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sábado, 6 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10490: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (3) (José Martins)

Todos fomos INFANTES: 
Infantes na Idade; 
Infantes no Esforço; 
Infantes no Combate; 
Infantes na Nobreza, 

Somos soldados mal-amados, não só depois de mortos, mas ainda em vida!
 
Monumento de homenagem AO VALOR DO INFANTE, em Mafra


Os que caíram pela Pátria!

Os soldados não morrem, apenas tombam no campo da honra!

Desde o inicio desse ano de 1961 que, ano após ano, Portugal mobilizou o seu povo para, de armas na mão, dar combate a movimentos de libertação que a 4 de Fevereiro de 1961, em Angola; a 23 de Janeiro de 1963, na Guiné; e em 24 de Setembro de 1964 em Moçambique, iniciaram a luta armada pela sua libertação.

Embarque de militares para África. Lisboa> Cais da Rocha Conde Óbidos> 18 de Agosto de 1965> Embarque, no T/T Niassa, do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para o TO Guiné. 
© Foto: Fernando Chapouto (2006). Todos os direitos reservados. 


Seguem-se treze anos de incertezas e ansiedade, resultado de uma guerra, que a principio foi denominada como “acção de polícia”, que fez deslocar para África mais de 800.000 militares, na sua maioria milicianos, além de muitos recrutados nos próprios Teatros de Operação, africanos e europeus, tendo sido contados, no final da guerra, mais de 9000 efectivos tombados, não estando incluídas neste número as populações atingidas por actos de guerra ou efeitos colaterais. Quando os primeiros efectivos foram mobilizados e partiram para Angola, era provável que a “possibilidade de morte em combate” não estivesse na mente dos militares, em especial os conscritos – militares do serviço obrigatório – porque “ainda andavam no ar” as notícias e as fotos dos massacres iniciais, assim como a “promessa” de rápida resolução da revolta.

Falavam que o inimigo da Pátria estava muito mal armado, dispunham apenas de catanas e algumas, poucas, armas de caça. Bastava a tropa aparecer, mostrar-se no terreno e os terroristas fugiriam a bom fugir.

Deixando o perímetro urbano, as unidades encarregadas da reocupação e restabelecimento da ordem nas zonas sublevadas, defrontam-se com as primeiras “contrariedades” da situação de guerra.

Lançada a operação, não havia possibilidade de “voltar atrás”. As primeiras contrariedades, humanas, foram levantadas pelas doenças originadas, ou pelo clima, ou pelas águas utilizadas ou pela alteração drástica da forma de alimentação, mas, também, devido à exaustão pelo esforço dispendido; havia também que ter em conta os ferimentos contraídos nos trabalhos de recuperação das vias. Os doentes e/ou os feridos “entravam de baixa” e seguiam nas viaturas, uma vez que não existiam meios aéreos para proceder a evacuações e, muito menos, podiam dispensar viaturas e homens, para os fazer regressar ao ponto de apoio mais próximo. Só os mais graves eram evacuados.

As estradas/picadas estavam obstruídas, ou por abatines ou por valas, o que levava à intervenção da Engenharia, enquanto a Infantaria procedia à segurança das forças empenhadas na recuperação das mesmas, o que causava atrasos no execução das missões traçadas e planeadas para rapidamente atingirem os objectivos.

Cemitério Militar de Bissau – Talhão Central 
© Foto: Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné (DR)

Mas os rios também apresentavam as suas dificuldades. Para que fosse possível a sua travessia/cambança, era necessário reparar e/ou reforçar as pontes, ou mesmo construir novas pontes de raiz. No entanto, tudo isto fazia/faz parte das operações militares que, no início da última das campanhas portuguesas em África e, como guerra que era, custou os muitos mortos nas fileiras dos últimos Soldados do Império.

Ao surgirem os primeiros tombados em campanha, há que dar destino aos corpos dos combatentes, pelo que se aplicaram as normas seguidas durante a I Grande Guerra e durante os anos em que Portugal permaneceu nas suas possessões: sepultar os corpos na território em que ocorreu o óbito, numa campa devidamente identificada, no cemitério da localidade mais próxima da unidade, sendo a mesma unidade responsável pela sua manutenção, o que muitos de nós pudemos verificar aquando da nossa passagem por aquelas terras. Alguns, devido a causas várias, tiveram que ficar em campas isoladas no local em que tombaram.

As famílias tinham, porém, a opção de fazerem trasladar os corpos dos seus entes queridos para serem inumados junto dos seus antepassados, desde que o requeressem e se, cumprindo determinadas regras, para o que foram sendo difundidos diversos documentos.

O Exército assume o encargo de trasladar as ossadas dos militares, cinco anos após o seu enterramento, mesmo quando a trasladação fosse pedida pela família, de acordo com a Circular n.º 5/PJ, da 1.ª Repartição do Estado-Maior do Exército, de 27 de Fevereiro de 1961. Para que tal fosse possível, as famílias teriam que apresentar requerimento e efectuar um depósito de uma caução, variável entre dez a quinze mil escudos, podendo ser substituída por declaração de entidade ou pessoa, considerada idónea pelos serviços militares, para assumir o encargo das despesas.

Em Novembro de 1961, assume, também, o encargo das diligências com o desembaraço alfandegário dos corpos e o transporte dos mesmos para a Capela do Hospital da Estrela, em Lisboa, onde os mesmos seriam entregues à família, que se encarregaria do seu transporte e sepultamento.

Por despacho do Subsecretário de Estado do Exército de 28 de Fevereiro de 1963, passa a garantir o transporte gratuito dos corpos, em navios fretados, sendo as despesas por conta da família, a partir do cais de desembarque.

Porém, no mês de Março de 1963, novo despacho do Subsecretário de Estado do Exército, passa a facultar a utilização dos barcos fretados para a trasladação das ossadas ou corpos dos militares que fosse feita por iniciativa das famílias.

Trasladação de restos mortais de militar. 
© Foto José Martins

Nova circular, de 15 de Junho de 1965, estabelece que a trasladação dos corpos de militares falecidos terá de ser a pedido da família e por sua conta, mediante caução a indicar pelo Depósito Geral de Adidos. Facilitava o transporte gratuito das urnas, em navios fretados, garantindo também o desembaraçamento alfandegário das mesmas e o transporte até à capela do Hospital Militar Principal, à Estrela, em Lisboa. As famílias podiam pedir o transporte gratuito, para as suas localidades, dependendo a sua atribuição das disponibilidades da instituição militar.

A 4 de Fevereiro de 1966, cinco anos após o início da guerra, são aprovadas as “Normas Reguladoras de Trasladações de Ossadas Militares”, que estabelece a gratuitidade do transporte das ossadas dos militares falecidos no Ultramar, para a Metrópole ou Ilhas Adjacentes, quer a trasladação fosse solicitada pela família ou por iniciativa do Exército. Neste último caso, previa-se que a remoção fosse feita para um Ossário Militar Central, em Lisboa, ou para Ossários Militares a construir em cada uma das Províncias Ultramarinas.

A publicação do “Regulamento das Trasladações”, em 2 de Março de 1966, visou reunir todas as disposições sobre esta temática, aplicando-se a todos os restos mortais dos militares falecidos ou inumados no Ultramar. O Exército garante o transporte dos corpos e ossadas, assim como os encargos pela obtenção de toda a documentação necessária para o efeito, desde o território onde o militar tenha tombado, até Lisboa, assim como o transporte até ao local de enterramento indicado pela família. O transporte dos corpos ou ossadas, será efectuado por transporte militar ou fretado. Se fosse desejo da família e/ou a pedido desta, esse transporte poderia ser efectuado nas carreiras regulares existentes, tendo de depositar as verbas de 1.953$50 no caso da Guiné; 2.990$00 para Angola e 5.520$00 de Moçambique. O requerimento deveria ser apresentado ao Ministro do Exército, e ser acompanhado por documento emitido pela autoridade que superintendesse na administração do cemitério – Município, freguesia ou outra entidade – comprovando que estava assegurado local para depósito do corpo do seu familiar.

Das normas referidas anteriormente, até 4 de Fevereiro do 1966, embora nos pareça que não estivesse a ser “cumprida na totalidade”, constava a obtenção de declaração de responsabilidade da despesa que fosse necessária para a trasladação das ossadas e corpos, caso a família os reclamasse. Esta questão foi, em muitos casos contornada pelas unidades que, aquando de algum infausto acontecimento, todos os elementos se prontificavam a participar, proporcionalmente ao seu vencimento ou pré, nos custos da trasladação.

Era preocupação constante do Exército, pela literatura consultada, tratar com toda a dignidade possível os corpos dos militares “Tombados na campo da honra”. Antes do embarque, a cada militar teria sido entregue uma chapa de identificação, em metal - porém nem todos a receberam – no formato redondo, que deveria ser colocada ao pescoço com uma corrente metálica, “picotada a meio”, contendo em cada metade o número de identificação ou número mecanográfico assim como o último nome.

A metade superior, da chapa de identificação, acompanharia os restos mortais do militar, enquanto a “segunda metade” seria colocada na urna, para identificação. Também seria efectuado o registo do local de sepultamento, assim como a movimentação do corpo, a fim de haver uma noção exacta da sua localização.

