-se em seguida debaixo de intenso fogo de morteiros e outra armas que, neste momento, não sei especificar, para conseguir um depósito de gasolina de forma a poder fazer movimentar a embarcação em que me evacuou para Cacine, como também outros militares que nesse momento já se encontravam junto ao pequeno cais.

"Nas reuniões anuais da nossa Companhia muitos falam dos actos de bravura deste furriel, desde, debaixo de fogo, conduzindo uma Berliet se deslocar aos paióis para municiar não só as bocas de fogo de artilharia, como para os morteiros, fazer ainda parte duma patrulha onde morreram vários militares ficando ele e outro a aguentar a situação, até serem socorridos, e ter sido ferido, evacuado para Cacine, o que não invalidou que passados poucos dias se tenha oferecido para voltar para junto dos camaradas no verdadeiro inferno em Gadamael" (...).
Vd. ainda os seguintes postes:

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G91

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gandembel (ex-Fur Mil Art Paiva)

(4) O major de artilharia Alexandre da Costa Coutinho e Lima era então, desde 21 de Janeiro de 1973, o comandante do COP 5, tendo sido ele a tomar a decisão da retirada de Guileje, em 22 de Maio de 1973, cercado por três corpos do exército do PAIGC (três baterias de artilharia: uma de canhões sem recuo; outra de morteiros; e outra de foguetões 122 mm, ou graad, também conhecidos como jactos do povo).

Vd. postes de:
27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2137: Antologia (62): Guileje, 22 de Maio de 1973: Coutinho e Lima, herói ou traidor ? (Eduardo Dâmaso / Luís Graça)

3 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2502: Guiledje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (14): Enquadramento histórico (II): o significado da queda de Guileje

23 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2673: Uma semana memorável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (10): Guiledje: Homenagem ao Coronel Coutinho e Lima

23 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2677: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Coutinho e Lima (1): Comandante do COP 5, com 3 comissões no CTIG

23 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2678: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Coutinho e Lima (2): A dolorosa decisão da retirada de Guileje

(...) "A Operação de retirada foi organizada da seguinte maneira: em primeiro escalão, saiu o Sr. Comandante da CCAÇ 4743 (GADAMAEL) com os seus dois grupos de combate, seguidos de parte da população; em segundo escalão, o Sr. Comandante da CCAV 8350 (GUILEJE), com a sua Companhia, milícia e restante população; em último lugar, o pessoal militar sobrante, incluindo os elementos do Comando do COP 5, tendo sido eu o último a sair do quartel" (...).

Segundo informação (oral) do Coronel de Artilharia, na reforma, Coutinho e Lima, agora prezado membro da nossa Tabanca Grande, a coluna militar que deixou Guileje, era constituída por: (i) 2 grupos de combate da CCAÇ 4743 (unidade de quadrícula de Gadamael); (ii) CCAV 8350, (unidade de quadrícula de Guileje); (iii) Pelotão de Artilharia, comandado pelo Al Mil Pinto dos Santos (já falecido); (iv) Pel Cav Reconhecimento Fox (reduzido, havendo apenas duas Fox), além do (v) pelotão de milícias local...

Ele disse-me que não havia nenhum Pel Mort, sendo o Mort 10.7 e os 2 Mort 81, operados por pessoal dos Piratas de Guileje. Esta unidade (a CCAV 8350) era constituída sobretudo por "pessoal do Norte" e esteve depois em Bissau, em recuperação. Em Abril de 1974 estava afecta ao sector de Quebo (Aldeia Formosa), em dois destacamentos: Cumbijã e Colibuía.

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O espaldão do morteiro à guarda do Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho.



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Furriel Mil Op Esp J. Casimiro Carvalho, posando para a fotografia com uma das mais temíveis armas do PAIGC: um RPG, lança-granadas-foguete.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > 1973 > O heliporto... Após a queda das primeiras aeronaves, abtidas pelos Strella, de finais de Março a meados de Junho de 1973 deixa de ser possível, à FAP;: dar apoio aéreo ou voar no sul da Guiné. O correio e os víveres chegam com dificuldade, em colunas que vêm de Gadamael, sendo esta por sua vez abastecida de barco a partir de Cacine.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > 1973 > Março/abril de 1973 > Um dos passatempos favoritos do Casimiro Carvalho era a caça... aos pardais.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O José Casimiro Carvalho, armado até aos dentes, numa saída para o mato, empunhando a um dos nossos lança-granadas-foguete, de calibre 3,7.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > Março de 1973 > A inauguração do bar!... O acontecimento do mês, depois do ataque ao aquartelamento e à queda do primeiro Fiat G.91 em 25 de Março... Escreveu o nosso camarada a uma bajuda [creio que irmã ou cunhada], em carta de 21/3/73: "Mando-te mais uma foto da inauguração do nosso bar. O careca é o major, o furriel que está à minha direita é o enfermeiro, e vai aí a casa, este mês, recebam-no bem".


Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.

Não há correio nem evacuações no sul da Guiné, o que começa a afectar profundamente o moral das NT, acontonadas no perímetro dos aquartelamentos. J. Casimiro Carvalho - nas poucas cartas que escreve, no mês de Abril de 1973, ao pai, à mãe, ao irmão - começa a dar sinais do isolamento e do stresse em que se vive, em Guileje... É incapaz, no entanto, de prever a tragédia que se avizinha, a batalha de Guileje (17 a 22 de Maio de 1973) e que levará à decisão de abandonar, em 22 de Maio de 1973, o aquartelamento e a tabanca de Guileje.

Nessa altura, o Casimiro estava em Cacine e irá escrever aos seus pais a carta que começa assim (e que reproduziremos na íntregra em próximo post): "Cacine, 22/5/73. Queridos pais: Vou contar-lhes uma coisa difícil de acreditar, como vão ter oportunidade de ler: Guileje foi abandonada" (...).

A selecção, a revisão e a fixação do texto são da responsabilidade do editor do blogue (LG) .


Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento


Guileje, 6/4/73
(…) Nos últimos dias o meu grupo tem saído quase interruptamente para a mata e, quando devia descansar, está de serviço. Andamios extenuados. Chiça!

Guileje, 12/74/73
(…) A vontade de escrever não é muita, mas sinto necessidade disso. Hoje, ou melhor, ontem o meu grupo foi dar fogo de treino e ouviu-se dois rebentamentos. Pensou-se logo: rebentaram armadilhas (das muitas que rodeiam o quartel).

Hoje saiu a milícia nver o que tinha sido e estva lá um turra com o pé cortado pela armadilha. Tinha uma arma mauser semi-automática. Outro dia, não sei se disse, apresentou-se aqui um outro turra, com a pila cortada e um testículo… Foi para Bissau.

Como os aviões e avionetas andam a cair devido a uma arma nova, um míssil terra-ar, desconhecido para nós, quase não há transportes para o mato, e portanto o correio atrasa muito (…).

Guileje, 17/4/73

(…) Devem estar admirados com a falta de correio mas a culpa não é minha mas sim é devida à falta de transporte aéreo para as zonas perigosas. Tal é o nosso caso. Os turras têm uma arma que deita a aviação abaixo e agora não há correio, só há em caso de evacuções ou colunas. Portanto, não se admirem.

Houve aqui batuque, é emocionante.

Matei uma espécie de onça, a pele é maravilhosa. Hoje matei uma águia a 350 metros.

Estou óptimo, mas fartíssimo de estar aqui isolado do resto do mundo sem ver coisas novas (…).

Guileje, 22/4/73

(…) Hoje foi um dia de fartura cá em Guileje, recebi nada mais do que 10 cartas. (…) Recebi as cacholas, até dá para gozar. Recebi o salpicão, estava uma delícia (….).

Desde o princípio do mês que não recebia notícias vossas. Não há aviões, nem para feridos que haja. Não há, portanto, evacuações para estas zonas. Isto está mau. Mas não se preocupe (…)..

Guileje, 27/4/73

(…) No último dia 25, quando fizemos 6 meses de Guiné, e um mês que fomos atacados, voltámos a ser flagelados com canhões sem recuo, mas sem consequências, é claro. As granadas caem à volta do quartel, eles não acertam, e foi de noite (…).

Aqui tudo decorre normalmente, com alguns problemas de isolamento e é só.

Guileje, 30/4/73

(…) Esta é mais uma das cartas que eu escrevi e que vai ficar junto com as outras, que vão seguir em coluna auto até Gadamael, donde seguem de batelão até Bissau. Todas juntas, claro. Não se admire, pois a culpa é de não haver aviação.

Estamos num total isolamento, mas vai-se aguentando, e saímos muito pouco do quartel, pois não havendo evacuações não pode haver feridos.

Hoje choveu em abundância (o pessoal saiu cá fora), pela primeira vez, no Guileje. Foi uma festa, mas é só uma pequena amostra do que há-de chover. Junto envio algumas fotos para o paizinho. A da bajuda com o jubi às costas é para si, OK?

Amanhã vou finalmente ter notícias da Metrópole, pois haverá uma coluna (…).

