terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5712: Os nossos médicos (14): José Madeira da Silva, hoje otorrino, professor universitário, ex-Alf Mil Med, BART 6521, Pelundo, 1973/74)

Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Canchungo >  Pelundo > 2008 > Restos do antigo quartel português, ao tempo do BART 6521/72 (Pelundo, 22/9/1972 - 27/8/1974), a unidade que fez a transferência de soberania para o PAIGC, e que era comandado pelo Ten Cor Art Luís Filipe de Albuquerque Campos Ferreira. O Alf Mil Médico José Madeira da Silva deve ter passado por este batalhão e este aquartelamento, em 1973, antes de ir prestar serviço, como médico anestesista, no HM 241, em Bissau.  Diz ele que foi um dos que "fechou a guerra em Outubro de 1974"...

A foto foi-nos enviada, juntamente com as fotos de uma série de ex-camaradas nossos,  manjacos do Pelundo,  que estiveram ao serviço do exército português, pelo sociólogo António Alberto Alves, que reside desde 2006 em Canchungo (antiga Teixeira Pinto) e trabalha (ou trabalhava) para uma ONGD portuguesa (*)

Foto:  © António Alberto Alves (2008). Direitos reservados.



1. Mensagem de José Madeira da Silva, com data de 22 do corrente:

Agora sou eu que estou envergonhado... Entretanto e devido a restricções orçamentais, estou sem secretária. O que mais virá ?

Em relação à "nossa Guiné",  acho que, por diversos motivos, já ninguém quer saber! Os meus filhos, às vezes mostram alguma curiosidade mas que diabo, actualmente e da nossa parte,  talvez seja só nostalgia, inclusive dos momentos desagradáveis, se é que isso é possivel... Também já estou muito longe de pensar nisso, a não ser esporadicamente.

Embora já tenha 64, ainda tenho o tempo um bocado ocupado. Além de regente da disciplina de Otorrinolaringologia da FCM [, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Nova de Lisboa],   sou membro do Conselho Científico e director do Serviço Universitário de ORL do CHLO [, Centro Hospitalar Lisboa Oriental] / Hospital Egas Moniz. (...).

Dentro destas possíveis dificuldades, seguramente contornáveis, diga-me quais os dias que eventualmente teria disponíveis para almoçar.

Um abraço,

José Madeira da Silva
 
2. Mensagem enviada em 23 de Outubro último, por Luís Graça, a José Madeira da Silva:
 
Meu caro professor e colega:

Estou envergonhado de só agora lhe poder responder ao seu mail de 22 de Julho passado (**)… Ficamos doravante em contacto um com o outro. Aqui tem os elementos que pude apurar, relativamente ao pedido que me fez. Acabo de os publicar no nosso blogue, Luís Graça & Camaradas da Guiné:

23 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5143: Os nossos médicos (7): Prof Doutor José Madeira da Silva, otorrino, em busca dos ex-camaradas de Bula e Pelundo, 1973/74

Gostaria muito de falar consigo, para já ao telefone… Tem aqui os meus contactos (Telef. Directo, Gabinete 3 A 42, ENSP/UNL: 21 751 21 93). Só tenho o seu telefone do Serviço de Otorrino, do Egas Moniz… Vou tentar ligar-lhe.

As minhas saudações académicas e bloguísticas, Luís Graça

3. Comentário de L.G.:

Agora não restam dúvidas... O nosso camarada José Madeira da Silva e o Prof Doutor José Madeira da Silva são a mesma pessoa... Ainda não falei com ele ao telefone, mas vou continuar a tentar ligar-lhe. Apessar dos nossos afazeres profissonais, teremos seguramente oportunidade de estar juntos um dia destes. Até lá gostaria de localizar gente que tenha estado em Bula e no Pelundo, na mesma altura (1973/74) ou que tenha conhecido o nosso Alf Mil Médico José Madeira da Silva, anestesista, no HM 241, em Bissau, em 1974. (Mas também eventualmente em Nova Lamego).

Gostava que este nosso camarada se juntasse a nós, neste blogue, e partilhasse connosco memórias, em suporte escrito e fotográfico... A série Os Nossos Médicos ainda  está no início e não tem sido fácil localizar os oficiais médicos que "circulavam" pelas nossas unidades e subunidades... Muitas vezes não chegavam a criar raízes. Houve batalhões que conheceram vários médicos. Não havia só falta,no TO da Guiné, de oficiais do quadro...  Faltavam também médicos militares, cada mais assoberbados com a assistência às populações civis, no âmbito do programa de Spínola da Guiné Melhor. Qualquer ajuda, para identificar e localizar médicos que tenham estado na Guiné durante a guerra colonial,  será bem vinda...

Dos camaradas que pertenceram a este batalhão, tenho o registo do António Faneco, que foi 1º Cabo da 1ª CART / BART 6251 (tendo passado pelo três meses Pelundo, antes de ser  recambiado para o Cantanhez, donde regressou, ao Pelundo, em Setembro de 1973). Conhecido como o Massamá, vive hoje no Montijo. Lembra-se do Dr. Paradela de Oliveira, que deve ter antecedido o Dr. José Madeira da Silva. A companhia reune-se anualmente em Mira, a maior parte do pessoal era do Norte... Já chegou a haver convívios a nível de batalhão, mas actualmente não... (Informações dadas ao telefone pelo António Faneco) (****).

Esta subunidade, a 1ª companhia,  foi mobilizada pelo RAL 5. Esteve no Pelundo, Cadique, Jemberém e Pelundo. Partiu em para a Guiné em 23/9/1972 e regressou em 27/8/1974. Comandante: Cap Mil Cav Casimiro Gomes. Alguém tem mais elementos informativos sobre este Batalhão e esta companhia ? Ou sobre o nosso Alf Mil Médico ?


[ Revisão / fixação de texto / título / bold: L.G.]
_____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 6 de Dezembro de 2009  > Guiné 63/74 - P5414: Os nossos camaradas guineenses (19): Camaradas do Pelundo lêem o Diário da Guiné de Graça de Abreu (António Alberto Alves)

(**) Mensagem de 22/7/2009:

(...) "Fui Alferes Miliciano Médico e estive na Guiné em 1973 e 1974 (fechei a guerra em Outubro de 1974).


"Quando voltei, nunca mais quis ouvir falar da Guiné mas o passar do tempo faz-me recordar com saudade alguns camaradas. Simplesmente, a minha atitude inicial de rejeição fez-me esquecer quase tudo e nem sequer me lembro ao certo dos batalhões onde estive colocado.


"(...)  Como médico estive em dois batalhões, antes de ser aproveitado do Teatro de Operações para o Hospital Militar de Bissau (como anestesista), embora, mesmo já colocado em Bissau, tenha acompanhado algumas operações no terreno integrando uma equipa cirúrgica (Nova Lamego e outros lugares com nomes de que já não me lembro)...

