segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5789: História de vida (28): Um retornado que pagou para ver: Angola, 1961-1974... (António Rosinha)


Angola > s/d > Foto da Estrada da Leba, nas serra da Chela,  na cidade do Lubango (Sá da Bandeira).

Esta obra admirável foi projectada por um engenheiro angolano,  de nome João Campinos, que foi meu director. Em geral todos os meus colegas que trabalharam nessa obra eram angolanos, e na sua maioria vieram para cá, uns,  e outros para o Brasil.


Faziam parte de milhares que juravam que jamais sairiam de Angola, terra deles, tão angolanos como os  Pepetelas, os Lúcios Laras, os Luandinos Vieiras, os Ouros Negros, os Ruis Romanos...isto para falar de gente notória.


A maioria foi para o Brasil, Canadá, etc. Esta gente, muitos milhares, eram de um valor enorme. Quem perdeu não foram eles, foi Angola e Portugal. Quando digo que vivi anos maravilhosos em Angola, foi porque convivi com gente maravilhosa, desde o autor desta obra até aos sobas da Huila (Sá da Bandeira).

Foto (e legenda): ©  António Rosinha (2010). Direitos reservados


1. Texto de António Rosinha, com data de 6 do corrente:

Assunto: Uma passagem por Angola

A GUERRA QUE POR UM TRIZ PODIA NÃO TER ACONTECIDO
ou ... UM RETORNADO QUE PAGOU PARA ASSISTIR A TUDO
(Ao José Brás, para complementar...)(**)

Em 1961 quando a UPA [, União dos Povos de Angola,] fez os massacres (actos de terrorismo) do norte de Angola, provocou a tal frase do Salazar: "para Angola [rapidamente, e] em força", isto mais ou menos. Como não recorro a estudos, só falo do que assisti e ouvi, posso trocar alguns termos históricos mas o sentido é fiel ao que se passou.

Se não fosse a decisão tão rápida do Salazar, provavelmente não teria havido esta guerra em que todos neste blog participámos. Teria havido outras guerras, mas esta não. Digo isto porque já estava muita gente (brancos, de cá e de lá) a fazer as malas para dar à sola. E muita gente cavou.

E, se a mobilização provocada pelo Salazar demorasse mais uns dias, só ficavam aqueles que não tivessem dinheiro para a passagem, e alguns dos que nasceram lá.

Ou seja, acontecia o que se viu com os vizinhos belgas, e com os retornados em 1974. E tal como aconteceu, após a fuga dos belgas e como aconteceu com a fuga dos portugueses, começou num e noutro território a caça ao tesouro. Para mim, foi a guerra que se seguiu no ex-Congo belga e em Angola. Caça ao tesouro, só e mais nada, porque essa do MPLA ser de uma ideologia e os outros de outra, e Lumumba ser de uma ideologia e Mobutu de outra, assim como essa da conversa da libertação dos povos, tudo isso resumia-se a diamantes, petróleo, ferro, manganês e...território. (seguiu-se uma guerra internacional de 27 anos).

E, se em 1961 a debandada se concretizasse, como os americanos pensavam (Kenedy e as missões evangelistas), ao ajudar e financiar a UPA, será que o Salazar lançaria aquela ordem Para Angola [rapidamente, e] em força? Sem portugueses em Angola, duvido que Salazar reagisse como reagiu.

Mas mesmo com a chegada dos primeiros navios com caçadores de camuflado ( Cuanza, Vera Cruz) a Luanda, que eu vi desfilar na marginal, eu já fardado de furriel, ainda havia muita gente desanimado e indeciso "vai não vai". Eu era um, tanto mais que sabia que nem armas de jeito havia nos quartés.

E essa gente indecisa que resolveu ficar, ficou por um motivo que nunca vejo explicado, nem por militares nem por retornados, nem por esses novos historiadores tipo Joaquins Furtados. Esse motivo, foi mais uma decisão rápida do Salazar, que arrumou com a malta toda do vai não vai.

Num piscar de olhos, aquela cabeça [, Salazar, ] decidiu que o dinheiro dos angolanos em que 1000$00 equivalia em Lisboa a 900$00, passou a valor de 0,00$00. Zero vírgula zero, zero. Ou seja, ficámos todos tesos de um momento para o outro. E quem estava indeciso esperou para ver, não tinha outro remédio. E é sabido que o emigrante português tem vergonha de regressar sem dinheiro.

Angola > 1961 > Desfile de tropas > O Rosinha, furriel miliciano aparece aqui em primeiro plano, assinalado com um X. Repare-se no tipo de armamento das NT: pistola-metralhadora FP, para os graduados; espingarda Mauser, para as praças...Farda: caqui amarelo... (LG)

Foto: © António Rosinha (2006). Direitos reservados


Pessoalmente, como antes da guerra já trabalhava em cartografia em Angola, fazia exactamente os mapas iguais aos da Guiné do Blog, eu mais uns cento e tal colegas, muitos eram angolanos de várias cores, uns dos Serviços Geográficos outros de empresas privadas, continuei, a seguir ao serviço militar , na mesma actividade de barraca de campanha e aparelhagem às costas (às costas dos pretos descalços, contratados, semi-nus...Ouvi declamar Agostinho Neto e Castro Alves em comícios de Abril), por montes e vales, Cuanzas, Cunenes e Zaires... Mais tarde deixei os mapas e passei à Junta Autónoma de Estradas, novamente com ajuda do trabalho braçal dos contratados pretos, (com machados e catanas, de tronco nu, a transpirar e sem desodorizante...).

E a guerra continuava e os barcos e aviões iam e vinham cheios de militares, e muitos, inclusive um capitão metropolitano que me comandou, dizia, que estava naquela guerra, porque nós, os brancos de Angola, tratávamos mal os pretos, por isso eles se revoltaram. Esse capitão, em 1961, via a guerra dessa maneira."Estava a guardar as minhas costas". Esse capitão que andará pelos 80 anos hoje, chama-se se a memória não falha, Silva e Souza, e esta conversa dele para mim, foi entre Golungo Alto e Cerca, em Julho ou Agosto de 1961 (este pormenor é para ver se haverá feed back), pois a partir da minha idade, 71, há poucos internautas.

Os capitães eram maus para mim, sujaram-me a caderneta militar por duas vezes porque no periodo de manhã nunca chegava às 8 horas ao quartel. Por duas vezes, para fugir dos capitães maus, ofereci-me voluntário para zonas de intervenção. Ameaçavam que para a próxima ia para prisão.

Luanda era a minha desgraça. Não conseguia cumprir. Custou-me mais o quartel em 36 meses e a farda, do que certos isolamentos de semanas seguidas sem ver cidades de branco e a comer mandioca e caça ou batata doce.

QUAL A ALTERNATIVA À GUERRA ?

Agora, passados estes anos, todos têm a sua própria solução, tanto quem foi para a França, ou Moscovo ou Argel, como quem viveu a guerra, como quem viveu a paz e a guerra.

A maioria acha que deviamos fazer o que fez a Inglaterra ou a França. É raro dizer que se devia imitar a Bélgica (abandono e a ONU e outros que resolvam).

Pode haver muitos que sabem o que fizeram esses paises, mas sei que há muita gente que não sabe.

Mas havia um herói Guineense que sabia muito bem o que fizeram; esse herói é Amilcar Cabral. E escreveu. E eu dou-lhe razão. Segundo Amilcar Cabral, Salazar nunca vai negociar a Independência das colónias, porque sabe que não tem força para manter o neo-colonialismo.

Em geral todos sabemos que a Inglaterra e a França, tinham (têm?) tropas permanentemente em acção na protecção aos diversos dirigentes que apoiavam, ou no derrube de outros. É célebre na literatura a Legião Francesa. O Amilcar refere-se e critica muitas vezes os países africanos em que acontece isso.

Mas, para aqueles que vivíamos em Angola, não era apenas essa certeza do Amílcar que não tinhamos força para manter o neocolonialismo, como por exemplo aconteceu com o Congo Belga em que os belgas também não tiveram força para proteger nenhum regime, pois foi primeiro a União Soviética, depois a França, depois os Estados Unidos: Lembram-se de figuras como Lumumba, Kasavuvu, e Mobutu ? Havia outros, mas eu nunca fui especialista, para mim era tudo farinha do mesmo saco. Ninguém quid saber do povo, nem mesmo a ONU teve comportamento decente.

