domingo, 26 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12638: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (11): Março de 1967, aproximava-se o fim da comissão de serviço

1. Em mensagem do dia 16 de Janeiro de 2014, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Fragmentos de Memórias.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

11 - APROCHEGAVA-SE O FIM DA COMISSÃO MILITAR 

Março de 1967

Já vos contei antes, que criei uma equipa de futebol, lá na minha Repartição mas depois convidado fui para dar a preparação física ao Sporting de Bissau, onde o treinador era um 2.º sargento amigo, de Portalegre.
Tive até de treinar a equipa durante um mês. Estudei uma nova táctica que pus em prática de imediato. O importante final é que a bola não chegasse próximo da nossa baliza. Por isso dei ordens aos jogadores que não queria cá fintas ou passagens, de uns para os outros, e disse:
- Quando a bola estiver ao vosso alcance, chutem, chutem de qualquer forma para que ela saia do nosso meio campo. Lá à frente só quero dois à melosa.

Nos quatro jogos disputados, só ganhámos um aos Balantas de Mansoa, (empatámos a zeros os outros três) com um golo monumental meu, jogador nesse dia, metido fora de jogo, mas convém acrescentar que o árbitro era meu amigo e tinha sido ameaçado por mim myself com retaliações... sim... que na altura não se ofereciam cousas boas com'ó milho. E lá diz o ditado: se queres ver um pobre toleirão... mete-lhe quelque chose avec... na mão e eu prometera-lhe ...já se ma não alembra o quê...


A guerra fizera de mim, um xico-esperto mas cheio de força, arrogante qb e desejoso sempre de entrar em conflitos, resolvê-los na boa ordem e acima de tudo ao abrigo da lei do mais forte. E por isso... como eu me identifiquei com umas imagens há dias mostradas num canal de TV !!!

Em qualquer País que não reparei qual, um árbitro de futebol amandou duas galhetas num jogador depois um valente murro noutro que avançava malandrosamente para o agredir. É que eu fui assim e assim fiz, quando regressei da Guiné e reactivei o prazer de andar com um apito na boca, já que não podia andar de G3 dentro do campo.
Vinha cheio de força, sedento de sangue fresco, isento não era, não fui e nem conhecia quem o fosse e por isso, quando o povo do futebol, se atrevia a chamar-me nomes, fazia-lhes frente, acintosa e provocadoramente e se preciso fosse afinfava-lhes mesmo, qu'essa coisa do medo ficara bem lá longe "onde o sol castiga mais" (sic, Paco Bandeira).

No fundo eu estava a ser um prazentoso utilizador do que aprendera na sociedade militar onde passara 40 meses e sabia bem dar o valor, não aos temores, mas há camaradagem e à vida e a disparar se necessário. E só deixei de ser apitador, quando vergonhosamente, resolveram pôr redes à volta do campo. Aí sim disse para comigo: - "Não pá... assim não... então a turba chinga-te, ofende-te, chama nomes à família, fere-te na tua hombridade e tu não podes subir à bancada, enquanto páras o jogo que recomeçará com bola ao solo, e partir as trombas ao ofensor?"

Eu era, eu era não... eu sentia-me ou começava a sentir-me um renegado da Pátria, que apenas permitira que a defendesse, mas qu'agora começava a esquecer o que por ela fizera.
Voltei também há vida artística, ou seja a minha voz voltou a fazer as delícias das avós, filhas e netas, que compareciam nos bailes onde o Conjunto musical (Sôr-Ritmo, se chamava) actuava ao vivo... naturalmente e pelos vastos palcos da República Federal do Alto-Alentejo e até nos Países limítrofes do Ribatejo e Beira-Baixa.


Mas... e ainda em Bissau, o Abril aproximava-se e fui convidado para ficar pelo menos mais um ano, naquela função chata mas não perigosa e confesso que tremi entre o ficar ou não. Acabei por vir embora, mas arrependi-me depois. Voltei mas o coração ficou lá. Ficou lá em Mansabá... em Manhau (e aqui para além do coração ficou também a alma)... em Bissorã... no Pelundo... em Jolmete... e no K3.

Os sentimentos desapareceram depois em Bissau, nos horríveis nove meses finais. O Uíge trouxe a CCAÇ 1422, e foram cinco belos dias, de contactos e promessas para encontros futuros, o que não aconteceu. A rapaziada era toda de sítios dispersos, a maioria do Centro do País, gentes pobres que na sua maioria emigrou, mas com os poucos que ficaram sempre nos íamos vendo quando passavam por Lisboa, onde acabei a procurar e consegui, dias melhores, profissionalmente entenda-se.

A Guiné?
Pois foi importante e de tal maneira que ainda hoje vivo tudo o que de bom e de mau por lá passei.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12605: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (10): Fevereiro de 1967 - Aproveitamento dos tempos livres de Bissau

Guiné 63/74 - P12637: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (45): Carta de condução

1. Em mensagem do dia 27 de Junho de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais algumas das suas curiosas histórias, desta vez subordinadas ao tema carta de condução:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

45 - Exame de condução
(Complementando o texto do Zé Castro Lopes.)

Em tempos idos fazer exame de condução era uma aventura tremenda, tendo em conta o exame em si e a competente preparação, culminando com a deslocação até terras de longe.
Eu tirei a minha carta (militar) na Guiné em Abril de 1966; no fim do mesmo mês, embarquei de regresso a Lisboa, no navio Uíge, o mesmo que me havia levado para a Guiné, dois anos antes.

Outro alferes e eu deslocámo-nos de avião até à capital da província (por via terrestre era impensável, pois a estrada Farim/Bissau estava em boa parte do percurso, totalmente vedada ao turismo vedada ao Turismo).
Aqui chegados dirigimo-nos ao QG para fazer a inscrição de candidatura ao tal exame.

Os camaradas que nos proporcionaram os papeis que havíamos de preencher, tiveram o especial cuidado de nos informar, em off, que só havia dois oficiais examinadores: um capitão e um alferes. Transmitiram também que o capitão examinava todos os oficiais candidatos; o alferes ocupava-se da maior parte dos menos graduados (sargentos e praças).
Soubemos também, pela mesma fonte, que em cerca de 16 meses de comissão, aquele capitão havia reprovado, todos os oficias que lhe haviam aparecido pela frente, à primeira vez.
Ficámos um tanto alarmados!

Uma outra fonte, na messe de oficiais, confirmou que aquela informação era absolutamente verdadeira. O alferes Mendonça, meu companheiro de infortúnio, na Guiné, no mato e no exame de condução – já conduzia o carro do pai, lá na sua quinta em Felgueiras; às escondidas, arriscava, de vez em quando, uma escapadela pelas estradas da região, para se exibir perante as garotas.
Nunca foi apanhado pelas autoridades. Entre os oficiais subalternos da nossa companhia (a CCaç 675) ele era, portanto, o mais experimentado naquelas lides.

A minha única experiência de condução, antes da tropa, foi com carros de bois, pois a minha aldeia, antes da “bronca” (leia-se revolução dos cravos) não era servida por qualquer estrada digna desse nome. No mato, depois da “pacificação” total da nossa zona, os oficiais “podiam” (um pouco às escondidas) usar as viaturas militares para se embrenharem na arte da condução.
A companhia dispunha de 3 jeeps (da 2.ª Grande Guerra), 10 ou 12 Unimogs e 3 ou 4 Mercedes, viaturas de maiores dimensões.
Como os jeeps raramente estavam disponíveis, eu, com a mania das grandezas, habituei-me a conduzir uma caminheta Mercedes, uma viatura anormalmente grande, mas já com direção assistida, uma maravilha!

Perante as informações surpreendentes e assustadoras colhidas no QG, eu tomei logo uma decisão que considerei ser a mais acertada: fazer exame de condução usando um caminhão militar, uma Mercedes que requisitei na Intendência. Deliberei deste modo, por dois motivos:
- 1.º eu estava habituado a conduzir, quase em exclusivo, carros grandes, especialmente a Mercedes;
- 2.º considerei que poderia ser uma boa maneira de escapar ao exame com aquela fera (o capitão). - 3.º era mais económico que alugar um carro na Escola.

Sem perda de tempo, contactámos uma Escola de Condução (a única em Bissau) para adquirir um pouco de prática em estradas civilizadas (leia-se alcatroadas, com passeios laterais, com sinais de trânsito e movimento. Conduzi um “velho carocha” durante meia hora e uma viatura pesada, durante hora e meia. Esta segunda parte foi extremamente útil; o instrutor civil “levou-me” a todos os locais por onde o capitão costumava passar durante o exame. Elucidou-me também sobre as “armadilhas” que ele usava habitualmente: mandar entrar em rua de sentido proibido, ultrapassar com sinal sonoro junto a um hospital, estacionar em local proibido, etc.
Informou também que ele ordenaria que entrasse em determinada rua estreita e que voltasse na primeira à esquerda, entrando numa rua perpendicular e também acanhada.
Chegados a este cruzamento ele mandou parar e explicou: "há apenas uma maneira de sair daqui! Se não fizer como vou ensinar-lhe, não consegue concluir o exame; como vou transmitir-lhe, sai com uma pequena manobra”.

Conduzi como ele ensinou e… tudo bem! Dei a volta ao quarteirão e voltei ao mesmo local para repetir a manobra agora sem ajuda – nenhuma complicação!
De seguida, juntamente com o alferes Mendonça, percorremos, a pé, todas as ruas por onde o capitão haveria de nos “levar” para nos familiarizarmos com os sinais (no mato não havia disso): aqui podemos entrar, ali não, acolá não podemos estacionar, além não podemos voltar à direita, etc.