"Onde deixei realmente amigos foi nos Batalhões, em Bula (Cavalaria?) e no Pelundo ( BART ?)(***). Seria possível enviar-me os números desses batalhões? Talvez assim conseguisse contactar alguém." (...)

(***)  As minhas pistas levam-me às seguintes unidades:

Esquadrão de Reconhecimento (EREC) 8740/72 (Bula e Bissau, 3/4/1973 - 8/9/1974:

BART 6521/72 (Pelundo, 22/9/1972 - 27/8/1974)
 
 
(****) Vd. poste de 7 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5607: Memória dos lugares (66): Iemberém, sede do Parque Nacional do Cantanhez, outrora campo de batalha (Luís Graça / António Faneco)


(...) O António Faneco (de alcunha, na tropa, o Massamá), que agora nos visita (e com quem já falei pelo telefone, tendo aceite o meu convite para se juntar à nossa Tabanca Grande) vem confirmar, na qualidade de ex-1.º Cabo da 1.ª CART/BART 6521/72, que a esta companhia, vinda do Pelundo, foi destacada para reforçar a reocupação do Cantanhez, chegando a "Cadique no dia 20 de Abril de 1973 pelas 8 horas da manhã e (...) a Jemberém pelas 12 horas, sensivelmente", local onde montou a tenda (não havia qualquer povoação) e ali "permanecemos até dia 9 de Setembro de 1973, altura em que regressámos ao Pelundo", depois de terem apanhado muita porrada e sofrido dois mortos em combate (segundo me disse ao telefone o António Faneco). (...)
 
Vd. também 7 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5605: O Nosso Livro de Visitas (78): António Faneco, ex-1.º Cabo da 1.ª CART/BART 6521/72 (1972/74)

Guiné 63/74 – P5711: Histórias do Eduardo Campos (6): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 6): Nhacra


1. O nosso camarada Eduardo Ferreira Campos, ex-1º
Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74, enviou-nos a 6ª fracção da história da sua Companhia, em 24 de Janeiro de 2010:

CCAÇ 4540 – 72/74
"SOMOS UM CASO SÉRIO"

PARTE 6

NHACRA

Como nesta região não tenho, felizmente, episódios de guerra para narrar, vou tentar descrever, o mais pormenorizado possível, como era constituído o terreno desta região.

A área do subsector de Nhacra, tinha por limite a Norte o Rio Mansoa, a sul o Rio Geba, a Oeste o Canal do Impernal e, a leste, confinava com o Dugal.

Era atravessada, nos seus limites, por uma estrada asfaltada (com grande movimento de pessoas e viaturas), que ligava Bissau a Mansoa e, ainda, pela ligação entre Nhacra e Cumeré, também ela em estrada asfaltada.As tabancas mais populosas tinham ligações com as estradas principais, através de picadas largas.Sobre o Canal de Impernal e no itinerário Bissau – Mansoa, encontrava-se a Ponte de Ensalmá, onde se mantinha em permanência um destacamento da Companhia, dada a sua importância estratégica e pelo facto capital de ser a única Ponte, que permitia a ligação por terra, entre Bissau e o resto do território da Guiné.

O terreno apresentava uma uniformidade e configuração incaracterísticas, em que os relevos praticamente não existiam, apenas entrecortado pelas bolanhas que abundavam nessa região, visto formarem-se a cotas inferiores às do terreno.

Hidrográficamente a região era rica, com os importantes rios Mansoa e Geba bastante caudalosos na preia-mar, que chegavam a atingir cerca de três metros de amplitude e invadiam uma série de canais, do qual se destacava o Canal do Impernal, que estabelecia a ligação entre eles, dando origem à ilha de Bissau… Sim disse ilha, porque Bissau era uma ilha e, curiosamente, muitos dos nossos camaradas desconheciam o facto.

A mata era muita reduzida nessa região, exceptuando-se pequenas manchas existentes no extremo norte do Rio Geba e nas proximidades do Canal do Impernal.Na zona interior a savana arbustiva, era salpicada aqui e além, por árvores de grande porte (poilões), mangueiros e cajueiros.

Nas Zonas marginais dos rios e dos canais, zonas extremamente pantanosos, abundavam as plantas hidrófilas que se ramificavam em múltiplas raízes, formando o que se designava por “tarrafo”.A fauna, sem ser abundante, poderia considerar-se rica em diversas espécies.

Além dos animais considerados domésticos (bovinos, caprinos, suínos e galináceos), destacavam-se as gazelas, os porcos-espinhos, os macacos, as hienas e as cabras do mato.

Nas aves destacavam-se os pelicanos, as garças os piriquitos, perdizes, rolas, codornizes, galinha-do-mato, patos e os jagudis.

Aspecto da entrada e porta-de-armas do Quartel (Nhacra)

A banhos na piscina em Nhacra

Continuando os banhos na piscina de Nhacra

Jogando o King

Nós e os putos

Na tabanca dos Balantas (Nhacra)


Um baga-baga de respeito

Aspecto do interior do Quartel em Nhacra

Um abraço Amigo,
Eduardo Campos
1º Cabo Telegrafista da CCaç 4540

Fotos: © Eduardo Campos (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5710: Tabanca Grande (201): João Adelino Aves Miranda, ex-1.ª Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4610/73 (Guiné 1974)



1. O nosso Camarada João Adelino Aves Miranda, 1° Cabo Radiotelegrafista, da 1ª CCAÇ do BCAÇ 4610/73 - Cumeré, Canquelifá, Nhamate -, 1974, actualmente emigrado na Alemanha, enviou-nos com data de 24 de Janeiro de 2010, a seguinte mensagem:


Camaradas,

Chamo-me João Adelino Aves Miranda e fui 1° Cabo Radiotelegrafista da da 1ª Companhia do BCAÇ 4610/73, Canquelifá, Nhamate, tendo embarcado no navio Niassa, no dia 9 de Abril de 74, embora o navio só tenha zarpado passados dois dias, a 11 de Abril, derivado ao atentado à bomba de que foi alvo.



Chegados à Guiné, fomos para o Cumeré, onde fizemos o IAO, e, cerca de um mês mais tarde, eu e outros especialistas seguimos num NordAtlas para Nova Lamego.


Aí chegados, transitamos para uma coluna auto que nos levou para Canquelifá, onde nos juntámos ao resto da companhia.

Sei também que estive em Nhamate.

Depois à medida que íamos entregando os destacamentos ao PAIGC, fomos regressando a Bissau, a pouco e pouco, em curtas viagens e consequentes estadias.

Mas depois irei contando o pouco que ainda me lembro. Quanto ao facto de aderir à Tabanca Grande seria uma honra se mo permitissem.

Para regressarmos a Portugal, embarcamos em Pijiguiti, no navio Uíge, em 14 de Outubro de 1974.

O mais curioso e engraçado é que tu e eu viajamos juntos, neste regresso a casa, ou seja viemos juntos para Portugal, pois segundo o que acabamos de descobrir na nossa troca de e-mails, naestat viagm do Uíge embarcaram em Bissau, 3 batalhões o meu 4610/73 (4 companhias), o 4510/73 (só com 1 companhia) e o teu 4612/74 (3 companhias).