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Abril de 2007

Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 91

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2487: Guileje, 22 de Maio de 1973 (2): Por mor da verdade dos factos (Nuno Rubim)

Guiné > Guileje > 1973 > Capa do Álbum de fotografias do José Casimiro Caravalho, ex-Fur Mil Op Esp, CCAV 8350 (1972/74). Ele esteve em Guileje de Outubro de 1972 a Maio de 1973 (1). Todas as nossas recordações desses tempos (já lá vão quase 40 anos, para muitos de nós) são fragmentadas. A memória acaba por nos trair em questões factuais, sobretudo datas, nomes de lugares, nomes de camaradas e de unidades, pormenores técnicos do armamento, etc. Daí a necessidade de se recorrer à investigação de arquivo, de procurar fundamentar, na rica documentação do Arquivo Histórico-Militar, e na investigação historiográfica que já se começa a fazer, aqueles pontos, potencialmente polémicos, da guerra da Guiné, e que podem tornar-se questões fracturantes entre nós: por exemplo, a retirada ou abandono de Guileje... Seria bom que também ouvíssemos o depoimento dos protagonistas, mas deixemos também falar os documentos ... (LG)

Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1973 > O Fur Mil Op Especiais Carvalho, da CCAV 8350 (Guileje, Outubro de 1972/Maio de 1973), montado num dos dois obuses 10,5 existentes em Gadamael.

Guiné > Região de Tombali > Gadamael > O Fur Mil Op Especiais Carvalho, junto à uma das peças de artilharia 11.4, ali existentes em Gadamael. Em Guileje também existiram peças destas, até 16 de Maio de 1973 (altura em que foram substituídas por 2 obuses de 14 cm que entretanto foram capturados pelo PAIGC, na sequência do abandono das NT em 22 de Maio de 1973)... A 18 de Maio, como se sabe, começou a batalha de Guileje (Op Amílcar Cabral, para o PAIGC)...

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem Cor Art, na reforma, Nuno Rubim , enviado em 27 de Janeiro de 2008:

Caro Luís Graça

Um abraço

Agradeço-te que publiques no blogue o seguinte:

No blogue de hoje, 27 de Janeiro, deparei-me com uma intervenção do Sr. Prof. Doutor Manuel Rebocho que me causou uma grande perplexidade (2).

Sendo que o blogue teve como ideia original (tua) o vir a constituir um lugar onde todo e qualquer camarada, combatente ou não, que prestou serviço na Guiné durante a guerra colonial, possa transmitir as suas memórias e lembranças desses tempos, o que constituirá um testemunho ímpar para as gerações futuras, tenho vindo a assistir, e cada vez mais, a determinado tipo de intervenções que nitídamente visam "fazer história", o que julgo que se afasta dos propósitos originais, determinando, entre outros graves inconvenientes, o de poder desencadear polémicas que, por o serem, não levam, na maioria dos casos, a qualquer tipo de conclusões objectivas, podendo mesmo induzir os leitores em erros de desinformação.

Mas o que me parece mais grave é que são feitas, muitas vezes, afirmações destituídas de qualquer realidade histórica, i.e., não são apoiadas em documentação oficial que, não sendo de per si inquestionável, ainda é a única base científica susceptível de apoiar o que se escreve ou se diz, como julgo que o Sr. Prof. bem sabe.

Ora no caso vertente o Sr. Prof. Doutor Manuel Rebocho estabelece várias considerandos, um que liminarmente desde já rebato, outro que gostaria que viesse a ser documentalmente apoiada, para assim ser devidamente autenticada.

Afirma o Sr. Prof.:

1- As peças que estavam em Guiledje eram de calibre 10.6, e mais nenhum outro.

Desloquei-me ao Porto, onde vive o Capitão miliciano (claro) que comandava a companhia que fugiu de Guiledje. Ele próprio da arma de Artilharia, conhecedor do assunto, com quem troco frequentes telefonemas e e-mails, e que não me deixa enganar no calibre das peças. Está-me frequentemente a corrigir.



Realmente fico pasmado! O calibre das peças era 11,4 cm, sendo que foram substituídas por obuses de 14 cm dois dias antes do ataque do PAIGC, por já não existirem munições. Foram recebidas em Guileje sem tábuas de tiro e com apenas um aparelho de pontaria ! (Doc 1).

Por outro lado nunca houve material com o calibre 10,6. Existiram, sim, obuses de 10,5 cm de origem alemã Rheinmetall e Krupp), adquiridos durante a 2ª Guerra Mundial.


Doc 1 > Relatório da Acção Bubaque, realizada em 18 de Maio de 1973, na região de Guilege (sic)

(...) "As forças envolvidas foram apoiadas com cerca de 55 granadas de obus 14 cm. No entanto verificou-se que o tiro estava extremamente pouco preciso, facto que está relacionado com certeza com a chegada dos dois obuses, na coluna de antevéspera, em substituição do materail 11,4 cm que seguiu na mesma coluna para Gadamael. De notar que vieram apenas 2 obuses, sem tabelas de tiro e, um deles, sem aparelho de pontaria"


Fonte: Arquivo Histórico-Militar / Nuno Rubim (2008)

2 - O Major Coutinho e Lima, no momento em que ordenou o abandono de Guiledje, já não era comandante do COP 5, pois havia sido substituído no dia anterior. O Comandante era agora o Coronel Pára-Quedista (hoje Major-General) Rafael Ferreira Durão, o mais prestigiado Oficial Pára-Quedista de todos os tempos, por quem tenho elevada consideração e amizade. Coutinho e Lima era, no dia 22 de Maio de 1973, segundo comandante do COP 5, razão pela qual não tinha competência orgânica para dar a ordem que deu.

Não tendo qualquer procuração do Coronel Coutinho e Lima, passo a responder a esta afirmação que, pelos vistos, foi feita sem qualquer fundamento, e que se encontra claramente exposta, pelo menos e cronologicamente, nos Doc. 2, 3 e 4, hoje arquivados no Arquivo Histórico-Militar (atenção aos grupos data /hora ).

Finalmente as suas considerações acerca do Coronel Rafael Durão são perfeitamente
legítimas, mas de nenhuma forma as subscrevo.


Nuno Rubim (2)

-CPM 130, Moçambique 1961-1963
-Ex-Comdt das CART 644, CCmds, CCAÇ 726 e CCAÇ 1424, Guiné 1964-66
-Centro de Instrução de Comandos, Angola 1967-69
-SRT, Guiné 1972-74

Doc 2 > "Em 21 [de Maio de 1973] às 16h00, o Comandante do COP 5 com uma força constituída por 1 Gr Comb / CCAÇ 4743, 1 Gr Comb / CCAÇ 3520 e 1 Sec Pel Mil 235, deslocou-se apeado de Gadamael para Guileje onde chegiu em 21, às 18h30. "Dia 22 de Maio de 1973: Em 22, às 5h30, Guileje foi evacuada.

"O Chefe da Repartição de Operações, Mário Martins Pinto de Almeida, Ten Cor do CEM"

Fonte: Arquivo Histórico-Militar / Nuno Rubim (2008).

Doc 3 > Mensagem do Com Chef Oper para a CCAÇ 4743, com data de 22 de Maio de 1973, às 18h00: " 1652/C. Ref Mensagem Relâmpago de 22 de Maio de 1973, às 12H15, s/ número, solicito informe Cmdt CAOP 3, Cor Pára Ferreira Durão, que Sexa General Comandante-Chefe determinou seja retirado imediatamente do comando COP 5 Maj Art Alexandre da Costa Coutinho e Lima e mandado apresentar QG/CCFAG para efeito auto corpo delito".

Fonte: Arquivo Histórico-Militar / Nuno Rubim (2008)



Doc 4 > Mensagem (relâmpago) do Com Chefe Oper para CAOP 3, com data de 24 de Maio de 1973, às 21h20: "1700C. Sexa General determina retirado comando Major Coutinho Lima desde data m/msg 1652/C [vd. Doc 3] ,devendo seguir via Cacine em Sintex. Tarde de 25 de Maio não deve já estar em Gadamael".

Fonte: Arquivo Histórico-Ultramarino / Nuno Rubim (2008).

Revisão e fixação de texto: LG

2. Comentário do editor L.G.:

Duas das regras de ouro da nossa tertúlia são - passo a citar - a "verdade dos factos" e a "manifestação serena mas franca dos nossos pontos de vista, mesmo quando discordamos, saudavelmente, uns dos outros (o mesmo é dizer: que evitaremos as picardias, as polémicas acaloradas, os insultos, a violência verbal)"...

Ou seja: estamos aqui todos (ex-combatentes, de um lado e de outro, antigos soldados, sargentos e oficiais milicianos e até sargentos e oficiais do quadro permanente, dos três ramos das forças armadas portuguesas), não para dividir, nem para reinar, mas sim porque temos a Guiné... marcada, para sempre, no coração, na memória, no corpo e na alma.

Também é desejável (embora não obrigatório...) que nos tratemos por tu, como camaradas de armas que fomos, no TO da Guiné... Na comunicação entre nós, no blogue, nos e-mails, nos encontros tertulianos, os títulos académicos ou os cargos ou funções actuais bem com as patentes militares (de ontem ou de hoje) não devem ser um obstáculo à construção deste belíssimo projecto que é a partilha, entre nós (e entre nós e os outros), da vivência e da experiência, de cada um, da guerra do ultramar / guerra colonial / luta de libertação...