No dia e hora aprazados, compareceram mais de 20 candidatos dos quais 3 eram alferes; um dos oficiais era candidato apenas à carta de mota. Uns 7 ou 8 chumbaram antes da condução: uns na prova escrita, outros na oral e alguns nos testes psicotécnicos. Qualquer destes exames “parciais” era eliminatório.
Os três oficiais superaram a 1.ª fase, passando à condução. O alferes Mendonça foi o primeiro a ser chamado para ser examinado num “carocha” que alugara na Escola. Entrou na viatura e aguardou a ordem do examinador:
- Ligue o motor! - Se está tudo bem, inicie a marcha!

O Mendonça “arrancou” de tal ordem (os pneus derraparam, levantando poeira a rodos) que o capitão gritou que parasse imediatamente e, com voz doce, informou sarcasticamente:
- Desligue o motor se faz favor e vá à sua vida! O seu exame terminou agora! Com isto não se brinca!

O outro alferes foi chamado para o exame de mota; não sei o que se passou; voltaram pouco depois, e… não conseguiu levar a carta.
Chegou a minha vez!

O capitão ordenou que entrasse e ligasse o motor – de nada serviu o meu estratagema – e se tudo está em ordem siga em direcção à Baixa.
Tudo correu de acordo com os sábios ensinamentos do instrutor civil. Que sorte! Regressados ao QG ordenou que arrumasse a viatura de marcha atrás, num barracão ali existente, entre duas outras que lá se encontravam.
De seguida ordenou que aguardasse. Eu tinha a “certeza”(?) que não tinha cometido qualquer atropelo… mas a minha preocupação era enorme; creio que era mais terror que outra coisa.
Pouco depois, um soldado, por ordem do examinador, informou-me que voltasse depois do almoço e que trouxesse duas fotos tipo passe para a carta de lista branca (penso que era branca) que me seria entregue nesse mesmo dia, mediante pagamento da módica quantia de 10$00 (pesos).

Usei-a durante uns anos; em 1972, quando saí da tropa, troquei-a pela carta civil. Em cerca de 16 meses fui, portanto, o único oficial a conseguir a carta à primeira tentativa… graças aos ensinamentos pertinentes do instrutor civil. Acontecia que àquela data, eu tinha bem mais de 30.000km de condução em estradas e “picadas” onde o que aparecesse estava destinado ao abate.

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Outra estória

Em 1961, conheci em Coimbra, um estudante, natural de Lamego (Britiande) que no ano anterior vivera na mesma casa na qual eu estava hospedado e aparecia lá com certa frequência.
Ele foi chamado a cumprir serviço militar em Mafra (EPI) no início de 1963; em Agosto do mesmo ano eu “bati com o costado” naquela mesma Escola Prática. Ele foi mobilizado para Angola e, pouco depois, eu embarquei para a Guiné.

Em Junho de 1966, regressado da Guerra, fui colocado no Colégio Militar, onde esperava preparar-me para concluir o curso. Em Outubro, o Walter Carvalho, o tal companheiro de Coimbra, encontrou-se lá comigo. Como aos dois faltava fazer quase as mesmas cadeiras, logo combinámos que estudaríamos juntos. Em primeiro lugar tentaríamos duas cadeiras mais simples. Havia um DL que permitia aos ex-combatentes fazer exame em qualquer época do ano; de seguida, já mais ambientados ao estudo e já “esquecidos” das complicações bélicas, tentaríamos uma cadeira nuclear para aquilatar as nossas capacidades psíquicas e psicológicas para continuar os estudos a sério, depois dum interregno de 3 anos em grande parte passados na Guerra de África – outros chamam-lhe colonial.

Um ano mais tarde, o Walter decidiu “tirar” a carta; adquiriu os papeis, preencheu-os e foi entregá-los na D.G.V.
Ao conferir os documentos, um funcionário extremamente zeloso e cumpridor informou, emproado:
- Oficial miliciano não é profissão!
- É disso que eu vivo! Mas se não é aceite… eu sou estudante!
- Também não é profissão!
- Não tenho outra! Estudo e recebo salário como oficial miliciano! Será que não posso obter a carta para se profissional de condução?
- Claro que não!

Devolveram-lhe a papelada! Preocupado com o que estava a acontecer-lhe, decidiu contactar uma Escola de Condução para que tratassem dos documentos de candidatura ao tal exame. Recolheram logo os elementos considerados necessários, mas não perguntaram pela profissão e sugeriram que voltasse no dia seguinte para assinar.
Curioso, logo foi verificar qual a profissão que lhe haviam atribuído. Ao certificar-se que era “agricultor”, comentou, sorrindo:
- Não tenho nada contra os agricultores, mas é tão verdade como afirmar que sou médico ou engenheiro.
- Na verdade, ou aceita ser agricultor, ou outra profissão que não necessite de comprovativo académico (carpinteiro, pedreiro, etc.) ou não pode habilitar-se à carta de condução.

Assinou! Foi essa a sua profissão (apenas na carta) enquanto o documento foi de cartolina; agora, com o cartão substituído por plástico, será diferente.

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Mais uma 

Um jovem frequentava o Liceu em Goa, quando, em finais de 1961, a União Indiana decidiu anexar a, até então, Índia Portuguesa (Goa, Damão e Diu, bem como, os enclaves de Dadrá e Nagar Haveli, escreve-se assim?).

O jovem, com a sua família “sem armas e com pouca bagagem” rumou à capital do Império onde concluiu o curso liceal, matriculando-se de seguida na Faculdade de Medicina. Ainda antes do fim do curso candidatou-se ao exame de condução; seria de bom-tom que o Sr. Doutor conduzisse a sua viatura.

Preencheu os impressos necessários e entregou-os na DGV; solicitaram que apresentasse o diploma da 4.ª classe, habilitação” mínima “exigida na Lei.
- Não possuo tal documento! Fiz esse exame em Goa e, na hora da “anexação” no meio da grande azáfama e perigo, trouxe apenas o que tinha… ali à mão. Estou prestes a concluir o curso de medicina; posso apresentar o certificado do 7.º ano que concluí no Liceu Camões!
- Eu quero apenas o comprovativo da 4.ª classe! O resto é conversa! Não interessa!

É certo que o futuro “galeno” conseguiu a sua carta de condução, mas viu-se obrigado a mover influências – as tradicionais e sempre atuais “cunhas” – para que alguém” sugerisse” ao zeloso funcionário que fizesse o “favor” de não exigir o tal documento… mas ninguém teve coragem de o informar que tinha… vista curta!
Se o candidato tivesse mais habilitações que as “mínimas”...tanto melhor.

Como dizem os nossos irmãos do outro lado do Atlântico: “o que abunda (ou a bunda?) não prejudica”.
Os burocratas esqueciam que era possível tirara um curso superior sem fazer a quarta classe...
Questões… de mangas de alpaca!
Ainda há disso a rodos… nas repartições públicas e Câmaras Municipais emperrando todo o sistema!

Saudações colegiais
Junho 2013
BT
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11496: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (44): A gloriosa CCAÇ 675 foi realmente única

Guiné 63/74 - P12636: Em busca de... (235): Nelson Silva, natural de Oliveira do Hospital, o qual terá pertencido a uma Companhia de Comandos, e que terá desertado (Rui Poeira)... Resposta do nosso colaborador José Martins

1. Mensagem de nosso leitor Rui Poeira, com data de 23 do corrente:

Caro Senhor,

Somente agora descobri o vosso blog, precisamente por tentar encontrar o rasto de um familiar desaparecido.

Na verdade, tenho um primo, de seu nome Nelson Silva, natural de Oliveira do Hospital, o qual, segundo o pouco que sei, terá pertencido a uma Companhia de Comandos que desertou na Guiné.

Como sou mais novo que ele, somente me recordo de ouvir dizer que o mesmo se tinha tornado mercenário, que tinha casado com uma italiana,  e que residia na Rodésia, mas que certo dia teve que fugir...
Se souber algo deste meu familiar, se o conheceu, ou mesmo alguns pormenores sobre as eventuais motivações da dita deserção,  agradeço, desde já, que me faça chegar alguma ínformação.

Com os melhores cumprimentos, Rui Poeira

2. Pedido de informação, com data de 23 do corrente,  ao nosso colaborador José Martins:

(i) Zé: Tens alguma ideia ? Haverá alguma lista de desertores ?

Já tenho encontrado alguns (desertores e prisioneiros) no Arquivo Amílcar Cabral > vd. Casa Comum, site da Fundação Mário Soares. Estamos autorizados a reproduzir fotos e outros documentos mas em formato reduzido... Os documentos,  transcrevo-os...

Queres responder ao leitor, em nosso nome ? Um abraço. Luis

(ii) Zé: Tu estás em boas condições de fazeres trabalhos nesta área. És um camarada consensual... Sabes que o assunto é fraturante... Vejam-se as polémicas que já deu... no blogue. Mas faltam-nos nomes, números e até histórias, porque não? Se não formos nós, outros fá-lo-ão por nós... E nós temos mais legitimidade para falar dos desertores (não dos refractários)... Os desertores foram nossos camaradas, os outros, os refratários, não...

Um abraço. LG

3. Resposta, com data de 24 do corrente,  do José Martins [, foto atual, à esquerda,] ao nosso leitor Rui Poeira:

Caro Rui Poeira:

Acusamos a recepção do e-mail que enviou a Luís Graça e Camaradas da Guiné e coube-me a mim, na qualidade de colaborador, tentar dar alguma pista sobre o assunto que nos coloca.

Desde o inicio da II Série deste blogue, em junho de 2006, que o tema DESERÇÃO, não sendo tabu, nunca foi levantado para discussão. Entendemos que é um assunto do foro íntimo de cada um e que  foram várias as motivações que originaram tal situação.

Também não conhecemos, ou pelo menos algum de nós partilhou tal informação, da existência de estatísticas sobre refractários ou desertores, termos utilizados para referir quem sai do âmbito da organização [militar], apesar de terem significados diferentes, consoante a altura em que acontece.