Estou a viver na Alemanha e quando vou a Portugal de férias, fico em Torres Vedras, por isso, em relação ao nosso reencontro pessoal não fica esquecido, garanto-te.

Um abraço,
Joao Miranda
1° cabo radiotelegrafista da 1ª Cia do BCAÇ 4610/73


2. Camarada João Miranda, em nome do Luís Graça, Carlos Vinhal, Virgínio Briote e demais tertulianos deste blogue, quero dizer-te que é sempre com alegria que recebemos notícias de um periquito, que esteve na Guiné, e, mais ainda quando ele está na diáspora.


Tal como o Luís Graça já referiu em anteriores textos colocados em postes no blogue, eu, tu e todos aqueles que constituíram a geração dos últimos “guerreiros” do Império, temos alguma coisa a contar para memória futura e colectiva, deste período sangrento da História de Portugal, que foi a Guerra do Ultramar.

Eu, pessoalmente, costumo afirmar que entregamos, incondicionalmente, ao IN aquele pedaço de terra, onde centenas de Camaradas nossos (irmãos, primos, amigos, etc.), que haviam falecido em combate, para que alguns pudessem dizer: “Isto aqui é Portugal!”

12 anos de manutenção de um legado histórico, mantido com muito sacrifício, privação de toda a ordem, dor, sofrimento, morte…

Não apontando culpas a ninguém em especial (quem sou eu para as fazer), apenas me dói, bem no fundo da alma, ver nos últimos 35 anos o modo como os políticos portugueses tratam aqueles que, nos seus 21/22/23 anos, deram o seu melhor, como podiam e sabiam, muitas vezes mal treinados e armados, sabe Deus como alimentados e enfiados em autênticos buracos feitos no lodo em meios completamente hostis e perigosíssimos…

Aguardamos que nos contes aquilo que ainda lembras e se tiveres fotografias daquele tempo, como por exemplo da entrega dos aquartelamentos, envia-nos para publicação.

Emblema e guião de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:


Guiné 63/74 - P5709: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (2): A(s) guerra(s) e a(s) maneira(s) de a(s) fazer

1. Mensagem, com data de 15 do corrente, enviada  pelo ainda recente membro da nossa Tabanca Grande, Belmiro Tavares, ex-Alf Mil, CCAÇ 675 (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), empresário hoteleiro, camarada e amigo do nosso JERO

Assunto - A(s) Guerra(s)

A Guerra é, provavelmente, o alvo mais recriminado pelos Humanos; no entanto ela existe, prolifera e espalha-se intensamente por todos os cantos do mundo. Muitos a contestam, a detestam, a abominam... mas milhões a praticam todos os dias.

Uma coisa é matar para não morrer – uma inevitabilidade. Mais recriminável é matar aos milhares, cidadãos indiferenciados que nada de mal fizeram para que tal lhes acontecesse... apenas estavam no local certo (errado) à hora certa.

A Guerra é, digo eu, a mais antiga profissão do mundo!

Há quem defenda que a mais antiga é aquela outra actividade... a "da perna aberta" ou "à vela" que se praticava (pratica?) largamente na mata de Monsanto e continua abundantemente na margem de muitas estradas deste nosso rectângulo à beira mar plantado.

Os defensores desta são principalmente as "rachistas" que gostam muito de dizer coisas. Eu, porém, continuo a defender a "minha dama" e apresento argumentos.

Vejamos!: Caím, em tempos bíblicos, talvez com um único pontapé, não se sabe bem onde – mas suspeita-se, - enviou o irmão, Abel, para o Jardim das Tabuletas.

Terá sido esta a guerra mais mortífera e a mais curta de que há memória; uma elevadíssima percentagem dos habitantes do planeta foi, naquele momento, prestar contas ao Criador. E nessa altura ainda não havia sido inventada aquela terrível arma devastadora a que se convencionou chamar "coup de poing".

A arte de lutar, porém, evoluiu "rapidamente" durante os milénios que se seguiram. Mais ou menos sequencialmente, usaram-se pedras, facas (de madeira, antes e metálicas, depois) espadas, lanças e setas; no lado oposto apareceram os antídotos: os escudos (primeiro de couro... depois metálicos), elmos, capacetes e as pesadas armaduras que atingiram o auge na Idade Média. Surgem os castelos fortemente resistentes construídos em pontos estratégicos e/ou de difícil acesso.

A cavalaria foi durante séculos a implacável decisora de vitórias e derrotas.

Com a Guerra dos Cem Anos, em França, e a sua ramificação na Península Ibérica (a Luso Castelhana Guerra da Independência) a Infantaria passou a ser – defendem os Infantes – a rainha de todos as armas.

De facto quer em Poitiers e Azincourt quer em Aljubarrota e Valverde a Infantaria dizimou as fortíssimas cavalarias francesa e castelhana.

A evolução acelera com os canhões, as espingardas, os carros de combate (os substitutos das romanas catapultas) e os castelos passaram a ter interesse apenas para o turismo; aparece a aviação, as bombas atómicas e quejandas... e os mísseis; surgem outros antídotos: abrigos, bazucas, ati-aérias e os anti-mísseis.

Quando parecia que tinham sido já inventadas todas as belicosas armas mortíferas e os diferentes modos de as usar... eis que surgem outras variantes: a guerra fria, a psicológica (era a que meu pai – que Deus o tenha em bom lugar – usava comigo – só contarei a pedido) os movimentos autonomistas e emancipalistas que trazem consigo a guerrilha e por fim os homens-bomba. Será o fim? No mínimo é o fim dos que se fazem explodir. Isto não é guerra... é doidice!

É na guerrilha que vamos deter-nos; com ela todos convivemos cerca de dois anos. A guerrilha é mais uma maneira "legal" de matar em que pequenos grupos armados (bate e foge), militarizados ou não, substituem batalhões, divisões e exércitos numerosos.

Na nossa guerrilha não consta que houvesse homens-bomba mas havia minas e armadilhas, armas altamente perigosas e nada selectivas. A diferença é que aqui o seu autor, em princípio, não vai accioná-las.

Na guerrilha (talvez mais que nas guerras de numerosas gentes) a inteligência, a esperteza, a imaginação e o conhecimento do terreno são atributos da maior importância, ultrapassados, talvez e só, pela "posse" da população não combatente – como defendia Mao Tsé-Tung. Como afirmei em texto anterior, pertenci à CCaç 675 e pertencerei até ao fim dos meus dias.

O nosso capitão, além de "secreto" estudioso de Mao, era extremamente inteligente e sabia muito de guerrilha; ensinava-nos quanto podia; não seríamos tão bons receptores como ele era bom emissor; fazíamos o que podíamos.

Normalmente os nossos instrutores da E. P. (Escola Prática) sabiam apenas (ou quase) o que vinha no Guia Oficial Miliciano – creio que era este o nome. Mas também o(s) seu(s) autor(es) pouco mais seriam que aristarcos de outros aristarcos e nós... carne para canhão.