Dito isto, aqui ficam os esclarecimentos dados pelo nosso querido amigo e camarada Nuno Rubim, que eu espero sejam recebidos pelo Manuel Rebocho (que foi um valoroso combatente pára-quedista, de um batalhão excepcional, o BCP 12, que terá ajudado a salvar muitas vidas de camaradas nossos no sul e norte da Guiné, no final da guerra, entre 1972 e 74...) , e que é também meu confrade nas lides académicas, não sei se actualmente é professor universitário, mas pelo menos é doutorado em sociologia por uma universidade portuguesa, a de Évora), espero, dizia eu, que o Rebocho receba com serenidade, sabedoria, reconhecimento e flair play estes esclaracimentos do Nuno Rubim que pretendem apenas repor a verdade dos factos em relação a dois pontos:

(i) o calibre dos obuses de Guileje;

(ii) quem comandava o COP5 no dia e na hora da retirada de Guileje (o termo fuga é demasiado forte e implica um juízo de valor que pode ser doloroso e até injusto para muitos camaradas nossos que nos lêem)...

Naturalmente que o oficial superior visado, o então Major de Artilharia (e actual Cor Art, na reforma) Coutinho e Lima (que eu conheci pessoalmente no dia da estreia do filme de Diana Andringa e Flora Gomes As Duas Faces da Guerra e que me disse estar a escrever um livro sobre Guileje), tem também o direito de defender o seu bom nome, se for caso disso, nas páginas deste blogue, muito embora ele não faça parte da nossa tertúlia ou Tabanca Grande...

Prezamos muito a liberdade de expressão neste blogue, mas também o bom nome e a dignidade das pessoas... Sabemos que nem sempre é fácil conciliar uma coisa e outra. Isto também quer dizer que não procuramos (nem alimentamos) polémicas, muito menos para fazer subir a blogometria...
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Notas de L.G.:

(1) Sobre o José Casimiro Carvalho (que vive na Maia), vd. entre outros os seguintes postes :

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G91

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)


(2) Vd. poste de 27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2484: Guileje, 22 de Maio de 1973 (1): Pontos (polémicos) por esclarecer (Amaro Samúdio / Nuno Rubim / Manuel Rebocho)

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17550: O Serviço Postal Militar (SPM) do nosso contentamento: cartas e aerogramas... (E, a propósito, o que é feito dessas 10 toneladas de correio diário que circulavam nos vários teatros de operações durante a guerra ?)


"Este Aerograma foi-me devolvido tal como está, traçado de balas ou estilhaços na emboscada de 26/10/1971, efectuada à Coluna Piche-Nova Lamego, em que faleceram o Alf Mil Soares, o 1º. Cabo Cruz, o Sold Cond Ferreira e o Sold Manuel Pereira, todos da CART 3332.Guardo-o religiosamente comigo..." (*)

Documento que nos foi enviado pelo nosso grã-tabanqueiro  Carlos [Alberto Rodrigues] Carvalho, ex-fur mil da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche e Ponte Caium, 1970/72, irmão da nossa amiga Júlia Neto e, portanto, cunhado do nosso saudoso Zé Neto. Muito provavelmente o aerograma ia no saco do correio... Pelo que se depreende, o destinatário do aerograma era um seu familiar, possivelmente a sua mãe (Rosa Maria Silva Simão Melo Rodrigues de Carvalho), que vivia em Lamego.  Não temos tido notícias deste camarada. Página no facebook: Carlos Alberto Carvalho.


Carta


José Casimiro > Cacine, 22/5/73:

Queridos pais: Vou-lhes contar uma coisa difícil de acreditar como vão ter oportunidade de ler: Guileje foi abandonada [a bold, no original], ainda não sei se foram os soldados que se juntaram todos e abandonaram o quartel, ou se foi ordem dada pelo Comandante-Chefe, mas uma coisa é certa: GUILEJE ESTÁ À MERCÊ ‘DELES’ [, em maíusculas, no original].

Não sei se as minhas coisas todas estão lá, ou se os meus colegas as trouxeram. Tinha lá tudo, mas paciência.

Se foi com ordem de Bissau que se abandonou a nossa posição, posso dar graças a Deus e dizer que foi um milagre, mas se foi uma insubordinação, nem quero pensar…

Mas… já não volto para lá!!! Não tinha dito ainda que Guileje era bombardeada pelos turras há vários dias e diversas vezes por dia. Os soldados e outros não tinham pão, nem água. Comida era ração de combate e não se lavavam. Sempre metidos nos abrigos e nas valas. A situação era impossível de sustentar. Vosso para sempre (…).



Aerograma


José Casimiro > Guileje, 22/4/1973

Meu querido pai: Hoje foi um dia de fartura cá no Guileje, recebi nada mais nada menos do que 10 cartas, uma das quais era uma que eu tinha mandado à avó, e que foi devolvida, pois não existe o nº que me disseram, no Largo das Fonsecas. Adiante...

Pai, recebi as "cacholas", até dá para gozar. Recebi o salpicão - estava uma delícia. Quando eu chegar aí, não deve haver peixes no rio nem nomar. Quanto a a fotos de pretas [, desenho de um corpo  feminino parcial.], eu já tinha arranjado, e mandei os rolos para Cufar, para o irmão da Ana levar aí a casa, mas ele não pôde ir de férias, e vai mandar aqui para Guileje, e eu mando para Bissau, pois aqui já não revelam

Quando puder mandar rolos, mande. A Olinda (Montijo) tem-me escrito. A mãezinha que gaste  do meu dinheiro para remédios, é um desejo meu que gostava que fosse cumprido, ok ? Retribua os cumprimentos à D. Elisa e família. Mando-os também para todos os vizinhos com que eu me dava bem. Para todos em casa um grande beijo (A BIG KISS) [, desenho de uns lábios]. Sempre vosso,  J. Casimiro.



Carta


José Casimiro > Gadamael, 26/6/73


NOW WE HAVE PEACE [, em inglês, finalmente temos paz]

Minha querida mãezinha:


É com imensa ternura que, mais uma vez, lhe dedico uns minutos do meu pensamento. Neste momento batem 8 horas numa emissora de London [sic] que ouvimos no rádio.

Então, como têm passado todos aí em casa, enquanto o vosso soldadinho finalmente tem sossego, pois os turras não nos têm chateado, nestes últimos dias ?!

Ontem chegou uma companhia nova aqui, veio substituir a companhia daqui, e há-de vir uma outra, daqui a uns dias, para nos substituir. Vai haver bebedeira, pela certa, e vamos para o Cumeré, para completar a Companhia, substituir mortos e feridos graves. O capitão também foi ferido gravemente, e foi evacuado para a Metrópole. O outro capitão, o daqui, também foi ferido.

Há já alguns dias que vivemos em paz de espírito, e agora, desde há alguns dias fui nomeado instrutor de um novo grupo de milícias (pretos, 40). Ensino-lhes desde armamento a táctica de combate a ginástica. É um passatempo e não saio para o mato, pela primeira vez em oito meses, feitos ontem, dia 25.

Já passou a nuvem negra que tapava o nosso amor, entre mim e a Ana, até ando mais feliz, pois embora não quisesse, ela não me saía do pensamento, pois gosto muito dela.

Parece que há um aumento de 500$00 a partir de Março e que recebemos tudo junto em Agosto. Mande dizer quanto marca o saldo B[anco] B[orges]. & Irmão.

 Um beijo para ser dividido igualmente entre todos, do militar J. Casimiro.


[Na vertical, na margem esquerda: Pax, Now we make love not war [Paz, agoramos fazemos amor e não guerra; na margem direita, PAZ]


1. O ex-fur mil op esp José Casimiro Carvalho [. foto à direita, c. 1973[, com residência na Maia, confiou-me, no I Encontro Nacional da Tabanca Grande (Ameira, Montemor-o-Novo, 14 de outubro de 2006), uma pequena colecção de aerogramas e cartas que escreveu à família durante o período em que esteve em Guileje e depois Cacine e Gadamael, coincidindo com o abandono de Guileje pelas NT. A unidade a que ele pertencia - a CCAV 8350, Os Piratas de Guileje - esteve lá entre dezembro de 1972 e maio de 1973.

Depois do regresso à metrópole, em 1974, ele entrou para Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana (BT/GNR),  primeiro como soldado e depois como agente patrulheiro. Está aposentado. De qualquer modo, quem o conhece (e conheceu na Guiné), nunca dirá dele que era um daqueles milicianos "politizados", com posições críticas face à guerra colonial e ao regime político de então. Como, de resto, a grande maioria dos milicianos e demais militares, incluindo os do quadro permanente, que durante 13 anos fizeram a guerra do ultramar (ou guerra colonial), na esperança, em todo o caso,  que o poder político acabasse por encontrar uma solução (política) para aquela maldita guerra que prometia eternizar-se...