A única estatística conhecida, e que por mim foi organizada a partir de diversas fontes, refere-se a quem não se apresentou à inspecção (refractários), que não ultrapassou os 20% dos mancebos recenseados. [Pode ser vista em  http://ultramar.terraweb.biz/CTIG_JoseMartins_Recrutados2Guine.htm]

No caso especifico que nos coloca, apenas o nome e a possibilidade de ter sido tropa Comando são poucos elementos, uma vez que, na Guiné além de 3 Companhias de Comandos Africanos, estiveram 9 companhias formadas na metrópole/continente, além de alguns grupos que, localmente, foram voluntariados.

Para saber mais elementos do seu primo Nelson Silva, poderá pedir informações ao Arquivo Geral do Exército, instalado no Largo de Chelas - 1949-010 Lisboa; E-mail: arqgex@mail.exercito.pt, Telefones 218391600 e 218391619 e Fax 218391611, ou à Associação de Comandos.

Sabendo a unidade a que o seu primo pertenceu, poderá solicitar elementos ao Arquivo Histórico Militar, instalado no Largo dos Caminhos de Ferro, nº2 - 1100-105 Lisboa; E-mail: ahm@mail.exercito.pt, com o telefone 218842563 e Fax:218842514.

Lamentamos não ter meios de poder fornecer as informações que nos solicita, fazemos votos para que consiga obter esses elementos do seu família, apresentamos as nossas saudações.

José Martins
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Guiné 63/74 - P12635: Parabéns a você (683): Fernando Macedo, ex-1.º Cabo Apont Art.ª do 5.º PelArt (Guiné, 1971/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12624: Parabéns a você (682): Augusto Silva Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3306 (Guiné, 1971/73); Francisco Godinho, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2753 (Guiné, 1970/72) e José Albino, ex-Fur Mil Art do Pel Mort 2117 e BAC 1 (Guiné, 1969/71)

sábado, 25 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12634: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (11): Figueira da Foz... ou dois anos inesquecíveis na Princesa do Mondego (Vasco Pires)

1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72) com data de 19 de Janeiro de 2014:

Caríssimos,

Cordiais saudações.

Depois da "Máfrica" de tantos de nós, veio a EPA em Vendas Novas, menos alunos (cerca de 40), o que trouxe melhor tratamento, depois da Especialidade, mais um estágio de um mês ou pouco mais.

Na EPA havia dois pelotões, um de PCT e outro de IOL, e se não me falha a memória com entre 30 e 40 alunos somados os dois.

O "Jornal da Caserna" informou que quem ficasse nos primeiros lugares duma lista conjunta não iria para África, como era costume.

Depois do estágio, já Aspirantes, o que frustou a comissão de recepção, que esperava Soldados-Cadetes, terceiro ou quarto lugar no Curso, lá fui eu, mais o Conceição, quarto ou quinto lugar, planeando como seriam os nossos dois anos de "guerra" à beira do Atlântico, mas do Atlântico Norte.

RAP 3, vários Alferes e Aspirantes mais velhos, confirmavam a tese de que os primeiros colocados não seriam mobilizados. Normalmente os mais novos dariam instrução até chegar nova turma. Logo nos primeiros dias, no bar, o Coronel Comandante falou que o responsável pela messe não iria continuar, precisava de um voluntário, como ninguém se manifestou, e eu na hora era o único dos novos presente, perguntou:
O nosso Aspirante não quer assumir?

Na hora entendi que era mais que um convite, e falei rapidamente:
- Claro,  meu Comandante!

Afinal não foi tão mau; o cozinheiro tinha trabalhado num restaurante da Mealhada, e tinha uma boa equipa, fazia as compras diárias no mercado, ficando para mim tão somente as compras do atacado. O único contratempo surgiu quando o Comandante me chamou para dar os "parabéns", pois, como ele tinha recebido em casa no almoço uma fruta estragada, era sinal de que todos os oficiais eram tratados igualmente.

Era um Coronel da velha guarda, à beira da reforma, que usava o humor no lugar da "porrada". Baixa temporada, fácil de alugar apartamento com vista para o mar, pois havia farta oferta; lembrem que ainda éramos Portugueses pobres num Portugal pobre, não éramos ainda nem Europeus nem ricos.

Figueira da Foz


Figueira da Foz, perto de casa, e de Coimbra minha segunda casa. Era Inverno, contudo, ainda tinha o Casino aberto diariamente. Melhor impossível!!! Só era preciso fazer o planeamento da "guerra" para os próximos dois anos, à beira do Atlântico Norte.

O alvo agora era outro: bandos de loiríssimas turistas nórdicas, ávidas de sol e agitação. Amigos e família, unanimemente me felicitavam, e diziam, ou pensavam, que era um hmem de sorte ou tinha uma grande "cunha", aceitava com bom humor todas as piadas, pois, tudo estava correndo acima de qualquer espectativa.

Já estava me preparando para fazer admissão noutra Faculdade, assim aproveitaria ainda mais esses tempos de sorte. Lamentavelmente, o acima descrito era apenas um exercício de "wishful tinking", a dura realide começou a emergir quando o oitavo colocado foi mobilizado, e a fantasia desmoronou quando o Conceição, primeiro colocado depois de mim foi chamado.

A Princesa afinal era outra... a PRINCESA DO RIO SAPO!!!

Forte abraço a todos
Vasco Pires
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12630: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (10): Coimbra, Porto, Abrantes, com passagem por Santa Margarida (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P12633: Bom ou mau tempo na bolanha (43): Todos tivemos um "Torres" (Tony Borié)

Quadragésimo terceiro episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.




Acedendo à sugestão do “comandante” Luís e, inspirando-me no texto do companheiro Carlos Vinhal, onde no meu comentário digo que me fez lembrar a mim, “A cidade ou vila que mais amei ou odiei no tempo da tropa”, pois cá vão algumas das minhas recordações, que fui buscar ao meu, que já considero “quase bom”, arquivo militar, que vou constituindo, com a ajuda de alguns familiares da nova geração que tinham em seu poder alguma informação da minha vida militar, que por ficou em casa de meus pais e que sabendo que nesta altura da minha vida, onde o tempo sempre sobra, uma das minhas “ocupações” é ir reconstituindo e partilhando com os meus companheiros combatentes. Claro que muitos de vocês me inspiram e ajudam com a vossa preciosa informação, que talvez sem quererem, fazem voltar à minha memória os meus tempos e lugares de passagem, quando usava aquela farda cinzenta, feita de pano grosso, e tinha que andar quase sempre com os botões apertados, quer fizesse frio ou calor!


De acordo com o que está escrito na minha caderneta militar, cuja cópia da folha partilho convosco, “assentei praça” no Regimento de Infantaria 10, em Aveiro, no Quartel de Sá, que era aquele próximo da estação do caminho de ferro. Passei uns meses de instrução, ouvindo bazófias de uns militares instrutores, um pouco arrogantes, dizendo que tínhamos que saber “matar outra pessoa, na perfeição” e que não podíamos ser mais aqueles filhos queridos da mãe e do pai, tínhamos que ser fortes e arrogantes, matar o inimigo, fuzilá-lo!
Neste quartel, cujas instalações eram umas antigas “cavalariças”, sem o mínimo de condições para alojar pessoas, mas que suportei bem, pois eram meses de verão e não estava muito longe de casa, mas não guardo boas recordações.



Tal como o Carlos diz, um dia meteram-nos num comboio especial, que quando passou por Aveiro, já vinha com muitos companheiros nas mesmas condições, com destino ao sul, onde depois de duas paragens, uma em Coimbra e outra creio que no Entroncamento, nos largou em Santa Apolónia em Lisboa.

Eu e mais uns tantos fomos para o Regimento de Artilharia de Costa, na Trafaria, donde guardo algumas boas e outras más, as boas eram o conforto dos “Primos de Lisboa”, de quem já vos falei por diversas vezes, e de um “sargento porreiro”, com o estômago que sobressaía, apertado com cinto muito largo ao fundo da barriga, que nos levava para debaixo de uns pinheiros, com vista para o rio Tejo, e nos dizia, depois de beber qualquer líquido que tirava de uma contenda que guardava dentro da camisa, que nos queria a todos educar de maneira a que a nossa bandeira era o nossa Pátria e a nossa mãe, e que nos devíamos sentir bem pensando assim, pois o nosso País era o nosso orgulho!
As más, eram as corridas, caminhadas e exercícios na beira do rio Tejo, orientadas por um militar que tinha regressado de uma comissão em Angola, e diziam que tinha sido campeão de maratona.

No final da instrução para operador cripto, onde me classifiquei em terceiro lugar, portanto aprendi tudo o que o “sargento porreiro” me explicava, nos intervalos da sua bebida e, como estão a ver fui um bom militar, sempre cumpridor, absorvendo toda a instrução. Devido à minha boa classificação, não fui logo mobilizado para o então Ultramar, como os meus companheiros de curso, que pouco tempo estiveram na então Metrópole, como tal atravessei o rio Tejo, onde se estava a construir uma ponte, que diziam que era a maior e mais linda da Europa, obra do Estado Novo, segundo as informações do meu “sargento porreiro”, fui outra vez de comboio, agora para a cidade de Évora, para o Quartel General, onde trabalhava umas horas por dia, passando o resto do tempo a caminhar em redor das muralhas, parando aqui e ali, subindo e descendo escadarias, por entre ruas estreitas, acabando quase sempre, numa “tasca” que existia ao lado de uma padaria, debaixo dos arcos, próximo da Praça do Geraldo, onde me deliciava a ouvir histórias de touros e touradas, de cavalos importantes, de homens já com idade, que não se separavam do copo com vinho, que sempre estava na sua frente.