Se seguíssemos à letra o que vinha no livro, na Guiné não poderíamos montar emboscadas segundo aqueles cânones.

Sendo o terreno quase completamente plano (o ponto mais alto – cerca de 220 m – chamava-se Cuntima que significa colina do Norte) não existiam os tais obstáculos na berma da estrada para evitar a fuga de quem era emboscado. Esquecendo as regras ensinadas na E.P. montaram-se muitas emboscadas bem sucedidas.

Lembro aqui um alferes, meu instrutor em Mafra, que, quando chegou à Guiné, em Janeiro de 1966, me perguntou, no QG de Bissau, como reagíamos, lá às emboscadas. Resposta directa:
- Tal como me ensinaste em Mafra! Lembras-te?!

Ao que ele retorquiu:
- Lá, cada um "largava a posta" como podia!
- Havia muitas maneiras de "largar a posta" e tu não respeitavas sequer os teus subordinados, o que molestou muita gente.

De seguida, no café do Bento, contei-lhe como na CCaç 675 reagíamos às emboscadas e outras coisas de interesse... e logo ali o diferendo ficou sanado.

Há varias maneiras de fazer guerra segundo a imaginação e o saber de cada um:

A - Guerra "amorosa" e respeitosa

Um dia aprisionámos uma mulher de 30/40 "chuvas" (esta veio connosco). Dias depois o "capitão, com a necessária e prestimosa ajuda do nosso guia, perguntou-lhe se preferia continuar junto da tropa ou regressar ao mato. Desculpa atrás de desculpa... manifestou vontade de voltar ao seu "chão"... por causa da família.

O capitão ofereceu-lhe cerca de uma arroba de arroz e uns "panos" – manga de ronco – e transmitiu-lhe o seguinte recado:
- Vais dizer ao pessoal que retire os abatises entre Banhima e o rio Buborim (limite oeste de nossa zona); caso tal não aconteça destruirei os vossos acampamentos e não há mais arroz nem panos para ninguém !

Este vosso escrevinhador foi incumbido de transportar a "prisioneira" (ex) até ao primeira abatis. Lembrei-lhe ali o recado do capitão e imformei-a que não podia levá-la mais além porque as viaturas não podiam passar.

Uns dias mais tarde voltámos àquela zona e já não havia obstáculos na estrada; como não podiam retirar as árvores... queimaram-nos no local.

Até Abril de 1966 não houve mais abatises na estrada... mas eles abandonaram a zona.

A isto chamamos "Respeito"!... É bonito!


B – Avisar o Inimigo


Pode fazer-se guerra (não convencional) avisando amável e amigavelmente o IN dos reais perigos que pode encontrar em determinado local.

A cerca de 7 km de Binta, na estrada de Bigene, havia uma pequena ponte de madeira; os independentistas queimaram-na. Sempre que por ali nos deslocávamos (o que era frequente) usávamos pranchas de madeira e/ou as vigas em "U" metálicas das Mercedes para cruzar o ribeiro. Com aquele "toma a viga", "coloca a viga" e "recolhe a viga" perdia-se muito tempo e, com o ruído dos motores, acordávamos o IN fora de horas.

Os independentistas eram muito sensíveis! Por vezes amuavam e até faziam "birra" porque não podiam dormir a sono solto.

Era urgente mudar de rumo.

O capitão incumbiu-me de fazer ali uma ponte para que, sem dificuldades acrescidas, pudéssemos visitar os "turras" nos seus "aposentos" (covis, dizia o Alf Mendonça) enquanto iam permanecendo (por pouco mais tempo) naquela zona.

Como escrevi em texto anterior, na vida militar, especialmente em campanha, éramos "pau para toda a colher" (*).  Desta vez saiu-me na rifa ser engenheiro e empreiteiro de pontes... sem direito a apresentar a conta ao dono da obra.

Mandei rebaixar o piso da estrada cerca de 20 cm nas duas margens; derrubámos cinco palmeiras; cortámos os troncos à medida e com a ajuda do Unimog, colocámo-nos sobre o ribeiro; e qualquer das nossas viaturas já podia passar em segurança e sem mais delongas.

Aqueles troncos eram demasiado pesados para serem removidos à mão.

Na berma da estrada coloquei uma placa de "sinalização" com a seguinte informação com letra garrafal e a vermelho: "Atenção! – há armadilhas!" E desenhei toscamente dois ossos e uma caveira – sinal de explosivos.

Armadilhei apenas a placa com uma granada de mão instantânea de fabrico nacional e outra com retardador, de fabrico canadiano.

O IN passou por ali; achou graça àquela informação... real e sincera; arrancou a placa e... pum-pum... a armadilha funcionou.

Inicialmente não acreditaram na veracidade do aviso mas convenceram-se que haveria ali mais explosivos porque nunca mexeram naquela ponte rústica e obtusa construída por um engenheiro improvisado.

Como se depreende, do que atrás foi dito, a guerra pode ser feita com carinho e respeito – 1º caso e pode ser um aviso e de forma quase lúdica – 2º caso.

Nota: quase quarenta anos depois soube por um guineense (tinha naquela época 7/8anos) que os habitantes de Binta (os naturais e os "retornados" do mato e/ou do Senegal) me apelidaram de "olho de gato" porque as minhas armadilhas funcionavam sempre.

Cumpre informar que eu não tinha o "curso de minas e armadilhas" que era ministrado a um oficial de por companhia durante 3 ou 4 horas de instrução. Pensem nisto! Era mesmo assim!

Sexta, 15 de Janeiro de 2010

Belmiro Tavares (P)
Ten Mil

[Fixação / revisão de texto / título: L.G.]

2. Comentário de L.G.:

Sobre a guerra haverá centenas, milhares, de citações... Gosto de algumas, mais sociológicas e pragmáticas como de Clausewitz (1780-1831), o general prussiano que combateu Napoleão: "A guerra é a continuação da política de Estado por outros meios", o que implica a subordinação do poder militar  ao poder político e primado das questões éticas... Ou se quisermos o objectivo da guerra não é levar à destruição total do inimigo, mas levá-lo à mesa de negociações, onde os termos de troca são sempre mais vantajosos para os vencedores...

Outras definições são mais morais e filosóficas como a do nosso  Padre António Vieira, grande mestre da lusofonia:  “É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro”. (In: Sermão Histórico e Panegírico nos Anos da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia, II).

E gosto da definição do Belmiro, pura e dura: "A guerra ?  Há muitas, tantas quantas as maneiras de a fazer....". Alguns dirão que é uma definição "cínica"... Mas, e a guerra de guerrilha e de contra-guerrilha ?  Também aqui vale  tudo ?

A segunda história trouxe-me à memória o debate que ocorreu em França há muitos anos (talvez nos anos 70 ou 80) a propósito de um caso que deu brado na comunicação social, no sistema judicial e no meio político... Farto de ver assaltada a sua casa de campo, um antigo veterano da guerra da Argélia lembrou-se de armadilhar a porta de entrada... Mas não descurou a sinalização de segurança: "Cuidado, entrada armadilhada"... O ladrão seguinte teve azar: não sabia ler...

