sábado, 14 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14249: Homenagem da Tabanca Grande à nossa decana: a "mindjer grande" faz hoje 100 anos... Clara Schwarz da Silva, mãe do Pepito (1): 100 anos não é apenas uma vida, são muitas vidas, que atravessam dois séculos e muitos lugares do mundo (Luís Graça)







Guiné > s/d > "Durante a  estadia na Guiné [, 1948-1966], Artur [Augusto Silva] viveu feliz tanto em Bissau onde trabalhava como em Varela onde ia em geral passar as férias do Natal. Aqui vão  fotografias desses tempos".

[As fotos são da página do filho do casal, João Schwarz da Silva, que vive em Paris: Des Gens Interessants. Temos a sua amável autorização para utilizar a documentação inserida na sua página sobre pessoas que tiveram vidas "interessantes", basicamente amigos e família, a começar pelos seus pais, Artur Augusto Silva e Clara Schwarz da Silva, nascidos respetivamente em 1912 e 1915]

Fotos (e legendas):  © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG, com a devida vénia]



Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro  > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko [Henrique] e Carlos (1949-2014).

Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anitos... Que matulão, para a idade!  Nessa altura, a família vivia em Bissau e vinha passar férias à metrópole, mais concretamente na "Casa do Cruzeiro"...

Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG, com a devida vénia]



Da esquerda para a direita, Clara Schwarz, Maria Helena  e Amílcar Cabral, na estrada de regresso de Dakar para Bissau em 1954.

Foto do arquivo pessoal de Clara Schwarz. O seu marido, o escritor e jurista Artur Augusto Silva, é que conviveu mais com Amílcar  Cabral. Clara, que foi professora no Liceu de Bissau, traduziu textos (técnicos, não políticos) de Cabral para francês.  Pepito, o filho mais novo, nasceu em Bissau, em 1949.

 Foi o nosso saudoso amigo Pepito (Bissau, 1949-Lisboa, 2014) quem nos cedeu esta foto, na altura em que aqui publicámos um notável texto seu sobre "Amílca Cabral, um agrónomo antes do seu tempo"...

Amílcar Cabral, casado com Maria Helena, regressou a Bissau, em setembro de 1952, tinha então 28 anos. Em entrevista dada, em Bissau, ao Diário de Lisboa, em 27/5/1980, três anos antes de morrer, Artur confidenciou que "privou bastante" com  Amílcar Cabral.  Ambos eram membros do Centro de Estudos da Guiné. A última vez que o viu,  foi em setembro de 1956, dias antes de fundar o PAI [mais tarde, PAIGC]. Uns meses antes, tinham-se encontrado em Angola e combinado um jantar em Bissau. Amílcar passou à clandestinidade, e o jantar nunca mais se realizou.

Foto; © Carlos Schwarz (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: LG, com a devida vénia].


 Guiné > Bissau > 1953 > Vista aérea da cidade, tirada na direcção sul-norte. Ao centro, a avenida principal, a Av República (hoje Av Amílcar Cabral) onde já se erguia, à direita, a sé catedral (arquiteto João Simões / Gabinete de Urbanização Colonial, 1945).  Ao fundo da avenida, do lado esquerdo já se erguia o cinema UDIB, o melhor edifício da cidade (arquiteto Jorge Chaves, 1949-52), de iniciativa privada. Em Bissau, com cerca de 5 mil habitantes, era lá que se reunia a elite local...

Ao fundo, à direita, o bairro de Santa Luzia  (1948), com uma estrutura reticulada: foi a primeira experiência de alojamento para populações nativas. Em primeiro plano o cais do Pidjiguiti, e parte da zona portuária ainda em obras...

Quando Artur e Clara chegaram a Bissau, no final dos anos 40, a cidade estava em plena fase de densolvimento, graças ao dinamismo e *a visão do governador Sarmento Rodrigues. Vários edifícios públicos estavam a construir-se,  havia ruas por asfaltar, espaços para ajardinar e alindar...


Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG, com a devida vénia]


1. Mensagem do nosso editor LG:

Camaradas, amigos/as: hoje, sábado, 14, a nossa amiga Clara Schwarz faz 100 anos. Nasceu em Lisboa em 1915. De origem judia (pai polaco e mãe russa), casou com o escritor e advogado Artur Augusto Silva (, nascido na Ilha da Brava, Cabo Verde, em 1912).  Teve 3 filhos, o mais novo dos quais o nosso saudoso Pepito (1949-2014). Clara viveu na Guiné em dois períodos: 1949-1966 e depois da independência, até ao ano da morte do marido, em 1983.

Licenciou-se em letras pela Universidade de Lisboa e frequentou o Conservatório Nacional de Música (onde tirou o curso de violino). Foi professora no liceu Honório Barreto, em Bissau. Tem gente, no nosso blogue, que foram seus alunos: estou-me a lembrar do António Estácio, do Manuel Amante da Rosa... (Ambos escreveram um pequeno depoimento para esta ocasião, que publicaremos a seguir.) Foi amiga ou pelo menos privou com o casal Cabral, Helena e Amílcar. No início dos anos 50, fez inclusive traduções, para francês, de trabalhos técnicos do engº agrº Amílcar Cabral.

O  pai de Artur Augusto Silva  havia falecido 1925 em Lisboa,  onde se encontrava para tratamentos. Deixava a esposa de 50 anos de idade e dois filhos ainda menores, João e Artur, que foram viver para casa da irmã Cristina, em Lisboa. Esta irmã mais velha (n. 1904)  tinha casado com o médico Augusto Pereira Brandão que na altura trabalhava em Farim, na Guiné.