Aqui tive um companheiro que era oriundo da aldeia de Susana, onde passava alguns fins de semana, caminhando pelos campos, comendo queijo de ovelha, carne de porco frita, parecia rojões, sopas de coentros com muito pão.
Évora era a minha cidade favorita, sem qualquer dúvida, apesar de estar longe da minha aldeia na Beira Litoral onde regressei, creio por duas vezes e, tal como o Carlos diz, tomei o comboio para o Barreiro, onde envio a foto dos bilhetes, que agora recuperados, guardo religiosamente entre outros e, se repararem bem, os preços marcados são diferentes, um é só meio bilhete, o tal com os descontos, que não me lembro, se viajei num comboio especial ou se, no outro caso não mostrei a identificação de militar, o que acho estranho não o ter feito, mas o preço é diferente.



No Barreiro tomava o barco para Lisboa, caminhava até à rotunda do aeroporto, esperando, junto de muitos companheiros, boleia para o norte, o que naquele tempo era muito fácil.
Também vos mostro outra relíquia, que é uma cópia de um bilhete para ir ao cinema em Évora. Como a “puta” da minha classificação era boa no curso de operador cripto, mandaram-me fazer serviço no Estado Maior do Exército, em Lisboa, mais propriamente em Santa Apolónia, onde trabalhava uma a duas horas por dia, em mensagem vindas das então províncias ultramarinas. Por ali fui ficando, tendo como alojamento o quartel do Depósito Geral de Adidos em Belém, onde era um “fórrobodó”, com entradas e saídas de militares diferentes quase todos os dias, onde eu arranjava sempre umas autorizações, das quais também reparto com vocês uma cópia, para fugir do quartel e ir para casa dos “Primos de Lisboa”.



Em Lisboa, tirando a paisagem da beira do rio Tejo, em frente à Trafaria, junto do Mosteiro dos Jerónimos ou Torre de Belém, onde passava horas e horas sentado nos bancos que por lá havia, lendo quase sempre um jornal desportivo, não gostava daquela confusão. Tenho um segredo passado lá no Mosteiro dos Jerónimos, no qual eu colaborei, pois toda a acção foi do Torres, que também era um companheiro do norte com quem andava sempre. Hoje tenho duas sensações dessa aventura, orgulho e um pouco de vergonha, pois tudo passou assim:
Era manhã, havia um casamento, nós estávamos vestidos à civil, com os sapatos muito bem engraxados, claro, jovens com um corpo onde sobressaíam alguns músculos de dentro de uma camisa de manga curta, e vai daí juntámo-nos aos convidados, assistimos a toda a cerimónia do casamento, o Torres ia falando com alguns deles e no final seguimos no carro de um casal. O Torres sempre dizendo coisas do noivo, pronunciando o seu nome, pois tinha-o ouvido durante a cerimónia, e lá fomos para uma quinta na região de Sintra, onde não faltava comida. Tal foi o descaramento do Torres, que a certa altura andou a dançar com a noiva!
Para completar, quando nos despedimos, ele pediu uma garrafa de champanhe para o caminho, e sem dar por nada, estávamos os dois à boleia para Lisboa, já um pouco tontos com a bebida, e com uma garrafa de champanhe nas mãos!


O Torres era um ano mais velho, acabou por ir para Angola, a troco de uma quantia em dinheiro, no lugar de um militar que estava mobilizado, cujos pais tinham alguns recursos financeiros. Escrevemo-nos por algum tempo, lembrando sempre esta aventura, acabando por ficar em Angola, no final da sua comissão, dizendo que Angola era o melhor país do mundo.

A seguir foi a minha mobilização para a então província da Guiné, onde fui fazer parte do Agrupamento 16, que foi organizado pelo Regimento de Infantaria, na Amadora, onde estive a aguardar embarque, fazendo “cabos de dia”, “cabos do rancho”, “cabos de limpeza à parada”, “cabos de guarda”, cabos de tudo, o que outros não queriam fazer, às vezes até era “sargento dia”, pois era tudo militares mobilizados que aguardavam embarque e desapareciam o mais que podiam do quartel, e do qual não tenho recordações, nem boas nem más.

Uns anos depois, já na vida civil, quando ia da minha aldeia do Vale do Ninho D’Águia até ao Santuário de Fátima, sempre caminhando, cumprindo uma promessa da mãe Joana, já lá perto, passando numa povoação que se chama Casais, entrei numa taberna e encontrei um companheiro que se dirigiu a mim e me deu um abraço. Disse-me que estava casado, que tinha um filho, um lindo menino, que fez questão que eu visse, e que me agradecia, pois tudo isto tinha acontecido porque eu lhe tinha “limpo” o número na formatura do recolher, dando-lhe “dispensas” ou facilitando-lhe a vida de qualquer outra maneira num desses dias, para ele se encontrar com a noiva que se tinha deslocado da sua aldeia e estava numa pensão na Amadora, fazendo-lhe companhia, enquanto esperava o seu embarque para Angola.

Tony Borie,
Janeiro de 2014
____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12571: Bom ou mau tempo na bolanha (42): O navio Uíge (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P12632: O segredo de... (16): Ricardo Almeida (ex-1.º cabo, CCAÇ 2548 / BCAÇ 2879, Farim, K3 / Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71): Como arranjei uma madrinha de guerra, como lhe ganhei afeição e amor, e como por causa da minha terrível doença fui obrigado a tomar uma dramática de decisão de ruptura... A carta de amor pungente que ela me escreveu, em resposta...

1. Mensagem, com data de 12 do corrente, do nosso camarada Ricardo Almeida [, ex-1.ºcabo, CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Farim, K3 / Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71]


Boa tarde,   Luís,   com um abraço.

Dando seguimento à solicitação de segredos guardados enquanto combatentes... Com alguma relutância, amargura e muita tristeza que me vai consumindo a alma, divulgo como o destino se encarregou de torturar-me, enquanto tiver vida para recordar.

Esta recordação que nunca apago da mente nem do coração, reporta-se a uma madrinha de guerra à qual devo gratidão eterna pelo apoio moral e psicológico que me deu enquanto combatente, doente com uma moléstia terrível, redundando isto num amor fraterno, solidário e muito apego à vida que ela me transmitia tanto nas cartas que me escrevia, como depois pessoalmente, como quando trocámos promessas de vida em comum e casamento, testemunhado no interior duma capela pelo santo que lá existia e que parecia concordar com a nossa decisão. 

Hoje vou-lhe pedindo perdão no silêncio dos meus silêncios, pela atitude que tomei, enquanto ela espera por mim,  cumprindo a promessa de nunca ter a seu lado outro amor na sua vida. Hoje, ao refletir na minha atitude, só encontro uma explicação: a moléstia de que eu padecia e os médicos dizerem-me que era muito grave, levaram-me assim a proceder. O meu raciocínio parava no tempo,  os pensamentos atropelavam-se,  levando-me muitas vezes a devaneios e loucuras.

Como poderia eu cumprir a promessa se não tinha a certeza se ficaria bom e capaz de constituir família, submeter-me a internamentos e não ter meios para angariar subsistência familiar? Por isso tomei aquela atitude da qual ainda não saí nem voltarei a sair enquanto respirar. Então surge no meu cérebro o clique do rompimento,  dando-lhe a primeira sapatada tão violenta e demolidora que até eu chorei ao reler o que lhe escrevi. 

Toda a história tem um princípio e um fim e a minha não é diferente: sou do [BCAÇ] 2879 e da [CCAÇ] 2548 sediado em Farim,  sendo que a dita companhia subdividia-se em pelotões que, por sua vez,  eram colocados em vários sectores,  sendo o meu, o  terceiro [pelotão],  colocado no K3. Certo dia ao regressar duma patrulha tive a ideia de escrever vários aerogramas, com os seguintes dizeres: 

( Ao carteiro da terra tal:) À  primeira moça que encontrar o desconhecido; levando como remetente, um coração triste no mato o desiludido. 

Dos ditos [aerogramas] só um foi respondido. Vejamos o que dizia:

(...) Foi-me entregue no dia 22/10 de 69 um aerograma que li com atenção e regozijo-me ser sua madrinha de guerra apesar de saber que não me era dirigido. Mas, no entanto,  se deseja uma madrinha e não se importa em ser eu, responda-me de novo. (...)

Então a esse aerograma sucederam-se mais, dando origem a que ganhasse afeição e  amor a essa jovem. Já no HMDIC [ Hospital Militar de Doenças Infecto Contagiosas, ou Hospital Militar de Belém] ]e com as hemoptises [, expectorações de sangue,]  por companhia,  tentei escrever-lhe para dar-lhe a notícia que me encontrava em Lisboa mas fui aconselhado a não fazê-lo,  devido ao meu estado debilitado e agora alguns aerogramas eram-me remetidos pelo SPM 6118. 

Até que, debaixo do meu estado febril, consegui articular algumas palavras ao soldado ali de serviço, o que ele acedeu de bom grado. A partir daí desenrolam-se as viagens e consequentemente as visitas quase diárias. Perdura na minha mente, na primeira ou segunda visita, ter uma hemoptise tão violenta que o sangue espirrou sem o poder conter e ela, com a mão na minha cabeça, dando-me alento e coragem para não desanimar,  que tudo se comporia.