As causas, que originaram os 8290 militares tombados em campanha [1], são mais vastas que as que se deparam na nossa vida quotidiana. Além dos riscos inerentes ao “estar vivo”, há a questão de, simultaneamente, se estar “em guerra”, o que também implica o manuseamento de armas, munições e explosivos.
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[1] – Dos tombados em campanha, de acordo com o 1.º Volume da Resenha Histórico Militar das Campanhas de África (1961-1974), páginas 264, 265 e 266, foram as seguintes as causas e números, nos três Teatros de Operações:

Angola

Em combate: 1306 militares = 40,09%;
Acidente com arma de fogo: 344 militares = 10,56%;
Acidente de viação: 860 militares = 26,39%;
Outras causas: 748 militares = 22,96%;

Total: 3258 militares = 39,3% no universo de 8290 tombados durante o conflito.
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Guiné

Em combate: 1240 militares = 59,90%;
Acidente com arma de fogo: 207 militares = 10,01%;
Acidente de viação: 153 militares = 7,39%;
Outras causas: 470 militares = 22,70%;

Total: 2070 militares = 24,98% no universo de 8290 tombados durante o conflito.
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Moçambique

Em combate: 1481 militares = 50%;
Acidente com arma de fogo: 234 militares = 7,90%;
Acidente de viação: 467 militares = 15,76%;
Outras causas: 780 militares = 26,34%;

Total: 2962 militares = 35,72% no universo de 8290 tombados durante o conflito.
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Totais nos 3 TOs

Em combate: 4027 militares = 48,58%;
Acidente com arma de fogo: 785 militares = 9,47%;
Acidente de viação: 1480 militares = 17,85%;
Outras causas: 1998 militares = 24,1%.
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A causa “outras causas”, onde se incluem as “doenças, afogamentos, agressões físicas, electrocussão, queda do cima de árvore, incêndio, explosão de combustíveis, ou outras”, era agravada com o facto dos militares se encontrarem em territórios em que, o clima era muito diferente do das suas terras de origem; a qualidade das águas, quer para a confecção da comida quer para beber, ou a mesmo destinada à higiene diária; os próprios alimentos, muitos dos quais produzidos na metrópole, entre eles os chamados “frescos”, e transportados para os territórios em guerra, que obrigava a muitos transportes e armazenagens, algumas das vezes em locais sem as condições mínimas; a maior ou menor resistência às situações de combate e, sobretudo, à angustia da espera ou a expectativa do “minuto seguinte”; a correspondência, único “elo de ligação” com o passado recente e com a família e amigos, era a diferença entre o “tudo ou nada” para um bom equilíbrio dos militares; o intervalo, irregular, que mediava a chegada ou a inexistência de correspondência, também podia desequilibrar mentalmente muitos dos nossos militares, mesmo sem a existência de notícias “menos boas”; neste grupo também se incluem os “acidentes” ocasionados com a actividade dum destacamento ou quartel, entre elas quedas e outros trabalhos. Também houve acidentes de aviação, com quedas de aeronaves ou causas fortuitas na entradas ou saídas das aeronaves, por locais não aconselhados, nomeadamente junto às hélices.

Outra causa que provocou baixas nas nossas tropas foram os “acidentes de viação”. Razões? Várias, naturalmente. Cabe aqui referir que, na maior parte das vezes, o Exército, dado ter sido a Ramo das Forças Armadas que mais militares empenhou nestas campanhas, não “olhou” muito para as qualificações/especializações civis dos seus recrutados, excepção feitas aos licenciados em medicina.

Hospital Militar de Bissau nos anos 70 

Mas, voltando à condução, e sobre esta matéria os próprios “especialistas militares” muito terão a dizer, já que para muitos deles, era a primeira vez que se sentavam aos comandos de uma viatura.

O “parque automóvel militar” era farto em marcas e modelos. A necessidade da existência de viaturas “a andar fosse em que condições fosse”, daí que a forma e comportamento das viaturas, assim como a maior ou menor condição e/ou comportamento do condutor, pudesse estar na causa dos acidentes, não esquecendo as condições das vias de comunicação, que variavam muitíssimo de local para local.

Mas havia outro tipo de acidentes: os “acidentes com arma de fogo”, cuja fronteira com falecimento/ferimentos em combate, é muito estreita e sujeita a classificações subjectivas. Dentro destes acidentes, muitos e variadas armas: além das espingardas “G3” ou “FN”, também existiam outras mais antigas e menos seguras, como a FBP, Walther, ou outras; as granadas de mão, ofensivas e defensivas, de morteiro ou de “bazooka”, com algum tempo de armazenamento, poderiam apresentar graus de maior ou menos segurança; armadilhas e minas, especialmente as minas montados pelo inimigo, e para cuja desmontagem havia prémios pecuniários, contaram para o número dos “atingidos”; os ”tiros inopinados”, também apontados com origem em suicídios ou homicídios, que só os próprios poderiam apontar as razões, consequências funestas, também, do “fogo amigo”.

Alpoim Calvão e o seu grupo de combate. 

Os “ferimentos em combate” que seria a causa que mais baixas provocava, quer em tombados directamente quer em consequência dos ferimentos obtidos nos combates, foi, sem réstia de dúvida, a que mais traumas provocou, dado que muitas vezes havia a “impotência dos enfermeiros de guerra” em fazer parar o “avanço do fim”, sendo a grande esperança, de todos, a descida dos céus dos Anjos da Guarda, em forma de Enfermeiras Pára-quedistas, visto que isto significava a evacuação para a retaguarda e a chegada de uma nova esperança.

A morte, por si só, já é traumática. Vejamos que, na actualidade, quando há um acidente, sejam quais foram as circunstâncias, as autoridades iniciam todos os esforços para a recuperação do corpo, “para que haja funeral e se possa fazer o luto”.

Esse sentimento de ausência, agravado pela chegada do fatídico telegrama de má noticia, sentiram muitas famílias, do lado de cá, mas também o sentiram os militares que foram privados da presença dos seus camaradas, e muitos tiveram de ser recolhidos, no campo de batalha, quando atingidos pela explosão das granadas ou minas e eram projectados para vários locais, como Luís de Camões descreve, como se tratasse de uma antecipação, nos primeiros quatro versos do Canto III, Estrofe LII de “Os Lusíadas”:

“Cabeças pelo campo vão saltando, 
Braços, pernas, sem dono e sem sentido 
E de outros as entranhas palpitando, 
Pálida a cor, o gesto amortecido.”

A preparação dos corpos e a sua colocação no ataúde, era feito pelos camaradas, alguns deles observando a morte pela primeira vez, e isto depois de aguardarem algum tempo pela chegada da urna, que eram “equipamentos” que não existiam no quartel das forças em quadricula.

Para o equilíbrio emocional dos combatentes, era necessário retirar os corpos do destacamento, o mais rápido possível. Também era necessário, e urgente, fazer chegar, tão breve quanto possível, para que a família fizesse o luto e o enterro, no Campo Santo da aldeia, vila ou cidade. Também era necessário proceder, com cuidado mas com urgência, a elaboração do competente “auto de morte em serviço”, para que pudesse ser atribuída à família - pais, esposa ou irmãos menores - a respectiva pensão de sangue que, muitas vezes, ia minimizar os problemas pecuniários da família que, privada de parte do salário que o militar auferia antes da sua incorporação, dependia da parte do pré que ficava na metrópole.

Cemitério com campas de militares 
© Foto: José Martins

Para haver luto, para haver funeral, para haver pensão de sangue, era “obrigatório” haver corpo. Talvez por isso, quando acontecia que, no final dum combate mais duro e que provocava, além dos feridos muitos mortos, mesmo que alguém tivesse sido “retido pelo inimigo”, ou numa linguagem mais terra a terra, ter sido feito prisioneiro, na ausência desse conhecimento e na impossibilidade de identificar os “restos mortais” dos tombados, eram “repartidos” pelo número dos que “não responderam à chamada”. Daí o ter acontecido que, quando os desaparecidos foram resgatados ou libertados, ao regressarem às suas terras de origem, se viram confrontados com a existência de campas em seu nome, que eram objecto de veneração das suas famílias e amigos. São as “malhas que o Império tece”, ou teceu.

Durante treze anos foram tomadas, quer pelos Governos quer pela Assembleia Nacional, medidas tendentes a levar a “bom porto” as politicas que iam implantando nos antigos territórios portugueses, enquanto os militares, cumprindo as sua comissões de serviços nas diversas possessões, davam tempo para que se resolvesse a situação pela via politica, até que o denominado Movimento das Forças Armadas, idealizado e executados por militares do Quadro Permanente e do Quadro de Complemento, originou a queda do regime nascido do Estado Novo, implantando um regime democrático no país.

Estava consumada uma operação militar, no território continental ou metropolitano, que abria as portas à “Descolonização e à Liberdade”

Militares na madrugada do 25 de Abril 
© Foto Google (DR)

Porém, o Dia da Liberdade, começou para muitos militares muito mais cedo. Na década de 50 do Século XX, o tempo de Serviço Militar Obrigatório era de 18 meses que, grosso modo, correspondia a seis meses de instrução básica e especialidade, acrescida de um ano de serviço efectivo. Muitos destes militares foram destacados, em missão de reforço, para os antigos territórios, onde foram surpreendidos com o início das hostilidades, hostilidades essas que já vinham dando sinais de evidência. Assim, os que foram “surpreendidos” pela mobilização com embarque aprazado “para os próximos dias”, partiram e regressaram mas já com as suas vidas adiadas. A sua mobilização, nalguns casos, tinha sido efectuada já com alguns meses de serviço efectivo e, ao voltarem, apenas tinham em mente recuperar o emprego que tinham deixado e recomeçar a viver. Falar da guerra? Não, muito obrigado, Era já passado e, para quê falar de “coisas” que, por não serem próximas dos interlocutores, seriam sempre de “duvidosa veracidade”, facto que ainda hoje perdura.

E o que acontecia a quem “estava na lista de espera”?
Só muito recentemente, e por muito incrível que possa parecer, só muito recentemente se “começou a falar disso!”.

A ideia transmitida “urbi et orbi”, em 1961 pelos governantes, é de que estaria para breve o “fim da guerra”, chegando a ser “anunciado o seu fim”, pelo que mais valia aguardar o correr do tempo. Assim, melhor seria, não fazer futurologia. Foi a ida, para todos, mas no regresso, faltaram alguns. Os que tombaram.

Mas houve, nestes regressos, algo estranho.

Dos que partiram muitos não regressaram e, muito provavelmente, nunca voltarão. Ficaram “perdidos” nas matas, savanas e bolanhas de África. Ficaram presos ao calor da terra, ficaram indelevelmente ligados ao fascínio daqueles povos. Antes da apresentação para o serviço militar, quais eram as motivações que estes jovens tinham? Que futuro, pós África, os esperava?

Os que trabalhavam no campo, Portugal tinha lavradores, sabiam que as colheitas dos anos seguintes não seriam feitas pelas suas mãos, Os que trabalhavam nas fábricas, Portugal tinha operários, sabiam que aquelas máquinas não seriam manuseadas, nos anos seguintes, pelas suas mãos.

Os trabalhavam nos escritórios das empresas, Portugal tinha empregados, sabiam que as contas não seriam escrituradas, nos exercícios seguintes, pelas suas mãos. Os estudantes nas escolas, Portugal tinha estudantes, sabiam que os testes, dos anos escolares seguintes, não seriam escritos pelas suas mãos.

Tinham o futuro suspenso e, caso tudo corresse bem, tinham um “afastamento do mundo” de cerca de três anos.