S/d > S/d/ > "Da esquerda para a direita,  Cristina (nasceu em 1904), Artur (nasceu em 1912), Henrique e Margarida (os pais) e João (nasceu em 1910)."

Foto (e legenda):  © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG, com a devida vénia]

Por sua vez, já aqui falámos do seu irmão, e tio do Pepito, o João Augusto Silva. Sobre ele escreveu Mário Beja  Santos:

(...) João Augusto Silva (1910-1990) foi funcionário da Administração Colonial na Guiné, em Angola e Moçambique. Desenhador, naturalista, decorador e escritor, foi galardoado em 1936 com o Prémio de Literatura Colonial da Agência Geral das Colónias. Foi também caçador, tendo abandonado a espingarda em troca da máquina fotográfica, com a qual se dedicou a capturar imagens de uma
das suas paixões: os animais. Nasceu em Cabo Verde, passou parte da infância na Guiné, terra a que regressará entre 1928 e 1936. As suas obras maiores são: “África: Da Vida e Amor da Selva” e “Animais Selvagens: Contribuição para o Estudo da Fauna de Moçambique”. Administrador do Parque da Gorongosa, será mais tarde Curador do Jardim Zoológico de Lisboa. Sobre a Gorongosa deixou um livro da maior importância “Gorongosa: Experiências de um Caçador de Imagens”. Foi recentemente homenageado pela Sociedade de Geografia de Lisboa. Foi irmão de Artur Augusto Silva, um investigador e poeta luso-guineense, aqui já várias vezes auferido, e tio do nosso confrade Pepito." (...)




Belíssima xilogravura de João Augusto Silva, publicada na revista "Momento", de fevereiro de 1936.


Foto (e legenda):  © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG, com a devida vénia]


Desiludido com a vida do pós-guerra em Portugal, Artur decide partir, em finais de 1948, para a Guiné. Chega ao território em 6/11/1948. A família (Clara, João e Henrique) ir-se-á juntar-lhe no ano seguinte. Carlos ("Pepito") nasce em 1949.

Artur, até 1966, exerce naquele território a sua profissão de advogado, mas também fez de notário e até substituto do Delegado do Procurador da República. [Sobre Artur Augusto Silva temos duas dezenas e meia e meia de referências no blogue]

Escreve o seu filho João: "Em 1948, partiu para a Guiné (Bissau) para ali continuar a advocacia, com um sentimento pesado de frustração pela derrota politica, deixando para trás o Movimento de Unidade Democrática [MUD,] , desfeito, Leiria e Alcobaça, a mulher e dois filhos que em 1949 se juntaram a ele". (...). Depois da guerra, em 1945, o dr. Artur Augusto, como era conhecido, tinham esperanças na mudança democrática e pacífica do regime de Salazar.  Em 1947, o MUD foi ilegalizado e o o seu nome continuou debaixo do olho da política política... até ao 25 de abril.

Na Guiné, "foi um dos fundadores do Colégio Liceu de Bissau (Liceu Honório Barreto) que no inicio a partir de 1949 ocupava umas salas do Museu da Guiné que tinha sido criado em 1947 num edifício junto do Palácio do Governador". Em julho de 1952 era  governador Raimundo Serrão... "De 1949 a 1956, o liceu ocupou algumas salas do Museu. Só a partir do inicio do ano lectivo 1956 é que o Instituto Liceal Honório Barreto passou a poder contar com instalações próprias." 

Foi também membro do Centro de Estudos da Guiné. Licenciado em Direito, Artur havia estado, de 1939 a 1941, em Angola, como secretário particular do Governador Geral, dr. Manuel Marques Mano; de regresso a Portugal exerceu advocacia em Lisboa, Alcobaça e Porto de Mós. O casal viveu em Alcobaça e tinha casa de praia em São Martinho do Porto. Diz o filho João: "Depois de se casar, Artur Augusto exerceu a advocacia em Lisboa, mas a convite de Luciano Santos, um amigo pintor, decidiu mudar-se para Alcobaça onde havia falta de advogados".


Lisboa > s/d > c. 1930/40 > Artur Augusto Silva, numa festa,  com a Clara (à direita) e uma amiga.



Lisboa > 1935  > "Foi como director da revista Momento que Artur Augusto acompanhou o funeral de Fernando Pessoa em 1935, Possivelmente a única fotografia tirada nessa altura, mostra Artur à direita da fotografia ligeiramente encoberto por outro participante"

Fotos (e legendas):  © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG, com a devida vénia]

Ainda como estudante (, passou pelo Liceu Camões, foi colega de faculdade de Álvaro Cunhal), e depois como recém-licencidado, Artur  Augusto participou intensamente da vida cultural e literária de Lisboa dos anos 30. Foi director da revista "Momento" e, nessa qualidade, acompanhou o funeral de Fernando Pessoa,  em 1935.

"Publicou vários livros, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal nomeadamente no Grémio Alentejano e no Porto", escreve o seu filho João Schwarz da Silva, que vive em Paris, numa sentida e bela homenagem que faz ao seu pai, na sua página "Des Gens Intéressants" [, Pessoas Interessantews].

Em 1953, morre o pai de Clara, Samuel Schwarz (, nascido em Zgierz, Polónia, Rússia, em 1880). Havia-se formado, em 1904, aos 24 anos, como engenheiro civil de minas, na École National Supérieure de Mines de Paris.




Bilhete de identidade de cidadão português de Samuel Schwarz, emitido em 25 de janeiro de 1941.