Foi debaixo deste sentimento que tomei a decisão de tudo acabar ali,   deixando-a livre para governar a sua vida,  uma vez que era jovem e poderia arranjar um companheiro que lhe desse alguma segurança pela vida fora. Tal não veio a acontecer, conforme o acima relatado. Então,  já me podendo soerguer na cama,  escrevo-lhe a célebre carta:

(...) Hoje desprezo-me a mim próprio por tê-la conhecido e deixar que as coisas tomassem o nefasto rumo.  (...) 

só peço que ao receberes
esta carta afinal
tenhas o que mereceres
pois não te desejo mal.
Peço-te unicamente
que me dês o que é meu
por eu não ser coerente,
sofres tu e sofro eu.
Não sei se isso para ti
ainda tem significado,
creio que já sugeri
que tudo isso é passado.
Da minha parte acabei,
não voltes a pedir-me amor
pois de ti já nada sei,
já não alimento essa dor.
Eu não queria conhecer-te
na menina que amei.
pois já não quero rever-te,
reconheço que me enganei.
Peço desculpa se ofendo
mas não é minha intenção
porque eu isto revendo
só torturo o coração.
Já sofri muito, o bastante,
quando deixei de te amar.
hoje sou homem constante,
já nem quero recordar.
De certo vais estranhar
esta carta assim escrita,
pois não é para admirar,
meu coração já não grita.
Jurei à vida indiscreta
por ti, por mim e por mais
que esta coisa é certa,
de nos vermos nunca mais!
Se hoje estás arrependida,
tu mesma foste a culpada
por não saberes que a vida
só por si é já amada.
Agora para terminar
peço-te um grande favor,
esquece que está a acabar
o nosso sedento amor.
Vou terminando a final,
esperando que me escrevas,
pois não te levo a mal
o que digas ou o que pensas.

Interpretando a carta à sua maneira, a resposta [dela]  era a seguinte:

(...) Meu amor,  desejo em primeiro a tua saúde. Rik, recebi onde vi tudo quanto me dizias. Então estás assim tão desanimado! Nem tens mais confiança em minhas orações, porquê,  Rik? Se eu te amava agora mais do que nunca te amo,  com mais fervor, visto que sofres tanto. Não me interessa; não me importo esperar por ti dois ou três anos , quero casar contigo mesmo assim; nada me importa do que digam ou do que possam dizer; mais uma vez te digo que não quero perder-te por nada, não te quero trocar por ninguém. Quando comecei a namorar-te,  portanto quando te aceitei namoro, já te encontravas no hospital, já te encontravas também doente; por isso, tentei sempre dar-te coragem, calma e continuo a fazê-lo,  meu amor. Fizeste-me chorar amargamente como nunca tinha chorado em toda a minha vida e continuo a fazê-lo. Cada vez que penso no que me dizias na tua carta e quereres dar fim a tudo...

Mas eu ainda não o fiz, ainda não pus fim nem vou fazê-lo a tudo isto, ao nosso amor. Deixares-me assim sem quê nem para quê, que tristeza; nunca supus isso de ti.

Rik se me abandonas assim desta maneira, eu dou cabo de mim! Porei fim á minha vida ou adoecerei, quem sabe? Não quero mais homem nenhum; amo-te e amar-te-ei até ao fim da minha vida; até à hora da minha morte que talvez seja mais rápido do que todos pensam.

Eu que só quero a felicidade de todos e ela, para mim,  não vêm; ela não quer nada comigo. Não me queres amar mais ou então nunca me amaste; terás outro alguém que tirou o meu lugar no teu coração? Preferia que me dissesses se é isso que aconteceu! Mas se não aconteceu e se é por estares doente, acredita em mim esperarei por ti o tempo que for necessário. Quero-te tal qual como és; sabes que o amor não escolha a saúde ou a doença; o amor é uma coisa tão forte que não olha a nada disso; amo-te e é tudo.

Ricardo,  amar-te-ei sempre...

Se eu era incansável a pedir a Deus por ti, hoje mais do que nunca o faço porque sei como te encontras. Mas hás-de curar-te felizmente. Há tantos assim! Ou não é verdade? Muitos ainda em pior estado que tu! Não desanimes e pede a Deus por ti e por mim. Ele nos há-de ajudar, Ele te há-de curar, Ele é bom e nunca nos abandona,  pelo contrário, nós é que o abandonámos,  nos. esquecemos Dele. Vamos então orar-Lhe por ti, não queiras sofrer mais nem fazeres-me sofrer assim. O amor,  a Paz,  é tudo tão lindo! Mas eu quero sofrer também contigo.

Oh se eu pudesse dar a vida pela tua saúde, acredita que o faria; porque sabia que iria dar saúde àquele que tanto amo e que só ele para mim existe. Disse-te mais que uma vez que se algum dia me deixasses que não queria mais homem algum e continuo a dizê-lo constantemente até quando Deus quiser.
Quero sofrer neste mundo e alcançar a vida eterna; ir para junto dos seus anjos.

Teus pais, teus irmãos e o resto da tua família sabem de tudo isto? Da tua doença e da tua conduta para comigo? E que me queres deixar assim tão repentinamente? Diz-me; escreve-me sempre nem que sejam só como amigos.

Mas tu para mim és o meu primeiro amor e continuarás a sê-lo,  o meu único amor,  quero saber sempre noticias tuas. Agora uma coisa que te peço,  que te suplico-te, Rricardo: nunca me amaste, pois não? Eu não era a mulher que tu supunhas encontrar? uma moça simples,  simples de mais. Se não me amavas porque não me disseste logo? Então porque me beijaste? Preferia que isso nunca tivesse acontecido. Mas eu pressentia o que me poderia acontecer; lembras-te quando te disse que não devias beijar-me! Então porque quiseste saber tudo à cerca de mim e da minha família? Agora sei que quiseste fazê-lo para saberes como eram!

Disse-te tantas vezes que o amor está acima de tudo isto. Achas que procedes bem com essa tua atitude? E porque não me achas mais a mulher escolhida por Deus e por o destino? Só eu estou no mundo para receber tudo isto mas, apesar de tudo,  continuo a amar-te e amar-te-ei sempre. Quem sabe se até com isto tudo e de tanto pensar, eu irei também para junto de ti? Doente, sim; não achas que é caso para isso? Tu, se continuasses a amar-me,  pensas que me interessava se as tuas melhoras fossem a pior? Que me importava que dissessem que eu amava um homem morto,  como tu lhe chamas? Não, Ricardo, nunca teria boca para renunciar ao amor dum homem que lutou por mim, pela Pátria, por nós todos. Quero ver-te curado, quero ver-te feliz porque tu merece-lo ser. Se é que não me enganaste,  claro! Mas nunca supus isso de ti. Dizias que nunca esquecerias a minha amizade mas esqueceste o meu amor,  a coisa mais valiosa que te dei. Esqueceste tudo isso; mas pronto, faz o que quiseres.

Mas fica sabendo que nunca deixarei de te amar. Cada vez que penso nisto nem sei para o que me dá... Tirar-me já do mundo mas isso era um pecado que Deus não me perdoaria, por isso estarei aí chorando horas esquecidas, e prostrada de joelhos toda a noite, velando pela tua saúde e pelo teu bem estar nesse hospital. Não sou assim tão má e dura como pensas porque, como sabes, Deus perdoou a quem o matou,  Ricardo. Porque não fazemos o mesmo?

Perguntas-me se quero as minhas fotografias, então é porque já estás cansado de vê-las. Ou não as podes ter contigo? Oferecidas com o pensamento em ti,  ao homem que veio despertar meu coração para o amor e, agora, o deixa ou deixou tão triste, tão escuro e tão magoado. Mas, enfim, vocês,  homens, não pensam, não sabem, o quanto isto custa sofrer por amor e morrer.

Jesus morreu pelo amor dos homens, pelos nossos pecados e eu morrerei de amor por aquele que ia considerar meu marido.

Por hoje está tudo e peço-te, chorando,  que me dês sempre noticias, quer onde te encontres e como te encontres. Envio um beijo ao homem da minha vida. Mais uma vez te peço que me dês sempre notícias, sejam elas quais forem,  e estás perdoado por tudo. Chorando loucamente por quem não me ama mais ou nunca me amou,  te digo,  por último, que sempre detestei a mentira,  disse-to tantas vezes! Perdoa,  se estou a ofender-te.

Com o coração destroçado termino.
Para a eternidade. (...)
______________

Nota do editor:

Último poste da série > 23 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12627: O segredo de... (15): Processo concluído (Augusto Silva Santos)

Guiné 63/74 - P12631: Inquérito online: "Muito sinceramente, não gostaria de morrer, sem um dia ainda poder voltar à Guiné"... Resultados preliminares (n=153): 2/3 dos respondentes (n=103) gostariam de poder visitar a Guiné-Bissau... Um em cada cinco dos votantes já lá voltou...



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional de Cantanhez > Iemberém > 9 Dezembro de 2009 > 15h50 > Macaco fidalgo vermelho (ou fatango, em crioulo). Nome científico: Procolobus badius. Um  primata que vive na Guiné-Bissau e que a maior parte de nós nunca viu, durante a guerra colonial... O sul do pais (e em particular as florestas do Cantanheze) também é menos conhecido por muitos de nós que fizemos a guerra colonial. Para além da "viagem de saudade", há muitas coisas na Guiné-Bissau por descobrir...

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem enviada, ontem, a todos os membros da Tabanca Grande, extensível hoje a todos os demais amigos e camaradas da Guiné que nos leem:

A partir do dia 23 do corente, e até ao dia 30, está a decorrer uma sondagem, para a qual peço a vossa melhor atenção.

Cada um de vocês pode votar uma única vez (mas também pode mudar o voto até ao encerramento da sondagem). A questão que desta vez vos ponho é a seguinte (Trata-se de uma proposição que não é falsa nem verdadeira, serve apenas para cada um manifestar a sua opinião,discordando ou concordando,em maior ou menor grau):


"MUITO SINCERAMENTE, NÃO GOSTARIA DE MORRER, SEM UM DIA AINDA PODER VOLTAR À GUINÉ"...

Há 9 hipóteses de resposta. Só se pode assinalar uma:

1. Discordo totalmente
2. Discordo em parte
3, Discordo
4. Não discordo nem concordo [é-me indiferente / não tenho opinião]
5. Concordo
6. Concordo em parte
7. Concordo totalmente
8. Não aplicável, já lá voltei uma vez
9. Não aplicável, já lá voltei mais do que uma vez.


Observações:  Quem já voltou uma vez à Guiné assinalará a resposta "Não aplicável, já lá voltei uma vez". 