Apresentamos acima um exemplo de um carta, devidamente selada (correio aéreo), e de um aerograma, amarelo, sem franquia,  enviados pelo nosso camarada José Casimiro Carvalho (ex-fur mil op esp, CCAV 8350) à família. A carta tem data de 22/5/1973, e foi remetida de Cacine, onde ele estava retido. Nesse mesmo dia, Guileje fora abandonado pelas NT.  O aerograma tem data de 22/4/1973, e é expedida de Guileje. Uma segunda carta é já de Gadamael, e tem data de 26/6/1973. (**)

No aerograma, dirigido ao seu "querido pai",  o nosso camarada tem uma conversa trivial, diz que está feliz por ter recebido nada menos do que 10 cartas, além das encomendas postais... Há uma evidente cumplicidade entre dois homens, pai e filho, mas não há inconfidências relativamente à situação militar...

Já nas cartas, há matéria que poderia ser considerada muito "sensível" e "classificada", como por exemplo o abandono de Guileje por parte das NT...e, um mês depois de terríveis combates  em Gadamael, o J. Casimiro Carvalho informa a sua "querida mãezinha" de que finalmente há paz, e que está a haver rendição de tropas, que a sua companhia, a CCAV  8350,  vai para o Cumeré, e que vai haver bebedeira, pela certa, e que ao mesmo tempo houve mortos e feridos graves, incluindo dois capitões, um dos quais evacuado para a metrópole!...

Ora, se eu alguma vez escrevesse uma carta destas para casa, era um terramoto, deixava os meus pais e irmãs a sangrar de dor!...De qualquer modo, muitos de nós nunca escreveriam cartas deste teor, não só para poupar a família mas também por autocensura.

Em suma, o J. Casimiro Carvalho, que não esconde nada aos pais,  parece usar o aerograma para a "conversa da treta" e as cartas para as inconfidências, as informações sobre a situação militar, etc.  Era algo de intuitivo para os militares,  o aerograma, na sua perceção, prestava-se mais à devassa, à violação... Ou seria o contrário ?


2. As questões que se podem pôr hoje, em relação à satisfação e confiança no Serviço Postal Militar (SPMS)  (***), são as seguintes: 


(i) o nosso correio era seguro ?



(ii) o aerograma, sem franquia,  era mais seguro 

do que a carta selada ?



(iii) a malta fazia autocensura ou, pelo contrário, escrevia, 

nos aerogramas e cartas,  tudo o que lhe apetecia ?



(iv) o correio era rápido ? quanto dias demorava a chegar ? (dependendo de a distribuição ser feita por avioneta
 ou por coluna auto)



(v) as cartas, os aerogramas, os valores declarados e  as encomendas postais não se extraviavam ?



(vi) houve camaradas que escreveram mas não chegaram a pôr no corrreio aerogramas e/ou  cartas com medo de serem abertos e lidas pelas autoridades militares e/ou  pela PIDE / DGS ?



(vii) era frequente (ou, pelo contrário, era raro) dar-se informações detalhadas sobre a situação político-militar tanto na Guiné como na Metrópole ?

A resposta a estas questões dá pano para mangas,,,e para alimentar o nosso blogue neste verão...


3. Relendo as  cartas que o meu cunhado José Ferreira Carneiro escreveu  à irmã, Alice Carneiro (****), constato que o aerograma, em Angola, não seria tanto fiável quanto a carta; podia levar um mês a chegar, enquanto a carta (, por via área,) demorava três dias a chegar a casa dos pais...

O correio era muito importante, nos dois sentidos. O aerograma tranquilizava as nossas famílias. Mas também é verdade que podia veicular boatos de toda a espécie, a par de informações que, para as chefias militares, deviam ser classificadas ou reservadas...

Recordo-me de, em finais de maio de 1969, quando cheguei à Guiné, o terror do "periquitos" eram então as histórias que se contavam de Gadembel e de Madina do Boê. Tanto a retirada de uma e outra ainda estavam na memória de muita gente. O nosso grã-tabanqueiro, Henrique Cerqueira, por sua vez, tinha mais confiança no aerograma do que na carta. Mas as nossas namoradas e esposas não gostavam nada de receber o aerograma em vez da carta, que o diga o nosso Manuel Joaquim! (*****).


José Carneiro, 1º cabo trms, de rendição individual,
Camabatela,  norte de Angola, 1969/71
José Carneiro > Camabatela 16/06/70

Querida mana Chita: 

 Estou a escrever uma carta porque os aeros [aerogramas] chegam a demorar cerca de um mês até chegarem ao seu destino, isto quando não são devolvidos. Estou mesmo muito aborrecido com isto. Pensei agora só escrever cartas, mas de 15 em 15 dias. Assim as cartas só demoram 3 dias a chegar a vossa mão. Tens que escrever é para a caixa postal. Que achas? Assim não repetimos as notícias. Quando receberes carta minha, peço-te que telefones aos pais para ficarem descansados. Está bem assim? (*)



Henrique Cerqueira > Comentário de 6/12/2012 (**)

[ foto à esquerda: Henrique Cerqueira,  ex-fur mil, 3.ª CCAÇ/BCAÇ4610/72, e CCAÇ 13, Biambe
e Bissorã, 1972/74; vive no Porto]:



(...) Para mim o aerograma tinha uma grande vantagem em relação à carta envelope normal. É que no aerograma havia maior possibilidade de enviar informações que o Estado (PIDE/DGS) considerava de teor político e assim os censurava. 

Tinha que haver o cuidado de colar bem as margens. Assim os censores tinham uma maior dificuldade em violar o aerograma e, como eram aos milhares, havia que contar com a "burrice preguiçosa" dos tais indivíduos. Este foi um conselho dado por um agente da DGS que na altura estava em Bissorã.(Era um novato e ainda com as ideias pouco contaminadas). 

Aliás quando o tive de acompanhar a Bissau no pós-Abril e sob detenção, tive mais uma vez a possibilidade de verificar que o indivíduo politicamente era mesmo um pouco "inocente". Ou seja era mais um "recrutado" pelo objectivo monetário e não político. 

Eu próprio senti na pele essa pressão de recrutamento um pouco antes do 25 de Abril. Felizmente resisti conforme pude, pois que até ameaças de repatriamento da família para a metrópole eu recebi. Como já disse, eu tinha a mulher e filho comigo em Bissorã nos últimos nove meses da comissão.

Um abraço a todos e viva o "aerograma" que até era de borla. (****)

4. Haverá, por certo, outros camaradas com opinião qualificada sobre a organização e o funcionamento do Serviço Postal Militar (SPM) , a sua alegada independência face à PIDE / DGS, e à própria hierarquia militar, as demoras do correio, os eventuais extravios, e sobretudo o risco de violação da correspondência. 

Em suma, o SPM era mesmo o do nosso contentamento? Era o melhor serviço que a tropa nos prestava? Nunca nos fizeram um inquérito... de satisfação... Mas, meio século depois, ainda vamos a tempo de fazê-lo, mesmo que o SPM tenha sido extinto em 1981 e a guerra acabado em 1975, com o regresso dos últimos soldados do império...

Mas haverá por certo muitas cartas e aerogramas ainda por salvar... Vamos fazer um apelo aos filhos e netos dos nossos camaradas, esposas, madrinhas de guerra, antigas namoradas, amigos, amigas,  etc., para que salvam o "património epistelográfico" dos nossos "rapazes"...

O que é feito dessas 21 mil toneladas de correio que circularam durante a guerra colonial? As "cacholas", os salpicões, os queijos, o bacalhau, etc., isso comeu-se e fez-nos muito bom proveito... A "guita" gastou-se em "putas e vinho verde", como diria esse rapaz holandês de nome impronunciável por um "tuga" e que nunca foi à guerra, um tal Jeroen Dijsselbloem... Mas as cartas e aerogramas que escrevemos e recebemos, camaradas?!... O que é feito delas?... A maior parte foi parar ao caixote do lixo, mas outros apodrecem nos nossos baús...

Parabéns aos camaradas e às amigas que já aqui partilharam parte do seu espólio postal: o Mário Beja Santos, a Cristina Allen, o Manuel Joaquim, o Renato Monteiro, o José Ferreira Carneiro, a Alice Carneiro, o J. Casimiro Carvalho, o António Graça de Abreu, o José Teixeira, o Armor  Pires Mota, o Silvério Dias, o Albano  Mendes de Matos e outros (cito de cor!)...
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de novembro de  2010 >Guiné 63/74 - P7327: Facebook...ando (1): O aerograma traçado de balas ou estilhaços na emboscada de 26/10/1971, na estrada Piche-Nova Lamego, e em que morreram 4 camaradas da CART 3332 (Carlos Carvalho)

(**) Vd. postes de:

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 9

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

Vd. também poste de

1 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9837: Cartas de Gadamael: maio e junho de 1973 (J. Casimiro Carvalho, Fur Mil Op Esp, CCAV 8350, Guileje, 1972/73)

(***) Vd. poste de 27 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17518: Antologia (76): "O Correio durante a guerra colonial", por José Aparício (cor inf ref, ex-cmdt da CART 1790, Madina do Boé, 1967/69)... Homenagem ao SPM - Serviço Postal Militar, criado em 1961 e extinto em 1981.