O regresso ao porto de partida – Lisboa 
© Foto UTW (DR)

Dos que partiram, nem todos regressaram ou regressaram precocemente, por razões diversas: o clima, a alimentação, a desidratação, o isolamento, a ansiedade e, até a falta de noticias da família; os acidentes de viação, a utilização e/ou o manuseamento de armas, em condições anómalas, ou quedas sofridas durante as operações ou nos serviços do aquartelamento; o rebentamento de minas e armadilhas, accionadas inadvertidamente aquando da montagem e/ou desactivação: a não resposta à chamada, durante alguma acção, de camaradas desaparecidos, nos rios ou nas matas, por se terem perdido ou terem sido capturados; os feridos em combate, atingidos por tiros, estilhaços de granadas e/ou rebentamento de engenhos explosivos, de que resultaram ferimentos graves e mutilações, quer nos atingidos quer nos camaradas próximos. Muitas destas razões provocaram a evacuação dos “atingidos directamente” para um posto de socorro de retaguarda e, nalguns casos, o regresso ao Teatro de Operações, mas para outra unidade, já que a sua ausência havia sido complementada por novas mobilizações.

“Mas quando alguém do nosso grupo cai, 
‘inda é pior, ‘inda sofremos mais. 
Faz-nos sentir, faz-nos pensar 
Talvez da próxima vez 
Seja eu, quem vai tombar!”

Versos ouvidos, repetidos, sentidos e sofridos por quem por lá andou.

A queda de alguém que “tombou no campo da honra” era, e ainda é, terrível não só por quem o passou directamente, mas de quem dele teve conhecimento, mesmo que indirecto e, por força da sua vivência de guerra, acabou por causar traumas, muito semelhantes, aos que foram atingidos directamente.

A guerra acabou, o tempo passou, a idade chegou!

O “fantasma dormente”, porque nunca tinha adormecido, resolve manifestar-se na sua plenitude, fazendo regressar o “passado” que se pretendia esquecido. A nossa vida passa a ser um turbilhão, uma roda-viva que não nos permite parar e não mais nos dá tréguas. No nosso subconsciente voltamos a envergar a farda, voltamos a partir no barco, tomamos a arma em nossas mãos e, para nosso mal, voltamos a viver o que já tínhamos vivido. Não era uma nova vida nem um regressar ao passado. Havia rostos novos. Havia locais não conhecidos e não identificados.

Há braços que se estendem na nossa direcção, mas não agarramos!
Há bocas que gritam, mas não conseguimos ouvir a sua voz!
Há corpos que se querem levantar, e não podem!
Há quem queira regressar, e não sabe o caminho!

Quem será que nos acena, quem será que nos chama, quem é que se quer levantar, quem é que não sabe o caminho? Quem será?

Cemitério de Gabú (antiga Nova Lamego) – Leste da Guiné 
© Foto: Revista "Combatente", edição 339, Março 2007, pág. 40

Só podem ser ELES, os nossos camaradas. Ficaram lá, na terra que já não é Portugal. São os Combatentes que querem “regressar a casa”.

A Liga dos Combatentes, através do seu programa da Conservação das Memórias, já localizou a maior parte dos corpos que por lá ficaram; em Lisboa existe local para os receber, na Cripta do Cemitério Militar do Alto de São João ou no Campo Santo das suas terras; as Normas aprovadas pelo Estado-Maior do Exército, não foram revogadas; a nossa vontade e o nosso desejo indómito de os trazer de volta, existem. Nem todos os que faltaram “à chamada” poderão voltar. Muitos não estão localizados, pois o tempo que passou, os locais onde foram sepultados alterou-se; muitos foram abraçados e arrastados pelas fortes correntes dos rios; outros ficaram retidos pelo inimigo e morreram no cativeiro; outros tombaram no terreno durante o combate, e os seus corpos não foram recuperados.

Não estão localizados, mas continuam presentes na nossa memória, e o seu esforço jamais será esquecido por nós, seus camaradas de armas que, infelizmente, cada vez mais, nós somos menos. Menos em tudo.

Mas o que é que aconteceu no tempo “pós guerra”? Qual foi a reacção do Povo Português face ao regresso dos seus membros “tornados militares”?

Enquanto da Grande Guerra o país assistiu à saída dos seus soldados que, ou foram voltando à medida que iam sendo dado como incapazes para o serviço e, apesar das muitas promessas nunca foram substituídos, viram regressar, os sobreviventes, num ritmo acelerado, mediando entre a partida e a chegada cerca de dois anos.

Na Guerra Colonial, depois de um “andar rapidamente e em força” para África, as unidades iriam, inicialmente para Angola, e de seguida para a Guine e Moçambique, e após, entre dezoito e vinte e quatro meses, seriam substituídas por novas unidades idas da metrópole, para que os substituídos regressassem. E tal foi o ritmo com que se procederam a estas partidas e chegadas, que se tornou “normal” o movimento registado no Cais da Rocha do Conde de Óbidos. De tal forma que só os familiares, mais próximos, e os amigos chegados, se apercebiam “destas viagens”, excepção apenas para as comunidades aldeãs do interior. A partida e a chegada, dos militares das unidades mobilizadas, mediavam cerca de vinte e quatro meses, mas entre os primeiros e os últimos soldados a partir e a regressar, mediaram catorze anos.

Depois do apontar destas diferenças, e do facto de em 1919 as forças políticas serem “uma continuidade no tempo e no espaço”. Em 1974 houve a substituição do Governo por uma Junta de Salvação Nacional, mas e curiosamente, formada por militares e antigos combatentes. Mas soprava, e soprava com muita força, “um vento de mudança” que alterou radicalmente os festejos à recepção dos soldados regressados da França, para gritos de “fascistas e colonialistas” vertendo sobre os últimos dos “últimos Soldados da África”, a raiva contida e, nesse momento incontida, por um regime ditatorial. Os soldados eram da mesma massa; os objectivos eram e foram a defesa das colónias; só os tempos tinham mudado.

O Movimento Nacional Feminino, com defeitos para uns e virtudes para outros, era uma organização que conhecia, quer na metrópole quer em qualquer um dos teatros de operação, o pensar e as necessidades das famílias e dos militares. Começou em 28 de Abril de 1961 e, terminou, com a revolução de Abril em 1974. Muita falta fez na assistência, não só aos militares que ficaram com deficiência, mas também às suas famílias. Ninguém estava preparado para o tempo que se seguiu, e dura ainda, Foi como a Cruzada das Mulheres Portuguesas, organização criada em 20 de Março de 1916, formada por senhores ligadas ao poder político, e que se dedicou a formar e/ou preparar, as suas voluntárias, para actuarem como enfermeiras, não só na retaguarda como junto aos Hospitais de Sangue do CEP.

Local onde se respira, Lealdade, Heroicidade, Memória e Saudade. Cripta dos Combatentes – Alto de São João - Lisboa 
© Foto José Martins

A Cruzada criou um Instituto de Reeducação de Mutilados de Guerra, para acompanhar e assistir os soldados mutilados e feridos na sua recuperação; teve a seu cargo a educação e apoio escolar de 285 órfãos de guerra, rapazes e raparigas, tratando da sua integração na sociedade; este movimento só foi extinto em 1938, dezanove anos depois da guerra terminar, tendo o seu património transferido para a então Liga dos Combatentes da Grande Guerra.

No que respeita a perpetuação da memória e do esforço dos militares que participaram na Grande Guerra, tombados no Campo da Honra, o Governo promove a trasladação dos corpos de dois soldados tombados, um em Moçambique e outro na Flandres, decisão inscrita no Diário da Câmara de Deputados, em 18 de Março de 1921, a inumar na Sala do Capítulo da Batalha, em cerimónia militar e nacional, a realizar em 9 de Abril do ano seguinte.

Também, em 3 de Dezembro de 1921, foi constituída a Comissão dos Padrões da Grande Guerra que, ao longo de 25 anos, acompanhou a construção de muitos padrões erigidos aos combatentes tombados, erigidos pelas autoridades concelhias e pelo povo de norte a sul da país, ilhas adjacentes e diversos locais nas colónias, colocando o nome dos seus conterrâneos que haviam partido e por lá haviam ficado.

Quanto ao Monumento aos Combatentes do Ultramar, a ideia da sua construção foi lançada em 29 de Janeiro de 1987, no 13.º ano após o fim da mesma, vindo o mesmo a ser inaugurado, junto ao Forte do Bom Sucesso, em Lisboa, no dia 15 de Janeiro de 1994, ou seja quase vinte anos após o fim da guerra. Nesse mesmo ano foi efectuado o 1.º Encontro Nacional de Combatentes, que se tem realizado, anualmente, no dia 10 de Junho de cada ano.

Logo no 1.º Encontro, foi encarada a ideia de colocar, nas paredes do forte que rodeia o monumento lápides, tendo inscritas o nome de todos os militares que tombaram em África, nas últimas campanhas, o que veio a acontecer, tendo as mesmas lapides sido inauguradas na manhã do dia 5 de Fevereiro de 2000, ficando todo o envolvimento monumental completo, seis anos após a inauguração.

Com a Bandeira Portuguesa, apertada contra o peito. 
© Foto Google (DR)

Resta-nos ver este nosso país, Portugal que foi D'aquém e de Além-mar, cumprir o que prometeu aos seus soldados: devolvê-los ao país que os viu nascer, porque, os que voltámos e ainda aqui estamos, firmes e vigilantes, e cientes de que ainda hoje a Pátria nos chama, porque todos nós somos soldados mal-amados, não só depois de mortos, mas ainda em vida!

José Marcelino Martins
29 de Setembro de 2012
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Notas de CV:

Assim termina a publicação trabalho que o nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70) dedicou aos militares que caíram pela Pátria, enviado ao Blogue em mensagem do dia 30 de Setembro de 2012.

Vd. postes da série de:

4 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10479: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (1) (José Martins)
e
5 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10486: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (2) (José Martins)

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13787: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum (12): Em meados de 1962, seis meses antes do início oficial da guerra, já a região de Quínara está "a ferro e fogo", a avaliar por um comunicado de 30/6/1962, assinado pelo comandante do PAIGC Rui Djassi (nome de guerra, Faicam)

1. Transcrição de documento disponível no portal Casa Comum, da autoria de Rui Djassi [nome de guerra  Faincam] ( 1938-1974], com 3 folhas

Casa Comum

Instituição: Fundação Mário Soares

Pasta: 04620.104.055

Título: Comunicados [Zona 8] [Clicar aqui para ampliar]
Assunto: Comunicados assinados por Rui Djassi (Faincam): destruição de pontes e comunicações na região de Empada, ataque a agentes da PIDE, prisão de professores catequistas (entre os quais Bernardo Mango), ataque das tropas portuguesas à tabanca de Caur e à população.