A sondagem, "on line"/ em linha, está disponível no nosso blogue, na coluna do lado esquerdo, ao canto superior esquerdo... Por favor, não respondam por mail, mas sim no sítio certo... que é justamente aqui, no nosso blogue:

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/


Um alfabravo pela vossa participação e interesse. Luís Graça, editor.


2. Já houve até às 23 horas de ontem 153 respostas,  o que é, desde já, um verdadeiro recorde, em termos de participação em sondagens, quando ainda faltam 5 dias para o encerramento da votação. Os resultados preliminiares são os seguintes:

Não ou Não sei > 19 (13%)
Sim > 103 (67%)
Não aplicável, já lá voltei uma ou mais vezes 31 (20%)
Total= 153 (100%)

LG

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12630: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (10): Coimbra, Porto, Abrantes, com passagem por Santa Margarida (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 20 de Janeiro de 2014:

Em pouco tempo conheci vários quartéis e outras tantas localidades.
Passei pelo Trem Auto na Av de Berna onde fiz psicotécnicos e por conseguinte tive o primeiro contacto com a vida militar.

Passado meses recebo a ordem de marcha para o CICA-4 que funcionava no mosteiro de Santa Clara de Coimbra. Aí fiz a recruta.
Além do aprender a conduzir, manuseamento de armas, mecânica auto, o conhecer os postos da hierarquia, também aí descobri a prepotência por vezes a irracionalidade militar, quanto ao aprumo das botas de instrução e barbas. As botas acabavam por ser as únicas peças de fardamento de instrução que tinham que andar sempre impecáveis, o resto podia andar enlameado até à cabeça.
Para isso trazíamos sempre no bolso uma lata de pomada e uma pequena escova.

As barbas eram refeitas duas e três vezes ao dia até serem várias as crostas de lesões provocadas pelas laminas de barbear. A juntar a isto, a instrução também passava por formaturas a qualquer hora da noite, instrução nocturna quando menos esperávamos e as formaturas por dá cá aquela palha, duravam eternidades com castigos e flexões à mistura. E cheguei a dormir vestido antecipando o castigo, que às tantas da madrugada nos era cobrado.

Éramos obrigados a saltar da cama com estivéssemos vestidos, para como popularmente se diz “não ser apanhado com as calças na mão”. Não me posso esquecer das enormes ratazanas no refeitório, quando aparecíamos de repente para a faxina, e das duas doses daquela malvada injecção que nos davam sobre a omoplata, que fez muitos caírem redondos no chão.

Mas, as saídas à cidade e a sua beleza faziam esquecer a volta de 180 graus que dava a nossa vida após a incorporação. Era e é uma cidade lindíssima cheia de história e nomes sonantes da nossa cultura. A sua universidade, as repúblicas e a vida dos estudantes que davam movimento aos lugares que nós visitávamos, em especial locais dos copos e paródias.

Aí aprendi muita coisa para além do que era suposto aprender. Aprendi a não tentar sair do quartel quando estava à porta de armas um certo sargento que nos fazia voltar para trás vezes sem conta, sem nos dizer o porquê. Também onde era a rua direita e a desenrascar-me, a evitar os sítios onde a policia militar fazia luxo em nos provocar. Ao sair do café ou do comboio, o simples facto de aparecer um bocadinho de fralda da camisa, era uma carga de trabalhos com esses senhores.



Vistas da cidade de Coimbra

Após a recruta jurei bandeira e ala que faz tarde para o RI6, da belíssima cidade do Porto. Aí a instituição castrense parecia que se regia por outro RDM. Era tempo da especialidade. Para além das marchas forçadas, instrução de armamento e instrução já com Berliets, ninguém chateava.
À noite íamos para a cidade, bebíamos um fino, às vezes comíamos uma francesinha ou íamos comer à cantina, ao pé do Palácio da Justiça, por uma ninharia e sempre melhor que o rancho.
Praça da Batalha, Av dos Aliados e Palácio de Cristal, eram passeios apetecidos para ver as belezas que transitavam nos passeios e entravam e saíam dos lugares públicos.
Aí retomei amizades antigas e conheci alguns camaradas, longe de saber que ia com eles para a Guiné. Também esse tempo acabou e nessa mesma noite fui metido num comboio direito a Abrantes ao RI6.


Vista da Cidade do Porto 

Foto do sítio PPortodosMuseus (reproduzida com com a devida vénia...)

Abrantes foi um sítio complicado, aí não conhecia ninguém. Quando cheguei não tinha cama e dormia numa cama vaga de um camarada que estivesse de reforço. Escusado será dizer-se que não me despia e dormia em cima da manta. Não raras as vezes o soldado saía de serviço e eu, tinha que ir procurar outra cama vaga.
Entretanto os dias passavam-se a fazer o que os outros não queriam fazer. Por exemplo mudar os pneus aos carros enormes da II Grande Guerra como GMC e Canadá-Ford, em que as borrachas ressequidas eram descoladas à força de cunhas e marretas. Os parafusos das jantes eram do estilo mais quebrar que torcer.
Resumindo aquilo era mais para chatear do que nos preparar para o que íamos encontrar, uma vez mobilizados. A cidade era um “valha-me Deus" ou "Deus nos acuda”,  não tinha nada para ver e se não fosse aquela ideia de sair dos muros do quartel, acabaríamos por nos limitarmos a jogar às cartas, beber, fumar e ver alguma revista de pouca roupa, que passava de mão em mão.

O facto de não ter cama nem cacifo, acabou por ditar a sorte do meu saco com roupa civil, que deve ter servido ao tipo que o roubou, para passear em Luanda, pois desapareceu na noite que transportamos um batalhão para Angola.

Panorâmica de Abrantes

Foto da internete, com a devida vénia ao seu autor

Um dia ou dois após, recebo ordem de marcha para Santa Margarida, onde me apresentei no CIME, que era então comandado pelo coronel Maçanita.
Aí tudo se conjugou para eu odiar o destacamento.
Em Novembro fazia um frio de rachar e as várias tentativas para me ser distribuído mais um cobertor foram infrutíferas, obrigando-me assim a dormir completamente fardado.
Também nessa altura uma circular obrigou-nos a fazer preparação física todas as manhãs antes do pequeno almoço. Estava tudo coberto de geada e nós a corrermos, a fazer flexões sem encostarmos o peito à relva, com temperaturas próximas do negativo, pois por essas paragens o tempo não brinca. Mas o supremo sacrifício era para sair de lá e vir a casa de fim de semana.

O CIME era o único destacamento que não fornecia transporte para a estação que ficava uns quilómetros fora do campo militar. Depois tínhamos que apanhar comboio até o Entroncamento, seguidamente apanhar o comboio para a linha do Oeste, que chegava ao Valado dos Frades às tantas da noite, quando já não havia autocarro dos Claras para transportar a malta para Alcobaça ou para onde quer que fosse.
Aí fazia-se uma “vaquinha” para o táxi e lá chegávamos todos mais ao menos ao destino. Mas regressar era ainda pior.
Tínhamos que sair de casa logo após o almoço de Domingo para apanharmos o especial para militares em Santarém até ao Entroncamento e aí apanhar o comboio do “Século 19” até Santa Margarida. Chegávamos tardíssimo com uns quilómetros para fazer a pé, ou então nunca chegávamos dentro do período da licença. Nem é bom pensar nisso.
Odiei e não me custa admitir que fiquei contente quando fui mobilizado, pois aquilo era terrível e não havia forma de melhorar. Está claro que quando soube que era para Guiné, não fiquei tão contente assim.

Voltei a Abrantes com a sina lida quanto ao destino que me calhara, mas acabei por passar bons momentos de camaradagem com os indivíduos do Pelotão de Reconhecimento, com os quais tinha vindo do Porto.

Depois Angra do Heroísmo, mar calmo, peixes voadores, Madeira e logo a seguir o horizonte em fogo cada dia mais perto. Desembarcámos e fomos depositados no Cumeré.
Fui entretanto escalado para receber treino todo-o-terreno com Berliet em Bissau. Fui parar a umas instalações atrás do QG onde passei praticamente um mês. Estava lá quando se deram os graves incidentes entre a PM e os Comandos Africanos, que não aceitavam, para não variar, na maior parte das vezes,  a autoridade para além das próprias leis por que se regiam.

Uma bela manhã zarpamos de LDG para o Leste, rio Geba acima com destino a Galomaro.
Xime, Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego, Buruntuma, Saltinho, Dulombi e Cancolim, foram sítios que visitei.

 Rua principal de Bafatá

Cancolim, 1973 - Durante as chuvas - Trinta dias de isolamento e algumas pontes levadas pelas águas quando os ribeiros se transformaram em rios revoltos.

Dulombi - TCor José Maria de Castro e Lemos, Comandante do BCAÇ 3872, após a retirada desse destacamento

Nuns demorei-me mais que noutros, mas não quero deixar de escrever algo sobre Cancolim.
Este destacamento onde esteve a CCAÇ 3489 foi um dos sítios mais difíceis onde pernoitei muitas vezes. Os problemas psicológicos, os mortos e feridos, as deserções, a má alimentação, tudo se conjugava para que fosse um sítio a evitar. Mas tinha lá muitos amigos e era sempre com alguma preocupação que me vinha de lá embora. Esta Companhia, várias vezes reforçada com para-quedistas e posteriormente com pelotões da 3491, após a retração desta do Dulombi, veio a equilibra-se após o meio da comissão, conseguindo segurar a zona que estava na sua jurisdição, felizmente sem mais problemas para além dos já tinha suportado.