(...) O serviço prestado pelo SPM foi notável. Muito para além dos números impressionantes de milhões de aerogramas, cartas, encomendas, vales do correio e valores declarados, por eles tratados e enviados; durante os anos de guerra a expedição média diária foi de 10 toneladas de correio (!!!) para um total transportado de 21 mil toneladas. É que nunca falhou, mesmo nos locais mais perigosos, difíceis e isolados, e os prazos médios entre a expedição e a recepção eram mínimos. (...)


(*****)  Vd. poste de 19 de junho de  2013 > Guiné 63/74 - P11732: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (16): Aerogramas e insuficiência das mensagens

(...) O aerograma foi um óptimo meio de comunicação mas sempre o olhei como um substituto menor da tradicional carta usada nas relações afectivas, principalmente no discurso amoroso (ou fizeram-me crer nessa menoridade). Tendo, muitas vezes por preguiça, desleixo, cansaço ou mesmo falta de tempo, recorrido ao aerograma para manter uma periodicidade regular na minha correspondência de guerra, nunca ninguém se me “queixou” do seu uso, exceto a namorada. Receber aerogramas em vez de cartas, era coisa de que ela não gostava nada. Mas lá foi disfarçando … até já não poder mais. (...) 

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3370: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (6): O nosso querido patacão

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho, contando o patacão...


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > A inauguração do bar de sargentos, em meados de Março de 1973, onde se gastava uma boa parte do graveto...

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.


1. O ex-Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho (*), actualmente residente na Maia, confiou-me, no primeiro encontro da nossa tertúlia (hoje Tabanca Grande) - na Ameira, em 14 de Outubro de 2006 -, uma pequena colecção de aerogramas e cartas que escreveu à família durante o período em que, ainda periquito, esteve em Guileje e depois Cacine e Gadamael, coincidindo com o nosso abandono de Guileje . A unidade a que ele pertencia - a CCAV 8350, Os Piratas de Guileje - esteve lá entre Dezembro de 1972 e 22 de Maio de 1973.

Mais recentemente - por ocasião do III Encontro Nacional do nosso blogue, em Monte Real, em 17 de Maio de 2008 -, entregou-me mais umas tantas cartas e aerogramas. Ao todo, os dois lotes não ultrapassan as 60 cartas e aerogramas, de desigual interesse documental.

Esta correspondência (**) vai até ao período do pós-25 de Abril, altura em que ele esteve na zona leste da Guiné, na região de Gabu, mais exactamente em Paunca, integrado na CCAÇ 11, depois de ter passado, após a saída de Guileje e Gandembel, por Cumeré, Colibuía, Nhala e Cumbijã... Em Paunca ele será uma testemunha privilegiada das profundas alterações político-militares, ocoridas no TO da Guiné, em Maio e nos meses seguintes, na sequência da tomada do poder pelo MFA, em 25 de Abril de 1974.

Nesta correspondência pode encontrar-se algum apontamento ou outro, de maior interesse documental para o conhecimento do quotidiano das NT no sul da Guiné (incluindo a actividade operacional), nomeadamente no chamado corredor da morte (ou corredor de Guileje, para nós; caminho do Povo, para o PAIGC). No primeiro artigo publicaram-se alguns excertos da correspondência relativa a Fevereiro e Março de 1973.

Recorde-se que, em 25 de Março de 1973, num domingo e em pleno dia, o aquartelamento de Guileje foi duramente atacado durante cerca de hora e meia. Foram usados foguetões 122 mm. Um caça-bombardeiro Fiat G-91, que veio em socorro, foi abatido sob os céus de Guileje... É o primeiro, de que há registo na história da guerra da Guiné, de uma aeronave abatida por um míssil terra-ar Strella... Vinte quatro horas depois, o tenente piloto aviador Miguel Pessoa foi resgatado, são e salvo, pelo grupo de operações especiais do Marcelino da Mata...

Em Abril de 1973, começam a aparecer os sinais de isolamento e de degradação da situação: Não havia correio nem evacuações no sul da Guiné, multiplicavam-se os boatas, etc., o que começava a afectar profundamente o moral das NT, acantonadas no perímetro dos aquartelamentos.

J. Casimiro Carvalho - nas poucas cartas que escreve, no mês de Abril de 1973, ao pai, à mãe, ao irmão Fernando - começava a deixar transparecer o stresse em que se vivia, em Guileje... Era, todavia, totalmente incapaz de prever a tragédia que se avizinhava, a batalha de Guileje (17 a 22 de Maio de 1973): recorde-se que, na sequência da Op Amílcar Cabral, levada a cabo pelo PAIGC, o comandante do COP 5, o então Maj Art Coutinho e Lima toma a decisão de abandonar, em 22 de Maio de 1973, o aquartelamento e a tabanca de Guileje, retirando retirando-se, com cerca de 800 elementos (entre os quais 600 civis), para Gadamael.

O Casimiro estava nessa altura em Cacine, coordenando o transporte dos abastecimentos para Guileje, e irá escrever aos seus pais a sua famosa carta de 22 de Maio de 1973:

"Cacine, 22/5/73. Queridos pais: Vou contar-lhes uma coisa difícil de acreditar, como vão ter oportunidade de ler: Guileje foi abandonada" (...).

Em Gadamael, o Casimiro juntou-se, no final de Maio, à sua ostracizada, destroçada e desmoralizada companhia. Bateu-se galharda e corajosamente na desesperada desfesa de Gadamael, até ser ferido por um estilhaço de morteiro, depois de ter ajudado a salvar e a evacuar o seu comandante, o Cap Abel Quintas, também ferido mas esse, com mais gravidade.

Não temos cartas ou aerogramas da 1ª quinzena de Junho de 1973, em que os pára-quedistas do BCP 12 tiveram que vir aliviar a pressão exercida pelo PAIGC sobre Gadamael, a seguir ao abandono de Guileje pelas NT (em 22 de Maio de 1973). Não sei se nessa época o Carvalho escreveu à família, ou se não o pôde fazer.

Publicamos agora mais alguns excertos do segundo lote de cartas e aerogramas, e que vão de 4 de Fevereiro a 20 de Abril de 1973, em Guileje, e depois no Cumeré (algumas cartas, de Julho e Agosto de 1970), sendo a última (já de Dezembro de 1970) remetida novamente do sul, Colibuía. Em 20/12/73, o nosso camarada fez anos, "22 invernos", como escreveu, bem humorado, ao irmão Fernando. (A CCAV 8350 voltara ao sul, sendo agora encarregue da segurança dos trabalhos de construção de uma estrada).

Há, nesta correspondência, amiudadas referências ao dinheiro que se ganha e que se gasta: por exemplo, 100$00 por mês com a lavadeira; 35$00, numa garrafa de vinho do Porto, oferecido aos soldados da sua secção; 60$00, num peixe de 6 kg; 120$00, em duas refeições em Bolama; 40$00 por uma peça de caça, carne de búfalo que deu oara 40 bifes... Vêm ao de cima também as preocupaçõs imediatas da generalidade dos nossos militares, no TO da Guiné, que era a comida e a bebida, para além do correio (que se envia e que se recebe, de preferência todos os dias)...

O J. Casimiro Carvalho falava, terra a terra, mas com humor e ternura, destas pequenas coisas da vida, com os seus pais e irmãos. Quando há petisco, pergunta filosicamente: "Nem sempre a vida é má, não achas ?", para logo concluir: Mas "o pior está para vir" (Colibuía, 22/12/73, aerograma enviado ao Fernando).

Em 9 de Julho de 1973, os Piratas de Guileje estão de passagem pelo Cumeré. O nosso ranger, ligeiramente ferido com um estilhaço de morteiro, tinha partido a 8 de Julho, de Cacine para Bolama, de LDG, presume-se. Em Bolama, vê pela primeira vez mulheres brancas (!) ao fim de 8 meses de mato. Toma um retemperador banho de psicina (entrada: 10$00)e duas refeições (120$00) - incluindo o inevitável e incontornável bife com batatas fritas e ovo a cavalo - que lhe souberam pela vida (uma típica expressão nortenha).

No dia seguinte, no Cumeré, já estava a receber instrução militar, dada pelos comandos. O Cap Mil Abel Quintas, evacuado de Gandemebel, será substituído no comando da CCAV 8350, que algum tempo depois voltará ao sul (Nhala, Colibuía, Cumbijã) por onde ficará até 1974. No Cumeré, em Julho de 1973, a preocupação do J. Casimiro Carvalho é descansar e tranquilizar a família, depois do pesadelo de Guileje e Gadamael... (LG)

A selecção, a revisão e a fixação do texto são da responsabilidade de LG, editor do blogue.



Guileje, 4/2/73
[Carta]

Paizinho:

(…) Aqui quase não dá para juntar dinheiro. Eu recebo 1300$00 por mês, 100$00 vão para a lavadeira, cerca de 700$00 vão para o bar, para o alfaiate fazer calções, ajeitar roupa ao corpo, cerca de 50$00 por mês. O mês passado, 2 calções ligeiros que mandei fazer, foram 80$00 e, é claro, um gravadorzito que comprei e que é indispensável, também custa… Alguma caça que se compra para não se passar fome, também é dinheiro, selos, cartas, fotografias, etc.