Autorização de residência, emitida em 19/2/11927, para a mãe de Clara, Agata Schwarz


Fotos (e legendas):  © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG, com a devida vénia]


Samuel trabalhou em diversos países na indústria petrolífera (Baku, Cáucaso Russo) e na indústria mineira (Polónia, Inglaterra, Espanha, Itália e, por fim, Portugal). Em 1914, casa em Odessa com  Agatha Barbash,  filha de um banqueiro. (Nascida em 1884, em Tulczyn, Ucrânia, virá a morrer em 1950, em Lisboa)

Na altura em que eclodiu a I Guerra Mundial, em  1914, com 34 anos de idade, Samuel estava em viagem de núpcias em Portugal. Decidiu cá ficar. Começa a trabalhar em 1915 numa mina de volfrâmio, em Vilar Formoso, e noutra de estanho, em Belomonte, Na época vivia em Lisboa. Em 14 de fevereiro de 1915 nasce a sua filha, Clara.

Os cristãos-novos em Portugal no século XX
Autor: Samuel Schwarz
Editora: Livros Cotovia
Local: Lisboa
Colecção: Judaica
Ano de Edição: 2010
N.º de Páginas: 200
ISBN: 978-972-795-309-7

Sobre a vida fascinante deste homem Samuel Schwarz (1880-1953), vd. aqui o artigo escrito pelo seu neto João Schwarz da Silva:  judeu asquenaze,  era fluente em nove línguas,incluindo o hebreu. Foi um conceituado estudioso do judaísmo em Portugal, arqueólogo, historiador, autor da descoberta e da revelação pública, em 1925, da comunidade cripto-judaica de Belmonte, e .  bem como da antiga sinagoga de Tomar que comprou e efereceu ao Estado Português. Em 2010,  os Livros Cotiva reeditaram, em livro, o seu trabalho, de 1925, sobre os cristãos-.novos da Beira Baixa e, em especial,  de Belmonte, os rituais do Babatm do Kiopur e da Páscoa, orações ditas em português arcaico misturadas com palavras hebraicas, e que foram transmidas, sempre pelas mulheres, ao longo de quatro séculos e meio, pro sucessivas gerações.

Fotografia e assinatura no passporte do marido, emitido em
23 de agosto de 1946. Cortesia de João Schwarz da Silva 
Clara Schwarz da Silva é  nossa grã-tabanqueira desde 2010... Entrou para a Tabanca Grande, mais precisamente,  em, 14 de fevereiro de 2010, aos 95 anos.  Passou então a ser a Mulher Grande da nossa Tabanca Grande, com o nº de entrada 397. Hoje temos mais de 675 membros. É a nossa decana, e também a "mulher grande" da Tabanca de São Martinho do Porto (que se reuniu todos os todos os anos em agosto, quando o Pepito vinha de férias, de 2008 a 2012). Alguns de nós têm o privilégio de a conhecer e de ter privado com ela e a sua família, na famosa "casa do Cruzeiro", em São Martinho do Porto.

Foi sempre um mulher independente e cosmopolita. Até há bem pouco tempo era muito autónoma, usando com desenvoltura o telefone, o skype, o mail, a internet, e visitando o nosso  blogue… Ainda ontem telefonou à Maria Alice Carneiro, mamtendo com ela uma conversa perfeitamente normnal... Conduziu até tarde, com mais de 90 anos. Tem uma memória prodigiosa, é culta, é poliglota, e tem um grande  orgulho de seu pai, engenheiro de minas, de origem polaca,

Se outras não fossem válidas, bastaria invocar aqui o seu papel como co-fundadora, juntamenete com o marido e outros,  do Liceu Honório Barreto, hoje Liceu Nacional Kwame N' Krumah. Mais: foi professora de francês (e creio que também de português) de inúmeros guineenses, incluindo  dirigentes do PAIGC... (É capaz ainda de os citar de cor, e avaliar um a um!)...

Fala, sempre e ainda hoje, com muita ternura do seu marido, Artur, como um homem que "conhecia e amava a África" como poucos... Recordo-me de ela ter.me oferecido com dedicatória um pequena brochura dele, "Pequena Viagem Através de África"... Foi uma conferência que ele pronunciou na Associação Comercial da Guiné, em 1963, no 46.º aniversário da sua fundação. É uma admirável lição de sapiência e de sabedoria.

Três anos depois, em 1966, a PIDE prendia-o no aeroporto de Lisboa. O seu único crime era o de ser defensor de presos políticos... Libertado graças à intervenção pessoal, ao que se soube,  de Marcelo Caetano, seu professor de direito, após quatro ou cinco meses de Caxias, sem culpa formada, seria impedido de voltar à sua querida Guiné, agora a ferro e fogo... Sabe-se que o governador Schulz considerou-o "persona non grata" no território.




"Foi preso no aeroporto de Lisboa à chegada de Bissau [, em 26 de agosto de 1966,]  já em plena luta de libertação da Guiné, e foi detido na prisão de Caxias durante 4 meses sem julgamento. Foi libertado a 23 de Dezembro de 1966, por influência de alguns amigos que lhe conheciam e admiravam o carácter, mas foi-lhe fixada residência na capital . Escassos dias antes da libertação de Artur da prisão de Caxias, o Governador da Guiné (Arnaldo Schulz) mostra-se preocupado com a sua eventual libertação. [Sua Excelência o Governador é de opinião que aquele senhor não deve voltar à Guiné, pelo menos enquanto se mantiver o terrorismo".]