Data: Quarta, 27 de Junho de 1962 - Quarta, 4 de Julho de 1962

Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1960-1962 (interna). Documentos anexos a 04620.104.054.

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral

Tipo Documental: Documentos

Direitos:
A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Fonte:

Arquivo Amílcar Cabral
05.Organização Militar
Comunicados


Citação:
(1962-1962), "Comunicados [Zona 8]", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40585 (2014-10-23)


2. Transcrição, fixação de texto e revisão por L.G.: 

[Folha 1/3]

30/6/1962

Da ultima hora -  Empada

Destruiram pontes no dia 27-28, cortaram fios em grande quantidade. Há dificuldade [de] comunicação para vários pontos, entre os quais Bissira-Empada, Empada- Pam- Tchuma, Sacunda -Aidará.

No dia 28 [do corrente mês, junho de 1962] foi morto um comerciante europeu que está [estava] ao serviço da PIDE.

Na mesma noite meteram fogo na casa do Anso Mara [sic], também agente da PIDE.

Todos os professores catequistas daquela área foram presos sem motivo de justificação. Eis os nomes: Domingos Lopes; Mário Soares; Avelino Mendes Loes; Bernardo Mango, e mais alguns camaradas. E mais agradecia mandar relogio para José Sanhá.

a) [Rui] Djassi (FAINCAM)

 [Filha 2/3]

Informação


Dia 30 de junho – Metralharam um homem de raça balanta, que se encontrava preso, com uma rajada de 10 tiros, só porque [se] levantou para fazer necessidade.


Dia 3 de julho – Em Madina de Baixo atiraram sobre um pobre homem, que andava no campo a lavrar, [e ] que logo foi morto.


Dia 4 de julho – Na madrugada, a tropa portuguesa invadiu a tabanca de Caur onde começaram a fazer fogo sobre a população. Foi morto um elemento do Partido, de nome Iaiá Camará, vários feridos e 16 prisões.



O povo já está em revolta, porque os colonialistas declararam já guerra contra o povo. 

[Folha 3/3] 

E estes juraram de que se a tropa repetir, vão morrer todos mas têm que defender[-se].

Agora em todas as tabancas homens e mulheres estão preparados para qualquer contratempo.
 

Por aqui termino esperando da sua resposta e palavra de ordem o mais rápido possível.

Djassi (Faincam)


Informação do bijagós  [sic]–

O Pereira está insuportável lá. Gastou todas as balas dele e dos camaradas. Atira sobre macacos, gazelas, etc. Anda sempre na bebedeira. Vendeu a roupa dos camaradas que tinham ido para serviço nas outras ilhas

Para lhe substituir, recusou. Portanto, mandei-lhe chamar para voltar, porque com ele não posso trabalhar. Quanto aos outros, estão a trabalhar bem.


3. Comentário de L.G.:

Contrariamente a outros documentos do Arquivo, ele  está redigido com letra bem legível, boa caligrafia e em português quase perfeito. Recorde-se que o Rui Djassi [, nome de guerra, Faincam],fazia parte da segunda leva de militantes do PAIGC que foram enviados para a China,  no 2.º semestre de 1960, para formação político-militar como futuros comandantes.

Rui Djassi fazia parte destes 10 futuros destacados dirigentes do PAIGC, hoje todos desaparecidos, uns em combate outros na "voragem da revolução" (com exceção de Manuel Saturnino da Costa, irmão de Vitorino Costa)… Aqui vão, mais uma vez  os seus nomes, por ordem alfabética: 

(i) Constantino dos Santos Teixeira (“Tchutchu Axon”);

(ii) Francisco Mendes (“Tchico Tê”) (1939-1978);

oficialmente terá morrido de acidente na estrada Bafatá-Bambadinca; mas também há ainda suspeitas de  assassinato, em 7/6/1978;  foi primeiro ministro e chefe de Estado:

(iii) Domingos Ramos (morto, em combate, em Madina do Boé, em 11 de Novembro de 1966);

 tem nome de rua em Bissau; foi camarada do nosso Mário Dias no  1º curso de sargentos milicianos  (CSM) realizado na Guiné, em 1959;

(iv) Hilário Rodrigues “Loló”:

comissário político, morreu em 1968, num bombardeamento da FAP, no Enxalé;

(v) João Bernardo “Nino” Vieira, nome de guerra, Marga (1939-2009)

natural de Bissau; ex-Presidente da República;

(vi) Manuel Saturnino da Costa:

será 1º ministro entre 1994 e 1997, num dos piores governos do PAIGC,  na opinião do nosso saudoso Pepito (1949-2014); ainda é vivo;

(vii) Pedro Ramos:

fuzilado em 1977, às ordens de ‘Nino’ Vieira, ao que parece, no âmbito do chamado "caso 17 de Outubro"; era irmão do Domingos Ramos;

(viii) Rui Djassi:

comandante da base de Gampará, na aregião de Quínara, morreu em 1964, por afogamento na sequência de um ataque das tropas portuguesas); tem  nome de rua em Bissau;

(ix) Osvaldo Vieira (1938-1974):

morreu, por doença, em 1974, num hospital da ex-URSS, e com a terrível suspeita de ter estar implicado na conjura contra Amílcar Cabral; ironicamente repousam os dois, lado a lado, na Amura; era também conhecido como "Ambrósio Djassi" (nome de guerra); tem nome de rua em Bissau; o aeroporto internacional também ostenta o seu nome;

(x) Vitorino Costa:

morto, numa emboscada em meados  de 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153 / BCAÇ 237, comandado pelo Cap Inf José Curto; era irmão de Manuel Saturnino da Costa: e terá sido o primeiro revés de Amílcar Cabral, no plano militar); tem nome de rua em Bissau;

Neste comunicado acima transcrito, o Rui Djassi parece sobretudo querer "mostrar serviço" ao secretário geral do Partido que está em Conacri. Mesmo com a habitual imprecisão factual (em relação a topónimos, nomes de pessoas, datas, circunstâncias,  etc.) fica.-se com a ideia (grosseira) de que terá sido  na região de Quínara, e em especial Empada,  que se acendeu o rastilho que infelizmente daria origem a uma guerra estúpida e inútil, que poderia ter sido evitada por ambas as partes.

Esta época continua mal conhecida e pior documentada, em grande parte também por falta de testemunhos dos militares portugueses que atuaram na região, ainda em missões mais paramilitares do que militares (como foi o caso do cap inf José Curto). na medida  em que se estava ainda na fase preliminar da "guerra subversiva".

Recorde-se que a guerra só começa oficialmente com o ataque a Tite, em 23 de janeiro de 1963. E como descreve o nosso  Zé Martins, "nessa madrugada em que se deu o combate de Tite tombou o primeiro militar português, desconhecendo-se se por causa do fogo inimigo ou fogo amigo, sendo ele Veríssimo Godinho Ramos, Soldado Condutor Auto Rodas nº 834/59, do Batalhão de Caçadores nº 237, mobilizado no Regimento de Infantaria nº 6, no Porto, solteiro, filho de Joaquim Ramos e Ricardina Joaquim Godinho, natural da freguesia de Vale de Cavalos e concelho de Chamusca. Faleceu no dia 23 de Janeiro de 1963 durante o ataque a Tite, vitima de ferimentos em combate, Foi inumado no Cemitério de Vale de Cavalos." (...)

___________

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1243: Questões politicamente (in)correctas (7): Desaparecido em campanha, morto em combate, retido pelo IN (Luís M. Lopes / Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Geba > CART 1690 > 1967 > Cartazes de propaganda utilizados pelas NT na guerra psicológica. Os guerrilheiros do PAIGC nunca eram tratados como tal, mas sim depreciativamente: turras, bandidos, homens do mato... E quando eram feitos prisioneiros, as autoridades portugueses (o Exército, a PIDE/DGS, a administração...) não os tratavam ao abrigo da Convenção de Genebra... o que não quer dizer que, no tempo do Spínola, não tenha havido mudanças substanciais no tratamento dos combatentes do PAIGC e da população das zonas libertadas (ou sob o seu controlo)... A chamada acção psicológica no tempo do Spínola é um bom tema para discutirmos aqui no nosso blogue (1).

Material gentilmente cedido pelo Alferes miliciano Reis da CART 1690 (Geba, 1967/69).

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados.


1. Mensagem de 30 de Setembro de 2006, enviada por um não-tertuliano, o Luís Mário Lopes:

Caro Luís Graça,

Precisava de uma informação para um trabalho que estou a preparar. Se ma souber e quiser fornecer, ficar-lhe-ia muito agradecido. É o seguinte:

Na guerra colonial, quando um militar era morto em combate calculo que os colegas tentassem levar o corpo com eles para o devolverem à família. Mas se isso não se revelasse possível, como é que se fazia? O que é que se comunicava aos familiares? Que o militar tinha sido "morto em combate" ou que tinha "desaparecido em combate"? Ou seja, perante a ausência de um corpo a devolver era dada a certeza da morte? O militar era considerado legalmente morto? Tinha direito a serviço fúnebre?

Desde já muito obrigado.
Cumprimentos

Luís Mário Lopes


2. Resposta de L.G., tamb+em comdata de 30 de Setembro de 2006:

Luís Mário Lopes:

(i) Obrigado pelo teu e-mail. Eu não tenho, para já, uma resposta definitiva para te dar... A tua questão é pertinente e interessa-nos, a todos... Vou pedir aos meus amigos e camaradas de tertúlia - e são já mais de um centena - que nos ajudem, a ti e mim... Há camaradas de tropa - incluindo pessoal que fez carreira, no Exército e na Marinha - que são mais qualificados do que eu para te responder...

(ii) Por exemplo, segundo a explicação dada pelo nosso camarada A. Marques Lopes (coronel, DFA, na reforma), em termos militares, desaparecido em campanha queria dizer que não se recuperou o corpo: aplicava-se aos militares portugueses, mortos em combate, no Ultramar, mas cujos corpos não puderam ser recuperados.

Mas havia ainda outra expressão, retido pelo IN: era um eufemismo, diz o coronel Marques Lopes. Porquê ? O Governo Português não reconhecia o PAIGC (bem como o MPLA, em Angola, ou Frelimo, em Moçambique) como inimigo, face à Convenção de Genebra; logo oficialmente, não podia haver prisioneiros... A verdade é que os houve: veja-se, por exemplo, a lista das baixas da CART 1690 (Geba, 1967/69).