Um Alfa Bravo, Belmiro. LG
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Nota de L.G.:

Vd. primeiro poste da série de 25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5336: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (1): Quatro Histórias com Mural ao Fundo

Guiné 63/74 - P5708: Notas de leitura (59): Armor Pires Mota (4): Cabo Donato Pastor de Raparigas (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Depois da jornada de ontem, na Livraria Verney, ouvindo, comovido, as impressões e comentários que o Luís foi transmitindo a uma assistência marcadamente militar sobre os meus livros, regressei a casa a gritar com um ataque de ciática, fui parar à urgência de Santa Maria e aproveitei aquela confusão entre a madrugada e o amanhecer para ler estes dois livros do Pires da Mota.
Li praticamente tudo de pé, as dores não consentiam outra posição. Aproveito para agradecer a presença de muita malta da tabanca grande que veio até Oeiras, para nos escutar.

Um abraço do
Mário



ARMOR PIRES MOTA (4)
Da poesia “Tempo em que se mata mesmo em que se morre” até ao livro de contos “Cabo Donato Pastor de Raparigas


Beja Santos

A comissão na Guiné marca a maior parte das obras de Armor Pires Mota. Já referimos “Tarrafo”, referência incontornável da literatura da Guerra da Guiné (testemunho em directo, publicado no Jornal da Bairrada, um género de diário que, por definição, não podia ter retoques, o repórter estava sempre em cima do acontecimento, o seu teatro de operações, mais ninguém se abalançou a tal temeridade), “Baga-Baga”, uma poesia nostálgica, um suplemento lírico filtrado de “Tarrafo”; e “Guiné, Sol e Sangue”, uma sequência de narrativas e contos em que Pires Mota retoma o seu itinerário de combatente e vem dar algumas justificações ideológicas para a guerra em que participou. Tudo isto entre 1964 e 1968.

Em 1974, volta à poesia, tumultuam na maioria dos seus poemas imagens impressivas da guerra: morros de baga-baga, corpo metralhado, dedo no gatilho, um obus, uma granada, por cada emboscada ganha, a água do tarrafo... ou então

Nos olhos espantados do negro Mamadu de Có
fumega ainda um sangue solene e espesso,
colheu-o a noite de aço, suor e pó

...............................................................................

É inútil fugir, mãe, fugir à sorte
e vou morrendo assim,
de granadas na mão,
morrendo a hora, o capim

................................................................................

companheiros, tombados no tarrafo, de pé,
vêm reunir-se dentro de mim.


O seu livro de poesia “Tempo em que se mata mesmo em que se morre” abraça as recordações do combatente, o sofrimento pela incompreensão de muitos face à guerra em África, adquire tons épicos e uma toada lírica onde não está ausente a sua filiação cristã, a sua fé inabalável.

Cabo Donato Pastor de Raparigas” é uma grande surpresa. De contos se trata, histórias sem conexão em que Armor Pires Mota cede à pilhéria, ao rocambolesco, à sátira política, mas também aos pungentes amores da guerra, a brutalidade de interrogatórios, as façanhas dos boinas verdes.

Tudo começa na antiga sociedade, em eleições de farsa, em que o senhor conde pretende ser deputado da Assembleia Nacional contando com os votos da gente da Silveirinha. É uma paródia completa em que os senhores de antigamente procuram safar os filhos da guerra. “Os diabólicos dias de Mansabá” são seguramente autobiográficos, relatam a dureza de guerra. As melhores páginas vêem no conto seguinte “O insubmisso Vicente”, o eterno drama do jogo duplo em que Vicente não aguenta a tortura do interrogatório e procura suicidar-se. Este data de 1991, o autor perdeu a contenção deixa a prosa correr com o calão, os diálogos curtos e incisivos, o grotesco das imagens. O conto seguinte “O Menino Jesus Era Negro” é de uma enorme beleza, faz realçar uma dominante da obra literária de Armor Pires Mota que é o cruzamento afectivo entre brancos e pretos. Chegamos a “Cabo Donato, Pastor de Raparigas”, um relato de uma enorme intensidade lírica, um homem que jaz agonizante no hospital e que só pensa no seu amor por Sano, vai desfiando o seu rol de pedidos ao furriel Cunha Velho. Mas o estado de saúde melhora, os amantes reencontram-se, o que se passou depois não cabe na história, o importante são os amores que triunfam quando tudo parece caminhar para o naufrágio.

Armor Pires Mota volta aos seus grandes parágrafos. Mas ficam ainda mais surpresas para contar sobre alguém que já leva 50 anos de vida literária.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5701: Notas de leitura (58): Armor Pires Mota (3): Guiné: Sol e Sangue (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5707: Estórias do Juvenal Amado (24): O Cafezinho, ou uma história de vida

1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 22 de Janeiro de 2010:

Caro Luis, Vinhal, Magalhães, Briote e restante Tabanca Grande

O Cafezinho foi um puto reguila, voluntarioso, sempre a armar confusão mas todos nós miudos gostavamos da sua liberdade e do ter por perto.
Era um valdevinos mas um lider nem sempre nas melhores razões.
Tenho saudade dele, pois faz parte da minha juventude e dos tempos que já não voltam.

Um abraço
Juvenal amado


O “CAFEZINHO”

Amparado pelo enfermeiro, o “Cafezinho” deu dois ou três passos titubeantes na recepção das urgências do hospital de Alcobaça.

Um penso na cabeça denuncia o traumatismo, do qual foi tratado pelos serviços daquela unidade hospitalar. Toda a gente o conhecia. Era uma figura simpática, que nos habituámos a ver passar numa pasteleira enorme, onde se gingava no selim para chegar com os pés aos pedais. Infelizmente o combustível da bicicleta era tinto normalmente.

Pequeno com ar teatral, abriu os braços e num gesto de quem está num palco cantou com voz pastosa, Tuudo ééé preciso nasss passagens deeesta vidaaaaa!!

O seu nome era José, a alcunha ganhou-a quando foi preso, por contrabandear café durante a guerra civil espanhola. Uns tiveram sorte, ele teve pouca.
O filho que o esperava fora da sala, abananou a cabeça e disse:

- Pois, e agora cantas.

Todos nos rimos e o Cafezinho, aproveitou para tentar logo vender lotaria aos presentes.

Vendedor de jogo de lotaria, era um autêntico vendedor de jogo branco. Eu próprio junto numa sociedade, lhe comprei sempre o mesmo número durante uns anos. Era o 25209 nunca deu nada, até terminações foram poucas. Comecei antes da tropa e só abandonei quando saí da empresa em 1980.