Para Portugal, ia ser pior, visto por quem vivia lá, se se negociase fosse com quem fosse, ou se se desse sinal de baixar a guarda e algum daqueles Chefes de movimentos desse um passo em frente, esse alguém era imediatamente trucidado, ficava tudo a ferro e fogo, e a intervenção internacional ia ser mais selvagem e brutal do que foi os 27 anos a seguir ao 25 de Abril, e não creio que aquelas fronteiras (uma recta no sul tem 400 Klm), resistissem 24 horas.

A Guiné, todos sabemos com o que se passa em Casamansa / Senegal...já viram qual era a solução! Em 1998 esteve quase. E com o Sekou Touré tambem sabemos o que ele sempre pensou sobre as Guinés!

Sobre Angola e Moçambique era simplesmente uma justificação igual à do mapa côr de rosa. Os portugueses não ocupam, abandonam, então ocupamos nós... Mas nós, quem? Em 1961 em plena guerra fria, não ficava pedra sobre pedra. E, ainda havia a interioridade de certos paises anglófonos e francófonos que nunca viram com bons olhos aquelas paredes Angola e Moçambique.

ENTÃO COMO FICAMOS? GUERRA OU ABANDONO?


Partindo do princípio que em África nenhum dirigente se impôs sem protecção, (neocolonialismo? protecionismo?), e Amílcar tinha razão que nós não tinhamos força par proteger ninguém, (nem fronteiras, nem a língua, digo eu), penso que a guerra que suportámos, só deve ser julgada se foi esticada demais e devia terminar mais cedo, ou até se devia, no caso de Angola, ter mantido a força e a displina militar e não ter dado espaço aos russos e americanos e sul-africanos e cubanos terem feito aquela desgraça toda.

Os Movimentos deram espaço e tempo para nos organizarmos melhor. Eu pessoalmente tratei da minha saída , e ainda tive que meter cunhas para pedir a demissão do serviço, cunha para a PIDE (PIM) me dar o visto no passaporte, trocar algum dinheiro na tropa (25%), para ir para o Brasil em Novembro de 1974 e a independência, com pontes aéreas, salteadores, assassinatos gratuitos...cubanos e sul-africanos, navios de guerra ao largo, em Novembro de 1975. 25A 1974 - Nov75 = 19 meses. Era tempo suficiente, mas nós, somos nós!

Para mim, que vi a desorganização nossa no início da guerra, os oficiais não se entendiam nem sabiam o que fazer, sem armas, sem disciplina, era tudo por improvisações, até falta de fardas e calçado se fazia sentir, tal a desorientação. Sargentos idosos a chorar, para que nós, os novos, fossemos para o norte porque eles tinham filhos para criar. Nós, os novos, no meu caso tinham feito na carreira de tiro meia dúzia de tiros de Mauser e FBP.

Como depois tornei a ver a desorganização do fim da guerra, com oficiais a puxar cada um para seu lado, que se pode chamar que houve falta de respeito para com eles próprios, como assisti portanto ao princípio e ao fim, penso que fizemos a guerra que estava ao nosso alcance, mas que tinha que ser feita, sim.

E que, à parte as políticas, quem fez esta guerra fomos nós os portugueses, o Salazar era português, o Spinola era português, Salgueiro Maia era português, que se fez de bom ou mau, fomos nós, os portugueses que fizemos esta guerra.

E, em respeito a todos os amigos e conhecidos que morreram, e em memória de muitos amigos angolanos, com quem vivi, e que trabalhamos, lutamos e nos divertimos em português, só quero que aquelas fronteiras e a lingua portuguesa não desapareçam.

Pois sem esta guerra, em que tantos morreram, aquelas fronteiras e a lingua portuguesa tinham desaparecido em 1961.


EM PORTUGUÊS,

Retornado = portuga que foi e regressou;

Entornado = são os que nasceram lá e vieram, mas querem diferenciação. (blogs diversos)

Os portugueses discriminam os pretos, só se vêm a limpar o lixo, a trabalhar nas obras, mas nenhum é ministro (Bonga na TV).

Os portugueses não fizeram nada no Brasil, só exploraram o índio (Caetano Veloso, jornais);

O mulato quando é pobre é preto, quando é rico é branco (calcinhas de Luanda, antigamente);

O Brasil seria melhor se fosse Holandês? Espanhol? ( debate na TV Globo, Rio, após 154 anos de independência);

Os Angolanos não são valentes como nós (pioneiros do PAIGC, Bissau).

EM PORTUGUÊS A GENTE SE ENTENDE!... E ISSO É O ESSENCIAL.

Um abraço para todos,

Antº Rosinha

[ Revisão / fixação de texto / bold / título: L.G.]

_______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste do António Rosinha > 31 de Janeiro de 2010> Guiné 63/74 - P5739: Efemérides (42): Dia 25 de Maio de 2009, finalmente inaugurada a estátua de Amílcar Cabral na Guiné-Bissau (António Rosinha)

Viveu em Angola, onde cumpriu o serviço militar, foi Fur Mil em 1961; topógrafo na TECNIL, na Guiné-Bissau, entre 1979/93. É membro, de pleno direito, do nosso blogue desde Novembro de 2006.



(**) O José Brás comentou o texto do António Rosinha que lhe foi enviado directamente. Esse texto será publicado, oportunamente, noutro poste.

Guiné 63/74 - P5788: História de vida (27): D. Berta e a Pensão Central de Bissau são instituições internacionais (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Devíamos pedir uma elevada condecoração (pelo menos a do Infante D. Henrique!) para a D. Berta, dados os relevantíssimos serviços prestados ao bem-estar dos portugueses e ao que ela tem feito para manter ao mais alto nível a cordialidade luso-guineense.
Aqui vos deixo, em fotomaton, o meu estado de espírito acerca da D. Berta.

Um abraço do
Mário


D. Berta, tenho tantas saudades suas!

Beja Santos

Escreve uma pessoa um livro intitulado “Mindjer Garandi” e nem se interroga que informações existem sobre a expressão, confia cegamente no que viu e ouviu, no que perguntou e no que consta em alguns papéis. Ora a era digital abriu portas para que se saiba mais e depressa. Por descargo de consciência, fui ao Google onde, entre as consultas possíveis, vi “Pensão D. Berta Bissau”. Foi um estremeção da cabeça aos pés, não sei se choque fotovoltaico ou electromagnético, apareceu-me a D. Berta, o seu eterno sorriso maroto e meigo. A D. Berta e a sua pensão são instituições internacionais, unem continentes, são pessoa acolhedora e espaço residencial único, há décadas.

A D. Berta entrou na minha vida quando casei, em Abril de 1970, em Bissau. Passámos uns dias em casa dos meus padrinho Elzira e Emílio Rosa, a seguir a alguns dias no Grande Hotel, a pretexto da chegada de personalidades, fui avisado quase em cima da hora que tínhamos de sair no dia seguinte. No meio da perplexidade, alguém me recomendou: “Olha, vamos daqui até à Pensão Central, é ali ao lado da Catedral, é certo e seguro que a D. Berta vai desenrascar a situação”. E desenrascou mesmo.

Para quem não sabe, a Pensão Central resistiu à guerra de 1963-1974, este sempre acima de todos os golpes de Estado, guerras civis e estados de sítio. Mesmo quando houve escassez de alimentos, o elementar não faltava na Pensão Central. Com a independência, a Pensão Central tornou-se um espaço de livre-trânsito para todos os cooperantes. Quando ali aterrei em 1991, tanto podia almoçar com holandeses ligados a projectos de saneamento de água em Canchungo como peritos do Banco de Investimentos de África, como jantar com os portugueses da Medicina Tropical ou italianos do Fundo Monetário Internacional. Naquele tempo ainda era possível atravessar meia Bissau a pé à noite, despedia-me da D. Berta e rumava para as instalações da CICER, era uma bela passeata de quase dois quilómetros.