Como vê… mas vai-se passando e não preciso de mais dinheiro. Claro que este já é o suficiente. Também os furriéis paga umas cervejas de vez em quando aos soldados, uma garrafa de champagne (50$00) ou de vinho do Porto (35$00) que nós lhes oferecemos, assim como Alfero dá. É uma espécie de PSICO. É mesmo necessário tudo isto para nós os levarmos. Acredite, quem sabe somos nós que aqui andamos. (…)


Guileje, 28/2/73 [data do carimbo do correio]
[Carta, dactilografada]

Fernando:

(…) Eu cá me encontro bem, gordinho e sem nada que fazer, felizmente, pois não é de meu gosto trabalhar muito e ainda por cima para a tropa, não achas que tenho razão ?

Mas ‘Eles’ lá me vão lixando que não é brincadeira, pois cada vez que há serviço para dactilografar para o COP 5 (Comando Operacional) lembram-se cá do Fur Carvalho, que é dos que sabe escrever à máquina, proporcionando-se assim que eu não tenha lá muito descansado fora das hora de trabalho.

Hoje, por exemplo, estava eu a descansar, veio o ordenança do Major [Coutinho e Lima]chamar-me para lá ir. Fui lá e disse-me para eu fazer umas Ordens de Operações (cerca de 7 folhas grandes bem cheias, para eu dactilografar, num papel de cera, para depois meter no duplicador).

Ontem chegou aqui um pelotão de negros de Operações Especiais, chefiados por um Alferes, também negro, muito conhecido na Metrópole e em toda a Guiné pelas suas atrocidades para com os turras (visto estes terem-lhe morto a família), chamado 'Marcelino'.

São 20 homens que valem por 2 companhias de brancos, mas também assassinos natos. Além de, entre nós, serem uns gajos porreiros e brincalhões, usam fardas turras, armas turras (Kalashnikov, RPG-2, Simonov, etc. etc.), saíram hoje com destino secreto. Mas nós sabemos, de antemão, que vão fazer barulho lá com eles. Estes tipos vivem no Quartel General de Bissau com o General Spínola.

Dá cumprimentos meus ao Varinho e deseja-lhe felicidades e que não tenha problemas, nem receio, pois isto no final é uma brincadeira. (…)

Recebe um grande abraço do teu irmão (…)


Guileje, 14/3/73
[Carta]

Paizinho:

Cá recebi o seu aéreo de 3/3/73, mas deve haver algum atrasadonoutro lado qualquer (…).

Hoje mesmo recebi uma carta do meu padrinho de 12/3/73, juntamente com a sua. Já lhe respondi, descanse.

Obrigadinho pela encomenda, vai fazder jeito, então o paio!!! FIUU!

O aumento para furriéis parece que é somente de 500$00, mas mesmo assim não é mau, e sere para passar umas férias em beleza, em Bissau, não acha? E talvez a 'carta' [de condução], quem sabe.

(...) Ontem comprei um peixe melhor que a pescada, com cerca de 6 kg (60$00), e eu e os soldados do meu grupo fizemos um valente petisco com ele, cerveja e pickles que foi um regalo. Hoje vai ser a mesma coisa. Nem sempre há peixe, portanto é aproveitar (…).


Guileje, 15/3/73
[Carta]

Mãezinha:

(…) As diversões que nós vamos tendo são: jogar sueca, king (jogo inglês), pocker de dados, dominó, bisca, damas, futebol, etc. etc.

Vieram para cá outro dia, numa coluna, latas de Milo (38$00) e frascos de pickles (18$50) e eu, claro, que comprei (…).

Junto com a carta viu enviar-lhe uma foto da inauguração do nosso bar de sargentos que, verdade seja dita, ficou excelente, até música boa!!! Que tal ?

Agora quase que não há saídas para a mata, portanto andamos a folgar as costas, só de vez em quando vamos emboscar para fazer protecção à reabertura de uma estrada que vai dar a um sítio que em tempos foi abandonado e que vai ser reocupado.

Agora já há máquina de fazer café, no nosso bar, e portanto biquinha depois das refeições que, quando não são boas, são substituídas por uma latinha de lulas e uns pickles. É o que me vai safando e a outros também. Temos que aguentar. (…)


Guileje, s/d
[possivelmente 15/3/73]
[Aerograma]

Paizinho: (...) Hoje fui até à bolanha (sítio onde abunda terreno húmido) para orientar a fabricação de uma espécie de tijolos brutos, feitos com uma terra que abunda aqui.

Logo vai haver uma comida 'fresca', talvez pescada, batatas, couves, etc. , fruta fresca, pois o avião largiu os 3 habituais pára-quedas, com os ovos, cenouras, batatas, pescada, hortaliça, laranjas, etc.

Isto aqui anda muito con concorrido. Helicópteros, muitas avionetas, algumas armadas, talvez por causa dos tais Op Esp [Operações Especiais] negros que cá estão e que saem todos os dias pra o célebre 'corredor da morte'.

(...) Ontem inaugurou-se o bar de sargentos, muito bonito e acolhedor, com gira-discos e tudo. (...)


Guileje, 20/4/73 [e não 74, como vem no original, por lapso]
[Aerograma]

Fernando:

(… ) A malta aqui tem saído muito pouco, o que já é uma sorte. O capitão [ Abel Quintas,]está de férias, aí no Porto, e o major [ Coutinho e Lima, comandante do COP 5,] também não está cá. Quem manda é um alferes. Hoje estou de sargento de dia e também ao lixo (limpeza do quartel feita pela minha secção) (…)
.


Cumeré, 9/7/73
[Carta]

Minha querida mãe:

Cá está o seu queridinho no Cumeré, o que já não é nada mau. E dormiu uma noite de sonho, numa CAMA COM LENÇÓIS E TRAVESSERO. E comeu uma pescadinha com batatas cozidas, FIUU!... Até admira!

(….) Ontem saí de Cacine e fomos para a antiga capital: Bolama. Linda cidade, com Hotel, cinema, restaurante… MULHERES BRANCAS, que não apreciávamos há 8 meses.

Tomei banho na piscina (10$00), comi duas refeições (bife com batatas fritas, cabrito estufado,etc.) (120$00). Foi um delírio, nem que custasse 500$00
nós comíamos.

(…) Começámos hoje uma instrução de comandos dada pelos mesmos, não sei para quê. Estou curado da [legível] e da diarreia. Agora tenho um furúnculo na barriga e pequenas feridas nos pés.

(…) Agora tomo 3 banhos de duche por dia, é para vingar aqueles dias sem banho em Gadamael.

(…) Cumprimentos aos vizinhos e família e para você todos ‘tudo, do vosso soldadinho que ESTÁ BEM, FINALMENTE (…)



Cumeré, 12/7/73
[Carta]

Querida mãezinha: São 400$00, porque não autorizam a mandar mais, e só ficamos aqui com 100$$.

Ontem fui a Bissau, e almocei lá, comprei umas coisitas, ‘roncos’ assim como fios com uma figurinha para pôr ao pescoço, uma carteira de pele de jibóia (50$00, candonga); e tirei fotografias num fotógrafo, 3 x 100$00… Sem saber como foram co’ caraças 300$00, não se pode ir a Bissau, no mato ao menos o dinheiro chega.

Hoje estive de Sargento de Dia à companhia o que quer dizer ‘Repouso absoluto todo o dia’.

À nossa frente parece que não temos grandes perspectivas acerca de: para onde havemos de ir… Andamos a ter uma instrução dada por comandos e isso quer dizer alguma coisa.

Mas agora estou aqui a beber bebidas frescas, comida boa, boa cama e não posso desejar melhor. Se quiser falar comigo, telefone para José Carvalho, Fur., Companhia de Guileje – Cumeré. Se quiser, claro! 3 ninutos, 75$00. Uma beijoca.


Cumeré, 1/8/73
[Carta]

Mãezinha:

Cá recebi a sua carta (bem grande) que muito me satisfez. Então, estão bem de saúde ? Eu, óptimo.

(…) Eu ando em consulta externa no Hospital, mas parece que o estilhaço não chegou a ficar cá dentro.

Ando com um entorse no pé, e já tirei a radiografia, mas não há complicações com os ossos, felizmente. Foi um pontapé que dei num passeio com botas de lona.

Amanhã vou lá outra vez e, claro, vou escapando à instrução. Já temos um capitão novo (dos Comandos)

90% de probabilidades de ir para Quinhamel (Praia) 6 meses mas… aguardemos (…).

PS - Desculpe a letra (nervos)



Colibuía, 18/12/73
[Carta]

Queridos pais.

Cheguei bem, graças a Deus, e soube que estavam à minha espera para chefiar o pelotão todo e ir embora daqui para Cumbijã, pois o grupo de combate não tinha graduados.

Passei por Nhala, Mampatá e Aldeia Formosa, e depois vim para aqui. Isto é em plena mata e as edificações que existem são todas de lata (bidões), mas se não houvesse nada era pior.

Não há lençóis mas há cobertores e com o frio que há à noite nem se pensa em lençóis.
(…)



Colibuía, 20/12/73
[Aerograma]

Fernando:

Cá reebi a ta pequena missiva que muito me agradou (...). Como é teu desejo, estou muito bem disposto hoje, 20/12/73, dia em que completo 22 invernos (sic).