Mas a estória que quero contar é a do filho Zé Café, sim o mesmo, que o esperava naquele dia.
Andámos na escola primária até à quarta classe, embora ele fosse mais velho que eu. Era o que se pode chamar um pardal de calções, fazia toda a espécie de tropelias e arcou com muitas que ele não fez. Uma fisga era uma arma infalível nas suas mãos. Escolhia as pedras com todo o cuidado e voltava da caça com inúmeros pardais á cintura.
Era visita frequente do posto da polícia. Quando não havia culpado à vista logo alguém se lembrava do Cafezinho.

Um dia também fui parar à esquadra, por me ter envolvido à pancada com ele, coisa que me arrependi de imediato, pois levei uma carga de pancada no jardim junto ao campo de ténis.
Quem jogava ténis naquele tempo eram meia dúzia de colunáveis da terra, e pagavam aos putos para lhes apanharem bolas. Ora aí estava um bom ponto de discórdia, entre a canalha miúda.

Entretanto saímos da escola e fomos trabalhar, cada um seguiu uma adolescência diferente.

Voltamo-nos a tornar mais íntimos, quando feita a minha recruta no CICA 4 sou enviado para o RI6 na Senhora da Hora na cidade do Porto. Lá estava ele quase pronto, pois era da incorporação anterior. Eu o Zé Lourenço, que fez a recruta comigo e o Zé Café tornamo-nos inseparáveis. Vínhamos a casa de fim de semana, no regresso o Cafezinho arranjava-nos boleia, nas camionetas dos porcos do senhor Manel Inácio. O cheiro agarrava-se a nós o resto da semana.

Quando chegávamos à porta quartel por volta das três da manhã, já íamos munidos do jornal para em cima dele nos deitarmos, junto ao muro até abrirem a Porta de Armas.

O Cafezinho foi o nosso cicerone pelo Porto fora. Alguns bares na Praça da Batalha e a feira do palácio de Cristal, eram normalmente o nosso destino.
Aí o Cafezinho dava show. Nas barracas de brindes com a espingarda, era cada tiro cada gaio. Era de frente, de lado de costas, ou com um espelho não falhava um tiro. Juntava um monte de gente só para o verem disparar.
Nós três cotizávamo-nos e só ele é que atirava. No fim de cada sessão, lá vinha a prenda entregue de mau modo pelo dono da barraca, que via o negócio ser pouco rentável com gente como nós.

Um dia quando estava a dar-nos uma garrafa de ginja, que tínhamos ganho, perguntou-nos com um ar agastado se nós nunca mais éramos mobilizados.
Respondemos-lhe em ar de gozo, que já tinha passado o nosso número mecanográfico e que íamos acabar a tropa ali mesmo no Porto.

Bem o Zé Café foi para Moçambique, o Zé Lourenço para Angola e eu para a Guiné.

Quando regressamos cada um foi à sua vida, embora sempre que nos encontrávamos, havia sempre dois dedos de conversa a relembrar.

O Zé Cafezinho foi atropelado em Lisboa, esteve entre a vida e a morte, pois ficou todo migado. Nunca mais largou as canadianas, não conseguiu continuar a trabalhar na Crisal e o seu sustento foi buscá-lo à venda de jogo da lotaria, concessão que era do pai. Após a morte do pai a mesma ficou para ele. Continuei a comprar o tal número, que entretanto já não eram os mesmos do inicio a associar-se.

Há dez anos saí de Alcobaça e a morte dele passou-me ao lado. Fiquei espantado quando falei nele e me disseram que ele tinha falecido.

25209. Amanhã vou fazer um totoloto e vou utilizar os mesmos números. Talvez em vésperas de também eu engrossar o fundo de desemprego, vá buscar um pouco de sorte que o Zé Café tentou vender e nunca a teve para ele.

Juvenal Amado
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Notas de CV:

(*) Vd. ´Poste de 12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5454: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (15): Tabanca de Matosinhos, Tertúlia do Cozido à Portuguesa e viva a amizade (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5041: Estórias do Juvenal Amado (23): O velho milícia

Guiné 63/74 - P5706: Em busca de... (113): Procuro reactar contactos com Amigos da CCAV 3364 (Capito Joaquim)


1. O nosso Camarada Capito Joaquim, ex-Sold. Radiotelegrafista da CCAV 3364, Ingoré - 1971/73 -, enviou-nos de França, com data de 24 de Janeiro de 2010, a seguinte mensagem:

APELO
Pessoal da CCAV 3364
Batalhão de Cavalaria 3846 (CCS, CCav 3364, 3365 e 3366)

Camaradas,

Vivo em França desde Maio de 1973 e acabei de descobrir que este blogue sobre a Guerra da Guiné, existe.
Foi com muita alegria que o descobri, pois também estive lá entre 1971 e 1973, na CCAV 3364, como soldado radiotelegrafista, em Ingoré.

Nunca mais encontrei ninguém desta minha companhia.

Sou Alentejano, de Selmes, uma freguesia de Vidigueira, perto de Beja.

Obrigado gostava tanto de encontrar os meus amigos da companhia, como o Pinela, o Arganaça, o Gameiro, ect.
Para todo e qualquer contacto, o meu e-mail pessoal é: capisat-santana@hotmail.fr

Um abraço,
Capito Joaquim
Sold Radioteleg da CCAV 3364

Emblema e guião de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Deste batalhão temos notícias no poste P2601, do programa do seu Encontro Anual de 2008, através do nosso Camarada Delfim Rodrigues, que a certo momento diz:

"Para qualquer dúvida ou esclarecimento necessário poderão contactar:

Alberto Toscano - 912381293 - albertotoscano@sapo.pt

Carlos Conceição (Xina) - 919489378 - carlos_m_novoa@hotmail.com

T.Col. Bernardino Laureano - 966452001 - laureano@netmadeira.com"

Cremos que seria um bom início de busca dos seus Camaradas e Amigos da Companhia, o Capito Joaquim contactar, via telemóvel ou e-mail, estes três seus Camaradas do batalhão, que poderão ter boas notícias sobre aqueles que ele procura contactar.

(*) Vd. último poste da série em:

domingo, 24 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5705: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (21): As diversas formas do medo

1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2010:

Caro Carlos:
Em anexo mando a estória n.º 21 para a série A Guerra Vista de Bafatá.

Estive hoje na Tabanca de Matosinhos. Estavam lá 50 camaradas.

Um abraço, boa noite e até para a semana (espero).
Fernando Gouveia



A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

21 – O Medo


Recordo com saudade quando um dia, com os meus sete ou oito anos, fui com o meu pai à caça lá no meu Nordeste Transmontano e no regresso, já noite pois era Inverno, nos sentámos numa fraga a retemperar forças para chegar à aldeia.

Ali naquela escuridão o meu pai deve ter achado, com alguma razão, que eu estava com medo e num gesto que nunca mais esqueci, sem nada me dizer, pegou na espingarda e deu-ma para eu pegar nela.

Podiam vir todos os lobos, todos os monstros, tudo o que podia meter medo, mas aquele gesto apagou todos os meus receios ficando com uma paz interior que me fez esquecer todos os papões.