(iii) Há dias soube da história de um militar, de Fafe ou Familicão, feito prisioneiro pelo MPLA, no leste de Angola... Foi dado como morto e o cadáver mandado para o cemitério da terra... Depois do 25 de Abril, o homem foi libertado, chegou à terra e a primeira coisa que viu foi a namorada com outro... Houve muitos dramas destes, ao longo dos nossos quinhentos anos de Império... O Frei Luis de Sousa, de Almeida Garret, foi de certo inspirado num caso destes...

(iv) Já pedi aos Amigos & camaradas da Guiné para darem mais uma mãozinha ao Luís Mário (e também a mim)... Ese assunto merece ser discutido no blogue... Já foi aflorado, há tempos, não tenho tempo agora para localizar os posts em questão (1)...


3. Resposta a seguir do Luís Mário Lopes, de 1 de Outubro de 2006:

Luís Graça,

Muito obrigado pela tua ajuda. Fico a aguardar mais informações que consigas recolher dos teus amigos e camaradas de tertúlia.

O trabalho que estou a preparar é uma peça de teatro em que surge uma situação com semelhanças com a do tal militar de Fafe ou Famalicão de que falas. Mesmo tratando-se de uma situação lateral, gostava de tratá-la com rigor.

É a minha primeira peça de teatro. Tenho escrito argumentos para cinema mas como não sou realizador é muito complicado os projectos concretizarem-se. Até agora foi produzida uma curta metragem A6-13 (realizada por Raquel Jacinto Nunes; foi prémio Tóbis no Lisbon Village Festival e tem sido seleccionada para alguns outros festivais), e neste momento está a ser realizada por Leandro Ferreira a longa metragem Deste lado do mundo (a rodagem deve prolongar-se até Novembro).

Quando conseguires mais informações por favor comunica-mas.

Abraços gratos

4. Comentário de Luís Graça:

Luís Mário Lopes: Os meus parabéns pelos teus êxitos. Eu ajudar-te-ei, na medida do possível, tal como os meus amigos e camaradas da Guiné. Como já reparaste, nesta caserna virtual (a maior da Net, em português, sobre este tópico, a experiência da guerra colonial em África, e na Guiné em particular), tratamo-nos por tu, como camaradas que fomos (e continuamos a ser)...

5. Nova mensagem do L.M. Lopes, com data de 3 de Outubro:

Luís Graça,

Agrada-me bastante o tratamento por tu. Julgo mesmo que os problemas deste país seriam mais rapidamente resolvidos se ao abordarmos os outros não tivéssemos sempre de estar a escolher entre o tu, o você, o senhor, o doutor, o V. Exa.,... , muitas vezes mais preocupados em saber se os outros se irão melindrar com a forma como os tratamos do que com a eficácia da comunicação (não será por isso que os anglo-saxónicos são regra geral mais eficazes do que os latinos?).

Seja como for tenho também a agradecer-te isto: o teres-me recebido como um camarada desta vossa caserna. Tanto mais que mereces tu muito mais felicitações do que eu. Os meus "êxitos", como tu lhes chamas, não são nada de especial. E não penses que me estou a armar em modesto (para que não haja dúvidas em relação a isso digo-te já que duvido que haja em Portugal argumentista melhor do que eu; e não estou também a armar-me em bom; é simplesmente a minha convicção). O problema é que como eu não sou realizador os meus argumentos acabam por ser completamente alterados e desvirtuados pelos realizadores e produtores (claro que isso viola os direitos de autor, mas não há grande coisa a fazer); aconteceu assim com a tal curta-metragem A6-13 e está a acontecer agora também com a longa-metragem que está a ser rodada. Impotente perante o modo do cinema funcionar neste país, resta-me tentar outras formas (talvez o teatro, talvez os contos ou os romances).

Mas chega de desabafos.Um grande abraço e mais uma vez obrigado (já recebi um relato com uma história de um teu camarada - agora também meu - que apesar de não corresponder exactamente à questão que te pus tem algumas analogias)

Luís

PS - Ainda a propósito do desabafo: é claro que não vivo da escrita; o que me sustenta é o facto de ser professor de matemática.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 1 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P827: 'Retido pelo IN': o caso do meu amigoTala Djaló (Hugo Moura Ferreira)

(...) "Recordas-te de uma mensagem que enviei, de que te dei conhecimento, a solicitar ajudas no sentido de tentar encontrar o meu amigo Furriel Graduado Comando Tala Biu Djaló?

(...)"Pois ele faz parte de uma lista de mais de uma vintena (ele é o 3º) de militares da 1ª Companhia de Comandos Afriacanos que ficaram em Conakry, na Operação Mar Verde, que tem como titulo Retidos pelo Inimigo.

"Ao falar com quem está envolvido nesta operação de registo histórico, foi-me afirmado que, como os vários Governos, desde essa época até hoje, não podem (esta é a palavra exacta, dado que à face do Direito Internacional poder-nos-ia ainda hoje obrigar a pagar indemnizações elevadíssimas a um país estrangeiro – foi esta a explicação) assumir oficialmente o episódio. Como tal não poderemos envolver, nem sequer a diplomacia para saber de forma oficial o que aconteceu àqueles militares que todos nós sabemos foram fuzilados logo a seguir ao fiasco da Operação ou morreram durante a mesma, mas cujos corpos não atravessaram a fronteira.

(...)"Perante esta situação de Retidos pelo Inimigo, apenas me interrogo o porquê desta situação, que certamente será comum aos diversos teatros de operações, não fazer parte das listagens de baixas que tivemos com as nossas campanhas em África.

"Poderia eventualmente ser uma listagem paralela às dos mortos em combate, em que constassem os Desaparecidos e os Retidos. Gostaria de ver essa lista publicada oficial ou oficiosamente, nem que fosse no nosso Blogue-fora-nada." (...)

(2) No meu Diário de um Tuga, em 20 de Dezembro de 1969, eu escrevia, quando estive destacado em Nhabijões, o seguinte (extractos):

(...) "Recuperação psicológica e promoção sócio-económica das populações – a chamada acção psicossocial: eis agora a palavra de ordem, sob o consulado de Herr Spínola… É isso: agora faz-se psico (psícola, como dizem os nossos soldados): o major aperta, com visível repugnância, as mãos das múmias; o médico observa, enfastiado, uns tantos casos constantes do catálogo das doenças tropicais; um outro miliciano distribui cigarros Marlboro; e o cabo da CCS anda a ver se come a bajuda de mama firme

"Admitem-se abertamente, na linguagem fetichista dos spinolistas, os erros do passado da nossa administração que não terá tido na devida conta as susceptibilidades, as idiossincracias e até os direitos das populações guineenses, mas omite-se, talvez por uma questão de má-consciência, os crimes praticados pelas NT, no passado recente e no passdo mais remoto, pelos nossos métodos particulares de pacificação

(...) "Hoje, as NT sabem que podem ser responsabilizadas, disciplinar e criminalmente (por ironia, à face das leis de um país que assinou as convenções de Genebra, mas que considera os nacionalistas africanos como simples terroristas, bandidos, bandoleiros, turras…) por eventuais actos de violência física cometidos contra prisioneiros e população civil… O etnocídio dos reordenamentos [como o do Nhabijões], esse, não tem enquadramento jurídico...

"Não se trata obviamente, em meu entender, de uma tentativa de redenção do colonialismo (que, de resto, não existiria, desde 1951, ano em que as nossas colónias passaram a chamar-se províncias ultramarinas…) mas de uma táctica defensiva, como o denunciou o secretário-geral do PAIGC, referindo-se a estas novas directivas do comando-chefe e governador-geral da Guiné, António de Spínola, que visam dissociar o binómio guerrilha-população…

"Mas, fazendo deslocar a guerra do TO (teatro de operações) para a ACAP (repartição de acção psicológica), Herr Spínola admite implicitamente que a vitória já não pode ser ganha pelas armas… O que não deixa de ser irónico: retratando-se das suas anteriores posições militaristas, constata afinal o impasse a que tem nos conduzido o militaristismo e acaba por justificar, involuntariamente, a propaganda do IN" (...)

Vd. post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)

domingo, 28 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1468: Mortos que o Império teceu e não contabilizou (A. Marques Lopes)




Guiné-Conacri > Conacri > Instalações do PAIGC > 1970 > Prisioneiros portugueses, fotografados pelo fotógrafo húngaro Bara István (nascido em 1942). Legenda em húngaro: "Bara István: Portugál foglyok a PAIGC börtönében, Guinea Bissau, 1970". A avaliar pela sua fotogaleria, o Bara István - oriundo de um país da Europa de Leste, com um regime comunista na época - teve um acesso privilegiado à guerrilha do PAIGC. São raras as fotos dos nossos camaradas em cativeiro, até à sua libetação em 22 de Novembro de 1970, na sequência da Operação Mar Verde. Estamos gratos a este conhecido grande fotógrafo magiar pelas imagens sobre a guerra colonial na Guiné-Bissau que disponibilizou na sua página.
Será que alguém, dos nossos amigos e camaradas, é capaz de reconhecer estes rostos ? Boa parte deles faziam parte da CART 1690 (Geba, 1967/69), a que pertenceu o nosso camarada A. Marques Lopes, ex-alf mil e hoje coronel, DFA, na reforma.

Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria (com a devida vénia / with our best wishes...)


Texto do A. Marques Lopes:

O nosso camarada tertuliano José Martins tem sido, de facto, um escavador persistente (e pertinente, sem dúvida) da nossa história na Guiné. Extremamente úteis e elucidativas as informações que nos trouxe sobre Madina do Boé, as condecorações e a lista daqueles que tombaram nos chãos guineenses (1). Mas, e já lhe transmiti isto pessoalmente, nesta lista de mortos na guerra da Guiné há omissões, várias, com certeza. E eu só posso falar daquelas que conheço, mas são exemplo, os da CART 1690.

Nesta companhia foram dados como "desaparecidos em campanha" o alferes Fernando da Costa Fernandes, o soldado Agostinho Francisco da Câmara e o soldado António Domingos Gomes. Sabemos que "desaparecido" era o termo para designar, também, aqueles cujos corpos não se recuperavam, e podemos aceitar que assim fosse, dado que até podiam ter ficado no terreno, mas feridos. Mas, muito tempo depois, e acabada a guerra, regressados a casa muitos desertores e alguns que se passaram para o outro lado (sem estar a pôr em causa as suas razões), os nomes destes homens deviam constar da lista dos mortos em combate na Guiné, porque assim sucedeu de facto.