A D. Berta nunca me saiu do coração, estou em crer que nunca saiu de ninguém que comeu ou dormiu naquela pensão. Uma vez, já em Dezembro de 1991, estava eu desesperado com a inércia a que chegara o projecto que me levara à Guiné (criação de uma comissão interministerial de defesa do consumidor, havia decisão do presidente Nino Vieira, o ministro Carlos Borrego criara uma linha de financiamento para as instalações, eu conseguira encontrar uma técnica para coordenar a comissão com o perfil adequado, mas nada mexia, as nomeações não se faziam, não era possível obter a concordância para o início das obras das instalações, sitas no antigo Quartel General), e a D. Berta vendo-me à varanda abatido, chegou ao pé de mim e com voz consoladora, disse-me: “Vá lá, pense na Guiné, que o trouxe cá de novo, pense no bem da nossa gente, o que não sair perfeito hoje dar-lhe-á saudades para voltar mais tarde...”. E o meu estado de espírito mudou. Infelizmente, nada avançou, fizeram-se ainda uns programas televisivos, creio que tudo caiu no olvido.

A D. Berta era tida como uma santa, alegrou a vida de muita gente, transformou o espaço anónimo de uma pensão numa casa de vínculos perduráveis. Só espero que alguém transmita à D. Berta que eu estou pronto para voltar, receber dela um beijinho, sentar-me à varanda, ouvir os sinos da Catedral, o bulício da Avenida Amílcar Cabral, sentir os cheiros do velho mercado, talvez a maresia que vem lá debaixo, do Pidjiquiti. Então, vou fechar os olhos e regressar a 1970, ali a dois passos vou ver entrar alguém que me irá falar num massacre que ocorreu nesse dia no chão manjaco, subo até ao cinema da UDIB, o passeio findará no Museu e no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, onde juntei tantos elementos para os meus livros. Depois abro os olhos, vou sorrir para a D. Berta e dizer-lhe como ela está sempre bonita, ninguém com aquele sorriso poderá envelhecer ou ser esquecido. E, claro está, iremos conversar, ela vai querer saber o que vim fazer à Guiné. Tenho quase a certeza que a vou emocionar com a Viagem do Tangomau. Nada poderá ser impossível para a D. Berta, mesmo ter um tangomau como hóspede...





Fotos retiradas das páginas http://pensaodbertabissau.wordpress.com/ e http://afric-ana.blogspot.com/2008/04/d-berta.html com a devida vénia
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5777: Notas de leitura (64): Já participamos nos romances dos outros - A Lucidez do Amor, de Tânia Ganho (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5733: História de vida (17): António Marques, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), um sobrevivente nato (Mário Miguéis / Luís Graça)

Guiné 63/74 - P5787: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (12): Bissau, uma guerra diferente onde os rumores também voavam

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 5 de Fevereiro de 2010:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Em devido tempo deixei-te saber que tinha uns cavalinhos, à solta, no meu companheiro de muitos anos. Infelizmente, tive que me separar dele por algum tempo, e acabei por arranjar mais um companheiro.
Pior que tudo isso foi saber que, por falta de trabalho (e dou-te algum) o valor das tuas comissões baixaram bastante. Lamento!

Não poder dar o meu passeio diário pelo blogue também pesa na minha consciência. Mas tudo está bem quando acaba bem, e cá estou a contribuir com mais um história simples para a série "Memórias e histórias minhas".

Para ti e para todos os camaradas um braço muito quente do
José Câmara



Bissau: uma guerra diferente onde os rumores também voavam

Várias vezes referi que a disciplina imposta pelo comandante do AGRBIS, o excesso de trabalho, o serviço ao Hospital Militar 241 e à sua morgue, e as Guardas de Honra Fúnebres no cemitério de Bissau como sendo os componentes que mais afectaram, psicologicamente, a nossa estada em Bissau.

Houve também outros factores que, pela sua importância contribuíram para o abalo mental que, desde cedo, se começou a sentir no seio da Companhia. Refiro-me aos rumores que, desde o dia em que chegámos à Guiné, voavam em todas os sentidos, e que nos davam como certos nos lugares mais díspares do TO da Guiné. As zonas de Pirada e Aldeia Formosa eram os lugares mais visados como áreas de colocação. Buruntuma também tinha os seus adeptos. Eram zonas míticas e difíceis.

O Comandante da Companhia, Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves, bem se esforçava para dissipar os rumores. Dizia ele que nada sabia, pois não tinha sido informado. E a verdade é que não sabia mesmo, e os seus esforços acabaram por não surtirem o efeito desejado, que era o de estabilizar o estado emocional dos soldados.

A presença de um simples facto veio alterar, sobremaneira, todo o panorama dos rumores que passou a certezas entre os soldados da Companhia. A zona de Pirada era (para eles) o nosso destino. Sobre isso escrevi à minha madrinha de guerra o seguinte:


Carta de 25 de Fevereiro de 1971:

"Disse, em carta anterior, que no dia 19 de Fevereiro iria para o Destacamento de Nhacra ou Dugal, numa fase de adaptação. Tal não aconteceu. Outro Pelotão é que foi para lá. Assim, continuo em Brá e com o mesmo serviço.
Deve estar perto a ida para o mato. Pelo menos a Companhia que nos vem render, em Brá, está prestes a chegar. O 1.° Sargento daquela Companhia já veio instalar a Secretaria. Portanto, mais dia, menos dia, nós vamos de abalada para o mato. Não sei o sítio mas, segundo se diz, vamos para perto de Pirada."


A presença daquele 1.° Sargento foi como um bálsamo para a sanidade mental de grande parte dos elementos da CCaç 3327. O que os soldados queriam era sair daquele inferno chamado AGRBIS. E com razões de sobra.

Os rumores cessaram, e até o lugar para onde iríamos deixou de ter importância.


Aerograma de 7 de Março de 1971:

"O meu trabalho continua a desenrolar-se normalmente, não havendo nada de especial a referir. Continuamos sem saber quando iremos para o mato, nem para onde. Tudo continua no maior silêncio."

A verdade é que os dias foram-se passando. E, com eles, o descontentamento começava a apoderar-se, mais uma vez, dos soldados. Nós, a maioria dos graduados compreendíamos que a nossa guerra em Bissau era diferente, e que o perigo dos tiros era quase nulo. Mas seria isso o suficiente para apaziguar os sacrifícios desenvolvidos? A minha madrinha de guerra era a única pessoa que sabia o que me ia na alma.


Aerograma de 27 de Março de 1971:

"A vida na Guiné continua a mesma coisa, isto é, sem alterações.

Quanto à nossa situação devo dizer-te que a malta
(deveria estar a referir-me aos soldados) está para pedir ao nosso Capião para irmos para o mato. É que toda a gente está a ficar estoirada, fraca e sem vontade própria.

Para já, estive 48 horas seguidas de serviço e não gostei nada. Agora soldados que andam há um mês e tal sem descanso, como não devem estar? Dormem aos bocadinhos, andam quilómetros e quilómetros, dia e noite sob este calor tórrido. Enfim, isto para eles é um verdadeiro inferno. Eu, comparado com eles, estou no céu, acredita. Eu tive muita sorte no meio de toda esta miséria.

É certo que estamos numa zona onde não há tiros, nem barulhos. Mas pergunto eu:

- Valerá a pena tamanho sacrifício?"


Da esquerda para a direita: o Soldado Condutor Auto João Valadão (já falecido), Fur Mil José Câmara, o guineense chefe dos serviços da lavandaria do Palácio, e o Soldado João Avelar Ventura

Entretanto mais alguns dias se passaram. Era normal encaixar 48 horas seguidas de serviço: Sargento da Guarda ao Palácio e Sargento do Dia à Companhia. Normal não era fazer 72 horas seguidas. Mas acontecia, se havia impedimento de algum dos outros furriéis a qualquer serviço de escala. Na carta que escrevi à minha madrinha de guerra não faço nenhuma referência à nossa ida para o mato.


Carta de 1 de Abril de 1971:

"Há 72 horas que me encontro de serviço. Aborrecido como sempre... Ontem a coisa esteve feia, pois os soldados tentaram fazer um levantamento de rancho" - (já fiz referência a este caso, pelo que é descabido mencioná-lo outra vez).
Esta carta acaba abruptamente da seguinte forma:

"Desculpa a pequenez da carta. Mais tarde explicarei porquê".

