sexta-feira, 23 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P185: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970: Da esquerda para a direita, os ex-furriéis milicianos Marques e Henriques da CCAÇ 12.

Os dois foram vítimas, juntamente com as suas secções (4º Grupo de Combate), da explosão de uma mina anti-carro na GMC em que seguiam (Estrada de Nhabijões-Bambadinca, 13 de Janeiro de 1971, a um m~es de acabarem a sua comissão de serviço).

O Marques foi gravemente ferido, tendo sido evacuado para a Metrópole. A sua reabilitação foi morosa e pensoa. É hoje mais um DFA (deficiente das forças armadasa).

© Luís Graça (2005)

História da CCAÇ 12 (1969/71)

(19) Janeiro de 1971: 1 morto de 6 feridos graves aos 20 meses

O dia 13 seria uma data fatídica para as NT, e em especial para a CCAÇ 12 cujos quadros metropolitanos estavam prestes a terminar a sua comissão de serviço em terras da Guiné. Eis o filme dos acontecimentos:

(i) Às 5.45h o 1º Gr Comb detectou, durante a batida à região de Ponta Coli, vestígios dum grupo IN de 20 elementos vindos em acção de reconhecimento aos trabalhos da TECNIL na estrada Bambadinca-Xime e locais de instalação das NT.

(ii) Às 11.25h, na estrada de Nhabijões-Bambadinca, uma viatura tipo Unimog 411, conduzida pelo Sold Soares (CCAÇ 12) que ia buscar [a Bambadinca] a 2ª refeição para o pessoal daquele destacamento, accionou uma mina A/C.

0 condutor teve morte instantânea. Ficaram gravemente feridos 1 Oficial (CCS / BART 2917)[Alf. Mil. Moreira] (a), 1 Sargento (Fur Mil Fernandes/CCAÇ 12) e 1 Praça (CCS / BART 2917).

(iii) Imediatamente alertadas as NT em Bambadinca, o Gr Comb de intervenção (4º, CCAÇ 12) recebeu a missão de seguir para o local a fim de fazer o reconhecimento da zona, enquanto outras forças acorriam a socorrer os sinistrados.

Ao chegar junto da viatura minada, o Cmdt do 4° Gr Comb [Alf. Mil. Rodrigues] (b) deixou duas praças a fazer a pesquisa, na estrada e imediações, de outros possíveis engenhos explosivos, no que foram apoiados por alguns elementos do destacamento, seguindo depois uma pista de peugadas recentes, detectadas nas proximidades, e que se dirigiam para a orla da mata.

Aqui, a 50 metros da estrada, atrás duma árvore incrustada num baga-baga, encontraram-se vestígios muito recentes. Seguindo os rastos através da mata, foi dar-se à antiga tabanca de Imbumbe [um dos cinco núcleos populacionais de Nhabijões (c), agora transferidos para o reordenamento], mas nas proximidades do reordenamento (Bolubate) aqueles passaram a confundir-se com os do pessoal que trabalha na bolanha.

(iv) Regressado ao local das viaturas, o Gr Comb pelas 13.30h recebeu ordens para recolher, tendo o pessoal tomado lugar no Unimog e na GMC em que tinha vindo. Esta última [onde vinham as secções, comandadas pelos Fur. Mil. Marques e Henriques] (d) , entretanto, ao fazer inversão de marcha, e tendo saído fora da estrada com o rodado trazeiro, accionaria uma outra mina A/C colocada na berma, a 10 metros da anterior, e que não havia sido detectada pelos picadores.

Em resultado de terem sido projectados, ficaram gravemente feridos o Fur Mil Marques e os Sold Quecuta, Sherifo, Tenen e Ussumane. Sofreram escoriações e traumatismos de menor grau o Alf. Mil. Rodrigues, o Sold TRMS Pereira e os Sold Cherno e Samba.

(v) No dia seguinte, às 5.45h, as forças de segurança à TECNIL (2º e 4º Gr Comb da CCAÇ 12) detectaram novos vestígios do mesmo grupo IN que seguiu na direcção de Lantar, vindo de Samba Silate, fazendo de passagem o reconhecimento das máquinas à entrada da bolanha do Xime. Uma inspecção cuidadosa não revelou estarem armadilhadas.

(vi) Às 18.30Oh, o IN flagelaria o Xime com mort 82 da direcção de Ponta Varela, à distância e sem consequências.

Durante o mês, a CCAÇ 12 continuou empenhada na segurança à TECNIL, tendo ainda levado a efeito duas colunas de reabastecimentos até ao Saltinho.
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Notas de L.G.

(a) O nosso tertulianoLuís Moreira

(b) Já falecido, depois do regresso a Portugal. O José António G. Rodrigues, ex-Al. Mil. Cav., era funcionário da Segurança Social, em Lisboa.

(c) O Fur. Mil. Henriques é o autor destas linhas.

(d) vd. post de 21 Setembro 2005 > Guiné 63/74 . CCII: O reordenamento de Nhabijões (1969/70) .___________

Fonte: História da CCAÇ. 12: Guiné 1969/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores 12. 1971. Capítulo II. 44-45.

quinta-feira, 22 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P184: Lamparam, o blogue do Leopoldo Amado

© Leopoldo Amado(2005)

Post de Leopoldo Amado, nosso amigo de tertúlia, historiador, natural da Guiné-Bissau.

Caros amigos,

Não tenho tido tempo para partilhar convosco o que quer que seja, na medida em que estou mesmo na recta final da minha dissertação de tese. Porém, estou quase a acabar, na fase derradeira. Penso estar disponível para a semana, a fim de iniciar convosco uma intensa partilha.

Desde já, congratulo-me com o nível dos trabalhos e dos debates. Há textos fabulosos. O que se fará com tanta coisa boa assim? Tertúlia vai ter a sua própria Editora? Penso que se justifica plenamente. Fiquei igualmente alegre em saber que o meu amigo João Tunes é agora dos nossos, pois tem cabeça no lugar e uma escrita escorreita, que dá gozo ler.

Entretanto, convido os meus amigos a visitarem o meu blog [Lamparam] , apesar de estar completamente desactualizado, tal a intensidade de trabalho que agora tenho com a fase final da tese.É uma forma de nos conhecemos mutuamente. Penso.
Um abraço a todos.

Até pr’a semana.
Leopoldo Amado

2. Comentário de L.G. :

Congratulo-me pelo fim (ou quase) dos trabalhos académicos do Leopoldo. Falta-lhe depois defender a sua tese de dissertação, justamente sobre os aspectos militares da guerra da Guiné (1963/74). E nós queremos lá estar nesse dia, para o ouvir, apoiar e dar um abraço (aqueles de nós que quisermos e pudermos). A sua tese deve ser fascinante e vai seguramnente querer ser conhecida e lida por estes tertulianos que, modéstia à parte, também foram actores naquele filme da guerra colonial versus guerra de libertação (actores, secundaríssimos, é certo, mas mais do que simples figurantes)...

O blogue do Lepoldo pretende ser um "espaço guineense de análises, divulgação de textos e comentários sobre a Guiné-Bissau e o mundo africano".

O termo lamparam designa, no crioulo da Guiné-Bissau, "um engenho tradicional de propulsão normalmente utilizado nas plantações e nas bolanhas da Guiné-Bissau para afugentar a acção predatória das aves sobre as culturas".

A escolha do título é muito apropriada e feliz. O Leopoldo convida todos os guineenses e amigos de África e da Guiné-Bissau para pegarem no seu lamparam e desta forma, "realizarmos livre e civilizadamente a propulsão do nosso ethos, individual ou colectivamente, independentemente das diferenças de opinião ou de pontos de vista, conquanto possamos afugentar a intolerância e forjarmos, pela via do diálogo e da confrontação de ideais, a tão almejada quanto necessária união na diversidade".

Bons augúrios, Leopoldo! Com o teu lamparam, vamos afujentar essas aves agoirentas que pairam sobre os céus da tua querida terra! Não me refiro aos feios e pobres djagudis a quem Deus deu a missão de limpar a terra, mas essas outras figuras sinistras que têm impedido o teu país de tirar o máximo de oportunidades da sua independência, a começar pela violência das armas, a descrença, o cinismo e a corrupção.

Guiné 63/74 - P183: Leva-me contigo, Salgado!

Crianças internadas no Hospital Maria Pia / Josina Machel. Luanda, Maianga. 29 de Setembro de 2004.

© Luís Graça (2004)

1. Post do Paulo Salgado (que está em vias de voltar á Guiné, por um ano como cooperante):

Fico perfeitamente siderado pela capacidade de alguns camaradas, pelo entusiasmo que colocam nas cartas, no envio e na organização das fotos, e, sobretudo, pelo empenhamento em recordar o passado, mas sempre pensando que o futuro ainda está connosco, que podem contar connosco para "contar" e "narrar" estórias que farão história, feita de pedaços de cada um: noites indormidas; fome de comida e de amor; sede de água e de carinho; também das obusadas, dos canhões...

Meus caros camaradas, o que passámos ajuda-nos a explicar alguns factos que se vivem hoje e a compreender o futuro, o futuro do nossos filhos e netos. As guerras não conduzem a nada...
Tal como havia os marinheiros que bordejavam a costa no tempo das conquistas e descobertas, sofrendo muito, também nós apanhámos as doenças, a miséria - e vimos como o arame farpado cortava seres como nós...

Também quero deixar uma palavra amiga e respeitadora ao Leopoldo [Amado], ao Mussá [Biai], (nosso amigos, tertulianos], ao [Fernando] Casimiro [mais conhecido por Didinho] e outros guineenses que querem o bem da sua terra, da "nossa" terra.

Mas quero deixar uma palavra especial - perdoai-me se olvido algum de vós com merecimento que será tão grande - ao Luís Graça, um intelectual de mão cheia, que nos ajuda, a todos, a reunir os pedaços que temos dentro de nós. (Bolas, isto é quase um louvor, carago - eu vivo aqui, em Gaia, carago!). Obrigado pelo companheirismo aqui vertido graças à tecnologia, que só tinha igual nos aerogramas: carago, chegavam em três tempos...

Nota: O tempo foge-me. Queria digitalizar as centenas de fotos que tenho... Algumas vinham para cá e a minha namorada, hoje minha mulher e companheira de novas "lutas" em África, mandava revelar a cores e que reenviava... ai, o amor vertido nas cartas e nos aerogramas... aquele amor que nos alimentava, que nos fazia sobreviver

Queria enviar panfletos que o PAIGC deixava na estrada, queria contar-vos episódios verdadeiros...mas o tempo escasseia-me. Ainda vou tentar, antes de ir na TAP até Bissau, no próximo dia 30 do corrente.

Mantenhas para todos.

2. Comentário do Luís Graça (Alguns excertos da nossa mais recente correspondência, privada, minha e do Paulo):

Paulo: Não temos mais "ordem de serviço" desde que perdemos a guerra, desfizemos o Império, desmontámos a tenda, fizémos o espólio, entregámos a G3 e o camuflado, rumámos a casa e passámos à peluda... Pelo que já não há mais lugar a louvores, como o teu (à minha singela pessoa) nem muito menos piçadas ou, pior ainda, porradas, como aquela que o João Tunes apanhou no Pelundo por desobedecer á ordem do filho da mãe do tenente coronel que lhe mandou dar uma chapada a um dos seus cabos de transmissões... Desculpa a desbunda, mas vim da Guiné desbocado... E eu garanto-te que antes de ir para lá era um djubi bem comportado: na minha morança e no meu chão, era proibido dizer palavrões...