Os africanos daqui foram à caça e apanharam um búfalo que foram vendendo aos poucos. Eu comprei uma parte do jarrete que me custou 40$00 e que deu uns 40 bifes grandes. A carne é igual à de boi.

Ao pequeno almoço começámos com um valente bife num pão e depois durante a manhã foi bocados de carne com piripiri na brasa.

Nem sempre a vida é má, não achas ? O pior está para vir. (...)

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

(**) Postes desta série:

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G91

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5182: Tabanca Grande (183): Luís Paiva, ex-Fur Mil, Pel Art 15, Guileje e Gadamael (1972/73)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 (Jan/Dez 1971) > Pessoal do Pel Art que guarnecia um das peças 11,4 cm ali existentes, no tempo em que a unidade de quadrícula era a CCAÇ 3325, comandada pelo Cap Jorge Parracho, hoje coronel na reforma. A CCAÇ 3325 foi subtituída pela CCAÇ 3477 (Nov 1971 / Dez 1972) > Os Gringos de Guileje, l a que se seguiu a CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 1973) > Os Piratas de Guileje. O Pel Art 15, a que pertenceu o Luís Paiva, esteve em Guileje com estas duas unidades de quadrícula.

Foto: © Jorge Parracho / AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau 2007). Direitos reservados.

1. Mail de, de 24 de corrente, do Luís Paiva:

Caro Luís Graça:

Em viagem meramente acidental acabei por deparar com a publicação de uma parte da história da minha passagem entre 1972 e 1974 por terras da Guiné/Bissau, mais concretamente por Guileje, Cacine e Gadamael, no período que decorreu entre 1972 e 1973.

Embora o texto a que alude o link [abaixo] (*), tenha já sido redigido há quase dois anos, a verdade é que nunca mais o revi nem sequer sabia que tinha sido publicado.

Há pelo menos uma imprecisão no referido texto que desejaria corrigir: no ponto "vi" onde está escrito "Quando chegámos a Gadamael", deveria ter sido escrito "Quando chegámos a Cacine".

Saudações cordiais.

Luís Paiva
Lamego
nop45376@sapo.pt

2. Comentário de L.G. (enviado por mail):

Já está feita a correcção. Mas tu, continuas a não fazer parte da nossa Tabanca Grande. A tua história é uma daquelas que, talvez um dia, venha a ser publicada em livro de antologia do nosso blogue. Preciso me mandes as duas fotos da praxe para eu te apresentar ao resto da malta (já somos quase um batalhão).

Vejo que vives em Lamego. Dá notícias. Obrigado pelo teu mail. Luís Graça

3. Resposta do Luís Paiva, a 26 do corrente:

Caro Luís Graça:

Assunto - Histórias de tempo de guerra

Grato pelo feedack, informo que, logo que possível, procurarei seleccionar no meu arquivo fotográfico as fotos que solicitas, ressalvando porém desde já que a qualidade das mesmas possa não ser a que seria desejável e isto porque, obviamente, não se pode esperar que fotos analógicas com mais de 36 anos tenham uma qualidade óptima. Presumo que as fotos pedidas se refiram ao período da guerra colonial, eventualmente com mais uma foto actual, não?!

Após a selecção que desejo fazer, terei que efectuar um scanner das mesmas e remetê-las por email.

Numa análise superficial que fiz ao blogue não consegui detectar em que zona da Guiné estiveste e em que período. Admito a possibilidade de, numa pesquisa mais exaustiva, lograr obter essa informação mas como o blogue possui demasiada informação, desejaria evitar uma busca demasiado longa.

Quanto à publicação da minha história em livro, acho que não tem grande interesse. A verdade é que não faço parte do número discutível de heróis que a guerra colonial parece ter produzido. Admito perfeitamente a existência de heróis porque, como em todas as guerras, também os houve nas nossas ex-colónias. Porém há sempre um conjunto bastante significativo de homens que, jogando com o factor tempo e com o desconhecimento por parte dos leitores do que então se passou, se aproprie indevidamente de um heroísmo que não teve!

A guerra colonial não é assunto tabu e a mim pessoalmente não reconheço, felizmente, ter deixado traumas e sequelas que tenham perturbado o resto dos meus dias. Infelizmente nem todos tiveram essa sorte e é sabido que houve camaradas nossos que perderam a vida, outros que herdaram deficiências físicas mais ou menos profundas e outros ainda que são hoje vítimas de problemas psicológicos graves.

Sou por natureza um pacifista e um grande crítico dos conflitos mundiais, entendendo que a maioria deles só servem interesses obscuros, sejam eles comércio de armas, sejam outros. Normalmente quem provoca as guerras não é quem mais com elas sofre! Eu diria que o que acontece é que quem as desencadeia ou está na sua origem ou é usualmente quem com elas mais usufrui.

Quando há mais de 36 anos me preparava para ir para a Guiné, um amigo que recentemente foi Director de uma conhecidíssima Instituição do Estado, inquiria-me sobre as razões que me levavam a não me furtar a essa mobilização. Ele era já um forte crítico da guerra colonial e na altura, com os meus 21 anos, eu não tinha qualquer formação política. Esta iniciou-se, quase sem eu dar por isso, já na Guiné, quando numa patrulha ouvi um milícia guineense reprovar a nossa deslocação para aquela ex-colónia, inquirindo-nos sobre as razões da nossa permanência ali.

Foi a partir desse momento que iniciei a minha consciencialização política. E, embora nunca tivesse sido um activista, a verdade é que com o desenrolar do conflito, sobretudo na parte do mesmo em que eu, por força das circunstâncias, acabei por estar envolvido, fui desenvolvendo uma tomada de posição bastante crítica em relação àquela guerra.

A minha posição foi-se aliás definindo nos longos aerogramas e cartas que quase diariamente fui escrevendo à mulher com quem estou casado há 34 anos e que quase religiosamente guardou toda essa correspondência que estou para reler, aínda que parcialmente, relativamente ao período mais conturbado que passei na Guiné. Funcionam quase como peças jornalísticas!

A memória é algo que nos vai traíndo com a idade mas quando existem documentos de suporte torna-se mais fácil reconstituír certos factos, aínda que com a distância a que o tempo e idade necessariamente nos obrigam.

A guerra dos ecrãs de cinema, por muito que procure a reconstituição verídica e genuína dos factos, vale pelo que vale! As guerras nas quais nós somos protagonistas têm menos a ver com estereótipos do que muitos, que não passaram por elas, imaginam.

De uma leitura parcial do teu blogue, pude para já concluír por uma diferença de opiniões e relatos que só vêm provar quanto este assunto é controverso. Parece-me ser notória a polémica que envolve algumas das histórias de guerra e a divisão de pontos de vista muitas vezes antagónicos e dificilmente conciliáveis. Tenho sérias dúvidas que muitos dos relatos feitos tenham efeitos benéficos pois longe de funcionarem como um exorcismo poderão antes reabrir algumas feridas.

Todos nós temos as nossas histórias, umas mais conturbadas do que outras. Cada um foi protagonista à sua maneira de um conflito colonial cujo desencadeamento e prolongamento teve subjacentes razões muito discutíveis. A discussão política levar-nos-ía certamente muito longe e aqui e agora não acho ser o momento oportuno para entrar por essa via.

A terminar esta longa exposição que já te tomou certamente tempo em demasia, desejaria afirmar que é minha convicção, face aos dados disponíveis e ao que me lembro, que a tomada de posição do Major Coutinho Lima (**) me pareceu ter sido a mais adequada e correcta e que foi até, graças a ela, que o número de baixas não foi maior.

Estive um período longo em Guileje com duas Companhias, uma açoreana [CCAç 3477] e a de Cavalaria que se lhe seguiu [CCAV 8350]. Com a Companhia açoreana os ataques ao aquartelamento aconteciam a uma cadência de um por mês, mas após a rendição pela Companhia de Cavalaria os acontecimentos sofreram uma alteração drástica e dramática.

O pelotão de artilharia a que eu estava afecto em rendição individual em Guileje, era comandado - se a memória não me trai - por um alferes que se chamava Luís mas cujo apelido não me recordo. Não eras tu, não? Sabes quem era?! Depois ele foi substituído por outro alferes que, salvo erro, também era Luís! E estavam comigo mais dois furriéis, o Queirós e o Araújo (este de Braga, salvo erro).

O Araújo foi entretanto substituído pelo Santos, de São João da Madeira. Quanto aos Cabos, tenho a impressão que um deles morreu lá em Gadamael e o outro (Oliveira) encontrei-o algumas vezes salvo erro na Café Convívio, junto do Hotel Tuela onde trabalhou alguns anos. Também já não o vejo há algums anos, pois deixou de ali trabalhar, salvo erro. Nunca mais soube nada dos camaradas furriéis e deixei mesmo de ter contactos com o Queirós desde que a Lusalite fechou na Baixa em Lisboa.