A forma como termino a carta indica que algo de importante se passou. Nesse dia, tomámos conhecimento de que íamos, finalmente, ser rendidos em Bissau e que seguiríamos para o mato a 6 de Abril.

A Companhia de Caçadores 3327 iria assumir o estatuto de Companhia de Intervenção ao serviço do CAOP1, com sede em Teixeira Pinto. A sua missão principal seria proteger a nova estrada que estava a ser construíada entre Teixeira Pinto e Cacheu.

A Mata dos Madeiros era o nosso destino.

José Câmara
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5571: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (27): O Pai Natal das minhas netas encheu-me o sapatinho (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5508: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (11): Esta água tem pouco vinho

Guiné 63/74 - P5786: Os ex-combatentes sem abrigo não têm acesso ao Lar Militar de Runa (Hugo Guerra)

1. Em mensagem do dia 4 de Fevereiro de 2010, o nosso camarada Hugo Guerra* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60, Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70, e que hoje é Coronel, DFA, na reforma), enviou-nos este esclarecimento a propósito do poste Guiné 63/74 - P5734: Ser solidário (53): Que muitas Runas se levantem (José Martins) :


Caros Editores e camaradas
Não consegui enviar uma mensagem para o Poste do José Martins sobre o assunto do Lar de Runa e do apoio a camaradas sem-abrigo de modo que, tomo a liberdade de esclarecer alguns pontos que me parecem importantes. Vocês dirão.

O Lar Militar de Runa é uma estrutura do Ministério da Defesa entregue ao IASFA (Instituto de Acção Social das Forças Armadas) fazendo parte do conjunto de Messes desse Instituto e serve exclusivamente para a “Família Militar”. Os Governos estão-se nas tintas para a vontade dos fundadores e dispõem a seu belo prazer ou interesse imediato, de tudo a que podem deitar a mão. Logo, os nossos camaradas sem-abrigo que não podem ser beneficiários, por não serem militares ou DFA’s não têm acesso ao mesmo.

Todavia e, por outro lado, todos podem ser assistidos pela Liga dos Combatentes que em boa hora criou e está a desenvolver no terreno um projecto de apoio a estes camaradas, o qual passa por despistagem e apoio concreto em termos de consultas e alimentação, preparando-se agora para a Criação de Residências Assistidas, tendo até criado uma conta bancária para este efeito.
Tudo isto pode ser visto no site da Liga dos Combatentes pelo que não me alargo com mais explicações.

Só me custa, é ver que quando isto estiver a funcionar em pleno, já estaremos todos a fazer tijolo, passe a expressão, e mais uma vez iremos ver que, de boas vontades está o inferno cheio.

Quero com este arrazoado dizer que, havendo este trabalho a ser desenvolvido não me parece curial estarmos a tomar iniciativas paralelas com eventual desperdício de boas vontades, tempo e dinheiro. Seria talvez mais ajustado apoiar o trabalho já desenvolvido e pressionar, se for o caso, a Liga para dar resposta em tempo útil e as residências não virem a dar resposta a ex-combatentes de uma próxima estúpida guerra.

Hugo Guerra
__________

(*) Vd. poste de 27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4255: Parabéns a você (6): Hugo Guerra, o homem que foi evacuado duas vezes e meia, faz hoje anos (Editores)

Guiné 63/74 - P5785: Blogando e andando (José Eduardo Oliveira) (3): O PREC na Baía

1. Texo de José Eduardo Oliveira (JERO) (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviado ao Blogue em mensagem de 4 de Fevereiro de 2010:


O PREC na Baía

Estava casado há cerca de 5 anos e passava as férias do mês de Agosto em São Martinho do Porto em pleno zona “aristocrática”.
Não por “casta” mas tão só e simplesmente por a minha mulher ter sido criada na vila e ter andado na escola primária com a banheira que alugava as barracas no sítio mais chique do “baía das marquesas”.



A minha barraca era na oitava fila a contar da entrada principal da praia e a primeira da fila dos “paus encarnados”.
Percebia nitidamente que os vizinhos estranhavam que eu tivesse “direito” a estar por ali e aturei muitas faltas de educação dos meninos chamados “ricos” mas “pobres”... no que respeita a educaço. É dos livros que... não se pode ter tudo.

Nas barracas vizinhas da minha discutiam-se longamente as “mãos” dos jogos de bridge da noite anterior.
Eram famílias da zonas do Ribatejo e do Alentejo.
Além do bridge começou-se a falar insistentemente nas ocupações das herdades do Alentejo e algumas famílias começaram a faltar aos banhos.

Regressavam dias depois e falavam em voz alta das ocupações selvagens das suas “coisas”.
Os tempos eram de incerteza e lembra-me da importância que tinha a chegada dos jornais à vila.

O “Jornal Novo”, fundado por Artur Portela Filho, era disputado até ao último exemplar.
A sua leitura transmitia alguma paz aos que sentiam a “onda vermelha” não parava de crescer. Que subia na maré alta... e não descia na maré baixa...
Escreviam no “Jornal Novo” nomes consagrados do jornalismo português, como José Sasportes, Mário Bettencourt Resendes, Luís Paixão Martins, Carlos Pinto Coelho, António Mega Ferreira, Teresa de Sousa, Alexandre Pais, e outros.
Era de facto o momento mais esperado do dia de praia.

Mais que tomar banho nas águas tépidas de São Martinho do Porto havia que “mergulhar” nas páginas do jornal de Artur Portela Filho.

Foi um longo mês de Agosto.

Lembro-me particularmente da noite do dia 18 de Agosto de 1975.
Nessa noite foi transmitido para todo o País o “Discurso de Almada”, de Vasco Gonçalves.
Ouvi uma parte em casa e, antes do seu final, saí para a rua.
Vim arejar ideias... mas os gritos do “Camarada Vasco” continuavam no ar... a perseguir-me.

Passei por alguns carros com pessoas lá dentro que ouviam pela rádio o “discurso de Almada”. Tinham um ar assustado.
A trinta cinco anos de distância não esqueço jamais o silêncio daquela noite de 18 de Agosto de 1975.
Quase que não se via ninguém nas ruas e o silêncio opressivo que se “ouvia” tinha um cheiro que não vinha do mar.
Vinha da terra e cheirava a medo...

Quem me havia de dizer que muitos anos mais tarde iria blogar sobre o PREC da Baía.

Enfim…modernices!
JERO
__________

(*) Vd. poste de 2 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5746: Convívios (178): 1.º Encontro da Tertúlia do Centro 2 (José Eduardo Oliveira/JERO)

Vd. último poste da série de 5 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5054: Blogando e andando (José Eduardo Oliveira) (2): Ponte para o regresso

Guiné 63/74 - P5784: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (25): O Puto não me largava

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 3 de Fevereiro de 2010:

Amigo Vinhal
Para continuidade, segue outro capítulo de “Viagem…” que espero possa minimamente transmitir a quem o ler, um estado de espírito vivido, no mínimo confuso, criado por uma situação que não sei se teria sido muito comum aos Camaradas (gostaria de saber).

Um abraço para todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (25)

O “Puto“ não me largava

Ao amanhecer de 6 de Julho de 1971, apanhado pelo bafo quente e húmido que se me colou, desci a escada do Boeing que me trouxera das férias no Puto e dirigi-me, não recordo como, aos Adidos(?) para me apresentar e posteriormente dar umas voltas pela Bissau que até então só tinha pisado por breves momentos, aquando da chegada da Companhia à Guiné e por outros também escassos, quando apanhei o avião para ir de férias, um mês atrás.

A esperança tinha-me feito de certa forma interiorizar que iria passar uns diazitos no bem-bom de Bissau, à custa de um servicito ou outro e fico siderado quando me informam que tenho de me apresentar, nesse dia na 2791 FORÇA - Teixeira Pinto.