Louvores, apanhei um na tropa, nem sei como, ou sei: dava jeito ao meu capitão, em vésperas de ser promovido a major e de regressar a casa, mostrar-se grato e reconhecido aos seus rapazes, incluindo este "gajo porreiro", que era eu, que se dava bem com os "guinéus", e que era o seu "pião de nicas" (substituindo todos os camaradas furriéis, com baixa, lerpados, cacimbados, em férias em Lisboa, desenfiados em Bissau), embora alcunhado de Soviético...

Bem, o louvor não me envergonha por aí além... Pelo menos, hoje me dia. Não o escondi também não o emoldurei. Nunca me serviu para nada. Mas um dia destes fui à velha caderneta militar, copiei-o e escarrapachei-o no meu currículo... Quanto ao teu elogio, agradeço-o mas não o mereço...porque grandes somos todos nós, tertulianos...

Escreveu-me o Paulo o seguinte (e eu quero partilhar isto com o resto da tertúlia, porque a gente também tem que saber o que se passa hoje naquela terra, desde à saúde à economia):

"Irei estar em Bissau durante um ano - é muito! Para quem já conta 59 anos, não é brincadeira.
"Comigo irão o Eng.º João Faria (reformado), o Administrador Hospitalar Vítor Seabra (que já andou pela Guiné como cooperante e está também reformado) e a minha mulher, Conceição Salgado, economista, e que foi apanhada pela água do Pidjiguiti" [Adoerei esta expressão, Paulo!... Que ternura!].

(...) "Na verdade, parto no fim do mês e esperam-nos, à equipa que vai, de quatro elementos, um sistema de saúde paupérrimo em todos os aspectos, espartilhado por vícios antigos e adquiridos, vilipendiado pela falta de planificação e de coordenação (eu já vi isto em qualquer lado!), um hospital civil onde imperam a miséria, o conformismo, o amadorismo, uma população analfabeta, carente, ainda que saiba da corrupção que grassa (onde é que eu já vi isto?). Também a chuva, o calor, a viscosidade de alguns... É certo que há o povo sempre na busca e na esperança, as paisagens e os passeios"...

"Preciso, também, de sentir que posso contar com amigos daqui e que fazem uma leitura realista da saúde. Lá como cá, a saúde é mal tratada - e quem sofre é o povo.

"O meu mail de lá, a partir de 30 de Setembro será (...)".

(...) "Não me vou esquecer da outra componente: a catártica, embora eu já tenha feito a catarse no Olossato, e por várias vezes...lá onde os putos agora homens me pedem: leva-me contigo, Salgado!"...

E eu (e julgo que todos nós), só lhe posso desejar "boa saúde e bom trabalho":

"Quanto a ti, meu caro, louvo-te a coragem e a generosidade: um ano de Guiné, nas actuais circunstâncias (um país do quarto mundo, o dos “buracos negros do capitalismo informacional”, para usar uma expressão do sociólogo Manuel Castells), é de herói… Só posso desejar-te o melhor possível, para ti, para a tua mulher e para o resto da equipa. Se eu te puder ser útil, a ti e aos nossos guinéus, em alguma coisa das minhas áreas de competência, põe e dispõe. Aquele abraço. Luís".

Se puderes, vai dando notícias para o outro endereço.

quarta-feira, 21 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P182: O reordenamento de Nhabijões (1969/70) (Luís Graça)

© Luís Moreira (2005).

Uma pausa nos trabalhos do reordenamento de Nhabijões (1970).

Foto gentilmente cedida por Luís Moreira, ex-Alf Mil. Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).


Em homenagem (póstuma) ao Soares (morto), da CCAÇ 12; em homenagem ao Moreira (da CCS/BART 2917), ao Fernandes, ao Marques, ao Ussumane Baldé, ao Tenen baldé, ao Sherifo Baldé, ao Sajuma Baldé (todos da CCAÇ 12) e ainda a um soldado da CCS do BART 2917 (cujo nome não sei), todos eles gravemente feridos em duas minas anticarro que explodiram no dia 13 de Janeiro de 1970, à saída de Nhabijões (a).

Eu também nunca mais esquecerei aquela data e aquele nome. Nunca mais esquecerei a correria louca que fiz com um Unimog 411, carregado de feridos, pela estrada fora, de Nhabijões até, Bambadinca, até ao nosso aeródromo aonde nos esperava o helicóptero para uma série de evacuações ipsilon. 

 Ainda hoje não sei explicar por que fui eu, além do condutor, o único do meu Gr Comb (e de duas das secções) que fiquei praticamente incólume mas inoperacional: umas contusões na cabeça (por projecção contra a parte inferior do tejadilho da GMC); a G-3 danificada; tonto e cego de tanta poeira; etc.

(a) Há fotos de Nhabijões, sujeitas à lei do copyright, num sítio italiano que merece uma visita: Contrasto - Reportage (texto em inglês). Reportagem de Alessandro Tosatto. Obrigado ao nosso tertuliano Afonso M.F. Sousa, pela descoberta e pela sugestão. (O link está descontinuado: 3/11/2023. LG)
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(5) Novembro de 1969: Início do reordenamento de Nhabijões

A partir deste mês, 1 Gr Comb da CCAÇ 12 passaria a patrulhar quase diariamente as tabancas de Nhabijões cujo projecto de reordenamento estava então em estudo, a cargo da CCS/BCAÇ 2852.

Nhabijões era considerado um centro de reabastecimento do IN ou pelo menos da população sob seu controle. As afinidades de etnia e parentesco, além da dispersão das tabancas, situadas junto à bolanha que confina com a margem sul do Rio Geba, tornava-se impraticável o controle populacional. Impunha-se, pois, reagrupar e reordenar os 5 núcleos populacionais, dos quais 4 balantas (Cau, Bulobate, Dedinca e Imbumbe) e 1 mandinga, e ao mesmo tempo criar "polos de atracção" com vista a quebrar a muralha de hostilidade passiva para com as NT, por parte da população que colabora com o IN.

A CCAÇ 12 participaria directamente neste projecto de recuperação psicológica e promoção social da população dos Nhabijões, fornecendo uma equipa de reordenamentos e autodefesa (constituída pelo Alf Mil Carlão, Fur Mil Fernandes, 1º Cabo At Encarnação e Sold Arv Alfa Baldé que foram tirar o respectivo estágio a Bissau, de 6 a 12 de Outubro de 1969) e ainda 2 carpinteiros (1º Cabo At Sousa e 1º Cabo Enf Rente). E indirectamente criando as condições de segurança aos trabalhos.

Numa primeira fase estava previsto levar a efeito a desmatação do terreno, a fabricação de blocos e a construção de 300 casas de habitação e 1 escola. Durante este período a CCAÇ 12 realizaria várias acções, montando nomeadamente linhas descontínuas de emboscadas entre os núcleos populacionais de Nhabijões, além de constantes patrulhas de reconhecimento e/ou contacto pop.

A partir de Janeiro/70 seria destacado um pelotão da CCS/BCAÇ 2852 a fim organizar a autodefesa de Nhabijões. Admitia-se a possibilidade do IN tentar sabotar o projecto de reordenamento, lançando acções de represália e intimidação contra a população devido à colaboração prestada às NT.

A partir de Abril de 1970, o reordenamento em curso passaria a ser guarnecido por 1 Gr Comb da CCAÇ 12. Na construção de novo destacamento estiveram empenhados o Pel Caç Nat 52 e a CCAÇ 12, a 3 Gr Comb, durante vários dias.

A segunda fase do reordenamento (colocação de portas e janelas e cobertura de zinco em todas as casas, abertura de furos para obtenção de água, etc.) começaria quando o BART 2917 passou a assumir a responsabilidade do Sector L1 (em 8 de Junho de 1970).

A partir de Julho, a CCAÇ 12 deixaria de guarnecer o destacamento de Nhabijões, tendo-se constituído um pelotão permanente da CCS/BART 2917 enquadrado por graduados da CCAÇ 12.
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Fonte: História da CCAÇ. 12: Guiné 1969/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores 12. 1971. Capítulo II. 17.

terça-feira, 20 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P181: CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72) (Paulo Salgado)

© Paulo Salgado (2005)
O cais do Pidjiguiti, em Bissau.

1. O Paulo Salgado confirma que a sua companhia não era de caçadores (como chegou a ser indicado, inicialmente neste blogue) mas de cavalaria.

A CCAV 2721 (Olosato e Nhacra, 1970/72) era então comandada pelo capitão de cavalaria Mário Tomé. E tinha um jornal de caserna chamado Tabanca (SPM 1318, 1970). Essa informação já figura nas nossas páginas: Subsídios para a História da Guerra Colonial > Guiné (9). Seria interessante se o Paulo nos conseguisse arranjar fotocópia (ou versão digitalizada) de algum ou alguns exemplares do Tabanca.


2. Aqui vai um excerto da mensagem do Paulo:

(...) De resto, de cavalaria ou de caçadores, o que contava eram os homens e a forma como, dando tiros, os davam; [ou] como andando no mato, em emboscadas e golpes de mão, o faziam.

Além disso, há tantas estórias para contar (a verdade - o que é a verdade?...Quem detinha a verdade?!). Mas, como diz o Luís Graça, mais ou menos: é preciso olhar o passado para compreender o futuro...

Esse jornal de caserna - TABANCA - era lindo um pouco por toda a Guiné. Há quem tenha exeplares...

Aliás, o Mário Tomé era um tipo (é um tipo) extrarodinário - digo-o com muita segurança e conhecimento de causa. E dizem-no os camaradas que não gostam que ele falte aos encontros da companhia.

Havemos de voltar a falar do Olossato, de então, e do Olossato de agora. (Olossato é um nome giro, com sonoridade...aquele rio ao fundo...).

3. O Paulo Salgado já tinha, enternato, mandado uma anterior mensagem à tertúlia com algumas fotos da Guiné-Bissau de hoje. Aqui fica:

Ao Luís
Ao João Tunes
Ao Manuel Ferreira
A tantos!

A estes, e outros bloguistas, nos quais revejo os meus camaradas do Olossato, quero dizer, muito claramente, que naquela Guiné tão bela, tão cheia de encantos, as crianças brincam nos regatos com barquinhos de papelão, enquanto os senhores da guerra brincam com as Kalachnikovs…

Por causa das crianças, das mulheres e dos velhos – afinal não os temos aqui connosco sofrendo? – temos que gritar bem alto, em nome da solidariedade: BASTA!

Aqueles camaradas (da foto) que punham a G3 de lado para ajudarem os aldeões [em Nhabijões, Bambadinca], estavam ou não a ajudar as populações, com a sua energia, a sua coragem – com a guerra ali ao lado, e quantas vezes, ao outro dia ou na outra noite caíam crivados de balas… Que exemplo de homens bons, que exemplo de grandeza! Quanta coragem, camaradas e quanta solidariedade!

Vou fazer força junto do Graça e de todos quantos queiram, para começarmos a conseguir uma pequenina ajuda para uma tabanca qualquer: Olossato, Bigene, Fulacunda, tanto faz…

O tempo passou, meus caros. O que hoje ocorre e decorre na Guiné-Bissau toca-nos, tem que nos tocar, forçosamente. A indiferença é a pior inimiga da solidariedade.

Nós, ao escrevermos, ao relatarmos as coisas que sofremos, estamos a ser solidários, estamos a ser homens. Mesmo com os nossos pecados, com as nossas malandrices…

© Paulo Salgado (2005) Criança em tratamento mo no Hospital Simão Mendes, Bissau.

Quero deixar-vos quatro fotos actuais:

(i) avenida que vai da Chapa 3 até ao palácio (agora desfeito);

(ii) criança em recuperação no Hospital Simão Mendes (o Hospital Militar desapareceu);

(iii) vista do cais do Pidjiguiti;

(iv) cortejo de carnaval em Bissau.