Foto (e legenda):  © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG, com a devida vénia]


Clara falou-me uma vez deste episódio triste e do cinismo do governador, Schulz, que era visita da casa dos Silva, em Bissau, e que inclusive acompanhou o Artur, até ao aeroporto, nessa triste viagem sem regresso... Só depois da independência é que Artur (e a Clara) voltaria, a convite de Luís Cabral, para desempenhar o lugar de juiz do Supremo Tribunal de Justiça... E lá morreria, em Bissau, em 1983. Era especialista em direito consuetudinário. Publicou livros sobre os usos e costumes jurídicos dos felupes, mandingas e fulas.

É também com a mesma frontalidade e coragem que a Clara vem protestar, em 2005, junto do Presidente da Câmara de Belmonte pela imperdoável omissão do nome do seu pai, Samuel, no recém-inaugurado Museu Judaico de Belmonte. Embora tarde, a injustiça foi reparada em 2007.

(...) "S. Schwarz está na origem da descoberta dos cristãos novos de Belmonte. Graças à sua enorme sabedoria ele revelou os ritos e costumes destes cristãos novos, em numerosos livros dos quais o principal, publicado em 1925, 'Os cristãos novos em Portugal no Século XX' , livros esses que são uma referência incontestável tanto para historiadores portugueses como estrangeiros." (...)

Hoje, sábado, 14 de fevereiro de 2015, os filhos, netos e bisnetos vão fazer-lhe uma festinha íntima. Ela fez questão de dizer "não queria nada", porque ainda não ultrapassou a profunda dor causada pela morte, inesperada, do seu querido Carlos... E não era seguramente esta a festa dos 100 anos que a gente tinha imaginado para ela...

À distância (, ela mora em Paço de Arcos, Oeiras), e respeitando a sua intimidade, queremos apenas levar-lhe uma palavra de afeto, apreço, conforto, amizade e homenagem... 100 anos não é apenas uma vida, são muitas vidas, que atravessam dois séculos e muitos lugares do mundo... Mais de metade da sua família, da Europa de leste, desapareceu com a II Guerra Mundial. E ela conheceu uma boa parte dela quando visitou a Polónia em 1938 (*)...

Clara Schwarz é uma mãe coragem. E um exemplo de vida, inspirador, para todos nós. Alguns/algumas de nós fizeram questão de  escrever duas linhas sobre esta mulher e nossa amiga, que sempre manifestou um grande interesse e carinho pelo nosso blogue. São esses testemunhos que publicamos a seguir, a par deste pequena resenha biográfica, que só possível graças à amável e afetuosa cumplicidade do João (que veio ontem de Paris se juntar à festa de família). Também sei que, pelo menos os filhos do Pepito, Ivan e Catarina, vai estar hoje a cantar os parabéns à avó, a "mindjer grande" que nos orgulha a todos/as. (**)

O editor Luís Graça (em nome pessoal e da Tabanca Grande)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4863: Agenda cultural (24): A História de Cristina, por Mikael Levin, no CCB, de 31/8 a 8/11 (Carlos Schwarz, 'Pepito' / Luís Graça)

(**) Vd. poste anterior de 14 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14248: Parabéns a você (860): Senhora Dona Clara Schwarz, Amiga Centenária, Grã-Tabanqueira

Guiné 63/74 - P14248: Parabéns a você (860): Senhora Dona Clara Schwarz, Amiga Centenária, Grã-Tabanqueira

A Centenária Senhora Dona Clara Schwarz
Foto: © Luís Graça


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Nota do editor

Último poste da série > 10 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14237: Parabéns a você (859): José Brás, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1622 (Guiné, 1966/68)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14247: Blogpoesia (401): Me fere o tirar a vida (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 11 de Fevereiro de 2015:

Comando a NT. Ao me preparar para uma patrulha; segurança ou emboscada, os sentidos multiplicam-se. Atento ao mínimo pormenor. A distância diminui. Os olhos ampliam as imagens. A pica beija o chão, meigamente bate. Se somos agressivos, rebenta. O coração cadenciado como o melhor relógio do mundo. De pressa, não! A pica presa, como a vara do pastor.

Surge o inimigo, inicia-se o fogo, o meu coração surge como um sino manejado por um sacristão aprendiz.
Num ápice, fico anestesiado, a mente o obriga. Controlo o medo que por milésimos de segundos invadiram o meu ser. Tem calma! Vislumbro, e logo de seguida, sábio de tal modo que antecipo-me ao tempo. Com nitidez, o mundo na mão. E a sabedoria encontra resposta imediata para tudo.

Quantos mortos? Feridos? Evacuações, o radiotelegrafista tem de informar:
- Nenhum morto! Sete a evacuar!

Mas qual a memória, que matemática e fotografia? Os olhos munidos de lentes e de maquinetas fotográficas dão a resposta certa.
A razão de colocar aquela orquestra é a pausa, a liberdade que regressa e mora dentro de mim. Transformo-me em ave que voa na pauta. Música nascida na pureza de notas libertas.

Interessa-me mais a poesia, gostava de saber, mas necessito de uma ajuda, de um empurrão. Uma opinião basta. Os meus dedos tocam o teclado, por acaso não com a delicadeza que se trata uma mona ou um diamante em bruto. A poesia tem de ser facetada, e eu só trabalho o tosco. Falta-lhe, talvez o nome mais apropriado: ALMA.

Como me sinto muito em baixo, nunca vivi um período tão mau, desde o dia 26 de Setembro. Se paro morro…
Mário Gaspar


Me Fere o Tirar a Vida!