Não foram precisas estacas ou outros escolhos para, no meu cérebro e se calhar nos arredores também, se ouvirem os “uiuis” lancinantes provocados por “tamanha injustiça”! Então por que raio é que não tinha direito a uns tempitos no bem-bom, como todos os outros ou quase todos??!! Tinha acabado de chegar de férias. Que porra era aquela de me não darem sequer um tempito para me reambientar e recuperar do cansaço dispendido naqueles maravilhosos trinta e tal dias passados?! Puta de guerra que não tinha consideração por (quase) ninguém!

Aqui, a minha memória apaga-se não me deixando lembranças de qualquer espécie. Não recordo se cheguei a Teixeira Pinto de coluna motorizada, avioneta, barco... sendo que a pé seria difícil, convenhamos (!?). O facto é que lá cheguei.

A memória começa a reacender-se com algumas intermitências irritantes.

Madrugada de 7 de Julho de 71. O bi–grupo da FORÇA forma na Parada. Já acomodados, as viaturas arrancam. A ponte Alferes Nunes fica para trás e largam-nos algures na estrada para o Cacheu. É noite e os objectivos estão ainda distantes, assim como o amanhecer.

Segundo apontamentos, vamos em missão de intercepção e destruição a P.Teixeira, Balanguerez, Pijame (a que por inclusão, chamava Zona do Balanguerez), situadas a Oeste da estrada Teixeira Pinto – Cacheu.

Em progressão e na certa recorrendo como era norma aos azimutes, fomo-nos internando nas matas daquela zona belicosa, abrigados pelos “ponchos” de uma chuva que nos dificultava o andamento e ao mesmo tempo nos dava uma certa protecção. Entra a manhã e a penetração continua, ao que recordo sem problemas. Continuamos, com as cautelas devidas e com certeza a corta–mato, como nos era costumeiro proceder.

Era normal que, quando saiamos em bi–grupo (em Teixeira Pinto foi quase sempre, ainda que muitas vezes reduzido em elementos) ir só um Alferes e dois ou três Furriéis, alternando-se entre os graduados o comando na frente onde, - já tive ocasião de explicar em Poste passado - por pensarmos ser mais seguro, por norma um de nós ocupava o 1 ou 2 lugar durante as progressões. Era também usual que qualquer um de nós, em especial o Barros, Castro, Fontinha e eu próprio assumíssemos o comando e posicionamentos da rapaziada e nossos, independentemente das equipas (Secções), GCOMB ou até do Oficial a que se pertencesse. Estávamos “calhados” com o pessoal, em especial do 2.º e 4.º GCOMB. Estas trocas e baldrocas dependiam da avaliação que fazíamos das situação a cada momento.

Toda esta “orgânica”, talvez muito própria e suigéneris, descreverei em outra ocasião. O certo é que nos dávamos bem com este sistema e como resultava, não o abandonamos.

A caminhada continua, as horas avançam. Tiros… “nem vê-los”, nada!

A dada altura pela frente depara-se-nos um acampamento dissimulado no meio das árvores. O silêncio torna-se quase absoluto. Parece sem ninguém. Envolvemo-lo e... nada! Faz-se a inspecção, nada... abandonado mas varrido! Vamos “mamar” na certa!!! Queima-se e arrancamos. Nada e nenhum tiraço!? Admira-me! A tenção nervosa é grande.

Dou comigo de novo a divagar pelas férias acabadas há uma dúzia de horas e na merdice em que estou metido. As botas de couro, julgo que cubanas e apanhadas em P.Matar, vão-me levando na fila, acompanhando o pessoal como se fosse um autómato.

A tarde já vai alta e novo acampamento se nos depara pela frente. Tiros... nada! É vasculhado... apanham-se documentos e umas armas.

Preparamo-nos para queimar e reagrupar. Rebentam os tiros. Como um eco, ouço algo do género:

- Estão ali... os “cabrões” estão a uma dúzia de metros à nossa frente metidos naquelas árvores e vegetação. Não consigo descortinar nada, por muito que me esforce!

Ao som dos tiros e rebentamentos, pela minha cabeça recomeçam a desfilar com pouco controlo, imagens ganhas no “Puto” até umas horas antes. Lisboa perfila-se assim como o S. João no Porto e muitos daqueles bons momentos passados. O que se passa... o que é isto... onde estou... que porra de merda é esta... que faço aqui… ?

Reparo em alguma da rapaziada a ripostar, uns deitados ou aninhados, em pé outros. Vejo Castro a pegar na “bazooka” e o Cancelo de joelho no chão a enfiar a granada no 60 quase na vertical. Recordo o Augusto a despachar uma “Instalazza” em tiro directo e o Castanhas agarrado à HK com o Fatana a ajudar.

Estava concerteza a assistir a um “Green Berets”?!! Era isso... só podia!! Aquilo não estava a acontecer!? Era isso... estava no meio de uma sessão no cinema Batalha, pois claro!

Não conseguia ver nenhum “turra” e o filme do Puto desfilava com intermitências diante dos meus olhos, enquadrado por aquela sinfonia de S João! Digo ao pessoal que substituo a segurança à retaguarda e viro-me para trás, para o acampamento e assim fico, tentando afastar aquelas visões e concentrar—me ao máximo no que estava a fazer.

Os tiros amainam e acabam. O IN tinha-se pirado e não tínhamos tido problemas.

Na sua fuga, são avistados alguns elementos. O Barros pega no LG-foguete e despacha na direcção, ouvindo-se o rebentamento lá para longe, ineficaz.

O acampamento é queimado, a bicha de pirilau inicia sob o meu comando a marcha de regresso em direcção à estrada, onde pensávamos passar a noite e aguardar a recolha pela manhã. Minutos andados e o Puto continuava presente, desviando-me da concentração necessária. As portas de S. Pedro estavam escancaradas e os “ponchos” incómodos, proporcionavam um certo abrigo.

O Castro avança para frente e leva-nos a porto seguro. Pelo caminho são apanhados um homem e uma mulher sem armas, que virão a ser entregues para interrogatório.

A noite diluviana iria ser terrível de suportar!

Quartel Teixeira Pinto > Vista do lado da bolanha (creio)

Progressão > Elementos do 2.º GCOMB > Estrada velha Teixeira Pinto - Cacheu. Augusto em primeiro plano com o “Instalazza”

Acampamento temporário IN
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5463: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (24): De volta à guerra, triste realidade

Guiné 63/74 - P5783: Convívios (185): 2.º Encontro da Tabanca do Centro, dia 26 de Fevereiro de 2010 em Monte Real (Joaquim Mexia Alves)


1. Mensagem Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 5 de Fevereiro de 2010:

Caros camarigos editores da Tabanca Grande
Posso pedir-vos, enquanto o pessoal não se habitua a também frequentar o espaço da Tabanca do Centro que publiquem esta notícia/aviso?

Um abraço
JMA


Tabanca do Centro - http://www.tabancadocentro.blogspot.com/

Imagem do 1.º Encontro que contou com a presença do nosso camarada José Belo que se deslocou da Suécia expressamente para participar neste convívio.


O 2.º Encontro da Tabanca do Centro está agendado para dia 26 de Fevereiro, no mesmo local, Pensão Montanha em Monte Real, às 13 horas*.

A ementa desta vez será bacalhau assado na brasa, (não é a correr), com batatas a murro e migas.
Poderá muito bem ser que haja alguns mimos para entrada, e as sobremesas serão as habituais.
O valor mantém-se na enorme quantia de 8,50€!

Terei que receber as inscrições, de preferência para o mail tabanca.centro@gmail.com, o mais tardar até dia 24 de Fevereiro às 12 horas, pois o restaurante precisa de saber com o que conta.


Em Monte Real há diversos alojamentos para os que queiram ficar nessa noite ou fim-de-semana. Basta dizerem que eu arranjarei os preços.

É muito importante que até ao 2.º Encontro nos façam chegar ideias e sugestões como colocar em prática a ajuda aos ex-combatentes necessitados, bem como a angariação de fundos para esse efeito.

Coloca-se já algum valor sobre o almoço para começar a amealhar?
Por exemplo os tais 10,00€? Mais?

Não estou a “comandar”, estou a perguntar, a sugerir!

A colaborar na Tabanca do Centro estão já os camarigos Vasco da Gama, Juvenal Amado e o Miguel Pessoa como “outsider”, mas precisamos de mais gente.