Peço-vos desculpa se estou a maçar-vos. Obrigado, Camaradas. Salgado

Guiné 63/74 - P180: Imagens de Bissorã e da CCAÇ 13 - Os Leões Negros (1969/71)

© Carlos Fortunato (2005).

Militar da CCAÇ 13 (Os Leões Negros) a desmontar uma mina, na estrada Bissorã-Olossato.

Uma primeira versão da prometida página sobre Bissorã já está disponível. Podem consultá-la directamente, a partir da minha página pessoal ou através de um link neste blogue (Memórias dos lugares > Bissorã ).

Já temos, até à data, páginas sobres as seguintes localidades, povoações, vilas ou cidades, que eram importantes no nosso tempo sob o ponto de vista administrativo e militar. Foram sítios em que vivemos e/ou onde combatemos, ou por onde passámos, constituindopor isso parte das nossas memórias da Guiné, no período que coresponde à guerra colonial (1963/74). Nalguns casos, voltámos - já depois da independência e do fim da guerra - ao novo país irmão que se chama hoje Guiné-Bissau. Há também imagens de algusn lugares que foram revisitados nos anos dez anos.

Esses lugares são, por ordem alfabética: Bafatá, Bambadinca, Banjara, Barro, Bissau, Bissorã, Cansissé (Nova Lamego ou Gabu), Cantacunda, Contuboel, Geba, Mansambo, Saltinho, Xime, Xitole... Mas aguardamos imagens de outros sítios, onde estiveram alguns de nós, como por exemplo o Paulo Salgado (Olossato e Nhacra), o João Tunes (Pelundo e Catió)ou o Afonso Sousa (Bigene, Binta, Guidage). Eles não prometeram nada, com excepção do Paulo Salgado. Mas entretanto há novas caras que, como o Luís Moreira, irão aparecer, remexer no baú da tropa e trazer mais novidades... Que isto de remexer no baú da tropa é como abrir a caixa de Pandora: nunca se sabe quais são os fantasmas, irãs e demónios que lá estão, a dormir há mais de trinta anos...

No nosso blogue também há já links para os blogues ou as páginas pessoais dos nossos amigos e camaradas:

João Tunes > Agua Lisa (3)
Jorge Santos > Guerra Colonial Portuguesa
Fernando Chapouto > Guiné > CCAÇ 1421 (1965/67)
Carlos Fortunato > CCAÇ 13 (Os Leões Negros)
Luís Graça & Camaradas > Subsídios para a História da Guerra Colonial > Guiné (1963/74)

Agradeço, mais uma vez, a amabilidade do Carlos Fortunato que pôs à nossa disposição o seu “álbum de fotos”. Faltam inserior duas ou três imagens. Ficam para uma próxima actualização. Peço ao carlos para dar uma vista de olhos e mandar sugetsões e correcções.

O Carlos pode acrescentar mais notas nas legendas de modo a criar o apetite a quem quiser saber mais sobre a CCAÇ 13 - Os Leões Negros, cujos soldados eram do recrutamento local (balantas e felupes: uma mistura explosiva!). Este têm um belíssimo hsitorial, pelo que se sugere uma visita mais demorada à respectiva página, de que o nosso tertuliano Carlos Fortunato é o guardião ( ou o webmaster).

Como já tive oportunidade de dizer, considero esta página da Net uma das mais bem documentadas relativamente a unidades de intervenção ou companhias (de caçadores, de cavalaria,de artilharia, etc.) que operaram no TO da Guiné, entre 1963 e 1974.

PS - Como repararam, atingimos hoje o post 200 (CC, em numeração romana). Não me dá jeito dizer postagem, à brasileira...

Guiné 63/74 - P179: Gato escaldado de água lisa não tem medo...

© Luís Moreira (2005).

O artista, o bravo alferes sapador, escalando o depósito de água de Bambadinca, um dos pontos mais altos da Guiné, a seguir às colinas do Boé (Bambadinca + o depósito de água, entenda-se)...

E neste ponto pode-se perguntar-se ao blogador: "Onde acaba, camarada, o simples desfrutar da paisagem de reminiscências bíblicas e começa o puro voyeurismo?"...

Enfim, este podia ser um ponto de partida para a discussão sobre eventuais condutas menos éticas dos tugas (armados de G3, de máquina fotográfica, de teclado de computador), ontem ou hoje...

Foto de 1970, gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf. Mil. Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

1. O João Tunes quer tirar uma "licença sabática" relativamente a esta blogaria, de modo a poder dedicar-se mais ao seu blogue de estimação, a Agua Lisa (3) (um título que que só podia ser criado por um poeta ou por um engenheiro químico, como ele). Água Lisa, leia-se: aguardente de cana, cachaça (e, por extensão, água de Lisboa, como diriam os nossos queridos nharros a quem o Profeta proibiu de tocar na dita água-lisa).

Ele acha, de resto, que teve demasiado exposto às luzes da ribalta deste blogue, mesmo que por uns escassos dias. Mais: quer dar espaço, protagonismo, aos demais tertulianos... Respeito a sua decisão de voltar para a plateia. Ele não quer ser prima dona (nem a gente tem guita para lhe pagar o cachet).

É bonito da parte dele, fica-lhe bem. Em contrapartida, eu tenho pena de perder - espero que só por uns tempos - um plumitivo de grande talento. Espero ainda que ele não tenho ficado magoado connosco, que às vezes somos uns gajos desbocados e grosseiros (cá para mim, ele, comparado connosco, até chega a parecer um bem comportado menino de coro, isto depois de ler o post que ele escreveu a contar a música celestial que tocou para as senhoras, assexuadas, discípulas da Cilinha Supico Pinto, no dia do embarque para Guiné...).

Quanto ao pedido da sabática, está automaticamente deferido, já que ninguém manda nesta merda e há muito que passámos todos à peluda...

Bajuda balanta nos banhos públicos de Nhabijões... O conceito de intimidade e o conflito público/privado têm de ser vistos de uma perspectiva antropológica mas também ética...

© Luís Moreira(2005). Foto de 1970, tirada em Nabijões, e gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf. Mil. Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

A nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné (combatentes só de um lado, estamos à espera da rapaziada do outro...) já o aceitou, de braços abertos e coração ao alto, sem quaisquer praxes, rituais de iniciação ou pedido de patacão para a gasosa (como se diz em Angola ao pagamento, em géneros ou espécie, de pequenos favores aos pequeníssimos homens e mulheres da grande burocracia totalitária). O João Tunes é e sempre foi cá dos nossos... A prova talvez mais bonita, singela, sincera, comovente é a do nosso minhoto Sousa de Castro (o tertuliano mais antigo, logo nº 1) que diz:

"É, pá, não há dúvida que o Tunes é de facto um escritor nato, com estes textos bem elaborados e que toda a gente mais ou menos percebe. Bem, eu com a minha 4ª classe e comunhão solene gostaria de ser capaz de pôr no papel (ou nos e-mails) muitas coisas daquilo que me vai na alma, relacionadas com a tropa na Guiné. Por mim não vejo inconveniente em [ele] gozar as ditas férias sabáticas e desfrutar da nossa leitura e das nossas imagens. Cumprimentos, Sousa de Castro".

Também o Afonso Sousa me dizia há dias (por sinal, no dia 11 de Setembro de 2005): " O João Tunes é uma aquisição imperdível ! Isto só prova que o blogue já está a despertar a atenção de alguns vultos".

Depois disto, o que é que eu, blogador, posso dizer mais? Que ele, João Tunes, nosso ex-tenente, tem todo o direito de, à laia dos nossos vizinhos bérberes do Norte de África (que emprenharam boa parte das tetravós das nossas tetravós), fazer as incursões que quiser pelo território deste blogue (que começou por ser meu e hoje é nosso, de mouros e de morcões) e obrigar-nos a desembainhar a espada e a defender a honra da nossa dama... Entenda-se: falo em linguagem metafórica, não quero abrir aqui uma guerra norte/sul... nem muito menos levar outra piçada.

A verdade é que ninguém de nós tem a pedalada dele (nem talvez a disponibilidade, a motivação e o talento para blogar), mas este encontro feliz (e, afinal, breve), promete muito mais... Por isso, até amanhã, camarada! L.G.


2. Texto de "despedida breve" do João Tunes, que vai de sabática....

Só posso ficar comovidamente agradecido pelo carinho camarada com que fui recebido e apaparicado na tertúlia que era vossa e agora é nossa. Dir-se-á que, assim, até apetece ser periquito...

Já ganhei, em pouco tempo, riquezas várias que vos agradeço - papos com gente inteligente, de maneiras e com boa memória e melhor sentido ético, ter recuperado - adquirindo-a - a comunicação com um camarada (o Levezinho de quem eu disse só ter conhecido de nome mas, vendo as fotos de arquivo, rapidamente o seu rosto actualizou os registos da minha memória visual) que, sem termos trocado fala, co-habitámos não só o "cruzeiro do Niassa" como 30 anos profissionais nas águas da mesma empresa (e esse foi um outro navio e que navio!), ler os vossos escritos e actualizar os olhos com as vossas excelentes imagens.

Como sou rápido a disparar no teclado, o que será virtude e defeito, tenho emailado em fartura e depois constato que as minhas escrevinhadelas ao correr do teclado têm tido visibilidade de notoriedade no nobre e sempre leal vosso (nosso) blogue.

Nada tenho contra o procedimento pois desde sempre habito bem a responsabilidade de uso da liberdade, assumindo em público (e responder por elas) qualquer posição que tomo em círculo restrito ou mesmo privado (tirando os aspectos íntimos da minha vida privada). Talvez por ter começado cedo demais a apanhar no coco por opções (muitas vezes bem pueris) como o facto de ter ido parar à prisão de Caxias em 1965 por defender essa coisa tão extraordinariamente "subversiva" que era o direito dos estudantes a terem Associações de Estudantes.

O que é certo é que perdi cedo o sentido da bravata "contada aqui só para nós" e só admito que os gritos de revolta (ou de rebeldia), até os estados de alma, sejam para se ouvirem ou para se engolirem para dentro. Poderei não ser um valente (e não o sou, pelos menos a full-time nunca fui, não sou e estou demasiado velho para o vir a ser) mas os actos de semi-valentia (semi-cobardia) são-me menos considerados que os de cobardia ou de renúncia. Portanto, não tenho réstea de crítica ao facto de as conversas em e-mail terem passado para o domínio público. Assim, o que se segue não é um reparo.

A questão é outra e por duas razões:

a) Um texto faz-se diferentemente quando nos dirigimos a uma sector mais restrito (onde contamos com uma cumplicidade benevolente e o uso partilhado de um certo código léxico que é uma forma de linguagem tribal e o léxico castrense impunha-a fortemente) ou escrevermos para o domínio público (como é um blogue). Não porque se digam coisas diferentes mas porque se dizem de maneira diferente. Por exemplo, usei e abusei de alguma tentativa de humor estilo basófia que os militares entendem entre si porque usam e abusam dele, sabem dar-lhe o desconto, descodificando-o no sentido que ela, a basófia, tem uma vontade maior de aproximação comunicacional que de desejo de enaltecimento ou de levantar galões ou estatuto (o que, assim entendido, entraria no reino do ridículo).