Mário Vitorino Gaspar

“Uma guerra ganha-se com a razão da força.
E o vencedor conta-a depois com a força da razão.”
Vergílio Ferreira

- Amanhã ao despertar do sol, Corredor da Morte!
Quebra o silêncio a voz do capitão,
cheira-me a sangue em tal reunião.
As sílabas me sugam o rosto, será que choro?
quererei beber as lágrimas de quem adoro?
Riso de malmequer a olhar a lua, o furriel miliciano:
- Deus, deixa-me viver só falta um ano!
Naquele cemitério de trevas vamos ter sorte!

O sol a me sorrir fontes de madrugada
somos pastores beliscando a terra com carinho,
ao ombro como um cajado, a G3 meu amorzinho.
Fiéis camaradas com precisão alinhados,
alguém grita comigo: - Piquem, meus adorados!
seja fornilho, armadilha ou mina
mascarada, nariz de riso de palhaço pequenina.
Piquem com amor e não haverá nada!

Árvores rainhas erguem-se em prece: Guileje à vista!
De verde salpicados, soldados nos seus postos
sementeiras de suores nos seus rostos.
Risonho a meu lado, do tão jovem que foi
rompeu um veterano, eterno herói.
Lares distantes, destas terras solitárias...
Na guerra existe ódio e campas tumultuárias.
Raízes fortes de Portugal. Há quem resista!

Chega a hora para comer e descansar
vou beber uma cerveja e mais nada
ainda há gente rindo, feliz e acordada.
Sonhar com as namoradas… dormir!
nem sequer o camuflado vou despir.
Beijar a vida, beijar o beijo, sem dor
sonhar sementes de paz cobertas de amor.
Sono descansado, salta o coração a palpitar!

Partida, noite escura, beijar rosas mas a picar
G3, bazucas, MG’s, morteiros, todos carregados
rompemos a mata e o tempo, e chegamos.
Esperar a ameaça chegar, tarefa dura
o tempo custa o silêncio adormece, é altura!
Há quem desespere a espera e não a suporte
Cheiram-se aromas do Corredor da Morte.
Vai andar a roda, o sorteio está no ar.

Mulheres quais peixeiras surgem à frente
coroadas de caixotes, pressa no andamento,
não é fruta nem peixe, é armamento.
O pão de liberdade para o inimigo
é amor forte de libertação, antigo.
Digo a ciciar: - deixá-los avançar!
Sinal silencioso, dou ordens para atirar
Matar para não ser morto, é hora de o ter presente.

Tiroteio vira inferno, inunda o belo de ais
há vómitos de morte, das morteiradas
pavor de barrigas sangrando esburacadas.
Semeiam-se palmos de terra para sepultura...
recolhem feridos e mortos e sem cura.
Mortos presos nas covas e onde a glória?
Nós vivos saboreamos a vida na memória,
chegados ao lar o que contar aos pais?

PAIGC grita responde sem parar,
debaixo de tiros e rebentamentos
mais mortos caem, outros com ferimentos.
Vagueamos num cemitério, floresce-nos a sorte
nem um beliscão um ferido uma morte.
Um dos meus heróis: - Escapámos desta!
Em Guileje, em Gadamael depois, será festa.
Beliscaremos umas cervejas para alegrar!

Atravessamos a bolanha comprida,
à altura da cabeça está o capim
ainda há que andar para chegar ao fim.
Pecarás! – tinha ouvido na igreja mas é guerra
longe da família do amor e da nossa terra!
Lembro de novo o padre: - Não matarás
se fores um malfeitor és igual a Satanás!
Coisa não estranha… me fere o tirar a vida!

Temos de orar, pedir perdão a Deus?
Choro sem lágrimas sei que Ele existe.
Sou um girassol sem sol, quedo e muito triste.
Matámos e ferimos gentes pequei e pecamos
Deus manda amar e não amamos …
Dar paz ao inimigo e um abraço?!
O poeta pinta entre os povos o enlaço
verso pincel ou cinzel com fundo de céus!

Senti tudo o que amava, num singelo olhar:
alma e coração do meu golfinho,
lezíria, fragatas, bateiras, o beijinho
do Pai, minha Mãe heroína sem fala.
Pincéis de poemas, letras, e não cala
a silvestre e brava amoreira de amor.
No coração estagna-me uma linda flor
revejo a fuga do Sol ao infinito rumar!

A morte é… a morte não gera amor,
ter de matar para não morrer?
A morte padece e faz padecer
é a solidão da multidão no cais a partida,
não é ser é nada ser nesta vida.
Ver-se culpado pelo sangue que se derrama
do corpo do seu inimigo, é drama!
Ó meu Deus por tal te imploro, Senhor.

Passada a bolanha cresce a floresta
perdem-se versos cresce a morteirada
retarda-se o tempo na retirada.
Irmãos de Guileje, destino a atingir!
Saboreamos o sumo do suor, a fugir
tocando nos secos lábios e bebemos
sonhos sonhados, mundo melhor não vemos
e este é reles e na verdade não presta!

Amor e rezas além dos mares, flor sorri…
Ainda longa é a viagem até à chegada.
Incólumes das mordidelas da emboscada,
sãos e soltos de vida, às portas das mortes
passaram. Regressa o riso aos soldados fortes
prontos a cumprir, a cuspir vómitos da guerra
pedindo a Deus o regresso à sua terra.
Toco no meu corpo, corre a vida, não morri!…

Amo a vida, a paz e com fervor
corro entre pedras, seguro a vida.
O coração ri à pincelada quente e florida
espreitando as cores da ave vistosa
que me voa no pensamento. Que formosa!
Rompo dentro de mim em crescimento,
amo a vida o amor a cada momento.
Beijo o vácuo o espaço até ao amor.