Outra recordação, agora da instrução em Mafra (Maio ou Junho de 1967): Ensaiávamos um exercício que constava em saltar, com a arma, de uma viatura em andamento. Pois bem, um camarada cadete não conseguia saltar, nem com a camioneta a andar lentamente. Os instrutores fizeram de tudo e disseram de tudo (até da mãezinha) para ele saltar e nada. Por fim pararam a viatura e mandaram-no saltar. Tremendo como varas verdes, não saltou. Isso já era medo levado ao extremo.

Também, e agora já na Guiné, recordo-me de ouvir por mais de uma vez, aqueles episódios de camaradas que no desencadear de uma emboscada IN se escondiam atrás de troncos de árvore, com sete ou oito centímetros de diâmetro. Isso seria medo totalmente descontrolado.

Já noutra estória descrevi a penúria de armamento, aquando da minha estadia em Madina Xaquili. Nunca lá senti medo. Também quando lá entrei numa operação em que cruzámos trilhos IN, daquele dia ou do anterior (era fácil a datagem por o capim ter um palmo), não senti medo. Em ambas as situações era eu que as controlava.

Pessoalmente e que me lembre, como adulto só senti medo por duas vezes e, na Guiné, de forma algo caricata. Considero que tive medo exclusivamente por não ser eu a controlar as situações.

Senti medo, quando chegado à Guiné e colocado na 2.ª REP do CG (onde estive quinze dias no ar condicionado, antes de ir para Bafatá), ao fim de quatro ou cinco dias fui escalado para Oficial de Ronda. A ronda consistia em ir num jeep com um furriel e dois soldados, percorrer os subúrbios de Bissau, por zonas de picadas, sem luz, e algum mato. Como era periquito limitei-me a seguir as indicações do Furriel, requisitando para o efeito uma pistola. Se lá continuasse a fazer esses serviços levaria armamento mais adequado e tentaria convencer os superiores a colocarem à disposição pelo menos dois jeeps. Não gostaria nada de ser apanhado à mão, o que naquele caso era simples. Senti medo sim.

O meu quarto (8 camas) durante os quinze dias em que estive colocado na 2ª REP do CG.

“A Santa Catarina” de Bafatá. A rua principal de comércio, com o cinema, o mercado, etc.

Em Bafatá a um mês ou dois de terminar a comissão, estando depois de jantar à conversa com o médico do Batalhão (comandado pelo Ten Cor Banazol), resolvemos ir à caça, no jeep que ele tinha à disposição. Fui buscar a caçadeira, e na viatura fomos andando pela estrada velha de Nova Lamego (uma picada) esperando que nos aparecessem uns coelhos (que por acaso eram lebres). Muitos já tinha matado dessa maneira, mas dessa vez não aparecia nada e o médico lá ia conduzindo. Um quilómetro, dois, quatro, sete, uma infinidade de quilómetros. Comecei a achar que já tínhamos ido longe de mais. Não dei parte de fraco. O médico então disse que era melhor voltarmos pois não havia nada. Era do que eu estava à espera. Aguentei firme, mas cheguei a ter medo. Mais uma vez não era eu a controlar a situação e continuava a não gostar de ser apanhado à mão.

Até para a semana camaradas
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5566: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (20): Memórias paralelas

Guiné 63/74 - P5704: Humor de caserna (19): Mansambo no seu melhor (Parte III) (Carlos Marques dos Santos, CART 2339, 1968/69)



Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) >  Foto 10 >  "Vamos entrar na marcha, pergunta-se ?"




... Foto 11 > "Começa a marcha. Nem as mesas escapam."




... Foto 12 > "Em bicha de pirilau”.



... Foto 13 > "E no final porque não cantar um fado de Coimbra ?"


Fotos e legendas: © Carlos Marques dos Santos (2007). Direitos reservados



1. Terceira e última  parte do texto e imagens enviadas pelo Carlos Marques dos Santos (ex-Fur Mil, CART 2339, Os Viriatos, Mansambo, 1968/69), em 18/3/07 > O bunker de Mansambo no seu melhor, uma noite de alegria colectiva, aí por volta de Novembro de 1968, um ano antes o regresso a casa, à doce casa...


Epílogo:

As noites longas de Mansambo. Rentabilizar o tempo entre guerras era a palavra de ordem.

Nota final:  fotos pessoais.  Os figurantes são pura ficção e aparecem porque estavam no âmbito da focagem.

As fotos foram conseguidas por acção de uma Olimpus Pen e reveladas em Mansambo (o fotógrafo e o técnico de fotografia eram residentes).

Os slides foram revelados em Barcelona, porque na Metrópole ainda não havia o conceito das novas tecnologias. Estávamos orgulhosamente sós e por aí continuámos mais uns anos.

CMSantos
Ex-Fur Mil

2. Comentário de L.G.:

Em 14 de Abril de 2006, o Carlos interrogava-se, a ele próprio, e interpelava-nos:

"(...) Fico, às vezes, espantado com a fluência de histórias que aparecem contadas e, muito mais, vividas. Eu que estive sempre, mas sempre, entre quatro arames farpados, que estórias tenho para contar!? Nenhumas.

"Nada, rigorosamente nada, a não ser, o ter comido mancarra verde para matar a fome de três dias, mandioca apanhada da terra, água dos charcos das picadas, feijão frade durante um mês, a ração de combate deitada fora porque era doce e salgada ao mesmo tempo.

"Sede. O banho, aproveitando a água das chuvas. Ou, então, sem água durante um mês em destacamentos isolados. 5 ou 10 litros de água bebida em sofreguidão quando chegava ao aquartelamento." (...).

Carlos:

Quem te disse que não tinhas histórias para contar ? Viveste meses e meses a fio a constuir um aquartelamento, os bunkers de Mansambo, de pá e pica na mão... Dormiste meses e meses nesses bunkers... Sobrevivestes meses e meses a fio, neste sítio que não vinha no mapa... Tu e milhares e milhares de camaradas, ao longo de anos, em dezenas e dezenas de bu...rakos como este... A CART 2339, unidade de quadrícula do Sector L1,  no famoso triângulo Xime-Bambadinca-Xitole,  cumpriu a missão que lhe atribuiram, que era manter aberta a estrada Bambadinca-Xitole...

Quantos Mansambos não houve na Guiné, de norte a sul, de leste a oeste ?... Era um universo concentracionário... Não cometeste nenhum crime para seres condenado a um tal degredo, a não ser teres nascido porventura no ano errado e no país errado... Sobreviveste, não enlouqueceste,  roubaram-te uma parte da tua vida, da tua juventude, dos teus sonhos...

A tua foto-reportagem sobre uma noite de Mansambo (para quê adjectivar ? louca ? longa ? absurda ?...) é um notável documento que um dia os teus netos irão  ver e ler com outros olhos que não os nossos... E seguramente compreender:
- Um dia o meu avô foi para a guerra, lá longe, na Guiné-Bissau,  e teve meses e meses a fio a viver e a dormir debaixo de terra como os ratos, as toupeiras... Ao todo dedicou 3 anos à sua Pátria como soldado... Eu tenho orgulho no meu avô que foi um homem digno...