Asssim, é natural que um e-mail para amigos e/ou camaradas não tenha o mesmo conteúdo expressivo que um post para um blogue. E constato, com desgosto meu, que os meus e-mails, recheados de uma basófia que se pretendeu apenas como técnica de envolvimento, despiste e aproximação (ao estilo de um clássico golpe de mão), quando publicados no blogue adquirem o tom insuportável da vaidade exibicionista se não de uma arrogância do armar aos cucos na vitimização (como se cada um dos outros não tivesse passado tanto ou pior que eu).

b) A quantidade de textos meus no vosso/nosso blogue, ultimamente publicados, confere-me um protagonismo que eu sinceramente não desejo nem aceito. Tenho o meu próprio blogue, em que terei o maior prazer nas vossas visitas, críticas, sugestões e comentários. Esse é e continuará a ser (enquanto dele não me fartar) o meu espelho narcísico de escrita e de descarga de humores e memórias. Está assinado, tem o meu nome, é "só meu", ali planto as minhas vaidades, heresias e sentenças, ali espeto as minhas lançadas contra os moínhos de vento que descortino no horizonte, sejam eles reais ou imaginários.

O vosso/nosso blogue deve voltar a ser o que era - um espaço de conviviabilidade na memória e na estima, um lugar de catarse colectiva, um ponto de encontro, um espaço plural, sem outra prevalência que a do seu coordenador por força do seu mister de gerir a casa e dar-lhe rumo (e que sorte temos contado com o Luis Graça com disponibilidade para tal função). Assim, o vosso/blogue não deve transformar-se num Água Lisa (4) e deve voltar a ser o que foi e deve continuar a ser - um espaço de muitos em igualdade de estatuto de intervenção, contributo e relevo. Ou seja, um espaço de estima colectiva e não um palco de vaidade para um, dois ou três.

Assim, peço-vos que me permitam umas férias sabáticas, recuperem a vossa dinâmica inicial para eu recuperar o à vontade de partilhar convosco a fruição deste bonito projecto colectivo. Mas, por favor, concedam-me uns tempos de plateia, devolvendo-me o prazer de vos ler e desfrutar das vossas imagens.

Abraços para todos.
João Tunes

PS - Valendo-me da sabedoria dos gatos relativamente à água, informo que este mail já foi pensado para lhe ser dado qualquer uso. Façam dele, portanto, a utilização e difusão que bem entenderem.

Guiné 63/74 - P178: Recordar é viver ou...a memória de elefante do Humberto Reis

1. Texto do Humberto Reis:

Demorou a abrir mas já consegui ver as fotos [do Luís Moreira]. Não me parece estar o Fernandes [ex-Fur. Mil. da CCAÇ 12, que também fora destacado, para trabalhar no reordenamento de Nhabijões com o Moreira] em nenhuma delas, apesar dos anos já passados.

© Luís Moreira(2005).

Uma autogrua, da engenharia militar, de marca Galion, a (des)embarcar vacas no cais de Bambadinca, rio Geba Estreito (L.G.).

Foto de 1970, gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf. Mil. Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).


A Galion a carregar vacas no cais fez-me lembrar o episódio dela no percurso do Xime para Bambadinca. A Galion veio numa LDG [ Lancha de Desembarque Grande] desde Bissau até ao Xime. E daí para Bambadinca ia pelos seus próprios meios (1). Passou bem pelo destacamento da Ponte do Rio Undunduma, mas quando chegou a meio da bolanha a estrada não aguentou o peso e cedeu. Resultado, a Galion desequilibrou-se e ficou meio enterrada na bolanha.

Julgo que isto se passou em Novembro de 69 (dia 24 ou 25 - aniversário do Tony) Tenho este episódio documentado mas, como era hábito naquele tempo, está em diapositivo (em português slide, como dizia o saudoso Fernando Peça) e não em fotografia.

© Luís Moreira(2005). A Galion a operar no cais (um pontão de madeira!) de Bambadinca... O Rio Geba era navegável até Bafatá, mas do Xime para cima o curso do rio, sinuoso e mais estreito, só permitia a navegação de pequenas embarcações militares (LDM, LDP, lanchas) ou civis (por exemplo, da Casa Gouveia) (L.G.)

Lembro-me que foi dos primeiros episódios a que assistiu o nosso amigo, na altura capitão periquito da CCS [do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70], o Figueiras, (co-organizador do habitual almoço anual que este ano que teve lugar na ria Formosa) que alguns conheciam como tenente da carreira de tiro de Tavira.

[Enfim,] mais um recuerdo para o blogue e um abraço para a rapaziada.

2. Comentário meu (L.G.):

Humberto: O Tony diz que tu tens memória de elefante e eu rendo-me à evidência… Tu lembras-te de coisas do arco da velho que se passaram no cu de Judas… E se havia um sítio, no mundo, que podia ser o cu de Judas, a Guiné era seguramente esse sítio, esse buraco… Lá tudo se enterrava: na lama, no tarrafe, no rio, nas bolanhas e lalas, nas picadas, nos buracos das minas… E quase a sempre a cabeça... no chão! Até a mastodonte da Galion se enterrou no seu passeio do Xime a Bambadinca! … Essa estória merece ser contada no blogue. Se tiveres mais pormenores, acrescenta…

Mas já agora: lembras-te dos filhos da puta dos turras (ou eram tugas ?) que um dia te viraram o quarto do avesso, na tua ausência ? Só que nunca cheguei a saber porquê, e logo a ti… Este foi, seguramente, um casos mais graves de quebra de segurança de que tive conhecimento na Guiné: esses turras, mascarados de tugas, entraram pelo aquartelamento adentro, presumivelmente armados, dirigiram-se ao teu quarto (nas calmas, nas barbas das sentinelas!) e viraram tudo do avesso, deixaram tudo num pandemónio !... Só não atearam fogo à cama e aos lençóis!...

Será que terias a cabeça a prémio como o outro, o nosso camarada do outro lado do rio ? Mas quem é que não gostava de ti, em Bambadinca e arredores ?... Enfim, uma história que ficou mal contada ou está para contar ao fim destes decénios todos…

Mantenhas (Já não me lembrava do termo em crioulo para a nossa palavra saudações… Obrigado, Paulo).


3. Texto do Tony (António Levezinho), também da CCAÇ 12:

Que ninguém duvide! Na verdade o Humberto tem mesmo memória de elefante.

Foi todo o dia 24 de Novembro [de 1969]na tentativa desesperada de desatascar a Galion antes que a noite caísse. Os esforços revelaram-se infrutíferos e assim não tivemos outra alternativa que não a de convidar a mosquitada da bolanha a juntar-se a nós para comemorarmos todos (em silêncio, como a situação de emboscada impunha) o meu 22º aniversário.

À falta de Champanhe serviram-se rodadas de Repelente que, a julgar pela sua ineficácia, funcionou como uma iguaria de entrada para os mosquitos, antes que estes chegassem à nossa pele, já depois de perfurarem até aquela capa de borracha que, creio, chamávamos ponche.

Peço-vos que não me comparem com o Humberto em termos de capacidade de memória para estas coisas da guerra.

Recordo este episódio apenas porque se tratou da celebração mais picante que eu alguma vez tinha experimentado ao longo de toda a minha carreira.

Assim, o seu a seu dono. Quem tem mesmo memória de elefante é o Humberto (Reis).

Um abraço, Malta !

P.S. - Já relativamente ao que aconteceu ao seu quarto (que por acaso tambem era meu) não faço a menor ideia. Devolvo assim a pergunta ao Luís (Graça)...

© Luís Graça (2005)

Da esquerda para a direita: os ex-furriéis milicianos Levezinho, Reis e Henriques, da CCAÇ 12, no Bar de Sargentos, em Bambadinca. Uma velha amizade que, no meu caso, começou no Campo Militar de Santa Margarida... Fico feliz, por trinta e tal anos depois, estarmos aqui os três a blogar...

Aproveito para acrescentar que os aniversários do Tony (Levezinho), no TO da Guiné, foram sempre celebrados em condições, no mínimo, insólitas. Um dia destes, com tempo e vagar, prometo reconstituir os dias loucos (e trágicos) que se seguiram às copiosas celebrações do seu 23º aniversário (24 de Novembro de 1970, dois dias depois da invasão de Conacri e na véspera da Op Abencerragem Candente) (2) (L.G.).
_____________

Nota de L.G.

(1) Tratava-se de autogrua da engenharia militar que, julgo, veio para reforçar os parcos meios portuários existentes no cais de Bambadinca, por ocasião do ambicioso projecto de reordenamento de Nhabijões.

(2) Vd. post de 25 de Abril de 2005 >
Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)

segunda-feira, 19 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P177: Bambadinca e o Geba Estreito: fotos do Luís Moreira

© Luís Moreira (2005).

O Geba Estreito, junto a Bambadinca.

Foto de 1970, gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf. Mil. Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

Há dias o Luís Moreira mandou-nos "um album digital com algumas fotos que consegui recuperar do meu baú".
E acrescentava:

"Sei que são de 1970 e de Bambadinca ou arredores mas, tirando a minha pessoa, não consigo identificar os outros fotografados. Fraca memória (...). A maioria das outras que tenho estão em slide. Pode ser que algum fotógrafo as possa imprimir em papel".

Noutra mensagem posterior disse-me:

"Luís, podes fazer o que entenderes com as fotos. Quanto às notas também pensei nisso, mas nem dos nomes do pessoal me lembrava e quanto aos locais também não me lembro dos nomes.

© Luís Moreira (2005).

Arredores de Bamdabinca, tabanca do lado sul, na estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole.

Era aqui que se situava a famosa "missão do sono" (um antigo serviço de saúde, na área do combate e prevenção do doença do sono) (1) e onde todos os os grupos de combate da CCAÇ 12 montavam segurança próxima, de noite, para que os senhores de Bambadinca pudessem dormir descansados... (L.G.)

"Penso que numa das fotos está a tabanca que ficava à saída de Bambadinca quando se ia para o Xitole; noutra penso que é um braço do Geba um pouco acima do cais (onde estão as canoas); e a junto à GMC devem estar as pessoas que referes [pessoal militar da CCS do BART 2917 afecto ao reordenamento de Nhabijões, bem como da CCAÇ 12], mas já não referencio nenhum deles.

"Noutra [foto] estou eu a subir ao depósito de água e ainda aparecem as do cais com o processo muito próprio de carregamento do gado. A que está a cores deve referir-se a algum acontecimento local de que não me recordo. Naquela em que estou ao pilão, reconheço o alferes de transmissões do meu batalhão, mas por mais voltas que dê à cabeça não me lembro do nome dele. Como vês a minha memória está péssima".

© Luís Moreira (2005). População local à frente ao posto administrativo de Bambadinca, que ficava dentro do perímetro do aquartelamento, sede do BART 2917 (1970/72).

Presumo que esta foto seja de finais de 1970 e que a população aqui representada, com ar festivo, seja do reordenamento de Nhabijões e, portanto, balanta. Pelo traje, não era população islamizada (mandinga ou fula). Repare-se que não há homens : o único que se vê deveria ser algum funcionário do posto. O chefe de posto de Bambadinca era cabo-verdiano. Nunca o vi (L.G.).

Quanto à história da mina (de que o Luís Moreira foi vítima, no dia 13 de Janeiro de 1970, à saída do reordenamento de Nhabijões), "depois conto um episódio que se passou na messe de oficiais de Bissau já depois de eu ter passado aos serviços auxiliares, cujo interveniente principal foi o major Barros e Bastos e que se refere exactamente ao rebentamento da tua mina" (outra mina a/c que rebentou duas horas depois, no mesmo local, e em que a vítima, desta vez, fui e o meu grupo de combate)...
__________

Nota de L.G.