Ficamos à espera das inscrições.

Muito grato, subscrevo-me camarigamente com um abraço
Joaquim Mexia Alves
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5728: Convívios (177): 1.º Encontro da Tertúlia do Centro, aconteceu no dia 27 de Janeiro de 2010 em Monte Real

Vd. último poste da série de 4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5759: Convívios (180): Operação Coruche no dia 30 de Janeiro de 2010 (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P5782: José Corceiro na CCAÇ 5 (3): A primeira saída para o mato (2ª parte)


1. O nosso Camarada José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), enviou-nos em 4 de Fevereiro de 2010, a 2ª parte das suas memórias da primeira saída para o mato, complementando assim a narração iniciada no poste P5745:
Camaradas,

É com agrado e estima que a vós me dirijo, com esta narrativa da “Primeira Saída Para o Mato, 2ª Parte”.

A todos os tertulianos, ou visitantes do “Blogue”, que se dão ao trabalho de ler este artigo, que o leiam com o espírito de quando, como nós, tinham 21 anos, se for possível.

Era a idade que eu tinha quando escrevi o substrato que deu origem a este relato, ao qual retirei algum colorido, ainda um miúdo (repito, com 21 anos), mas muito responsável, curioso e analítico, que amava valores muito distintos dos imbróglios belicistas.

Sentia que me estavam a mortificar e a ceifar os meus sonhos exequíveis, assistia ao desmoronar dos projectos que ordenadamente tinha idealizado e estava a construir, sentindo-me impotente para travar tamanha injustiça.

PRIMEIRA SAÍDA PARA O MATO - 2ª PARTE

Com tudo isto, ainda não disse nada na 1ª parte da minha primeira experiência de mato. Pois é, um belo dia devia ter saído às 07.00h para o mato, estava pronto a essa hora, mas não saí. Eu que estava impaciente de desejo e com ansiedade incontida, para vestir o meu camuflado novinho e descorá-lo no mato, para não me chamarem periquito e ficar todo catita. Não tive essa gratificação nesse dia. A “desculpa” que recebi (informação de caserna), foi que os padeiros se esqueceram de fazer o pão, para entregar com as rações de combate.

Mas, a excitação foi efémera, às 12.00h, o meu Furriel Martins, disse-me:
- Às 14.00h vai sair para o mato, pode ir levantar as rações de combate.

Toda a euforia da manhã, se desvaneceu, e às 14.00h, lá estava eu todo boneco, com camuflado sem mácula e sem engelhamentos, embaraçado, pois parecia ser a primeira vez doutros tempos, com postura algo estranha, que mais parecia estar com descoordenação de movimentos, as mãos desajeitadas e constrangidas, não comportavam tanta coisa como eu tinha para levar.

Era a sacola com coisas diversas (até ligadura de gaze hidrófila eu levava), a G3 que nem sabia ainda aconchegar, cartucheiras, cinturão, carregadores de munições, cantil da água, oleado para dormir, rede mosquiteira, rações de combate tipo E e a máquina fotográfica (a minha Olimpus Pen FT que levara da Metrópole), que ainda hoje guardo religiosamente. Tenho também uma Canon (que comprei na Guiné) e a minha inseparável agenda, para os registos de memorização imediata.

A máquina e a agenda eram as grandes prioridades e preocupação para mim, pois temia que a chuva as danificasse, embora estivessem protegidas com plásticos. Envolta em plástico ia também a folha A 4 (chave de autenticações), para validar comunicações de transmissões das diversas entidades e unidades envolvidas na operação.

Às 14.00h, ouvi o som do baquetear do “gongo”, o que achei estranho, pois julguei que fosse começar um filme. O “gongo” estava montado num tronco de palmeira espetado no chão, colocado junto à porta que fazia a ligação entre o aquartelamento e a Tabanca. Nada mais era do que um bidão cilíndrico, ao qual se extraiu uma das bases e que estava enfiado no topo de um tronco, que, por sua vez, estava espetado no chão. O som resultava de marteladas com uma baqueta, improvisada de um tubo metálico, no dito bidão.

Para mim tudo isto era inovação, pois não conhecia os sinais de chamamento, que se estavam a fazer ouvir: Booom, booom, booom, booom, booom, booom… intervalo… booom… intervalo… booom, booom… intervalo… booom, booom, booom… silêncio. Estas pancadas eram o código para chamar os 1º, 2º e 3º pelotões.

Não passaram dois minutos e já todos os militares que sabiam descodificar o sinal, acorreram apressados e desembaraçados, com os apetrechos necessários para cumprir a missão que lhes estava destinada. Vieram da Tabanca todos briosos, com aprumo e à vontade, e formaram, cada grupo no seu lugar, para os seus superiores os poderem contar. Depois foi dada a voz para as saltarem para as viaturas, e, logo de seguida, arrancamos.

Lá estava eu pronto, seguindo a orientação do Carvalho, tomei lugar na viatura de transmissões, que tinha um rádio instalado e na qual ia o Rogério.

As viaturas partiram intervaladas, na cabeça da coluna ia o capitão e em terceiro lugar ia a de transmissões, rumo a Oeste (para o lado da pista aérea).

Progredimos pelo meio da floresta (para mim tudo era flora estranha), com o terreno plano e o arvoredo frondoso que ladeava os trilhos e que existiam graças à “teimosia” dos pneus das viaturas. Embrenhamo-nos no matagal não mais de 5km. Junto a uma clareira as viaturas pararam e o nosso capitão, que como disse ia na frente, deu ordem para o pessoal se apear e tudo em uníssono saltou para o chão. Os transportes regressaram ao aquartelamento com a guarnição de segurança.

Os que íamos para a operação ordenamo-nos céleres, em fila espaçados uns dos outros, e começamos a avançar (três pelotões e os carregadores civis, pelas minhas contas seria uma centena de homens). Convenci-me, pelo que vi, que cada elemento sabia antecipadamente o lugar que devia ocupar e evidenciou-se tudo muito bem organizado e disciplinado. Começamos a caminhar no terreno, inflectindo para o lado esquerdo, obliquamente. O pessoal de transmissões ocupava as posições, entre o 10º e o 15º lugar da fila, juntamente com pessoal de enfermagem, que seguia atrás do Capitão. Á frente, abria caminho, um grupo constituído por 5 ou 6 militares, “comandos ou guarda-costas” do Capitão (todos eles nativos, com muita bravura, completo destemor, desembaraço na condução e todos eles usando lenços pretos de cetim ao pescoço).

Quando nos apeamos fiquei agradecido, por um lado, mas apreensivo e surpreendido, por outro (é a lei das ambiguidades, ninguém está contente com aquilo que tem, só desejamos uma coisa enquanto a não alcançamos), ao constatar, que haviam dois carregadores para transportar os aparelhos de transmissões, que mais não eram que dois rapazes (pela fisionomia aparentavam ter uns 14 ou 15 anos de idade) e, por isso, ainda crianças para andarem nestas lidas.

Quis dialogar com eles, para lhes agradecer o esforço, não sei se me entenderam, ou não? Haviam as evidentes dificuldade linguísticas, mas eu percebi, por meias palavras, que faziam aquele trabalho praticamente a troco de alimentação (gente humilde e sem rebeldias). Fiquei muito reconhecido, porque me deram a sua amizade e solidariedade. Sempre que me viam na Tabanca, vinham ter comigo, para me falar e dialogar. Foram-me muito prestáveis, enquanto estive na Guiné, logo que soubessem, que havia algum mimo na Tabanca, para vender (cachos de bananas, papaia, ananás, leite, galinha de mato ou doméstica, gazela ou javali) vinham-me comunicar. Esta preocupação deles nunca a consegui pagar.

Progredimos entranhados no mato, como disse num terreno plano, de quando em vez serpenteado de arvoredo cerrado e, a certa altura, atravessamos uma picada no sentido de Poente para Nascente, que tinha a orientação de Norte para Sul, disseram-me que ligava Canjadude ao Cheche.

Logo mais à frente, deparamo-nos com uma clareira, que intui, pelos indícios, que fosse em tempos uma Tabanca habitada, pois havia árvores de fruto, confirmei que era Fariná. Após termos caminhado, três horas, três e meia, chegamos a Fariná, onde o pessoal se instalou, formando um círculo, de segurança, em todo o perímetro da clareira.