O alferes Fernando da Costa Fernandes morreu em Sinchã Jobel em 19 de Dezembro de 1967, durante a Operação Invisível. Diz quem fez o relatório desta operação (2):

"Começou também nessa altura o IN a fazer fogo com o Mort 82, com que abateu o alferes miliciano Fernandes; verifiquei que nessa altura já o Destacamento B tinha as seguintes baixas: Alferes Miliciano Fernandes, 1º Cabo Sousa, da CART 1742, e que estava a fazer fogo com a Metralhadora Ligeira MG-42, soldado Metropolitano Fragata e um soldado milícia que não consegui identificar, além de vários feridos. Procurei trazer o alferes miliciano Fernandes para a rectaguarda e quando o puxava pelos pés, fui surpreendido por um grupo IN, que corriam em direcção aos furriéis milicianos Marcelo e Vaz e em minha direcção gritando que nos iriam apanhar vivos.

"Note-se que neste grupo IN avistei elementos brancos os quais usavam o cabelo bastante compridos (a cobrir as orelhas), facto também confirmado pelos já citados furriéis milicianos. Devido a tal tive que abandonar o corpo do alferes Miliciano Fernandes e retirar."

Mas morreu também nesta operação o soldado Vito da Silva Gonçalves, que foi dado como "morto em combate", porque o corpo foi recuperado. Mas também não vem nessa lista! E porque é que não foi dado como "desaparecido em campanha" o soldado Metropolitano Fragata, o Manuel Fragata Francisco, que também ficou nesta operação?

É uma história das teias que o império tecia. Eu conto: ele foi crivado com uma roquetada nessa operação, mas vivo, e os guerrilheiros do PAIGC levaram-no numa maca, atravessando a mata do Oio, o rio Mansoa e o rio Cacheu, até ao hospital que servia o PAIGC em Ziguinchor, no Senegal, onde, coincidência, foi tratado pelo doutor Pádua (actualmente no Hospital Pulido Valente, em Lisboa), que se tinha passado para o outro lado. A PIDE sabia disso, claro. Parece lógico que se pense que teriam feito o mesmo com o alferes Fernandes se ele tivesse ficado vivo. Mas foi muito claro que estava morto.

O soldado Agostinho Francisco da Câmara (e não Camará...) morreu também em Sinchã Jobel em 16 de Outubro de 1967, aquando da Operação Imparável (3). O mesmo relator disse assim:

"O nosso bazuqueiro (passe o termo) Soldado Agostinho Camará que estava a fazer um fogo certeiro, foi atingido mortalmente (note-se que este L.G.F. era o único que estava a fazer fogo). Foi o Soldado enfermeiro Alipio Parreira que se encontrava próximo e que estava a fazer fogo com a ML MG-42 (para a qual o referido soldado se oferecera como voluntário) pegar no LGF e continuar a fazer fogo com ele. Nesta altura tive que pegar na MG-42 e fazer fogo com ela. Logo a seguir tive que me dirigir à rectaguarda a fim de falar com o PCV que me chamava. Quando regressei à frente verifiquei o já referido soldado enfermeiro recomeçara a fazer fogo com a ML MG-42 que passado mais alguns momentos ficou impossibilitado de fazer fogo devido a uma avaria, ao mesmo tempo que o soldado enfermeiro e o municiador eram feridos por estilhaços."

"Atingido mortalmente" não quererá dizer que ficou morto?... Com essa expressão a língua portuguesa não cometeu nenhuma traição. Ele morreu lá, de facto. Mas o relatório desta operação diz mais à frente:

"Ainda foram abatidos a tiro de G-3 2 elementos IN um destes pretendia agarrar o Soldado Armindo Correia Paulino". E o soldado Armindo Correia Paulino também lá ficou. Mas há dúvidas se ficou morto ou vivo: há quem diga que foi agarrado e há quem diga que morreu. De qualquer modo foi considerado como "retido pelo IN", mas não foi libertado. Por isso, vou falar dele mais à frente.

O soldado António Domingos Gomes era um guineense de Bissau, do "recrutamento da Província", portanto, e era o guarda-costas do capitão da CART 1690 [, Manuel C.C. Guimarães] . Sei que morreu às 8 horas do dia 21 de Agosto de 1967 na picada de Geba para Banjara. Ficou feito em bocados por uma mina anticarro, espalhado pelas árvores e pela mata. Eu e o meu guarda-costas, o Lamine Turé, ficámos feridos e o capitão, que quiz ir comigo nesse dia, também ficou muito ferido. Na esperança de ainda o salvar, fui rapidamente para Bafatá, onde havia o médico do batalhão. O Domingos Gomes lá ficou espalhado nas bermas da picada, e o capitão acabou por morrer. Não há relatório da ocorrência, por razões óbvias, mas eu vi e dei testemunho disso, assim como os que me acompanhavam. O Domingos Gomes morreu. Parece brincadeira de muito mau gosto, mas deram-no como "desaparecido em campanha".

Penso, embora não tenha exacta certeza, disseram-me que há já legislação que regulariza estas situações de corpos que não foram recuperados. Não entendo é porque os seus nomes não constam ainda nas listas dos mortos durante a guerra, aquelas fontes que o José Martins pesquisou.

Esta é uma situação gritante. Mas há outra, que é a dos prisioneiros feitos pelo PAIGC, os tais "retidos pelo IN" (4), e que morreram no cativeiro na Guiné-Conakry. É o caso do soldado Luís dos Santos Marques, do soldado João da Costa Sousa, do soldado Manuel José Machado da Silva e, talvez, do soldado Armindo Correia Paulino.

Estes dados tirei-os de um documento que falava dos prisioneiros libertados aquando da Operação Mar Verde:

- o soldado Luís dos Santos Marques, da CART 1690, aprisionado em Cantacunda em 11 de Abril de 1968, "não compareceu entre os libertados", dado como "morto no cativeiro", dizia. E está confirmado pelos seus companheiros de prisão. Segundo uns, morreu de malária; ou, segundo o major piloto-aviador António Lourenço Sousa Lobato, depois de levar uma tareia dos seus carcereiros;

- o soldado João da Costa Sousa, da CART1690, para onde fora em rendição individual a 19 de Agosto de 1967, e também aprisionado em Cantacunda em 11 de Abril de 1968, também "não compareceu entre os libertados", não havendo mais indicações;

- o soldado Manuel José Machado da Silva, não sei de que companhia era (sei só os que eram da CART 1690), também "não compareceu entre os libertados", e é dado como "morto no cativeiro";

- o soldado Armindo Correia Paulino, da CART1690: é o tal que há dúvidas se morreu ou foi aprisionado em Sinchã Jobel; como foi dado como "retido pelo IN", o seu nome consta como "não compareceu entre os libertados".

Quer dizer que há dois sobre os quais se tem a certeza que morreram prisioneiros. Porque não constam os seus nomes na tal lista? Inadmissível também. Não há razão.

O João da Costa Sousa e o Armindo Correia Paulino mereciam um cuidado para se saber, então, o realmente sucedeu com eles. Nem os seus companheiros de prisão sabem deles, porque alguns não estavam no mesmo sítio aquando da operação do comandante Alpoim Calvão. Mas não "se passaram", com certeza (não me parece, por exemplo, que a "história" do Armindo Paulino durante a Operação Inquietar II lhe desse hipótese disso) (5). Dos prisioneiros de Conakry houve um que "se passou" e foi para a rádio Argel, eu sei: foi o soldado Francisco Gomes da Silva, da CART 1690, e também aprisionado em Cantacunda.

Claro que na tal lista constam os "por doença" e os "por acidente". Devem estar nela, mas não está certo que não estejam os "desaparecidos em campanha", mortos com certeza, e os que "não compareceram entre os libertados", mortos no cativeiro com certeza.

Claro que, também injustamente, não consta os seus nomes no monumento em Belém. E, já agora que se fala dos cemitérios nos locais da guerra, há que lembrar que quer o alferes Fernandes, quer o Agostinho Câmara e, talvez, o Armindo Paulino terão os seus corpos "sepultados" no poço que o ex-guerrilheiro Darami me disse que era para onde atiravam os mortos que ficavam dos ataques à base de Sinchã Jobel (6).


Abraços
A. Marques Lopes

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Notas de L.G.:

(1) Lista disponível, em formato pdf, no sítio do António Pires > Moçambique - Guerra Colonial > José da Silva Marcelino Martins > Militares que Tombaram em Campanha (1961-1974) > Guiné

(2) Vd. post de 5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII(A. Marques Lopes)

(3) Vd. post de 3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XL: Sinchã Jobel IV, V e VI (A. Marques Lopes)

(5) Vd. post de 7 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II (A. Marques Lopes)

(...) "E o que nunca mais esquecerei na minha vida: quando atacámos a base, uma jovem dos seus 18 anos ficou com a barriga aberta por uma rajada de G3. E mais (coisas terríveis desta guerra!): o Bigodes, o Armindo F. Paulino (que foi, depois, feito prisioneiro pelo PAIGC e que acabou por morrer em Conakri), quis saltar para cima dela. Tive que lhe bater. Esta é uma situação que nunca me sai do pensamento... e da minha consciência. Tinham muitos livros em português, que era o que estavam a ensinar aos alunos (miúdos ou graúdos?). Trouxemos também (imaginem!) uns paramentos completos de um padre católico! Lembranças que se me pegaram para toda a vida" (...) (7).
(6) Vd. post de 16 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXIII: Do Porto a Bissau (17): Finalmente entrámos em Sinchã Jobel (A. Marques Lopes)

(7) Vd. post de 29 Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXX: A professora de Samba Culo (A. Marques Lopes)

(...) "Tenho de partir, de voltar a Portugal. Gostei muito de falar contigo, tinha mesmo necessidade de o fazer, já que, naquele dia em que nos encontrámos pela primeira vez, só eu te disse “firma lá!” e tu não me disseste nada. Percebo que nem me quizesses ouvir... E nunca mais dormi descansado até agora. (...)