(1) Em 1932, foi enviada à Guiné uma Missão para o estudo e combate à doença do sono, conforme se pode ler na resenha histórica da Escola de Medicina Tropical (criada em 1902), hoje Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa. Não sei se a antiga "missão do sono" em Bambadinca estava relacionada com este projecto de 1932 ou com as estruturas que as autoridades sanitárias coloniais criaram posteriormente no âmbito da luta contra a doença do sono. Possivelmente era um simples posto médico desactivado, ligado a este programa de saúde. O edifício estava completamente vazio e degradado, agora transformado em caserna. A saúde pública colonial deve ter entrado em colapso com o início da guerra, em 1963. O único pessoal de saúde que dava (algum) apoio ás populações locais eram os nossos enfermeiros e médicos militares. E a propósito, o que será feito do nosso muito querido amigo e camarada, o ex-furriel Mil. Enf. João Carreiro Martins, mais conhecido, a nível de caserna, como o "bolha de água" ? Vimn a encontrá-lo na década de 1990: era enfermeiro-chefe no Hospital Curry Cabral, chegou a ser meu aluno (num curso de pós-graduação em administração de serviços de enfermagem) e há tempos disseram-me que já estava reformado.

Guiné 63/74 - P176: "Forsa di pis sta na iagu" (ditado crioulo) (Paulo Salgado)

Trocando a espada pelo arado, ou melhor, a G3 pela pá e pela enxada...
Pessoal da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) nos trabalhos do reordenamento de Nhabijões, um conjunto de aldeias sob duplo controlo, junto ao Geba Estreito, pertencente ao posto administrativo de Bambadinca, sede do Sector L1, Zona Leste.
© Luís Moreira (2005). Foto de finais de 1970 gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-alf. mil. sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).
__________

O texto de opinião que se publica a seguir (Importância e papel da cooperação) é da autoria do Paulo Salgado, o mais recente membro da nossa tertúlia.

Recorde-se que, para além de antigo Alf. Mil. da CCAV 2721 (nos idos tempos de 1970/72, lá para os lados do Olossato, a sudoeste de Farim, e depois em Nhacra, a nordeste de Bissau), o Paulo é também, hoje em dia, um cooperante activo, solidário e empenhado, na Guiné-Bissau no domínio da administração de serviços de saúde.

O Paulo Salgado é, seguramente, uma voz autorizada para nos falar desta tragédia imensa em que vive a África de hoje, com muitos países à beira do desastre humanitário... Talvez ele nos possa ajudar a pensar melhor estes problemas. E sobretudo talvez ele nos possa ajudar a aprender a ajudar os nossos amigos da Guiné. Se não os pudermos ajudar hoje, então nada valeu a pena: a nossa luta e a luta deles, a lusofonia, a nossa história em comum, a CPLP, os protestos de amizade e cooperação dos nossos representantes políticos...

Porque a esperança deles é também a nossa esperança: não há mais mundo, não há futuro para a humanidade, para os do Norte e os do Sul, os do Oeste e os do Leste, se a grande maioria dos africanos (incluindo os guinéus da nossa antiga Guiné) continuar a viver com menos de 1 dólar por dia...

E quando falamos de guinéus (com afectividade, sem paternalismo de ex-colonialistas...), falamos também dos antigos militares da Guiné que combateram sob a nossa bandeira e que foram nossos camaradas, em Contuboel, em Barro, em Bissorã, em Bambadinca, em Piche, no Pelundo, em Catió, por todo o lado... L.G.


1. Camaradas (*)

Temos muitas histórias para contar.

Não devemos esquecer - nunca (alguns estão bem avisados, pelo que se lê) - que desgraçadamente na Guiné, em Moçambique, no Burundi, na Etiópia, na ÁFRICA, se morre. E esta fome pode alastrar-se...

Salgado

(*) Termo muito rico, para designar companheirismo, solidariedade, aproveitado pela tropa...

2. Importância e Papel da Cooperação

“Forsa di pis sta na iagu” – ditado crioulo. A força do peixe está na água; ou seja: as nossas capacidades e forças residem no trabalho e na perseverança

É razoável reconhecer a importância crescente da cooperação internacional – que mais não fosse pela forte razão de que as bolsas de subdesenvolvimento também entram na aldeia global que é a globalização; e, portanto, os países ricos sentem-se obrigados a enfrentar e analisar este fenómeno, e procurar soluções para os problemas que o subdesenvolvimento gera.

Destaco, em particular, os problemas que se vivem na África:

(i) o empobrecimento, a miséria, o abandono das terras, a fuga de uns países para outros;

(ii) a desaceleração do investimento – a ajuda aos países africanos está actualmente nos 8 cêntimos por cada 100 dólares!;

(iii) a mutilação da cidadania, expressão que explica a redução drástica dos direitos mais elementares dos cidadãos de muitas zonas do Mundo, em especial da África.

Estamos confrontados com a explosão das desigualdades e com o aumento da exclusão social: mais de 2 biliões de pessoas têm um rendimento inferior a 2 dólares por dia! Bastará compulsar o Relatório do Milénio das Nações Unidas para pasmarmos face à realidade traduzida pelos indicadores de desenvolvimento…

Qualquer recusa na ajuda mais básica a África é colocar em perigo, cada vez maior, os países pobres e – imagine-se! – a própria segurança dos países ricos.

Caros camaradas, vivemos uma guerra; não queremos que a fome e a miséria matem, por incúria e desprezo dos poderosos, milhões de crianças – aquelas crianças que nos habituámos a ver sorrir…

Paulo Salgado

domingo, 18 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P175: Tabanca Grande: Paulo Salgado, ex-Alf. Mil. da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72)

Mensagem enviada ao responsável deste blogue pelo Dr. Paulo Salgado, administrador hospitalar (Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia):

1. Caríssimo Luís Graça,

Penso que nos cruzámos na ENSP [Escola Nacional de Saúde Pública]- por volta de 1982... Do outro lado da mesa [estava] o assistente, deste o aluno em A. H. [Administração Hospitalar]. Foi assim, não foi?

Mas nunca tivemos oportunidade de conversar ... o raio do peso institucional...da Escola.

Vou gostar de participar neste blogue.

Fiz a minha comissão no Olossato e Nhacra entre Abril de 1970 e Março de 1972.

Fiz uma segunda comissão em 1990/92, como cooperante na área da saúde. Matei fantasmas; chorei no Olossato; ri-me com as crianças que rodearam a minha viatura; revisitei o Suleiman que me reconheceu passados vinte anos!!! E depois vieram alguns homens grandes...e imensos...

Tenho ido várias vezes a Bissau desde 1996 - os amigos que tenho feito...! As desilusões que tenho sentido da parte dos guineenses. Mas também a esperança.

Irei fazer outra comissão de um ano, dentro de poucos dias...! Loucura? Utopia? Talvez.

Mas sejamos claros: indo de encontro aos objectivos que definiste: olhar a África e para África só faz sentido no plano de um vero e recíproco respeito.

Louvo-te a iniciativa. Agradeço com muito carinho. Mas sem lamechices.

Pois nós fizemos parte de uma História que não está contada. Há muitas histórias e estórias, encontros e desencontros; há quem queira olhar para trás e compreender; há quem deseja nem sequer pensar no que passou e no que se passou. Compreendamos todos. Pois somos diferentes.

Mantenhas.

Paulo Salgado
Alf. Mil.
CCAV 2721
Olossato e Nhacra

2. Caro Paulo: 

Claro que te (re)conheço. Fui dar uma vista de olhos às fotos dos alunos do XII Curso de Administração Hospitalar (1982) e lá estavas tu, com o visual típico da época... É um curso de gente ilustre... Perdi-te o rastro, mas sei que continuas a manter boas relações com a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). Eu, na época, não era sequer docente da ENSP, mas apenas um simples prelector convidado.

Fico muito sensibilizado pela tua sensibilidade, sinceridade e franqueza. Vais, com certeza, gostar de fazer parte desta tertúlia e nós já ganhámos mais um camarada, ex-combatente da guerra colonial (ou do ultramar, como queiras), que tem, além disso, no seu currículo, uma larga experiência de cooperação com a Guiné-Bissau e uma particular estima e amizade para com o povo guineense...

Não precisas de pedir licença para entrar: é um privilégio ter-te connosco! Sê bem-vindo. Reforço as tuas palavras: de facto, "fizemos parte de uma História que não está contada". E ninguém vai pôr em causa o direito a contarmos as nossas próprias estórias... Ganhámo-lo, muito antes do 25 de Abril e da reconquista da liberdade de expressão e da democracia: ganhámo-lo no Olossato, em Nhacra, em Bissorã, em Barro, em Bigene, em Barro, em Geba, em Bambadinca e em tantos outros lugares "exóticos" onde vivemos, sofremos, combatemos e resistimos; nos mais diversos sítios da Guiné desde o Xime ao Xitole, de Canssissé a Madina do Boé, de Guileje a Guidage...

Por fim, não percas a tua utopia (do grego ou-topos que tanto quer dizer lugar nenhum como lugar perfeito)... A utopia existe e não existe... É por isso que a perseguimos... Bom regresso, em breve, à Guiné. Vai dando notícias (e mandando umas fotos digitalizadas...). Vou-te pôr na nossa e-mailing list... Mantenhas!

sábado, 17 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P174: Blogar é como voltar ao Bravo, Mike e Tango (João Tunes)

O João Tunes volta à carga, ou não tivesse sido ele, nos idos tempo de Bissau, Pelundo e Catió (1969/71), um bravo, dedicado e competente homem das transmissões (logo, da comunicação):

Humberto,

Ora bem, que isso de porras cada um sabe da sua. E o orgulho nela é inversamente proporcional à progressão na idade. Mas, como dizia o outro, cada caso é um caso. Eu sei do meu e só desejo que o teu desconsolo seja menor que o meu com o qual vou lidando com a ajuda que a lembrança das bajudas me vai dando (a merda da idade é que um gajo cada vez vai vivendo mais de lembranças...).

A beleza (perturbante) das bajudas (balantas) de Nhabijões, perto de Bambadinca (1970).

© Luís Moreira (2005).

Foto gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-alf. mil. sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

(...) É, pá, fica esclarecido que não sei quem era esse tal Capitão Moás [da companhia de Polícia Militar] (1). E que não o aturei, isso é mais que garantido. Eu, no Niassa, não aturei ninguém. Tinha a obsessão de esquecer que estava ali, apenas. Aturaram-me mas não devo ter dado muito trabalho pois pouco banzé fiz dado que estive sempre em estado semi-adormecido.

Deram-me uma messe de luxo (aquilo fiava fino com iguarias para os oficiais, lagosta para aqui e acepipes para acolá, até parecia um cruzeiro no Mar Egeu para as damas do MNF [Movimento Nacional Feminino]) e alcool etílico a granel.

Volta e meia, espreitava na amurada (como só via água e a água é favorável aos detestados batráquios, fazia meia volta volver) e dava uma piscadela de olho ao porão onde estava a malta soldada a roncar ou a vomitar com o enjoo e as cervejolas.

© Manuel Ferreira (2005) > A caminho da Guiné no Niassa (finais de 1971)

Foto gentilmente cedida por Manuel G. Ferreira, ex-soldado condutor auto, da CART 3494 (1972/74), aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74), pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.

Depois, perguntava aos bacanos dos meus furriéis se estava tudo nos conformes, eles diziam sempre que sim (convencidos ou não, para o caso também não interessava porque nem se podia lerpar dali nem eu estava em condições de resolver ou ajudar fosse o que fosse e, apesar de semi-adormecido, dava para ver que os furriéis estavam, pelo menos, tão bebidos quanto eu, portanto estavam bem e, por extensão, os cabos e soldados ainda haviam de estar melhores) e regressava aos meus afazeres profissionais do king e das rodadas.

Quanto à minha perícia em transmissões, ela é um facto confirmável pelos anais lavrados quando da minha estadia na Guiné. É um facto que, lá, os rádios, por norma, funcionavam mal. Muito mal. E eu, mais que ninguém passava-me dos carretos com isso (sempre tive a mania de fazer tudo bem feitinho, vício perfeccionista que me vem de pequeno quando apanhava carolo por engatar a tabuada) mas havia sempre uma desculpa oficial que nos tirava de todas as enrascadelas - a merda da Guiné tinha água a mais e as massas de água lixavam os caminhos das ondas.