Um abraço
Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12628: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (9): Mafra e Porto, como em casa (Fernando Gouveia)

Guiné 63/74 - P12629: Notas de leitura (556): "Soldadó", por Carlos Vale Ferraz (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Agosto de 2013:

Queridos amigos,
É facto que a paródia, a gargalhada e o dito inconveniente deixam de pé atrás todos aqueles que entendem que a guerra é um assunto muito sério, insuscetível de dichotes e paródias.
Facto é que a gargalhada saudável não se deixa impressionar por esses espíritos que exigem uma associação clara e perfeita entre a geografia da guerra e a panóplia de virtudes militares.
“Soldadó” é uma gema literária da literatura de guerra, sente-se quando se lê ou relê que já não se compadece com o figurino temporal, é uma derrisão que pertence ao melhor que a literatura de guerra produziu entre nós.

Um abraço do
Mário


Relendo uma obra-prima: Soldadó, por Carlos Vale Ferraz

Beja Santos

A derrisão, a chacota, o divertimento quase ilimitado em torno da guerra é uma permanente tentação literária. Perante o tratamento sério, a agitação de valores, o discurso sobre a bravura, o heroísmo, a plena abnegação de si, o escritor que se pauta pelo burlesco, a chalaça, a paródia e o chocarreiro modela a trama narrativa como se virasse a guerra do avesso, e quanto maior é a inspiração e o talento a prosa comediante torna-se plausível, o leitor é tomado por um humor cáustico e, no final, sabe bem medir as consequências da carga metafórica de tudo quanto leu. Quando lemos aqui no blogue o Jorge Cabral ou o Alberto Branquinho, dois alquimistas do riso, ficamos com a noção de que a gargalhada é o perfeito contraluz para estes teatros de guerra onde tudo corre ao contrário e a valentia tem outro significado.

Vem este apontamento para localizar “Soldadó”, de Carlos Vale Ferraz, ao que sei a sua única incursão pela graça fértil, esfuziante (Editorial Notícias, 1997). A contracapa é esclarecedora: “Soldadó é um militar destacado para África, em plena guerra colonial. Pouco dotado de inteligência e obediente que nem um cão, Soldadó sente-se às mil maravilhas nas suas funções militares. De um combate misterioso que ninguém sabe ao certo como começou, Soldadó foi o único ferido. Abre-se um inquérito para tentar esclarecer os factos ocorridos. É neste inquérito que os sargentos vão contando ao comandante encarregado do relatório a história incrível de Soldadó – o seu nascimento em cabeça seca, a sua incursão na vida militar, a viagem para África a bordo do Niassa, as suas funções militares em África. Com muito humor, são também relatados pitorescos e caricatos acontecimentos militares, pondo em causa toda a instituição militar e, muito particularmente, a guerra colonial”. É literatura tão universal quanto “Lugar de Massacre”, de José Martins Garcia, outro monumento literário, já com dois doutoramentos à sua custa, e de aqui já se fez referência. É certo que o autor transfere toda esta pirotecnia, todo este humor em fogo preso para Moçambique, mas cabe ali qualquer teatro de operações.

O nosso herói chama-se Fergusinho do Ó, não sabia ler nem escrever, era básico, mas não havia ninguém mais disponível do que ele: cangalheiro, sacristão, fiel de armazém, projecionista de filmes pornográficos, estivador e até piloto e guarda-costas de cíclicas excursões de prostitutas, vindas para animar os infortunados guerreiros.

Tudo se passa em Mueleka, um comandante recém-chegado promove uma reunião para apreciar o insólito caso do Soldadó. É este processo delirante que se vai desenovelando como portentosa comédia de costumes de corporação militar. Estão presentes o tenente-coronel, comandante de Mueleka, o segundo comandante e mais uma data de gente, como é o caso do narrador. O comandante quer tudo em pratos limpos, ao capitão Gorgulho cabe as primícias, Fergusinho do Ó nasceu em Cabeça Seca, terra de hereges, lá no ermo nortenho. O Soldadó foi apurado para as fileiras se bem que completamente blindado de inteligência, coube-lhe como escola o Regimento de Infantaria 13. Ficou demonstrado que não lhe podiam entregar uma G3, o Soldadó, por artes mágicas, disparava em todas as direções, só a boa sorte evitou acidentes mortais, foi assim que o reclassificaram em soldado básico, não sentiu qualquer pesar, depois foi mobilizado para a guerra.

Passo a passo, o Soldadó aparece associado a peripécias descomunais: durante uma missa campal deitou no cálice da consagração bagaço da intendência, o capelão contorcia-se de sufocação, com a goela em chamas. O tenente-coronel mais congestionado fica com a descrição das gentes de Cabeça Seca, a chegada das putas de Kampuka e a missão do Soldadó em receber as verbas pela prestação de serviço, controlando os tempos da mesma. A trama narrativa é uma delícia e não deixa desfalecer o leitor, à volta daquele tenente-coronel desfilam oficiais e sargentos de vária ordem, cada um é mais hílare que o outro, a facécia seguinte é mais divertida e descomposta que a anterior. Os testemunhos prosseguem, é preciso descobrir-se como é que o Soldadó está prestes a acabar a segunda comissão em Mueleka, querem fazer do Soldadó um herói e acabam por descobrir esta terrível irregularidade que em termos de justiça militar vai custar uns bons castigos a uma certa hierarquia negligente.

O Soldadó impôs-se, não há missão em que não se revele imprescindível e não dê bom andamento ao serviço, já zelou pelas meninas que visitam regularmente o quartel, foi cangalheiro, é exemplar como fiel de armazém, eis senão quando uma visita à habitação do Soldadó revelou algo de surpreendente: aqui se descobriram fios de ouro e de prata, carteiras todas limpas de dinheiro, algumas contendo fotografias de familiares, enfim, coisas que o soldado achara um desperdício irem para o fundo da terra numa urna de pinho, havia até mesmo dinheiro enrolado em notas o que indiciava que o Soldadó também descobrira as delícias com as meninas vindas de Kampuka. E não menos impressionante foi descobrir-se uma metralhadora HK, uma caixa de cinco dúzias de granadas de mão, uma G3, uma faca de mato e uns binóculos que ninguém soube como tinham ali ido parar. Acontece que este material terá tido muita utilidade quando começou um misterioso ataque a Mueleka, saiu do quarto, disparou infatigavelmente até ser ferido por um estilhaço.

Aquele ato veio mesmo a calhar, Mueleka estava nesse dia a ser visitada pelos altos comandos, aquele herói dava jeito, ainda por cima o general tinha ouvido o farto fogachal, o comandante viu ali a boa circunstância para conquistar uma medalha. Iniciado o processo para a condecoração, descobre-se que o soldado anda por ali há quase duas comissões, desaparecera a nota de substituição, ninguém deu por nada quanto à falta de rendição do Soldadó. Voltara-se o feitiço contra o feiticeiro. Quem fez o relatório do foguetório descobriu que este fora uma brincadeira combinada entre a companhia de caçadores e a artilharia para assustar o general e os oficiais do Estado-maior. O comandante tudo ouvia, já com os olhos revirados e exigiu que constasse que a guarnição de Mueleka sofrera um violento ataque do inimigo, do qual resultara um ferido e danos em instalações. E foi perentório, quem afirmasse o contrário iria a tribunal militar por traição. Atendendo ao tempo de serviço, disseram-lhe que iria rapidamente para casa, ele opôs-se: “Meu alferes, eu fico cá e o exército escusa de mandar vir outro soldado da metrópole para me substituir!”. Quis o destino cruel que a história, até agora pícara, tivesse um desfecho truculento, mesmo o comportamento dos soldados obedientes é imprevisível, e depois do que aconteceu o comando, oficiais e sargentos estavam radiantes, não percebiam a dor daquele Soldadó que se afeiçoara, de alma e coração, a Mueleka.

É uma novela espantosa, este “Soldadó”, pela arquitetura da irreverência, pela graça transbordante, pela galeria de gente pícara. Não dá para entender o silêncio à volta desta obra-prima, tão necessitada está de reedição.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12622: Notas de leitura (555): “Magrheb/Machrek – Olhares luso-marroquinos sobre a Primavera Árabe”, por Raul M. Braga Pires (Francisco Henriques da Silva)

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12628: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (9): Mafra e Porto, como em casa (Fernando Gouveia)

Convento de Mafra 
Foto tirada da NET, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec Inf, CMD AGR 2957, Bafatá, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2014:

Carlos:
Não contava escrever sob este tema “A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG", porém depois de tu contares a tua viagem de comboio para as Caldas não posso deixar de contar a minha para Mafra.

Para melhor se compreender o meu estado de espírito quando, pela primeira vez dei de caras com aquele mostrengo do Convento, vou começar um pouco antes e contar um episódio passado comigo que, a meu ver, predestinou toda a sorte que tive em relação à tropa e à guerra.

Estava eu no RI6 no Porto a dar a minha terceira ou quarta recruta quando fui escalado para “levar”, num comboio especial, uns duzentos soldados a Sta. Margarida, com destino à então guerra colonial. O comboio saiu de Campanhã cerca da meia noite e iria chegar, ao destino, de madrugada.
Em determinada altura, ainda noite escura, já perto de Sta. Margarida o comboio parou e assim esteve largos minutos.

Como “chefe daquela guerra” achei que algo se estaria a passar, relacionado com o transporte dos mancebos. No intuito de saber, junto do maquinista, o porquê de o comboio não andar, desci à linha.
Vindo de dentro da carruagem iluminada, com a escuridão da noite não via nada lá fora. Com os meus vinte e poucos anos, ginasticado como andava, não estive com meias medidas. Mesmo sem ver, saltei do estribo para o que eu julgava ser a berma da linha.

Acontece que o comboio estava parado em cima de uma ponte, daquelas que não têm passadiço, mas só uns ferros de onde em onde. Quando senti que por baixo era o ”vazio”, numa atitude instintiva estiquei-me e acabei por ficar preso com uma mão num ferro e um pé noutro. Uns cinquenta metros lá em baixo ainda pude ver a Lua reflectida nas águas do rio.