Estávamos em Fariná e íamos ficar por aqui, pois o anoitecer não demoraria muito a chegar. O Sol declinava aceleradamente, querendo beijar com sofreguidão lasciva a linha do, aparentemente, não longínquo horizonte. Avizinhava-se o luar, que prometia serenidade e o firmamento apresentava um azul lívido estrelado, que eram sinais de prenúncio maus conselheiros para os amantes alucinados, que libertavam as suas musas inspiradoras e lhes
fertilizava a imaginação e os projectava do telúrico para o espacial.


Aqui chegados montamos arraiais para passar a noite e eu comer a minha primeira ração de combate no mato. O pessoal de transmissões, assim como o pessoal de saúde, onde se incluía o sargento enfermeiro, ficou muito próximo do Capitão Pacífico dos Reis, que pernoitou numa parte mais central rodeado de 4 ou 5 comandos. À ordem do Capitão, foi enviada mensagem para Canjadude, a dizer que estava tudo OK e que estávamos no ponto Delta.

Foi a minha primeira experiência de transmissões em operação, orientado pelo Silva com a supervisão do Carvalho. Montar antena de árvore a árvore, ligar equipamento, enviar a mensagem e retirar a antena.

Começou na Guiné para mim a missão deslocada, no espaço e no tempo, que à luz da minha razão, nunca compreendi. Como foi possível deixar arrastar os acontecimentos, até à via da irresolução (sem possibilidades de solução com dignidade), quando tinha havido tanta fonte histórica, para beber conhecimento e colher experiência, que poderiam ter servido de mote, inspiração, modelo e exemplo, para dar rumo diferente, de forma que trouxessem benefício a todos, colonizadores e colonizados, evitando a questão da problemática guerra do Ultramar.

Ainda que diferente, tínhamos mais um suporte, a lembrança do sucedido com o Brasil. Ou será que a teimosia da Guerra do Ultramar, foi uma inconsciência adormecida, ou uma dificultação birrenta para compensar o “facilitismo” concedido ao Brasil!?

Em Fariná andei, observei, acampei, dormi acordado, sonhei, imaginei e desejei, que a paz chegasse para todos fazer felizes e calmos. Emocionado não chorei, para não magoar os meus restantes Camaradas.

Dormi a minha primeira noite no mato em operações, de 14 para 15 (sábado para domingo) de Junho de 1969. Não me lembro do nome da operação…

Dia 15 de Junho de 1969, por volta das 06.00h ao lusco-fusco, quando surgiam os primeiros raios matinais de claridade, espairecendo e espreguiçando-se com raios der lassidão e envergonhados, já o pessoal estava todo activo. Numa mão a lata de leite achocolatado e, na outra, uma ”nacada” de pão com cheirinho a manteiga e triângulo de queijo flamengo.

Isto, pensava eu:
- Para matar as saudades de quem está lá longe, que bem poderá estar a observar a mesma estrela que eu via ali, nesse momento, e para que os meus desejos se fundissem telepaticamente, com os de alguém, e nos pudéssemos acarinhar deliciosamente, com enlevo e volúpia (um ao outro).

O naco do pão, serviu também para minimizar as amarguras e a dureza da vida, a crespidão e aspereza da cama, que não me deixou dormir, nem revigorar e descansar, nem sonhar, aqueles que bem poderiam ter sido sonhos libidinosos, para me confortar, deleitar e extasiar. Quiçá tais fantasias imaginativas de quem não conseguiu pregar olho, naquela noite, e viveu desejos lúdicos, que, obviamente, não conseguiu materializar.

Horas passadas em “branco”, ouvindo o sibilar da brisa húmida e refrescante, a afagar e a agitar o denso e desmaiado capim, que, ao ser apanhado e tocado, se torna crepitante exalando um odor muito diferente do cativante jasmim, só porque a água lhe falta e não estava vicejante, por aqui tão abundante.

O tempo urgia e não podíamos parar, eram 06.15h e o nosso comandante deu a ordem:
- Vamos avançar!
Ainda deu, para eu, num relance instantâneo, poder dar uma última olhadela e a minha retina registar, para poder melhor memorizar em todo o meu existir, aquele arejado e puro lugar, dizendo-lhe adeus e, talvez, um até nunca mais aqui voltar.

Em Fariná, tive o mais grato prazer porque me deu gozo ver, tocar e sentir, o perfume e o sabor acre de uma laranjeira, com os seus frutos esféricos e esverdeados ainda por amadurecer. Timidamente arranquei um dos seus frutos de aparência adocicado, apalpei a sua casca e rasguei-a, mas fiquei desolado e desconsolado quando provei um dos seus gomos!

Com a mesma disciplina e organização do dia anterior, progredimos em caminhada, segundo a minha percepção de orientação, para Sul, ora mais “enselvados” ora mais “encapinhados”. Entramos numa zona onde o capim era crescido e seco, formando uma flora muito uniforme, excluindo uma ou outra palmeira. O terreno começava a ser mais irregular, acidentado, com elevações, e, a determinada altura, surgiu como que uma montanha (não muito elevada).

Neste ponto, deu-se a separação do grupo, ficando um pelotão emboscado no morro a dar protecção à retaguarda e outro grupo que avançou. O Silva ficou a assegurar o serviço de transmissões e eu continuei, com o Carvalho, em direcção ao Cheche.

Mais à frente, depois de termos passado uns ribeiros, que deviam ser afluentes do Corubal e em cujas margens se via uma flora encantadora e viçosa, quais nichos ecológicos e fulgurantes, que deviam a sua exuberância, ao efeito benéfico dos regueiros de água que corriam debilmente nos seus leitos sinuosos. Mais o meu ego ficou grato, por terem os meus olhos sido prendados com tão deslumbrante e apavorante visão, dum jacaré aninhado (que outros diziam ser crocodilo).

Continuamos a avançar e eis que perante nossos olhos receosos, vislumbramos o tão falado rio Corubal. Caminhamos cerca de meia-hora, não muito longe da margem do rio e quase paralelo a este, atalhando os seus contornos, e, finalmente, chegamos ao prometido, enigmático e fantasmagórico Cheche, com o rio Corubal a nossos pés.

O rio caudaloso, tranquilo e imponente, apresentava-se sem complexos de culpa alguma do terrível e nefasto drama que ali ocorrera, pois as suas águas mais pareciam estagnadas a dizer que não estavam envergonhadas de nada, do que delas se dizia e que a ninguém intimidavam, estando prostradas em sinal de paz, sossego e aconchego, com todo o pudor.

Segundo os meus cálculos, a largura do rio, da margem direita onde estava até à outra margem, devia rondar pouco mais de 100m (tendo como referência o campo de futebol) e sabendo eu que o erro de paralaxe, numa superfície plana sobre água, tem outra variável de engano.

No Cheche, onde muito meditei, estive a ver e analisar o rio Corubal de águas que se diziam serem turvas, escabrosas e traiçoeiras, e que, a mim, se mostraram serenas, tranquilas, fiéis, silenciosas e calmas. Ali parei com muita dignidade, respeito e rezando em memória daqueles que dali partiram, e a Deus.

Pelos falecidos orei com fervor e dor, viajando pelo etéreo onde o meu pensamento se diluía, criando imagens do que em tempos por ali acontecera e partindo do pouco que sabia sobre o apocalíptico drama, tentei construir e consolidar os meus pensamentos, no meu infindável desejo de sempre mais saber e aprender em busca da verdade, para homogeneizar as minhas ideias e o meu criterioso juízo de obedecer a determinadas ordens.

Não comungo a opinião, dos que querendo culpar do acontecido a Natureza, declinam a responsabilidade do ser humano, no qual a culpa está com toda a certeza…

Foi com muita ingenuidade e devoção, que a todos lembrei que aqui pereceram, enviando-lhes a minha mensagem de oração e saudação, pedindo-lhes desculpa e perdão, por aqueles que na hora derradeira, nada por eles fizeram por se terem sentido impotentes.