Assim, se as coisas estavam catitas, a malta das transmissões andava toda inchada; quando dava para a chiadeira sem atino na sintonização, a culpa era do excesso de água dos rios e das bolanhas. Pelo que, dados os descontos de vaidade, as coisas estavam bem por mérito nosso e mal por demérito alheio e devido aos caprichos da Natureza.

E tanto me convenci (isto dos caminhos da auto-estima é do caraças) que era bom em transmissões que, desde que existe a internet, me tornei fã cá da coisa. E, para mim, blogar é como se voltasse ao Bravo, Mike e Tango. Mal comparado, mas olha que é. A sério. Escuto.

Abraço do João Tunes
________

Notas de L.G.:

(1) Referido pelo Humberto Reis num post anterior, com data de hoje > Guiné 63/74 - CXCII: Os nossos (des)encontros: do Niassa ao Pelundo, passando por Bissau .

Guiné 63/74 - P173: Antologia (19): os 'remorsos de guerra' do tenente Tunes

Post do João Tunes, publicado em 7 de Abril de 2004, no seu blogue de então, o Bota Acima, e aqui reproduzido com a devida vénia (diga-se, entre parêntesis, que é uma peça de fino humor de caserna que eu, blogador-fora-nada, quero compartilhar com os meus queridos tertulianos; espero que o João Tunes, aliás, ex-tenente miliciano Tunes, já tenha sido perdoado, ao fim destes anos todos, por quem tem a competência de perdoar as ofensas feitas às mulheres, em geral, e às senhoras, em particular):

Tropecei nas Senhoras do Movimento Nacional [Feminino] por duas vezes. Eram uma espécie das Tias de hoje (Lili Caneças lá não faltaria, estou convencido disso), normalmente casadas com dignatários do regime salazarista-marcelista. Ocupavam o tempo a acarinhar a rapaziada que ia para a guerra colonial ou já lá tinha batido com os costados.

Na primeira vez, estava eu perfilado e em sentido, comandando o meu pelotão, no Cais de Alcântara, a aguardar o embarque no Niassa que nos ia levar para a Guiné. Imaginem o estado de espírito. As famílias amontoavam-se nos varandins da Estação a acenar com lenços porque as despedidas estavam feitas. A tropa em formatura a gramar o discurso patrioteiro de um General qualquer. As lágrimas a caírem por dentro. Cada um a olhar de soslaio para os varandins, com uma tristeza infinita nos olhos ao ver a bruma dos lenços a acenarem sem se distinguirem os rostos. E uma raiva contra a sorte do destino a subir-nos até à garganta.

A certo momento, avançam as senhoras do MNF [Movimento Nacional Feminino], todas com aspecto de terem vindo directamente do cabeleireiro, sorrisos afivelados como os que fazem as meninas de um qualquer balcão de recepção, com saquinhos de pano a tiracolo para oferecerem a cada militar do Império um maço de cigarros de marca Aviz. Eu olhei o rosto da senhora que se postou na minha frente e senti uma navalhada da hipocrisia da situação em estar a ver aquela cara e não os rostos que eu queria ver mas não distinguia entre os lenços dos varandins.

A senhora entende-me um maço Aviz e diz-me sorridente “parabéns senhor alferes, por ir defender a pátria”. Senti a raiva crescer-me. Mas tinha que estar perfilado e em sentido. E tinha uma data de homens sob o meu comando. Crispei os dedos sobre o punho da arma.

Disse-lhe entre dentes como um sussurro, não perdendo a compostura na formatura: “meta o Aviz na cona e desapareça-me da vista!”. A senhora circulou para junto de outro militar, conservando o sorriso do protocolo. Já devia estar habituada. Tinha mesmo vocação para aquelas cerimónias.

A segunda e última vez que contactei o MNF, foi no primeiro Natal passado na Guiné, em que a malta do Pelundo teve direito à visita da Presidenta da coisa, D. Cilinha Supico Pinto em pessoa. Ela foi lá numa visita ultra-rápida, demorou uns minutos a distribuir discos da Amália Rodrigues a cada militar e zarpou para o helicóptero. Os militares ficaram atónitos, para que é que queriam o disco se ninguém tinha gira-discos?

Quando o helicóptero se preparava para subir, a malta já se tinha recomposto da surpresa e desatou quase toda a correr para o heliporto improvisado e, ainda o heli tinha as rodas no chão, a discaria da Amália subiu aos céus do Pelundo transformados em discos voadores.

Foi a escolta merecida que a D. Supico teve na sua viagem de regresso do Pelundo. A tropa ficou fascinada com aquela nuvem de discos da D. Amália que pareciam querer tapar o céu e desatou toda aos gritos “Oh Supico, mete-os na cona!”. Ela deve ter sorrido. Já devia estar habituada. Tinha mesmo vocação para aquelas cerimónias.

Com o passar dos anos, vêm-me os remorsos. Tantas ofensas a tão respeitáveis Senhoras. Sabendo todos que as suas pudicas partes anatómicas não foram feitas para armazenarem maços de tabaco ou discos, mesmo que sejam da marca Aviz ou transportem a voz da Amália.

Espero bem que outras prestações gloriosas as tenham compensado dos insultos da tropa chateada. Ainda para mais, fomos, com o apoio delas e dos seus esposos, defender a pátria e o império. Felizes, fomos. Patriotas também. Como o caraças. Só que, às vezes, as palavras resvalavam para a ordinarice. Acontece. As minhas atrasadas desculpas, na parte que me toca.

Guiné 63/74 - P172: Os nossos (des)encontros: do Niassa ao Pelundo, passando por Bissau (João Tunes)

1. Texto do João Tunes em resposta à mensagem de boas-vindas do Humberto Reis:

Ora bem, Humberto, a coisa começa a compor-se (isto é, começo a sentir-me em casa, o que não podia deixar de acontecer mais dia menos dia).

Afirmativo - confirma-se que eu, o Humberto e o Luís (mais uma data de outros), participámos no mesmíssimo cruzeiro do Niassa rumo a Bissau. Antes, estivemos portanto na mesma parada de despedida no cais de Alcântara , a que me refiro num post [meu, publicado no Bota Acima, em 7 de Abril de 2004].

Durante a viagem, confesso que não vi ninguém - comecei a emborcar à partida e só desliguei a torneira do whisky à chegada. E, pelos vistos, separámo-nos logo que metemos os pés em terra. O meu Batalhão só foi para o Pelundo (1) dois meses mais tarde, até lá foi-nos cometida a ocupação do Quartel de Santa Luzia em Bissau (portanto no sentido oposto a Brá) e foi para aí que fomos logo encaminhados.

Guiné > Bissau > Quartel de Transmissões, junto à estrada de Santa Luzia (1972).

© Sousa de Castro (2005).

Foto gentilmente cedidas por Sousa de Castro, ex-1º cabo radiotelegrafista, da CART 3494 (1972/74), aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74), pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.

Foi, aliás, um começo de comissão do caraças - na primeira noite, o paiol do quartel explodiu (não se soube se por descuido ou por sabotagem) e imagine-se a sensação de logo na primeira noite de Guiné apanhar-se com um paiol dentro do quartel a ir pelos ares (do género de grito de periquito: "Ai minha nossa senhora que aqui não passo do primeiro dia...").

Talvez ainda pior - no segundo dia, calhou-me estar de oficial de dia e os cozinheiros da CCS estrearem-se nas suas lides; fizeram borrada (por inexperiência porque antes tinham sido de todas as profissões menos de artes em culinária) e salgaram bem a comida, então os veteranos que estavam no quartel à espera do regresso não estiveram pelos ajustes e fizeram-nos logo ali a recepção com um levantamento de rancho.

Como era o oficial de dia a coisa sobrou para mim e, consultado o segundo comandante, este não esteve com meias-medidas, a ajuda que me prestou foi perguntar-me para o que é que eu queria a pistola que tinha pendurada no cinto, lá tirei a pistola e meti-lha nas mãos e recomendei-lhe "vá lá então o meu major e desate a matá-los"; o homem acalmou (com um "vá lá e veja se os convence..." e sem que arredasse um pé para tentar ajudar a resolver o quer que fosse), eu voltei a recolher a pistola e, mais calmo, fui falar com o pessoal, apelei-lhes à solidariedade com os camaradas recém-chegados, o que não foi fácil (uma das piores impressões que trago da Guiné era a forma como à medida que se iam reforçando os laços solidários entre os militares do mesmo quartel se iam perdendo os laços com os outros militares de outras unidades e, com o passar do tempo, desenvolvia-se um rancor sádico crescente dos veteranos para com os periquitos pois a noção do correr do tempo em falta para a hora do regresso era ampliada pela sensação que aos acabados de chegar ainda lhes faltava a eternidade para daquilo se livrarem se se livrassem) e lá consegui o sábio compromisso de a comida salgada ser retirada e improvisarem-se umas salsichas com ovos estrelados e batatas fritas.

No final da minha comissão, já vocês tinham regressado (dado que fiquei mais três meses como recompensa extra), calhou-me, vindo de Catió (esse batalhão também fora rendido), prestar serviço no Quartel de Adidos de Brá e aí apanhei várias tentativas de veteranos (2) quererem gozo com levantamentos de rancho , inventados só para chatearem mas, nessa altura, já eu era veterano, passado dos carretos e estava por tudo (no final, quando todos os meus camaradas dos dois batalhões em que estive já tinham regressado, cheguei à fase de "tanto se me dá ir como ficar e que tudo vá para a puta que os pariu" e que seria uma sublimação extremada do "tirem-me daqui", ou seja, estava tão farto da Guiné que já me faltava a vontade de sair ou de ficar) e tudo era resolvido em duas penadas a desmontar a basófia (a malta no mato comia o que havia, mas quando chegava a Bissau armava-se em fina e esquisita como vingança para com os "gajos que tinham o cú assente em Bissau", esquecendo-se que, muitas vezes, se enganavam no número da porta e estavam a lidar com quem as tinha batido mais que os finaços).

Agora que já estendi o guardanapo, seguem abraços para todos os ilustres tertulianos.

2. Comentário do Humberto Reis:

Porra!

Quem fala assim não é gago. Só tenho pena que tenhas aturado o Capitão Moás da companhia da PM que foi connosco durante o cruzeiro até Bissau.

Estás mais que admitido, falo por mim mas julgo que a maioria concorda. Precisamos de gente nova pois eu sou um miúdo ao pé de ti (sou colheita de 1946).

Mais uma vez um abraço de Boas Vindas e Boas Escritas, pois já vimos que, além da especialidade de Transmissões, também tens jeitinho para deixar a pena correr, ao sabor do imprevisto, sobre o papel.

Humberto
_________

Notas de L. G.

(1) Vd. post de 11 de Agosto de 2005, um texto de João Tunes, anterior à sua entrada para a nossa tertúlia > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo)

(2) A expressão mais vulgar, no nosso tempo, na Guiné, era velhice, velhinhos, como oposto dos periquitos, os mais novos.

sexta-feira, 16 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P171: Boas vindas do Humberto, madrugador, ao novo tertuliano João

© Manuel Ferreira (2005) Guiné > Zona Leste > Povoação e aquartelamento do Xime > O campo de futebol (!)(1)(1972)

Foto gentilmente cedida por Manuel G. Ferreira, ex-soldado condutor auto, da CART 3494 (1972/74), aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74), pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.