Com os músculos doridos, icei-me para o estribo da porta, entrei na carruagem e fui sentar-me no meu lugar, sem ninguém se ter apercebido do que me tinha acontecido. Imagine-se o que seria aquela “tropa” chegar ao destino sem Comandante, guias de marcha, etc.
Enquanto não encontrassem o corpo, não tenho dúvidas que levantariam um auto do caso de um Aspirante que teria desertado.

Ponte, das que não têm passadiço. (esta, no vale do Douro)

Depois disso, e não sendo minimamente supersticioso, entendi que na guerra que se avizinhava tudo me iria correr bem, o que efectivamente aconteceu.

Para chegar ao impacto que Mafra teve para mim, onde estive seis meses a fazer a recruta e a especialidade, tenho que começar um pouco atrás.

Fui à inspecção em Bragança. Estava atento aos editais das incorporações, mas como entretanto tive que vir com a minha família para o Porto, deixei lá uma pessoa encarregada de ir vendo esses editais. Azar. O meu nome não foi visto, nem por mim nem pela tal pessoa.

Descansado da vida, continuei os meus estudos no Porto.
Passado cerca de um ano recebo uma contrafé da polícia.
Às nove da noite e pensando que se trataria possivelmente de uma multa de trânsito fui à Esquadra. Lá chegado entreguei o papel ao graduado de serviço. Ele olha para o papel, olha para mim e como que explode: O senhor está lixado, foi dado como refractário e tem que se apresentar imediatamente em Mafra, onde já se devia ter apresentado há cerca de um ano.

As guerras estavam a decorrer. Muita coisa passou pela minha cabeça. Refractário igual a desertor, despromoção dum possível curso de oficiais, presídio militar e tudo o que se possa imaginar.
Com esse estado de espírito, no dia seguinte às sete da manhã estava a caminho de Mafra, de mala aviada. O percurso foi em parte o que o Carlos Vinhal descreveu para as Caldas, só que o meu era mais longo.
Do Porto até Alfarelos, para apanhar a linha do Oeste e no meu caso com destino à Malveira, onde soube que teria de apanhar um táxi para me levar finalmente a Mafra.

Cheguei a Mafra cerca das cinco da tarde e, deprimido como ia, pensei que naquele dia, já não me iam receber, atender, ou o que fosse. De mala na mão entrei por onde me indicaram ser a porta de armas, pensando que não ia sair dali tão cedo, e dirigi-me à secretaria.
Entrei para um gabinete onde estava um Capitão com idade de general. Este pegou no papel que me tinham dado na polícia e vendo o ar de aterrorizado com que eu estava disse-me:
- Tenha calma que nada lhe vai acontecer pois é só fazer um requerimento a pedir o levantamento da nota de refractário.

Depois de lhe entregar o requerimento ele só disse:
- Agora vai-se embora e espera que o chamem novamente.

Nesse dia e a essas horas já não consegui sair de Mafra. Hotéis e pensões não havia.
Consegui que uma velhinha me alugasse um quarto e, no dia seguinte, estava a caminho do Porto para prosseguir os meus estudos.

Vieram a chamar-me para a tropa passado mais um ano e entretanto fiz mais um ano do meu curso. Durante o tempo que estive em Mafra ainda fui ao Porto fazer algumas cadeiras e no regresso, agora de noite, para não faltar à instrução, ao chegar à Malveira, por volta das cinco da manhã tinha que ir acordar o taxista, a sua casa, para me levar a Mafra.

Em relação à povoação de Mafra pouco direi pois como todos os fins de semana ia ao Porto pouco deambulei por lá. Tinham-me dito que a Biblioteca do Convento era um bom local para se estudar, mas nunca cheguei a saber onde era, como também nunca soube onde eram os chuveiros de água quente. Até no segundo dia de estadia tive que pedir que me ajudassem a encontrar a caserna, tal era a monstruosidade do edifício, aliada à simetria provocada pelo claustro central e aos muitos pisos.

Parte da Biblioteca. (foto tirada da NET, com a devida vénia)

Em conclusão, Mafra para mim nem foi boa nem má, talvez indiferente.
O Porto, o outro local onde estive, no RI6, antes de ir para a Guiné, foi como estar em casa. 

Abraços.
Fernando Gouveia
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12623: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (8): Beja, Mafra, Évora e Cachil (José Colaço)

Guiné 63/74 - P12627: O segredo de... (15): Processo concluído (Augusto Silva Santos, ex.fur mil, CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73, e Depósito de Adidos, Secção de Justiça, 1973))

1. Mensagem do nosso camarada Augusto Silva Santos (ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73), com data de 21 de Janeiro de 2014:

Olá Camarada e Amigo Carlos Vinhal!
Antes de mais, espero que esteja tudo bem contigo e que tenhas começado da melhor forma este início de ano.
Depois de mais algum tempo de ausência destas lides, aqui estou eu de volta. Desta feita porém, confesso que é com alguma dificuldade que o faço, e só após alguma reflexão ganhei coragem para o fazer, tendo em conta que o meu relato se enquadra no tema "O Segredo de...", já de si "complicado" por poder ferir algumas susceptibilidade. Mas olha, aqui vai (não quero deixar de partilhar convosco este meu segredo), deixando ao vosso critério a possível publicação do texto que envio em anexo, juntamente com duas fotos do tempo da minha passagem pelo Depósito de Adidos em Brá, para possível ilustração o mesmo.

Um Grande e Forte Abraço
Augusto Silva Santos


“O segredo de…”

Processo concluído

Depois de ter lido o recente poste do camarada António Graça de Abreu sobre esta série e, de igualmente ter consultado alguns dos postes anteriores sobre este mesmo tema por influência do que o Luís Graça escreveu, ganhei coragem para partilhar convosco algo que menos de meia dúzia de pessoas até hoje tomaram conhecimento.

No meu tempo de Guiné, mais propriamente aquando da minha passagem pela Secção de Justiça do Depósito de Adidos em Brá no ano de 1973, procedi a algo que, na altura a ser descoberto, no mínimo constituiria matéria do foro do direito penal militar, mas do qual ainda hoje não me arrependo por considerar que, em consciência, procedi de forma a aliviar um sofrimento desnecessário de um camarada.

A única situação que ainda me pode causar algum arrependimento, relaciona-se com o facto de ter traído a confiança do Chefe da Secção de Justiça, pessoa com idade para ser meu pai, que em mim confiava e que na realidade me tratava como um filho. Mantinha com ele uma relação muito franca e cordial, daí ainda hoje o meu constrangimento.

Conforme já mencionei em poste anterior, o facto de estar colocado no Depósito de Adidos, obrigava a que periodicamente fosse escalado para fazer Sargento de Dia à Casa de Reclusão Militar igualmente sita em Brá, tendo num desses serviços tomado conhecimento de que um Soldado Condutor do meu ex-BCaç 3833, mais propriamente da CCaç 3307, e que a mim se dirigiu, se encontrava detido há já seis meses, pelo facto de numa das suas últimas deslocações do Pelundo para Bissau numa coluna de reabastecimento, na estrada perto de Có, ter atropelado mortalmente um guineense, na sequência do qual lhe foi movido um processo. Depois do Batalhão ter regressado à metrópole em Dezembro de 1972, aquele mesmo processo transitou para a Secção de Justiça do Depósito de Adidos, na qual eu exercia então a função de escrivão.

O Soldado em questão encontrava-se numa situação delicada e sem perspectivas de o processo ter um fim breve e favorável a seu rápido regresso à metrópole, primeiro porque a vítima se tratava de alguém importante na tabanca onde habitava, e depois porque os testemunhos sobre como o atropelamento se havia dado há bastantes meses atrás, eram algo contraditórios relativamente às pessoas inquiridas. Os militares então ouvidos disseram que a culpa havia sido do guineense que atravessou a estrada de repente e entre as viaturas que constituíam a coluna, sem ter dado tempo a uma travagem, e os testemunhos dos guineenses então também inquiridos, diziam que a viatura conduzida pelo Soldado em questão seguia em excesso de velocidade e que nem havia tentado uma travagem. O Condutor que comigo várias vezes falou sobre o assunto, garantia-me que o infeliz se havia atravessado entre a viatura por si conduzida e a que seguia na sua frente a curta distância, facto que não permitiu que o tivesse avistado a tempo de travar, pelo que não se considerava culpado do atropelamento.

O processo continuava a arrastar-se sem fim à vista, embora o já mencionado Oficial de Justiça, de alguma forma por mim “pressionado”, já tivesse manifestado a intenção de dar conclusão ao mesmo após o seu regresso de férias à metrópole, o que representava a prisão efectiva do infeliz Soldado, no mínimo por mais dois meses. Aproveitando a ausência do Oficial em questão em gozo de férias, procedi ao “crime” de dar o processo como concluído e remetido o mesmo para despacho, falsificando a assinatura do Capitão. Desta forma, passado poucos dias o Soldado saiu da situação absurda de recluso, tendo o seu regresso à metrópole sido uma realidade passado pouco tempo.

Importa salientar que os processos na Secção de Justiça eram tantos que o Capitão (felizmente para mim) nunca mais se lembrou daquele, e que o Soldado em questão apenas tomou conhecimento que eu havia pedido para que a conclusão do seu processo fosse célere, e nunca da situação atrás relatada.

Apelo à compreensão de todos os camaradas por esta minha atitude tomada em tempo de guerra e em circunstâncias então vividas, e apenas levada a cabo com o intuito de auxiliar um camarada alegadamente inocente. Se o nosso camarada Joaquim Luís Fernandes que, tal como eu, prestou serviço naquela Secção de Justiça, ler este meu relato, espero igualmente a sua compreensão.



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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12545: O segredo de... (14): António Graça de Abreu (,ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74): Também fiz o curso de Minas e Armadilhas, em Tancos, ainda em 1971... E até sonhei um dia em ser... bombista!