Sonho. Aves livres desenham cada nota musical
dirige a orquestra o maestro e a sonhar
usa a batuta como ave leve a voar.
As notas riem na pauta a libertar
sons melancólicos sobre o tema amar:
sons de bandolim banjo cavaquinho trombone
trompa concertina cravo pratos saxofone,
música única que é língua universal.

Pífaro, cítara, xilofone, gaita, fagote,
violino triste, poesia leve rima sobrenatural!
E o toque da harpa ou da lira, brisa breve e musical?
Chora a guitarra, notas breves da noite do fado,
violoncelo e rabeca riem para mim soldado.
Ferrinhos e pandeireta em música tão distinta,
piano e viola quadro de amor do pintor que pinta
alegria nos fardados. Risos há quem os adopte.

Saímos de Guileje carimbando o solo com a pica.
Ecoam cristalinas as notas da pauta.
Armado, pétalas floridas se soltam da flauta
e nasce a tristeza nas teclas do acordeão.
Esqueço a guerra, pinto um poema uma oração
o bigode do meu pai, a minha mãe de tranças…
os meus sobrinhos riem felizes crianças.
No clarinete e no tambor a nostalgia fica.

O compositor criou mel, que façanha esta?
Chegámos folhas caídas e velhas, mas risonhos
a mata recorda os amigos mortos, plantados os sonhos
eis que se escuta o hino em grito triste do trompete...
que a alegria dos soldados não compromete.
Beber umas cervejas, tomar banho, jantar e escrever
cartas amorosas para ninguém conhecer
que na guerra se mata e se morre, não é uma festa.

Sonhava. A vida é vida se for vivida com amor
se nascer na fonte dos beijos que beberes
saboreando o grão dos trigos que comeres.
A vida só é vida se entre pântanos nascer a flor,
a vida só é vida quando não vejas mais dor
se saíres vencedor sem muito sofreres
e amares na humanidade todos os seres!
A vida só é vida se for vivida, sim senhor.

Gritos aflitivos na chegada, chamadas e risos felizes.
Voam saltitos de flor em flor, danças de gente louca.
E o pobre sem amor, liberdade e pão para a boca?!
No fim a vida semente há-de romper com carinho
dar liberdade às flores e aos pássaros um ninho...
Haja humanismo, solidárias acções
Em prol deste mundo que sonhava de paixões.
A Guiné me espremeu os sonhos, de crescidas raízes!

Mário Gaspar
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14196: Blogpoesia (400): Auschwitz (J. L. Mendes Gomes)

Guiné 63/74 - P14246: Notas de leitura (681): "Os Princípios do Pan-africanismo", por Charles Olapido Akinde e “Os Condenados da Terra”, por Frantz Fanon (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Abril de 2014:

Queridos amigos,
Quando Jean-Paul Sartre acedeu prontamente a prefaciar este documento que é um manifesto do Terceiro Mundo – extremo, inteiro, incendiário, mas também complexo e subtil, como observou Simone de Beauvoir, era a guerra da Argélia que tinha presente, a Argélia dividia os franceses que demoraram a perceber que a emancipação daquele povo fazia parte de uma corrente caudalosa irreprimível.
Sartre saudou a novidade e o poder de análise de Frantz Fanon. Nunca, até então, um teórico se debruçara sobre a violência e como esta transforma as mentes do colonizador e do colonizado.
Fanon foi desassombrado na sua análise, pôs a nu a fragilidade dos partidos frente ao mosaico étnico, a sua ingenuidade quando deu prioridade à violência urbana, disseca as debilidades da união africana e a avidez das elites nacionalistas que pretendem exclusivamente tomar o lugar das elites coloniais e repetir-lhes as operações, mudando alguma coisa para que tudo fique na mesma. Sartre mostrava-se otimista, Fanon não tanto. Lamentavelmente, os receios de Fanon passaram a ser a dolorosa realidade dessa África que se tornou independente.

Um abraço do
Mário


Os princípios do pan-africanismo e Frantz Fanon (2)*

Beja Santos

Obra ímpar da reflexão sobre o colonizador e o colonizado, “Os Condenados da Terra”, por Frantz Fanon, Editora Ulisseia, foram editados entre nós logo a seguir à edição Maspero (1961) e prontamente postos fora do mercado. É dos poucos libelos deste período marcadamente anticolonial que ainda hoje se pode estudar, a despeito das rugas do tempo. Não havia, nem houve, tão pesada e adequada reflexão sobre a violência do colonialismo, o despertar da consciência nacional no terceiro mundo, a pujança e as fraquejas da cultura nacional. Fanon, médico especializado, irá na última parte do seu incontornável ensaio analisar a guerra colonial e as perturbações mentais, no contexto argelino, foi aí que ele trabalhou e se apercebeu dos dramas da guerrilha e da contraguerrilha em termos de saúde mental.

Começa por traçar um perfil dos protagonistas no mundo colonial: mundo compartimentado, maniqueu, mundo de estátuas: a estátua do general que faz a conquista, a estátua do engenheiro que construiu a ponte. A primeira coisa que o nativo aprende é a colocar-se no seu lugar, não passar dos seus limites. O colonizado está sempre alerta, decifrando os múltiplos signos do mundo colonial; nunca sabe se passou ou não o limite. Frente ao mundo determinado pelo colonialista, o colonizado presume-se sempre culpado.