"Quero pedir-te uma última coisa, que desculpes aquele meu soldado que tentou violar-te quando estavas agonizante. Conseguiste ver ainda que não o deixei fazer isso. Perdoa-lhe, era bom rapaz, um camponês minhoto que para aqui foi lançado e, sabes, é fácil perder a cabeça numa guerra de inimigos fabricados. Talvez o encontres por aí, o teu camarada Gazela matou-o em Jobel e o corpo dele por cá ficou. Deve andar, como tu, no meio desta floresta do Oio. Fala com ele agora". (...)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7705: Agenda cultural (104): 50 Anos do Início da Guerra Colonial. ANGOLA61. Guerra Colonial: Causas e Consequências (Beja Santos)


1. O nosso Camarada Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviou-nos em 31 de Janeiro de 2011 a seguinte mensagem:
Assunto: Guerra Colonial/Livros: 03 FEV.18h30Lisboa - Livro «ANGOLA 61», de Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, é apresentado esta quinta-feira por Fernando Rosas.
50 Anos do Início da Guerra Colonial Guiné 63/74 - P7679: Agenda cultural (103): Programa na SIC com o Cor. Sentieiro - o Capitão da "Ostra Amarga" – 6 Fevereiro 2011 (Virgínio Briote)


ANGOLA61
Guerra Colonial: Causas e Consequências
O 4 de Fevereiro e o 15 de Março

Páginas: 280 PVP: 17,90€
de DALILA CABRITA MATEUS e ÁLVARO MATEUS

Por ocasião dos 50 anos do início da Guerra Colonial (04 de Fevereiro de 1961), realiza-se esta quinta-feira, dia 03 de Fevereiro de 2011, às 18h30, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, a sessão de lançamento do livro ANGOLA 61 - Guerra Colonial: Causas e Consequências.

Da autoria dos investigadores Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, a obra será apresentada por Fernando Rosas.
Confrontados com os novos dados que constam dos arquivos de Salazar e da PIDE depositados na Torre do Tombo, Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus reconstituíram, 50 anos depois, o levantamento de 4 de Fevereiro de 1961 (o primeiro acto de rebelião contra o colonialismo português) e a sublevação de 15 de Março de 1961 (o bárbaro massacre de populações brancas e trabalhadores negros no Norte de Angola), dando a conhecer em ANGOLA 61 os dois acontecimentos que marcaram, em 1961, o início da Guerra Colonial.
A par da análise dos factos ocorridos nesse ano em Angola, documentada com imagens chocantes, relatos da grande barbárie causada pelo terror negro e pelo terror branco, e testemunhos das várias versões dos acontecimentos, os autores de Purga em Angola e Nacionalistas de Moçambique dão a conhecer, nesta nova obra editada pela Texto, os antecedentes, as causas e as consequências da Guerra Colonial, agora que se cumprem os 50 anos do início do conflito.
Partindo de um olhar geral pela África colonial de 1960, passando pela caracterização do colonialismo português e culminando na resposta repressiva dada às tentativas de organização e expressão política dos africanos, Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus retratam em ANGOLA 61 o conflito que ao longo de 13 anos ceifou 9 mil vidas, feriu e estropiou outras 30 mil e se saldou num número indefinido de desaparecidos em combate nos três teatros de guerra – Angola, Guiné e Moçambique.
Apurado o «custo» humano e económico da Guerra Colonial, ANGOLA 61 desafia ainda o leitor a questionar-se sobre como teria sido a descolonização se, em vez da guerra, se tivesse apostado num caminho progressivo para a independência, e como estaria hoje Portugal se se não tivessem delapidado tantos recursos humanos e materiais.
O LIVRO INCLUI:
• Imagens e relatos, na primeira pessoa, da barbárie de 15 de Março de 1961;
• Dados sobre o caso do General Venâncio Deslandes (Governador-Geral e Comandante-Chefe das Forças Armadas de Angola, exonerado por ter defendido a criação da Universidade em Angola e a constituição de uma Federação da Metrópole com Angola e Moçambique);
• Imagens do manifesto do MPLA e da edição n.º 1 do Jornal Anti-Colonial (e.o.);

OS AUTORES
DALILA CABRITA MATEUS Nasceu em Viana do Castelo. É licenciada em História, Diplomada de Estudos Superiores em Administração Escolar, mestra em História Social Contemporânea e doutora em História Moderna e Contemporânea. Investigadora do Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa (ISCTE), é também consultora do Projecto «ALUKA» (EUA). Tem participado em conferências e colóquios, nacionais e internacionais, sobre a problemática das lutas de libertação nacional. É autora e co-autora de vários livros ligados à temática da Guerra Colonial.

ÁLVARO MATEUS Nasceu em Moçambique. Estudante universitário em Lisboa, foi dirigente da Casa dos Estudantes do Império. Nos primeiros anos de guerra colonial, promoveu e coordenou um jornal clandestino contra o colonialismo e a Guerra Colonial. No início da década de 80, participou na formação de professores na Escola Central da FRELIMO e na formação de quadros na Faculdade de Antigos Combatentes e Trabalhadores de Vanguarda da Universidade Eduardo Mondlane. Ao longo da vida foi quadro político, jornalista, locutor, publicista e tradutor, advogado e professor.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

26 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7679: Agenda cultural (103): Programa na SIC com o Cor. Sentieiro - o Capitão da "Ostra Amarga" – 6 Fevereiro 2011 (Virgínio Briote)

terça-feira, 27 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6255: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (12): Os três G e a proclamação da Independência

1. Daniel Matos (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74) fala-nos hoje do que foi a acção do PAIGC nas frentes de Guidaje, Guileje e Gadamael, os célebres três Gs, e da proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau por aquele movimento em 24 de Setembro de 1973.


Os Marados de Gadamael

e os dias da Batalha de Guidaje


Parte XII

Daniel de Matos


Os “três G” e o desfecho das três frentes de guerra em África

Continuam a curiosidade e a estupefacção gerais sobre o andamento da guerra no mato, mais acentuadamente nas zonas fronteiriças. Bissau é uma cidade vestida de “piolhos verdes”, ainda que muitos deles trajando à civil. A capital do Vietname não será diferente, com movimento idêntico e constante de viaturas militares atafulhando o trânsito e de tropas invadindo comércio, bares, restaurantes e zonas de putedo. Para além dos inúmeros quartéis que a circundam, a cidade é um autêntico depósito de adidos, por onde passam os que vêm ao hospital tratar-se disto e daquilo, os que vêm para cá de férias ou estão em trânsito de e para as mesmas, os que são mandados para estagiar numa treta qualquer, – todos os pretextos são bons para quem está no interior dar uma fugidinha, desenfiar-se para Bissau por uma temporada, para respirar fundo. Juntam-se a estes os muitos quadros militares dos gabinetes, os tais que fazem a guerra no ar condicionado basofiando, pois em geral não são parcos a disparar em todas as direcções, quando abrem a boca…


“G” de Guileje, “G” de Gadamael…

Se encontramos alguém conhecido e nos pergunta por onde temos andado e dizemos Guidaje, só falta benzerem-se, ficarem atónitos e quererem logo saber tudo tim-por-tim-tim. Tal batalha, no entanto, já está a perder a actualidade. Em todas as esplanadas não se fala de outra coisa: a nossa conhecida Gadamael está mesmo em grande risco, vivem-se por lá dias horríveis. Lembro-me que, caso estivesse sob um ataque continuado de artilharia como aquele que sofremos no norte, as suas fragilidades seriam idênticas ou maiores que as de Guidaje. Ali não há refúgios subterrâneos nem tectos reforçados com grossas placas de cimento a que possamos chamar abrigo. Bem, é certo que em Guileje existiam e o resultado foi o que se viu… Há outras semelhanças entre Guidaje e Guileje: ficam ambas junto às fronteiras (do Senegal e da Guiné Conacry), estavam as duas dependentes do abastecimento aéreo, eram ligadas ao exterior por um único acesso (a primeira, a Bigene e Binta, e a segunda, a Gadamael), sendo fáceis de isolar se estes caminhos fossem (como foram) cortados. Todavia, tinham uma diferença de vulto, que se revelou definitiva quanto à capacidade de resistência: Guidaje possuía água própria (não sei se estou a divagar, mas lembro-me de ouvir falar da existência dum furo de extracção dentro do quartel); Guileje não tinha água! Aqui, o pessoal ia buscá-la a quatro quilómetros de distância, na direcção do Mejo e por caminhos propícios às emboscadas… Quanto a Gadamael, a situação é intermédia, isto é, a água potável não está dentro do quartel, mas o local de abastecimento é muito próximo e essa dificuldade só existirá caso se verifique um cerco muitíssimo próximo do arame (o que sempre me pareceu improvável de acontecer, até pelas características do terreno circundante, mas estamos sempre a aprender)…

Um soldado nosso recebera um aerograma dum amigo, membro do Pelotão de Reconhecimento Fox n.º 2260 – ou seja, de camaradas que ficaram em Gadamael após a nossa rendição, – e o cenário descrito era dantesco e com tendência a agravar-se. O número de mortos e feridos começa a equivaler-se ao de Guidaje, também estão a construir um cemitério local e o cerco está consumado. Além dos contingentes locais próprios agora está ali o pessoal que chegou de Guileje (o mesmo se dirá em relação aos civis) e o único contacto possível de toda esta gente com o exterior é o braço do rio Sapo (afluente do Cacine). Por outras vias vamos sabendo que já tudo começa a escassear e, à medida que os dias passam, o fogo é cada vez mais violento e amplia-se de dia para dia a destruição dos edifícios (que virá a ser total). Vendo-se incapacitados de se oporem aos intensos bombardeamentos e de darem a volta aos acontecimentos, há militares (a esmagadora maioria) que resolvem abandonar o aquartelamento pela mata do lado do Cantanhez, contornando o tarrafe e a costa de mangal e fugindo em direcção às margens mais palmilháveis do rio Cacine, em busca de refúgio. De notar que, de quase três companhias só cerca de trinta homens permaneceriam no quartel defendendo a posição com morteiros 81. Quer o 15.º Pelotão de Artilharia quer o Grupo de Artilharia de Campanha n.º 10 (Obus 11,4) tinham ficado inoperacionais após um ataque IN de morteiros 120, que destruiu material importante e lhes provocou três mortos (primeiro-cabo David Sousa Cunha, soldado Bassiro Demba e soldado Domena Indi) e ainda onze feridos.