1. Texto de Humberto Reis (ex-Fur. Mil., ex-CCAÇ 12, Bambadinca, 1960/71), que hoje madrugou (mensagem enviada às 7h48).

João Tunes:

Bem vindo a esta desorganização bem organizada pelo Luís Graça.

Estive a ler a breve descrição da tua apresentação e veio-me à memória de que também eu e o Luís fomos para a Guiné em Maio de 69. Se calhar fomos no mesmo barco de cruzeiros, o Queen Mary 2, também conhecido por Niassa, que saiu de Lisboa em 24 de Maio e chegou à Guiné em 29. Desembarcámos a 30 e fomos direitinhos para um resort que havia para os lados de Brá, denominado quartel de Adidos.

Aí, no sistema de TI (tudo incluído, até a bicharada), fomos comidos pelos mosquitos durante 3 noites, antes de nos meterem numa LDG com destino ao Xime. Feita a eclusagem para autocarros com ar condicionado, a mim calhou-me um daqueles carros chamados matador, dos tais que tinham uma abertura circular no tecto da cabine, sobre o lugar do chefe de viatura e que serviam para rebocar peças de artilharia, e lá fomos felizes e contentes, passando por Bambadinca e Bafatá, a caminho de Contuboel.

Esta breve descrição foi só para te descontrair e te sentires bem no meio desta rapaziada nova, na casa dos 50 e muitos (...).

2. Segunda mensagem do Humberto Reis, enviada ás 8h28:

Peço desculpa a Vossa Senhoria, meu tenente, pelo lapso que cometi de não o ter tratado adequadamente, como manda o RDM, na mensagem de Boas Vindas que lhe enviei anteriormente.

Aqui fica o meu pedido formal de desculpas perante a formatura geral desta pequena, MAS BOA, unidade militar de Bloguistas.

Dado que o Sr. Tenente é um rapaz novo, de quase 60 anos, como nós todos, já está na reserva desde os 45, pelo que agora passará a usar o seu título civil de Sr. Eng. Por outro lado, como aqui somos todos uns pindéricos de uns ex-militares, deixámos os títulos académicos na gaveta e utilizamos o que vem no BI, não fosse alguém querer-nos explorar pedindo um Projectito grátis a um Sr. Eng, uma consulta médica ao Sr. Dr. com preço reduzido e sem recibo, ou uma cunha do Sr. Prof. Dr. para uma entradita na Universidade, mesmo com média de 10.

Tudo isto serve para descontrair e desopilar que é o que nos faz mais falta.
Mais uma vez BEM VINDO ao seio, não à maminha, desta família. Um abraço e Bom Dia a todos.

Humberto Reis

3. Comentário do João Tunes (antes do almoço, que os ex-combatentes da Guiné e de outras guerras por enquanto ainda vão almoçando):


É, pá, obrigado, que essa do Vossa Senhoria já se me tinha varrido da memória.
E fica esclarecido que, sendo rapaz novo, não tenho "quase 60 anos". Esses já lá vão que os 61 estão a bater à porta (fui para a Guiné com quase 25 anos pois tinha tido adiamentos para concluir o curso).

E como a velhice é um posto, se não me querem considerar como tenente (bolas, era a talvez única oportunidade de saborear o tratamento!), ao menos devem-me o cumprimento Vossa Senhoria, o Nosso Mais Velho. Ou nem isso? Não tem problema. Fique, como deve ficar, o tratamento pelo nome e por tú que isto não é malta de modas.

quinta-feira, 15 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P170: João Tunes, o novo tertuliano

Texto de João Tunes, novo membro da nossa tertúlia:

Camaradas,

Agradeço terem-me aceite na tertúlia. Tentarei merecer a vossa meritória obra e contribuir para ela com os meus modestos préstimos.

Passo a fornecer os dados "curriculares" para que figure na galeria dos ilustres "tertulianos":

- Nome: João Tunes

- "Posto": Alferes Miliciano de Transmissões de Infantaria durante a comissão na Guiné, promovido a "Tenente Miliciano" quando na disponibilidade (pelo que, considerando o devido respeito aos galões e aos procedimentos militares, deve ser este o posto em que me deve ser dado tratamento).

- Unidade: Várias (por favor não me peçam para lembrar os números)

- Locais: Bissau-Pelundo-Catió-Bissau

- Tempo de Comissão: Maio 1969/Maio 1971 (fiz 24 meses de comissão pelo facto de ter sido punido com 3 dias de prisão no Pelundo e que teve como consequências suplementares: 3 meses de comissão "extra", perda de direito a gozo de férias - medida depois revogada - e mudança imediata de unidade com transferência compulsiva de uma zona "calma" para a então considerada "pior" - Catió).

- Avaliação pela instituição militar:

- 3 dias de prisão (1 dia de prisão atribuído pelo Cmdt de Batalhão do Pelundo por "insubordinação" - ter-me recusado a cumprir ordem de bater num cabo prevaricador na hora de regresso a quartel com a agravante de, à ordem do TC "nosso alferes, vai ali o cabo ..., vá ter com ele e dê-lhe uma chapada", ter respondido "Eu não bato nem deixo bater nos homens que comando, bata-lhe vc se fôr capaz mas depois vai ter que se entender comigo de homem para homem". De seguida, a pena foi agravada pelo General Spínola para 3 dias de prisão com as consequências disciplinares conexas.)

- Louvor conferido pelo Cmdt de Catió (TC Mello de Carvalho) pelo desempenho das funções militares, disponibilidade para correr todos os riscos e participar em qualquer operação, mais valentia militar nas operações de penetração em território totalmente controlado pelo IN. Nota: este louvor, não me livrando do "reino do Nino" nem da extensão do tempo de comissão, proporcionou-me o bem supremo de ter podido recuperar o direito a férias que perdera pela punição e assim recuperar a oportunidade feliz de ver a minha filha Catarina que nascera dois meses antes e preparar-me para que as morteiradas do Nino, fizessem a mossa que fizessem, não me tirariam dos olhos a imagem do rosto da minha filha.

- Residência: Corroios (Seixal)

- Situação sócio-profissional: Desempregado (após 31 anos de actividade profissional como engenheiro químico na Galp)

- e-contactos:
mail - joao.tunes@netcabo.pt;
blogue - http://agualisa3.blogs.sapo.pt.

(...) Para todos, saudações amigas e camaradas do

João Tunes
_____________

Nota de L.G.:

Intem já tinha chamado a atenção de todos os tertulianos para um post fabuloso que o João Tunes, o nosso penúltimo tertuliano, escreveu no blogue dele – Água Lisa (3): Guiné-Bissau: Armas em sucata, memória viva... É a nosso respeito, de nós e dele. A única coisa que está a mais é um elogio à minha pessoa (não havia necessidade…): alguém tem que fazer estas tarefas... Todos podemos contribuir de mil e um maneiras: basta darem os vossos dois cêntimos de tempo para a tertúlia (dos ex-combatentes da Guiné)... De em vez em quando...

O João é um senhor gajo, que pensa bem e que escreve melhor, um homem de cultura, sensibilidade e talento. Aproveitei, já ontem, para lhe dar, mais uma vez, as boas vindas à nossa tertúlia.

quarta-feira, 14 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P169: Levar a "carta a Garcia" ou a redescoberta da Guiné (Luís Graça)


© Manuel Ferreira (2005) Guiné > Zona Leste > Aquartelamento de Mansambo > Refeitório (2) (1973)

Foto gentilmente cedida por Manuel G. Ferreira, ex-soldado condutor auto, da CART 3494 (1972/74), aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74), pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.

Amigos & camaradas de tertúlia:

Eles não me levam a mal se eu vos der conhecimento dos e-mails (e dos mimos) que trocaram nestes últimos dias... em privado.

Eles... são o Humberto Reis e o Marques Lopes. Se eles se zangarem comigo, pior para mim... Isto não serve, obviamente, de incentivo para o resto dos membros da tertúlia usarem e abusarem da magnanimidade do nosso camarada Humberto Reis. De qualquer modo, foi uma das coisas (bonitas) que a escola da guerra, lá na Guiné, nos ensinou: a sermos magnânimos e solidários... Simplificando: a isto chama-se simplesmente camaradagem!

7 de Setembro de 2005:

1. Amigo e Camarada Marques Lopes:

Aqui vai o painel com a divisão da Guiné nas 72 partes cujas cartas a 1/50.000 adquiri. Em Dez de 94 já me custaram 450$00 cada uma, conforme factura do (...) Centro de Documentação e Informação do Instituto de Investigação Científica e Tropical (...).

Humberto Reis

2. Amigo e camarada Humberto Reis

Mais uma vez os meus agradecimentos. Não vou comprar as 72 folhas, mas vou ver se consigo aquelas que te referi, a 16, a 17 e a 28. A tua informação é extremamente útil (...).

Marques Lopes

9 de Setembro de 2005:

3. Amigo Marques Lopes:

Necessito que me indiques um endereço para onde te possa enviar uma encomenda postal. Tomei a liberdade de tirar fotocópias, infelizmente a preto e branco, mas já dá para matares saudades e passares uns serões a ver por onde andaste, das cartas a 1/50.000 que gostavas de ter. Anexo também a tal "Declaração" da embaixada, que tive de obter para poder comprar as cartas (...).

Humberto Reis

4. Caro amigo Humberto Reis:

És sensacional! Claro que estou interessado nas fotocópias que tiraste e desta vez deixo-te os meus, desta vez, mais que muitos agradecimentos. Para o que estou a escrever são importantísimas, pois que me vão fazer lembrar ao pormenor todos os caminhos e locais e, por eles, também as situações, certamente. Quando enviares manda-me um papelinho com a indicação das despesas feitas com fotocópias (o transporte vejo pelos selos) bem como o teu NIB para eu te pagar.

A minha morada é (...).

Marques Lopes

12 de Setembro de 20045:

5. Amigo António:

As despesas das fotocópias são: uma rodada aqui, na messe, aos que estiverem aqui mais perto ( como de costume os que estiverem em operações no mato lerpam na bebida) quando vieres cá ao burgo com algum tempo disponível.

As despesas de correio são: duas rodadas em vez de uma.

Por último permito-me MANDAR-TE DAR UMA VOLTA (para não dizer pior) SOBRE A QUESTÃO DO PAGAMENTO. Só o prazer que já estou a sentir com a tua alegria em teres estas cartas já pagou tudo.

Vão seguir hoje mesmo pelo correio.

Um abraço e diverte-te a recordar o que de bom passámos naquela terra (não venham dizer que foi tudo mau).

Humberto Reis

13 de Setembro de 2005:

6. Amigo Humberto Reis

Cá recebi as cartas que me enviaste. Um dia que for aí abaixo vou-te pagar a atenção e amabilidade, e trabalho, que tiveste. Estão prometidas as duas rodadas!

É fenomenal como estes mapas nos avivam a memória... Há tempos escrevi um texto do blogue e falei na bolanha de Canhamina. Propondo mistérios e eventuais utilizações de nomes fictícios, o Luís Graça perguntou se esse nome alguma vez terá existido...

De facto não existe, mas porque eu o confundi com o nome verdadeiro. E o nome está na carta que me enviaste de Bambadinca, que apanha grande parte da quadrícula da companhia de Geba. Lá está CANHAGINA, a seguir a Sare Madina (que eu também não vira em mais mapa nenhum), no caminho que eu segui para Sinchã Jobel (1) (também bem colocada na carta) nos idos tempos da Op Jigajoga (2).

Vão-me ser grandemente úteis estas cartas.

O meu obrigado e um abraço.

Marques Lopes


14 de Setembro de 2005:

7. Amigo e Camarada António Marques Lopes:

É uma grande alegria para mim sentir o quão bom foi teres olhado para esses bocados de papel e reviveres 35 anos atrás. Se calhar vieram-te as lágrimas aos olhos por recordares coisas boas, que também as houve.