Frantz Fanon disseca a violência em meio colonial. A violência é a intuição que as massas colonizadas têm de que a sua libertação deve fazer-se e isso não pode acontecer senão pela força. Mas por que aberração do espírito esses homens sem técnica, esfomeados e debilitados, não conhecendo os métodos de organização, chegam a convencer-se de que apenas a violência poderá libertá-los? Os homens colonizados, esses escravos dos tempos modernos, estão impacientes. Os povos subdesenvolvidos fazem saltar as suas cadeias e, o mais extraordinário, é que o conseguem. O homem colonizado liberta-se em e pela violência, e cita longamente Aimé Césaire, na sua tragédia “As Armas Milagrosas”. O desenvolvimento da violência no seio do povo colonizado será proporcional à violência exercida pelo regime colonial. Nas lutas armadas, há o que se podia chamar o limite sem regresso. É quase sempre a enorme repressão que engloba todos os sectores do povo colonizado. A mobilização das massas, quando se realiza como motivo da guerra de libertação, introduz em cada consciência a noção da causa comum, do destino nacional, da história coletiva. O país colonialista reprime de várias maneiras: procura desnortear falando no papão comunista, é a tentativa de descansar os colonos quanto à motivação da luta, dá-lhes uma razão terrível e exógena; ameaçam com o regresso à Idade Média se acaso houver independência, faltarão investimentos e a economia do país ficará de bruços. Com razão ou sem ela, a Guerra Fria entrou no processo da descolonização.

O ensaísta entra agora na zona mais polémica da sua reflexão, a organização dos partidos políticos, as suas relações com os chefes tradicionais, os sucessos e fracassos da propaganda dos partidos nacionalistas e como, em muitos casos, os camponeses voltam as costas a esta luta de libertação. Lembra que há a cidade do colono, a periferia dos assimilados e os vastos círculos do lúmpen-proletariado, onde estão desempregados, desclassificados que poderão aderir à ação militante. Esta massa pode entrar na sublevação, aderir ao terrorismo urbano, entrar na agitação. De um modo geral, esta atividade está condenada ao fracasso, as forças coloniais em meio urbano ganham sempre. E disserta sobre essência da guerrilha, é um dos seus textos mais belos:
“Na guerrilha, a luta não é onde se está, mas sim onde se vai. Cada combatente leva a pátria em guerra entre as suas mãos vazias. O exército de libertação nacional não é o que enfrenta sempre o inimigo, mas o que se desloca de aldeia em aldeia, que se concentra na selva e embosca as colunas do adversário”. O colonialismo procura apoio junto de grupos de indígenas, sobretudo aqueles que têm vínculos atávicos a regimes feudais ou onde prepondera o peso religioso. Enfim, os militantes nacionalistas têm tudo a ganhar em não dar uma luta frontal ao opressor em meio urbano. O peso da formação política é crucial pois, como ele adverte, não devemos esquecer as desventuras da consciência nacional, os paradoxos ditados pela economia, pela burguesia que se move à volta do processo económico colonial. A burguesia nacional, chegada a independência, comete habitualmente o erro de nacionalizar em massa com um propósito egoísta, como ele diz polemicamente: “Nacionalização significa exatamente para essa burguesia transferir para os autóctones os privilégios herdados da fase colonial. Como a burguesia não possui meios materiais nem meios intelectuais insuficientes, limitará as suas pretensões à apropriação das casas comerciais ocupadas antes pelos colonos. A burguesia nacional ocupa o lugar da antiga população europeia. Acaba por servir de correia de transmissão a um capitalismo disfarçado, transforma-se em agente de negócios da burguesia ocidental”.

Percebe-se como este ensaio despertou celeuma e vivos debates com as figuras revolucionárias. Amílcar Cabral leu atentamente este poderoso ensaio, sabe-se que foi importante na sua formação teórica, na sua análise da vanguarda revolucionária e no dever da burguesia aderir aos propósitos revolucionários sob pena de se suicidar como classe.

O tema da unidade africana não foi descurado por Fanon. O perigo vem dos regionalismos: “A burguesia nacional, compensa apenas nos seus interesses imediatos, como não vê para lá do seu nariz, mostra-se incapaz de realizar a simples unidade nacional. A frente nacional, que havia feito retroceder o colonialismo, desintegra-se a consome a sua derrota”. O colonialismo utiliza estas fraquezas, utiliza a religião que divide o povo e estabelece a discórdia, promove os chefes que não querem ver disputado pelos nacionalistas o seu poder tradicional.

Detém-se longamente sobre a cultura nacional e as lutas de libertação. É indispensável recuperar todas as obras criadoras que os colonialistas não podem manipular: a olaria, as tradições orais, a música, a dança, todo o artesanato, há que lhes conferir um estatuto cultural onde o nativo vê exotismo e gosto dos subdesenvolvidos, esta cultural nacional é o pilar da consciência africana e da especificidade da nação, por isso a libertação nacional torna-a obrigatoriamente presente no cenário da História.

E chegámos às conclusões, que Frantz Fanon transforma em manifesto:
“Há seculos que a Europa deteve o progresso dos outros homens e os submeteu aos seus desígnios e à sua glória; há seculos que, em nome de uma falsa aventura espiritual sufoca quase toda a humanidade”.