No dia 1 de Junho, começou de manhãzinha o mais crítico de todos os dias da batalha de Gadamael. Houve períodos em que a chuva de granadas de morteiros 120 (às 18 de cada vez) caía de três em três minutos. Logo pelas dez horas ficou inoperacional e praticamente destruído o pelotão de artilharia, que sofreu três mortos e onze feridos. Gadamael ficou reduzida ao morteiro 81 que tinha alcance insuficiente para dar resposta aos bombardeamentos do IN. Conta-se que momentos antes tinha aterrado na pista do quartel um helicóptero que transportava o general Spínola, mas que este teve de ser empurrado para dentro do aparelho a fim de levantar voo de imediato. O silvo das granadas a sair foi ouvido no quartel e os rebentamentos ocorreriam no ponto de aterragem do helicóptero, a cinquenta metros do edifício da secretaria, das messes e das transmissões. Num quartel sem abrigos e com um elevado número de militares concentrados lá dentro, as baixas foram aumentando sem surpresa. Na contabilidade feita ao final do dia eram registados 8 mortos e 27 feridos. Aos poucos, foram tentando fazer evacuações de feridos por barco mas o fogo intenso de cada vez que se dirigiam ao cais dificultava muito a acção. Ao princípio da tarde uma granada destruiu o posto de rádio e feriu os dois comandantes de companhia. "Após a evacuação dos capitães fiquei sem elementos de ligação pois não conhecia ninguém em virtude de ter chegado na véspera", afirma Ferreira da Silva, o oficial enviado em substituição o Major Coutinho e Lima. Num cenário de desespero e os soldados começaram a andar junto às valas a circular apenas dentro da aldeia civil (colada ao quartel, mas poupada ao fogo inimigo). O Capitão Ferreira da Silva, atarefado com as evacuações, só quando o Furriel Carvalho (do morteiro 81) lhe foi dizer que já não tinha granadas e que só se encontravam três ou quatro militares na zona crítica é que se apercebeu que a defesa do quartel estava reduzida a um grupo diminuto de homens. Cerca de 80% das nossas tropas decidiu abandonar o aquartelamento pelos seus próprios pés, independentemente do apoio de duas companhias de pára-quedistas que se deslocaram para a região a aí ficariam estacionadas.

Os pára-quedistas da CCP 121, que tinham estado connosco em Guidaje, não tiveram a mesma sorte que nós quanto a dias de descanso: no dia 12 saíram de Bissalanca em direcção a sul, tendo Gadamael como destino. Não foram os únicos, já havia pessoal das CCP 122 e 123 na missão de “salvamento”, pois uma retirada idêntica à de Guileje estava “em cima da mesa”. A nossa “irmã gémea” CCaç 3520 de Cacine, que já tivera efectivos deslocados em Guileje, esteve igualmente mobilizada para apoiar a defesa do nosso antigo quartel e, com ela, o DFE-21 transportado em zebros.

O “general do monóculo”, que entretanto se tinha deslocado a Cacine, deixou ordens para que ninguém socorresse os fugitivos, que considerava “cobardes”. Só que no navio Orion*, cujo Comandante é Pedro Lauret e que na véspera tinha levado uma companhia de páras até Cacine, impera o bom-senso. A tripulação revolta-se e, como se impõe, marimba-se na opinião de Spínola e recupera entre 300 a 400 “cobardes” que se encontram espalhados pelas margens, em estado verdadeiramente lastimoso, desesperado. Entre eles, há um sem número de feridos a quem o Enfermeiro Abrantes (auxiliado pelo Grumete Ulisses Faria Pereira) presta os primeiros socorros e/ou orienta uma série de ajudantes voluntários a fazê-lo. O então Comandante do Orion refere que “à noite, a coberta das praças estava completamente repleta de feridos”, não restando espaço para que ninguém pudesse deitar-se. Mas alguns necessitam de evacuação aérea.


Guiné > Região de Tombali > Rio Cacine > 1971 ou 1972 > Pedro Lauret, oficial imediato do NRP Orion (1971/73), na ponta do navio, a navegar no Cacine, tendo a seu lado o comandante Rita, com quem fez a primeira metade da sua comissão na Guiné. "Um grande homem, um grande comandante" (PL).



A LFG Orion no Cacheu. Foto do Lema Santos, com a vénia devida


“G” de Guidaje

Só em Maio de 1973, o PAIGC contabilizou duzentas e vinte acções militares no território. Em Guidaje, desde o dia 8, sofremos um total de 43 ataques, com artilharia pesada, morteiros e foguetões, e mais uma vintena delas na vizinha Bigene. Causaram 7 mortes, 30 feridos militares e 15 civis, a somar às baixas sofridas nas colunas (mortos 22, feridos 70) e na operação Ametista Real (10 mortos, 22 feridos e 3 desaparecidos). Em números oficiais, registou-se um total de 39 mortos militares, 122 feridos e 3 desaparecidos.

Quem sou eu para ousar pôr estes números em causa? Entendo, porém, que quem lá esteve fica com a sensação de que poderão não corresponder inteiramente à realidade, que haverá falhas por insuficiência de registos ou quaisquer outras razões. Nos relatos, surgem frequentes contradições em relação aos número de soldados mortos e desaparecidos (por exemplo, na picada Binta/Guidaje, em relação aos corpos que lá ficaram sem sepultura). As coisas baterão certas no tocante aos militares de origem europeia (continente e ilhas adjacentes), só que o mesmo se afigura com menos rigor quanto a soldados (e milícias) de naturalidade africana. Lembro-me de ter notícia (e de, nalguns casos, presenciar) da existência de civis que foram feridos e/ou morreram nas flagelações, emboscadas e minas, e que não terão sido contabilizados. Houve muitos feridos ligeiros que receberam tratamentos diversos sem se deslocarem às enfermarias. Em artigos e entrevistas publicados muito mais tarde sobre esta matéria (e onde, entre outros testemunhos chega a participar, por exemplo, o Tenente-Coronel Coreia de Campos), é referido que no mês de Maio se contaram 167 bombardeamentos a Guidaje (mais 50 em Abril), e houve a lamentar 100 mortos… É também mencionado que durante o mesmo mês terão participado de alguma forma na batalha de Guidaje cerca de mil e trezentos militares portugueses, a maior concentração alguma vez efectuada nos teatros da guerra colonial em todo o continente africano.


(Em jeito de conclusão)

Tombaram em Guidaje quatro Marados de Gadamael (três ficaram lá sepultados) e outros deixaram sangue e muitos suores frios a ensopar aquela terra. Doravante, pelo menos aqueles que lerem estas linhas já nos podem incluir nos registos, foi assim que lá fomos parar… Provavelmente nenhuma outra Companhia do Exército/Infantaria teve o infortúnio de correr os três destinos mais fatídicos deste penúltimo ano da guerra. Dizem os entendidos que o PAIGC quis capturar Guidaje, Guileje e Gadamael, promovendo uma operação “em pinça”, ou “tenaz”, para certificar o seu poderio além-fronteiras. Dirigentes da guerrilha sempre desmentiram que a ocupação de Guidaje estivesse nos seus planos, o que tem lógica, pois era uma aldeia sem qualquer interesse estratégico, valeria mais como posto fronteiriço que, existindo ou não, teria um valor relativo. O mesmo não se dirá dos aquartelamentos a sul. Com Guileje ocupada, se o mesmo acontecesse a Gadamael, equivaleria a uma vasta área de território em que Portugal deixaria de ter qualquer posto avançado, só restaria Cacine, sem quaisquer outras povoações em redor. Apesar da resistência portuguesa em Gadamael, (o ataque final só foi sustido depois da nossa aviação ter bombardeado a base de Kandiafara, para lá da fronteira com a Guiné-Conakry), o PAIGC demonstrou em Setembro de 1973 quem controlava efectivamente a Guiné, quando no dia 24 proclamou unilateralmente a independência em Madina do Boé e viu rapidamente reconhecido na arena internacional o novo Estado da Guiné-Bissau.

Passei o 24 de Setembro de serviço, a montar segurança numa das entradas de Bafatá, mais concretamente num posto que existia sobre a nova ponte do Geba, que era suspensa e uma espécie de miniatura da ponte sobre o Tejo (havia carteiras de fósforos com a sua fotografia e, se bem me lembro, também se chamava Salazar). Tínhamos aí uma pequena telefonia, através da qual ouvi a cerimónia da independência transmitida em directo pela Rádio Libertação. Medindo bem, se algum acesso estivesse a funcionar, a distância em linha recta entre Bafatá a Madina do Boé seria coisa pouca, pelo que a situação provocou-me um sentimento, no mínimo, estranho. Na manhã seguinte, quando a minha equipa foi rendida (o serviço era de 24 horas) e me dirigi à messe para tomar o pequeno-almoço, perguntei aos presentes se mais alguém tinha escutado o mesmo que eu e a resposta foi negativa. Narrei o que se passara, com a convicção absoluta de estarmos numa data que ficaria na História e, meio a brincar meio a sério, acrescentei que já me sentia um “estrangeiro” a pisar o chão da Guiné, provocando um sorriso generalizado, porém, amarelo.

Ao cerco, o PAIGC chamou Operação Amílcar Cabral (recorde-se que o dirigente histórico da guerrilha havia sido assassinado a 20 de Janeiro de 1973). E houve também a Operação Nô Pintcha. Os êxitos alcançados fizeram propalar a derrota militar do colonialismo português na Guiné, dando razão aos que defendiam que só uma solução política, – e, logo, negociada, – poderia resolver o conflito. Na arena internacional, os acontecimentos nos chamados “três G” abriram portas à inevitabilidade da independência e ao alastramento da mesma resolução às restantes colónias africanas, fosse, por tabela, em Cabo Verde, fosse em Angola e Moçambique (cada uma com as suas especificidades quando ao estado das respectivas guerrilhas, mas com o denominador comum de terem a razão política do seu lado), ou fosse ainda em S. Tomé e Príncipe. Dir-se-á que a motivação das forças armadas portuguesas era cada vez menos elevada. Realmente, o contacto com as injustiças sociais e descriminações de todo o tipo em nome de valores cada vez mais desacreditados fez abrir os olhos a muitos de nós. Havia neste tempo pouco mais de cem Companhias em exercício na Guiné e só onze delas eram comandadas por capitães do quadro permanente na frente de combate. Todos os outros eram milicianos, quer dizer, pessoal muito menos vocacionado para alimentar uma guerra injusta, que em geral já tinha lido o que era proibido ler-se na Academia Militar, que já participara (ou, no mínimo, assistira) a lutas estudantis que punham em causa o regime e reconheciam os direitos dos povos das colónias à independência…

A verdade é que o PAIGC, com a evidência dos estragos causados às nossas forças armadas a norte e sul, e da proclamação da independência efectuada bem dentro do território (com a presença testemunhal de delegações estrangeiras e de jornalistas internacionais) alterou aos olhos do mundo a situação, quer política quer militar da Guiné: em vez de ser uma colónia com territórios libertados pela guerrilha, passou a ser um Estado com territórios ocupados por estrangeiros (nós)! E isso passou a fazer TODA a diferença…
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 22 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 – P6217: Estórias de Guileje (8): O papel da fragata Orion na batalha de Gadamael (Manuel Reis, ex-Alf Mil At Inf da CCAV 8350)

Vd. último poste da série de 24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6235: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (11): Os dias da batalha de Guidaje, 31 de Maio e 1 a 12 de Junho de 1973