Carlos, obrigado pelas tuas fotos e legendas: este também é o outro lado (oculto e, muitas vezes, ocultado) da guerra... Não vamos ignorá-lo, nem escamoteá-lo, nem branqueá-lo. Não vamos vitimizarmo-nos, mas também não vamos pormo-nos em bicos de pés. Simplesmente estivemos lá, em Mansambo e em tantos outros bu...rakos da Guiné! ... E sabíamos uma coisa importante: que o nosso país não poderia continuar a estar ou sentir-se orgulhosamente só...

Nós estávamos sós, nos Mansambos da Guiné, mas não orgulhosamente... Batemo-nos, com dignidade, para que o poder político de então encontrasse uma saída,  histórica,  para a nossa solidão... Podes achar que as histórias de Mansambo não tiveram nada de exaltante nem muito menos de heróico: deixemos os heróis no Olimpo, junto dos deuses; retomemos o nosso lugar entre os homens... neste pequeno rectângulo do mundo que nos coube em sorte. 

Espero que esse coraçãozinho continue a bater forte, meu amigo e camarada Carlos Marques... Um beijinho à tua Teresa. E até ao nosso próximo encontro.  Luis

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores da série:

16 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5654: Humor de caserna (18): Mansambo no seu melhor (Parte II) (Carlos Marques dos Santos, CART 2339, 1968/69)

 3 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5585: Humor de caserna (17): Mansambo no seu melhor (Parte 1) (Carlos Marques dos Santos, CART 2339, 1968/69)

Guiné 63/74 - P5703: O cruzeiro das nossas vidas (15): O dia do embarque (José Marques Ferreira)


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, ex-Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 22 de Janeiro de 2010, a seguinte mensagem:


Camaradas,

Peço desculpa, mas hoje «engatei» a linha de produção, e aqui envio nova estória.

Esta estava prometida há tempos, pois já contei o regresso. Faltava contar alguma coisa sobre o embarque.
A foto pode ser complementada com uma legenda do género: «Maçarico para a Guiné, a bordo de um monte de sucata».

Aliás, é visível!

O DIA DO EMBARQUE


Já o disse aqui e repito-o sem entusiasmo…

Embarquei naquele local conhecido de todos, em Lisboa, no dia 14 de Julho de 1963.

Já pouco tenho gravado na memória desse dia. Não tinha ninguém a despedir-se de mim na Rocha do Conde de Óbidos, ou por ali perto.

Quase que não lembro como foi, talvez psicologicamente “anestesiado”, quase não dei pela minha entrada no barco. Dessa anestesia, ficou-me o desejo, lembro-o hoje, que a poderia ter evitado… não sei. Quase perdi a total percepção dessas coisas.

Há pelo menos uma que fiz e lembro bem, é que nunca apresentei um documento comprovativo das minhas habilitações literárias, ao tempo do ano de 1963, porque tinha receio de ir para a tropa muito tarde e de ir cair a sítios que, naquele tempo, seriam considerados de maior risco, como por exemplo uma das linhas da frente dos combates, em Angola.

Na Guiné, em 1963, as coisas não estariam tão más quanto isso, pois nessa terra vermelha de sangue, suor e lágrimas (Armor Pires Mota), a guerrilha estava em «preparação» e «organização». Não me enganei, embora já existissem zonas de constante actividade guerrilheira.

Voltemos ao assunto, embarque.

E lá entrei no barco, qual carga de gado vivo, que se chamava «Sofala».

Como era preciso cumprir as ordens de Salazar (porra, sempre este nome a vir à baila, quando falamos da nossa juventude toda ela passada sob o síndrome da guerra colonial), que dizia «rápido e em força». Nem que fosse preciso tratar as pessoas como meros animais, que entravam num cargueiro sem condições para transportar o que quer que fosse, quanto mais pessoas!!!

Ele eram porões e mais porões, num cargueiro enorme, “carregado” de milhares de homens uniformizados militarmente, qual quantidade enorme de carne para canhão, ali metidos, tendo ainda, por baixo desses porões, uma quantidade enorme de outros soldados com viaturas, armamento, máquinas e munições… muitas munições.

Quer isto dizer que aquele barco, o «Sofala», que nos levava, com pouca preparação, para um distante, desconhecido e estranho sítio, carregado até mais não poder.

E lá partimos. Iniciava-se, naquela altura, a construção da ponte, que nem o nome que lhe foi atribuído após ser terminada me atrevo a pronunciar (não é que o actual “baptismo” da mesma me seja acomodatício, mas gostaria que um crânio, mais iluminado, lhe tivesse atribuído outra “nomenclatura”).

E lá fomos. Penso que saímos de tarde, ou terá sido de manhã? Não, não estou a brincar, já não me lembro daquele que deveria ter sido o dia que me ficassem gravados, na memória, todos os momentos e acontecimentos.

Sei, é que no mesmo dia, ou no dia seguinte, todo aquele monte enorme de ferro em que eu ia deitado (uma enorme fonte de perigo sujeita a ir pelos ares e a ficar feito em frangalhos a qualquer momento), avariou. Estivemos então à deriva, em pleno alto mar sob balanços constantes, até ao meio da tarde.

Raro foi aquele que não «deitou a carga ao mar». Eu fui um deles.

Logo que a avaria foi consertada, continuamos a agoniante viagem até à foz do Geba.

Já se cheiravam às águas do Geba e das bolanhas, quando fomos sobrevoados por alguns aviões, que certamente vieram ao nosso encontro. Como estávamos perto da costa, asseguravam-se que a «valiosíssima» carga que o navio transportava chegava em boas condições, não fosse o diabo tecê-las.

Como muitos outros já haviam chegado um dia, também aquela abantesma, chegou a Bissau, tendo de ficar aproado no meio do Geba. E de imediato a «descarga» começou…

Fomos transportados para a Escola Primária “Teixeira Pinto”, próxima do depósito de água, no Pilão, e ali permanecemos uma semana. Já aqui contei este pormenor…

Depois, entregaram-nos a «ferramenta» nova (G3) e lá partimos rumo a Ingoré.

Era o momento ideal para terminar aqui esta estória, mas não o quero fazer sem evidenciar, mais uma vez, as miseráveis condições em fomos transportados naquele flutuante e famoso ferro velho, quase apodrecido… no qual cheguei a ir ver a casa das máquinas. Eram indescritíveis as condições de trabalho daquela gente.

Também tive a rara oportunidade de ver no mar, peixes voadores e o «mar chão» que nunca tinha experimentado! Que grandes e belos espectáculos!

O barco em viagem, rasgando as águas marítimas parecia deslizar, qual automóvel em tapete de alcatrão!

Um abraço aos tertulianos e colaboradores que muito prezo,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

10 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5248: O cruzeiro das nossas vidas (14):Queremos o Uíge (António Dias)