Aínda me lembro vagamente, salvo erro dos furriéis, Ramos (o fotocine?!) e o Monteiro que posteriormente viria a trabalhar na Papelaria Fernandes, em Lisboa mas há mais de 30 anos que nada sei deles nem dos restantes.

Um abraço.
Luís Paiva
Lamego

4. Comentário de L.G.:


Meu caro Luís, como vês o mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande. Ao fim de mais de ano e meio, voltas a tropeçar a connosco, na blogosfera. Em boa hora, camarada!...

Começo por satisfazer a tua curiosidade a meu respeito: estive na Zona Leste (Contuboel e Bambadinca), entre Junho de 1969 e Março de 1971, e fui Fur Mil Ap Armas Pesadas de Infantaria (que tive de trocar pela G3...), numa companhia independente de intervenção, a CCAÇ 12, com praças do recrutamento local, que fui ajudar a formar em Contuboel, a norte de Bafatá... Pelo que vês, nunca poderia ter sido o meu homónimo Luís, teu alferes, comandante do Pelotão de Artilharia que retirou de Guileje, juntamente com a CCAV 8350... Esse pelotão, o teu pelotão, era o nº 15 e, na altura, era comandado pelo Alf Mil Mil Pinto dos Santos (**).

As companhias com que estiveste em Guileje foi a CCAÇ 3477 - Gringos de Guileje- e CCAV 8350 - Piratas de Guileje. Temos aqui diversos camaradas do teu tempo, destas duas companhias, e que poderás contactar, por e-mail.

Quanto à publicação do teu depoimento num livro de antologia dos nossos postes, porque não ? É apenas uma hipótese, um cenário que eu ponderei... E não era por seres herói ou deixares de o ser... Não é isso que está em causa...No nosso blogue, não pomos santificamos nem diabolizamos ninguém mas também não impedimos ninguém de escrever histórias de heroísmo...

O risco de alguém se autopromover-se a herói de opereta, é mínima... Ninguém foi herói sozinho, todos os textos aqui publicados são sujeitos a escrutínio, análise crítica, triangulação... Tarde ou cedo, apanham-se os mentirosos, os falsificadores... Há centenas de olhos atentos a eventuais mentiras ou falsificações dos relatos... E, de resto, há um grande pudor, por parte dos nossos camaradas em falar dos seus eventuais feitos valorosos... Cabe sempre aos outros validar a informação que cada um presta no nosso blogue.

Seria uma pena, por outro lado, que não quisesses (ou não pudesses) partilhar alguns dos aerogramas que escreveste à tua futura esposa, e que tu próprio chamas peças jornalísticas, relatando o quotidiano da guerra... Podes ver o tratamento que fizemos de algumas cartas e aerogramas que o ex-Fur Mil J. Casimiro Carvalho, da CCAV 8350, nos confiou (*****).

Quanto às diferenças de leitura e de interpretação dos acontecimentos da guerra, não me parece que seja esse o pecado original do blogue... Bem, pelo contrário, essas diferenças são reveladores do nosso pluralismo, tolerância, liberdade de pensamento e de expressão. Ninguém quer impor a ninguém a sua verdade, todos e cada um têm o direito de contar a sua história, a sua versão... Um dia, a História (com H grande), os historiadores, os vindouros, os nossos filhos, netos e bisnetos nos julgarão... Entre camaradas que estiveram na mesma guerra, evitamo-lo fazer.

Relativamente a eventuais malefícios ou benefícios da nossa blogoterapia... Respeito a tua opinião, mas até data nenhum dos nossos camaradas se queixou de que blogar faz mal à saúde. Humor à parte, és bem-vindo à nossa Tabanca Grande. Manda, quando puderes, uma foto do teu tempo de artilheiro e outra actual. Ficaremos em contacto. Até um dia destes algures por aí, em Lamego, em Lisboa, em Guileje ou... no nosso blogue.

______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 27 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

(...) Só sabemos que se chama Paiva, e foi furriel de artilharia, no pelotão de artilharia que estava em Guileje, quando esta unidade foi abandonada por decisão do comandante do COP 5, Major Coutinho e Lima... É um testemunho dramático, de um homem, de fuga em fuga, que atravessou a nada o Rio Cacine, já na fuga de Gadamael, e foi salvo por um milícia de que não se lembra o nome...

Peço ao Paiva que nos contacte de novo e nos dê as suas coordenadas (pelo menos o endereço de –email e eventualmente o número de telemóvel ou telefone), sobretudo para o ajudar a reencontrar os seus antigos camaradas de Guileje e de Gadamael (e a reorganizar as suas memórias, doridas, daquele tempo)... Seria uma pena que este pungente testemunho ficasse escondido sob a forma de comentário a um dos nossos postes ...


Alguns excertos:

(...) desempenhava funções de furriel miliciano afecto à Unidade de Artilharia localizada inicialmente em Guileje, e posteriormente retirada para Gadamael (após o abandono do primeiro daqueles aquartelamentos, [em 22 de Maio de 1973])(...)

Em Guileje, parece-me que o pelotão de artilharia era constituído por 3 secções, cada uma delas sob a chefia directa de um furriel (recordo o furriel Araújo, de Braga, e o furriel Queirós, meus contemporâneos, sendo que o Araújo foi posteriormente rendido, salvo erro pelo furriel Santos, de S. João da Madeira) e comandadas por um alferes, posteriormente substituído por outro. Tenho ainda na minha mente a foto mental de ambos, embora lamentavelmente me não recorde já dos seus nomes. (...)

Este pelotão de artilharia retirou na totalidade para Gadamael quando foi dada ordem de abandono do aquartelamento de Guileje. Para além dos graduados e oficial acima referidos, retiraram ainda os cabos e praças (estes últimos naturais da Guiné).

Em Gadamael, a artilharia passou efectivamente muito maus bocados mas não ficou totalmente inoperacional, tanto quanto me recordo. O seu alferes teve aliás um comportamento de bravura pois foi ferido e continuou a desempenhar as sua funções, embora numa situação bastante precária. (...)

Alguns oficiais, sargentos e praças (acompanhados de parte da população) - nos quais me incluía eu -, iniciaram uma retirada para Cacine que foi efectuada debaixo de fogo e que se processou em botes dos fuzileiros. Já agora poderei acrescentar que a evacuação não foi totalmente conseguida nesse dia porque entretanto as operações de resgate foram suspensas por ter começado a anoitecer.

Curiosamente não ficou junto da população nenhum oficial, mas apenas dois furriéis, eu e outro camarada de armas, que, com a população, lográmos atravessar para o outro lado do rio (após a maré ter baixado) e ali tivemos, com muito custo, que conter a população em silêncio para não sermos detectados pelo PAIGC. Esta tarefa foi dramática já que connosco estavam muitas crianças que pela sua natureza são habitualmente ruidosas. Passámos ali a noite até conseguirmos ser evacuados no dia seguinte.

Essa experiência foi traumatizante porquanto assistimos a cenas dramáticas, com muita gente a precipitar-se para o rio e para o tentar atravessar a nado, antes que a maré permitisse o seu atravessamento quase total, a pé. Dessa precipitação resultaram mortes por afogamento, pois a corrente ainda forte arrastou alguns. (...)

Eu próprio iniciei a travessia antes de se ter completado o vazamento da maré e, porque não era um nadador exímio, e por outro lado com o peso das botas e da G3 e a força da corrente, tive que a meio da travessia me desembaraçar da minha arma (foi para o fundo do rio) para não morrer afogado. E fiquei a dever a minha vida a um milícia guineense que na outra margem do rio - e a partir do lodo onde se encontrava e para onde eu pretendia arrastar-me - me estendeu a coronha da sua arma a que eu, num esforço titânico, consegui agarrar-me. Fiquei a dever-lhe a minha vida e, no meio da confusão e do caos, sem saber a quem concretamente (ainda hoje...).

Por a minha substituição (comummente designada por rendição) se ter processado em regime de rotação individual, não consegui localizar nunca antigos camaradas de armas (quer afectos ao pelotão de artilharia quer às Companhias - duas- com quem estive: à dos Gringos [ CCAÇ 3477, ] (***) e à que se lhe seguiu [ CCAV 8350,] (****) com a última das quais partilhei estes dramáticos acontecimentos que tantas vidas custaram. (...) Gostaria de reencontrar todos esses Camaradas. (...)

(**) Vd. postes de:

18 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3910: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (22): Resposta do autor do livro a António Martins de Matos (Parte I)

24 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3932: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (23): Resposta do autor do livro a António Martins de Matos (Parte II)

(***) Vd. poste de:

13 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4333: Convívios (126): 3º Encontro da CAÇ 3477 “Os Gringos do Guileje”, dia 6 de Junho, em Mirandela (Amaro Samúdio)

6 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2815: Tabanca Grande (67): Os Gringos de Guileje: Abílio Delgado, Zé Carioca e Sérgio Sousa (CCAÇ 3477, Nov 1971/ Dez 1972)

(****) Vd. poste de 9 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4489: Convívios (142): Convívio anual da CCAV 8350 “Piratas de Guileje” (1972/74), na Covilhã (Casimiro Carvalho/Magalhães Ribeiro)

(*****)Vd. postes de:

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 91

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

25 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3354: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (6): O nosso querido patacão