A todas as vítimas dedico a minha nostalgia e delas me despeço com imensa gratidão, pois no meu íntimo serão lembrados sempre com glorificação.

É necessário atender ao meu estado de espírito, em que eu na época me encontrava, pois tinha tombado em combate em Fevereiro desse ano um tio meu, com 22 anos, e ainda não tinha sido realizado o seu funeral.

Com cautelas redobradas o grupo abraçou toda a área circundante do outrora Cheche, com honras de aquartelamento já abandonado. Reflexo da conversa há duas noites atrás, tive desejo de entrar no Cheche.

Curiosidades dum periquito, para encontrar alguns vestígios de presença humana, como que para auto-afirmação, teste e confirmação, de que o lugar tinha sido em tempos habitado.

Foram porém outros camaradas, os determinados para a missão a executar, eu fiquei à distância de 200 ou 300 metros, tendo-me sido dado observar que algo se ia minar, ou armadilhar, ou verificar o anteriormente “ardilado”.

Estivemos por ali, cerca de meia hora. Eu interrogava-me se não seria fácil um ataque, naqueles momentos, vindo da outra margem, onde a mata era muito cerrada!

Abandonamos o Cheche no sentido paralelo à picada, que ligava a Canjadude e caminhamos ao encontro do pelotão, que tinha ficado emboscado na montanha, que entretanto já tinha recebido comunicação, para se deslocar para sítio determinado.

Encontrámo-nos novamente e acampamos, onde eu comi a minha 2ª ração de combate no mato, algures entre Canjadude e Cheche. Entrámos em contacto com a base e pediram-se viaturas, para local e horas combinados.

Após estarmos acampados cerca de uma hora, encetamos novamente a caminhada com rumo a Norte, direcção a Canjadude, através de um tipo de paisagem praticamente idêntico, caracterizado pela planura no terreno.

Era desolador constatar o abandono a que aqueles terrenos, que me pareceram ser férteis, estavam há anos sem serem aproveitados.

Chegamos ao sítio previamente definido e tivemos que aguardar, pela vinda das viaturas, cerca de meia hora. Tudo foi feito com muito calculismo, mesmo nesta espera, só se notou descompressão (não descontracção ou laxismo), organizado com todo o rigor, o que me inspirou confiança e segurança.

Quando as viaturas aportaram, o pessoal ordeiramente ocupou os seus lugares nas viaturas, um pouco amontoados, cada um ciente das tarefas que lhe competiam e para a qual estava incumbido.

Atendendo aos meios disponíveis, em função do número de elementos envolvidos na operação, não se tomaram, de forma alguma, todas as condições ideais de segurança.

No entanto, pesando prós e contras, comecei a sentir uma ténue réstia de orgulho e esperança, por começar a ser um elemento deste grupo: OS GATOS PRETOS.

Chegámos a Canjadude ao fim da tarde e eu sentia que tinha desempenhado as minhas funções como me competia. Comecei a sentir que se estava a esvair a tibieza da minha primeira ida para o mato e exultei de alegria interior.

Depois desta operação, dezenas vieram, ou… centenas?

FOTO 1: O “Gongo”, vendo-se no chão, junto à base do tronco, a baqueta para o martelar. Em primeiro plano está o militar que tocou o “Gongo” nesse dia.

FOTO 2: Eu, todo equipado e pronto para partir para a aventura da 1ª operação no mato. Em 2º plano vê-se o Figueiredo.
FOTO 3: Eu, prestes a apear da viatura, tendo por trás, de costas, o Rogério. De frente, a olhar para a objectiva está o Marques (condutor e mecânico), muito competente (do velho fazia novo). Do lado direito está um maqueiro.


FOTO 4: Os dois jovens carregadores que transportaram o material de transmissões (foto tirada na Tabanca após a operação).

FOTO 5: Eu e o Silva, em Fariná, a enviar uma mensagem para Canjadude.

FOTO 6: A tabela elaborada mensalmente, por Entidade de Comando competente, que era distribuída às respectivas unidades do Território, via mensagem. Servia para validar mensagens de transmissões, pedindo às respectivas Entidades ou Unidades envolvidas, em teatros de acção, com os respectivos apelidos, a senha correspondente. A tabela tinha duração, mais ou menos mensal, sendo a validade das chaves semanal, ou quinzenal. O grau de segurança era, no mínimo, confidencial.

FOTO 7: Fariná, como eu o vi na despedida.

FOTO 8: O Rio Corobal uns 200 ou 300 metros a montante do Cheche. A margem à vista, pertencente à zona de Medina do Boé.

FOTO 9: O Rio Corubal visto de local próximo da foto anterior (com zoom diferente), notando-se as águas tranquilas, sem corrente, parecendo ter um açude a jusante, apresentando uma ténue ondulação.

FOTO 10: Regresso das viaturas a Canjadude. A picada é a que liga Canjadude ao Cheche e podemos ver os dois carregadores civis com o nosso equipamento à cabeça.


FOTO 11: Eu, com felicidade radiante e sorriso efusivo, depois do regresso da operação e já em Canjadude.
A todos, os tertulianos, o meu apreço, com um abraço e muita saúde para todos.

José Corceiro
1º Cabo Trms da CCaç 5

Fotos: © José Corceiro (2009). Direitos reservados.
____________

Nota de M.R.:

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5781: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (6): Rondas e sentido de solidariedade na 643

1. Mais umas notas soltas da CART 643, enviadas por Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), em mensagem com data de 2 de Fevereiro de 2010:


RONDAS À VOLTA DE BISSORÃ EM MEADOS DE 1964

Como todos os ex-combatentes sabem, as rondas eram serviços com algum perigo, senão vejamos:

Na Cart643 saía um jeep com o condutor, normalmente um Furriel Miliciano e duas Praças, sentados no banco trazeiro e que era virado para fora. A volta era um pouco complicada porque Bissorã era cruzada por diversas estradas, assim descriminadas:

Partindo do Largo dos Correios, que era paredes meias com o chamado Quartel, saía a estrada para Mansôa com muitas moranças com uma extensão considerável.
Para Mansabá, estrada que na altura não tinha circulação, mas continha também muitas moranças.
Para o Olossato, que pelo menos tinhamos de rondar até ao "campo de aviação", que ficava talvez entre 2 a 3km, também com moranças nos dois lados da estrada.
Havia ainda a estrada para Encheia ou a chamada outra banda, e outra para Norte em direcção a Barro.

Além destas estradas um pouco difíceis, havia a ronda à Central Eléctrica que tinha uma torre com 2 homens, a Agro-Pecuária com sentinelas nativas, algumas residências de funcionários civis e comerciantes, como a Casa Gouveia, Barbosa & Comandita, Casa Alves, Casa Gardete, alguns libanêses como Michel Ajouz, Miguel Heni, etc. e também cabo-verdianos, funcionários dessas casas.

Não era tarefa fácil e isenta deperigo, as rondas foram diversas vezes apanhadas entre dois fogos, do IN e de quem defendia, visto Bissorã, pelo que descrevi, ser uma povoação complicada na sua defesa.

Estrada de Mansoa/Bissorã

Na Cart 643 havia um espírito de confiança muito elevado, não existiam muitas Companhias em que o pessoal fosse tão unido. Posso contar que quando o nosso 1.º Cabo Antonio Melo morreu em combate, no dia 16 de Agosto de 1964, não havia urna e o local indicado para o funeral era Bissorã. Houve mobilização geral, o Soldado Pinheiro construiu a urna e todos nós trouxemos o nosso querido camarada até ao cemitério de Bissau. A Cart643 ultrapassou todas as dificuldades, até do nosso Comando, fizemos a nossa obrigação com muita mágoa.

O espirito de solidariedade era enorme. Uma noite o Capitão Ricardo Silveira vei-nos dizer que tinha de estar no outro dia de manhã em Bissau, porque tinha de embarcar para Lisboa e naquela noite teria de estar em Mansôa. Como e quem iria fazer esse serviço, pois precisava de voluntários? Rápidamente aprontou-se um jeep, eu no volante e 2 homens atrás, entre eles o 1.º Cabo Carlos Alberto, e lá fomos depressa num pé e voltámos no outro.

Rogério Cardoso
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5718: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (5): Um Guerreiro desdentado