Não há problema nenhum por isso. Costumamos dizer que só os burros (de 2 patas) é que não choram. Quando em Bambadinca, 25 após ter saído de lá, fui reconhecido por uma lavadeira (e isso está documentado num vídeo que um camarada nosso, que foi comigo, fez) também chorei de alegria. Aquela terra foi o nosso habitat natural durante quase 2 anos, e a maioria daquela gente até tem saudades nossas. É por essas e outras coisas semelhantes, que andamos aqui a contactar uns com os outros. Eu chamo a isto "Saudades".

Temos de nos manter vivos e o Luís Graça vai mantendo este endiabrado blogue.

Um abraço,
Humberto
____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post,de A. Marques Lopes, de 30 Maio 2005 >
Guiné 69/71 - XXXVI: Na bolanha dá para pensar...

(2) Vd. post, de A. Marques Poes, de 30 de Maio de 2005 >
Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

terça-feira, 13 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P168: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)



Guiné > Zona Leste > Aquartelamento de Mansambo > Refeitório (1)(1973)

Foto gentilmente cedida por Manuel G. Ferreira, ex-soldado condutor auto, da CART 3494 (1972/74), aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74), pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.


© Manuel Ferreira (2005) 



A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã 


1.− E no fim quem levou a taça foi o capitão!... Quer-se dizer, mais uns galões, mais graveto ao fim do mês…

− Mas, ó Campanhã, era a vida dele, a carreira dele!  atalhou o ex-alferes Pimentel, transmontano, que nada tinha perdido do seu espírito de subserviência em relação a todas as hierarquias deste mundo.

 E depois nós éramos milicianos, estávamo-nos nas tintas para as divisas e os galões! – atalhei eu, tentando sem jeito deitar água na fervura.

− E, nós, soldados do contingente geral! – ripostou o Campanhã.

 Estávamos todos metidos no mesmo barco, essa é que essa! - opinou o Pimentel.

 
   Mas mesmo assim havia diferenças, carago! No meio daquela merda toda – desculpem lá a expressão! – vocês até eram uns fidalgos: tinham patacão, graveto; tinham messe, bar, bebidas estrangeiras; iam matar a malvada a Bafatá; comiam umas garinas, brancas ou verdianas de vez em quando, em Bissau; vinham de férias, na TAP, à Metrópole…

E lá continuou o reguila do Campanhã a vociferar contra os privilegiados dos tugas que na guerra tinham messe, com direito a comer de garfo e faca e toalha branca na mesa:

 Alguns de vocês, alferes e furriéis (não vale a pena citar nomes) até nem queriam outra vida se não fosse terem de andar com a puta da canhota no mato!... Mais: alguns milicianos que eu conheci, em Bambadinca, nunca tinham ganho um tostão na puta da vida, a não ser a mesada do velho…

 Calma aí e pára o baile, ó Campanhã! Estás a ser injusto, ao fazer generalizações abusivas ! - interrompeu, de chofre, o Pimentel.

− Muitos de nós, furriéis e alferes, já trabalhávamos... - comentei eu, ajudando a cortar o fio à meada do discurso torrencial do Campanhã, a quem os primeiros goles da cerveja da Trindade começava a abrir as goelas da desinibição.

−  Cá o Zé Soldado como eu já era chefe de família e há muito que fossava no duro, antes de ir parar com os quatros costados à Guiné. É bom que não se esqueçam isto, carago!... Quanto ao resto, reconheço que éramos todos tugas e iguais, que elas no mato não traziam código postal!

2. O Campanhã, o nosso soldado Campanhã!... Era com emoção, com alguma emoção, mal disfarçada, que eu voltava a abraçar, ali no Trindade, no Bairro Alto, em Lisboa, dez depois, em 1981, o soldado Campanhã, com o seu inimitável sotaque tripeiro e a franqueza que era timbre da boa gente do Norte.

Tínhamo-nos tornado amigos (ou, talvez melhor, confidentes e cúmplices um do outro, camaradas, no sentido etimológico do termo, já que na tropa não havia amigos, mas apenas gente que partilhava o mesmo chão, a mesma caserna, o mesmo bivaque, o mesmo abrigo, a mesma tenda, o mesmo beliche, a mesma cama, o mesmo buraco) nessa longa noite em que viajáramos juntos, de comboio, do Campo Militar de Santa Margarida (1) até ao cais de embarque, em Lisboa.

Entre dois tragos de bagaço de vinho verde, rasca, o Campanhã fora-me contando a sua vida, os seus sonhos, os seus projectos, a mim, seu confidente de circunstância, vizinho de lugar e companheiro de infortúnio, lucidamente deprimido, à medida que o comboio da CP, requisitado pela tropa, galgava as terras banhadas pelo Tejo, pela calada da noite.

Para lá do Douro, ficava uma infância pobre, uma adolescência truculenta, uma filha de mãe solteira, um futuro incerto de operário do têxtil. Filho de pequenos rendeiros pobres, de Entre Douro e Minho, cedo pegara na trouxa para apanhar o comboio da Linha do Douro e assentar arraiais numa ilha na freguesia de Campanhã, razão de ser da alcunha que lhe deram na tropa.

− Em busca de melhores dias, já que em casa o caldo, a broa e o binho berde tinto, o "jaqué",  mal chegavam para dez bocas.

−  Fome... mesmo, a sério ? - insinuei eu, timidamente, cujo rio mais a Norte que conhecia ero o Vouga...

 Não, meu furriel, você não sabe o que é isso: uma sardinha para três em dia de festa; um bocado de toucinho quando se matava o porco lá pelo Natal; um caldo de água quente, pencas e pão de milho esfarelado para aconchegar o estômago; batatas com batatas, quando as havia… Castamhas, na época delas...Mas um homem habitua-se a tudo... Fome, fome, não. Digamos que passei necessidades...

E no Porto, na sua Campanhã, ainda popular e operária, faria entretanto a sua "universidade da vida": marçano, barbeiro, trolha, futebolista, empregado de café, chulo de puta fina – “azeiteiro, como se diz na minha terra”… até descobrir o duro caminho que o levaria aos portões da fábrica.

 Cães grandes ?!... Aprendi a tirar-lhes o chapéu e a cuspir-lhes na sombra desde o dia em que, descalço, mas já com pêlo na venta, acompanhava o meu velho  na visita anual à Casa do Fidalgo, pelo São Miguel, para acertar a renda: dois terços do vinho, metade do milho, a melhor fruta para a senhora, a viúva de um juiz salazarista que tinha mais quintas na zona do que dedos na mão…

Falava do seu velho pai, com ternura contida e com o respeito comovido que lhe mereciam os mortos de que a História não fala. Tinha falecido em Fevereiro de 1969, nas vésperas da ordem da sua mobilização para a Guiné.

 As alegrias passam, meu furriel. Só as desgraças e as injustiças nunca se perdoam e nem se esquecem. As tainadas, as bezanas, tudo isso a gente caga e mija... Veja o meu falecido pai. Trabalhou uma vida inteira como uma besta de carga para morrer pobre como Job, sem um cantinho a que chamasse seu, como qualquer cabaneiro. Sem saber uma letra. Sem nunca ter ido sequer à Foz a ver o mar… Conheceu muitos fidalgos, como ele chamava aos senhorios ou patrões… Sempre o conheci de chapéu na mão, agradecendo a suas senhorias o grandessíssimo favor de continuar na terra por mais um ano, depois do São Miguel… Viveu uma vida emprestada, viveu por favor... É isso que me revolta, carago. E é por isso que me chamam reguila… Mas eu digo-lhe: há coisas que um homem nunca esquece por muitos tombos que dê na puta da vida, por muitas bezanas que apanhe ou por muitas sacanices que faça… E eu já fiz muita merda, nesta meia dúzia de anos em que me tornei homem.

Curiosamente, verificava ali no Trindade, dez anos depois de "tudo ter acabado em bem", como dizia o safado do Pimentel, que nenhum de nós se desculpava por feito aquela guerra e muito menos de a ter perdido. Para alguns de nós, por ventura para a maior parte de nós, tugas, agora despidos, desfardados, paisanos, passados à peluda, nus de corpo e alma como no dia em que fomos à inspecção, alcunhados de antigos combatentes do ultramar, últimos guerreiros do império colonial português, mal amados 
−  "mas vivinhos da costa como o carapau, graças a Deus!" (era a voz efeminada do Peniche, o básico, que sempre acabara por ir parar à vida artística da noite)  , tinha sido afinal a primeira e a última grande aventura das nossas vidas cinzentas, um rito de passagem, uma iniciação (entre dolorosa e divertida) à vida adulta. Uma espécie de acidente de percurso. Um pesadelo climatizado. Uma trovoada fantasmagórica numa bela noite de verão tropical. Um abcesso. Um furúnculo. Uma dor de dentes...

   Um parto, meu furriel, um parto!  arrematava o Peniche, no meio da galhofa geral.

Talvez, eu, ingénuo, esperasse ouvir a confissão pública de alguém que, agora, à distância dos acontecimentos e na atmosfera distendida do Trindade, quisesse tomar partido e se levantasse para fazer um discurso puro e duro sobre a traição dos capitães de Abril, do Spínola, do Caetano e de todos os gajos que andaram a gozar connosco. Ou então sobre o trágico equívoco que fora a guerra colonial, ceifando vidas, gastando cabedais, hipotecando o futuro. Mas não, nenhum dos presentes levantara a caneca para gritar Viva ou Morra !...

É que todos fazíamos o jogo da cumplicidade, jogo cujas regras tacitamente ninguém estava disposto a violar. Porque o momento era único, era mágico, e todos sabíamos que nunca mais voltaria a repetir-se, apesar das trocas de cartões e de fotos da família e das promessas de, para o ano, irmos comer uma valente feijoada à transmontana e provar a famosa posta mirandesa, para lá do Marão "onde mandam os que lá estão" (assegurava o Pimentel, "agora autarca do poder local democrático").

 Nunca lá pus os butes, e bibo no Porto, carago
    ironizou o Campanhã que continuava, a miúde, a trocar os vês pelos bês, sentindo que ainda lhe achavam alguma graça, os gajos do Sul.

No fundo, sabíamos que, na vida, há momentos irrepetíveis, pelo que nem os fantasmas, dolorosos, do passado, nem as paixões, ainda mornas, do presente, nem muito menos as inquietações, impercetíveis, do futuro deveriam perturbar este insólito e fugaz encontro de meia dúzia de ex-combatentes da Guiné, mesmo quando, já no fim do jantar e depois de uma nova rodada de uísques (de uma Old Parr que o vago-mestre trouxera de lembrança, "from Sctoland to the Portuguese Armed Forces"), alguém tivera o mau gosto (ou o azar) de evocar os mortos da companhia...

 Agora é que foderam tudo! – arrematou o Campanhã.

Nunca conheci nenhuma alma tão sensível como a dele. Ou melhor: nenhum ator, com lágrima tão fácil como a dele... 

Fonte: (Pre)texto: “Na Guiné, longe do Vietname” (inédito). © Luís Graça (1981-2005)(2)

Revisto: 24/11/2022
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 24 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXX: A cerimónia de despedida no Campo Militar de Santa Margarida

(2) Nenhum destes heróis foi condecorado, muito menos o Campanhã (que antes de ir parar à Guiné levou uma porrada, sendo despromovido do posto de cabo atirador de infantaria). Felizmente que nenhum deles foi condecorado no 10 de Junho, a título póstumo. Também nenhum destes heróis existiu. Nem poderiam existir: afinal, perdemos a guerra. Em todo o caso, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.