“Para o terceiro mundo, trata-se de recomeçar uma história do homem que toma em conta ao mesmo tempo as teses, algumas vezes prodigiosas, sustentadas pela Europa, mas também os crimes da Europa, o mais odioso dos quais foi, o esquartejamento patológico das suas funções e a desintegração da sua unidade. Não paguemos um tributo à Europa, criando Estados, instituições e sociedades nela inspiradas. A humanidade espera alguma coisa de nós que não seja essa imitação caricatural. Se queremos transformar a África numa nova Europa, confiemos, então, aos europeus os destinos dos nossos países. Saberão fazê-lo melhor que os mais dotados de nós”.
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Nota do editor

(*) Poste anterior de 9 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14235: Notas de leitura (680): "Os Princípios do Pan-africanismo", por Charles Olapido Akinde e “Os Condenados da Terra”, por Frantz Fanon (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14245: Memórias de Copá (6): Fevereiro de 1974 (António Rodrigues)

1.     O nosso Camarada António Rodrigues, ex-Soldado Condutor Auto Da 1ª CCAV do BCAV 8323, Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda,  Copá e Buruntuma, (a minha 1.ª CCAV/Bcav8323 tinha as suas forças aquarteladas em Bajocunda e Copá), 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


COPÁ – FEVEREIRO DE 1974 



Como por esta altura do ano passa mais um aniversário dos dolorosos dias que vivi em Copá, aqui vos deixo mais algumas histórias do que lá se passou há 41 anos.
Entretanto, nesses dias chegava ao comando do meu batalhão em Pirada, uma ordem emanada das autoridades de Bissau para desactivar e abandonarmos Copá, pelo que, no dia 12 de Fevereiro de 1974 logo ao romper do dia chegava a Copá uma forte coluna militar para nos evacuar.

Esta coluna para ludibriar o PAIGC, teve que mudar o percurso entre Bajocunda e Copá, pelo que em vez de ir como de costume pela zona perigosa de Massacunda e que era o caminho mais curto, foi por uma picada raramente utilizada mais longe 10 km e que passava pela localidade das Dingas, chegando a Copá ao amanhecer do dia 12 de Fevereiro de 1974, foi para nós uma grande alegria, vermos chegar os camaradas que nos vinham libertar daquele lugar infernal que era Copá.

Chegada a coluna a Copá, começamos a carregar nas viaturas as nossas principais coisas e os sapadores de minas e armadilhas trataram de armadilhar os principais abrigos com minas anti-pessoais, depois de carregarmos o que tínhamos a carregar, saímos para fora de Copá e entretanto, tínhamos reunido todas as camas amontoadas no abrigo das transmissões que era o mais forte, depois de estarmos todos cá fora, esse abrigo e o seu conteúdo foi destruído por uma carga explosiva de comando à distância e além disso, o vagomestre tinha incendiado um bidão de azeite de 200 litros. Este é um ponto a lamentar, pois durante muito tempo esse bidão lá permaneceu cheio, o esparguete e o arroz, em vez de azeite eram feitos com manteiga, o azeite devido às circunstâncias, teve que ser queimado.

Mas por falar em cargas explosivas, veio-me à ideia um outro caso passado ainda em Copá: em determinada altura, chegamos a montar fora do arame farpado alguns fornilhos (cargas explosivas artesanais à base de gasolina, vidros e outros objectos que fizessem o efeito de estilhaços) que seriam accionados à distância do interior de Copá mas, a verdade é que, quando tivemos necessidade de accionar esses fornilhos durante um ataque, os mecanismos não funcionaram e qual não é o nosso espanto, quando no dia seguinte fomos ver qual a anomalia que não deixou funcionar os fornilhos e, verificámos que os fios de ligação que passavam despercebidos debaixo de terra, estavam todos cortados, impedindo assim os fornilhos de explodir, isto tinha sido obra do IN, possivelmente numa das noites em que nos destruiu a instalação eléctrica e ficamos às escuras.

Partimos então todos de novo na direcção das Dingas, caminhando a pé e fazendo segurança às poucas viaturas que seguiam connosco, cerca do meia dia estávamos nas Dingas, onde todos nos abastecemos de água num poço que praticamente esgotamos, quando chegou a minha vez de encher o cantil, já só consegui metade lama e metade água, mas a sede era imensa e tudo servia para a matar, ao ponto de ao beber, sentir passar areia pela garganta. Felizmente não tínhamos ainda tido qualquer problema, recomeçámos a andar, mas muito lentamente, devido a que os sapadores iam na frente muito devagar com os detectores electrónicos de minas e armadilhas, levámos assim quase toda a tarde para atingirmos a próxima povoação que era Amedalai, onde chegamos à tardinha e aí esperavam-nos mais viaturas, para nos transportar os últimos 5 km até Bajocunda, onde chegámos mesmo ao anoitecer.

Aí chegados, graças a Deus sem qualquer problema, foi para nós pelotão de Copá uma alegria enorme, reencontrarmos de novo os nossos camaradas, foi uma alegria tal que, eu depois de chegar a Bajocunda, nem me lembrei sequer mais da minha bagagem, depois de encontrar os meus amigos dirigi-me com eles ao Café Silva existente em Bajocunda e para aí fui matar a fome e a sede, depois já noite escura o meu amigo Albino da Silva Vasques levou-me com ele salvo erro para o abrigo 9, onde dormi nessa noite e só de manhã quando acordei me lembrei das minhas malas, das minhas coisas, que tinham sido descarregadas da Berliet que as trouxe de Copá.

Levantei-me e fui procurá-las ao local onde a Berliet tinha descarregado, encontrei realmente o meu saco e a minha mala, mas a mala estava aberta e metade das coisas que me pertenciam tinham desaparecido, nomeadamente, o estojo da barba quase completo, possivelmente foi algum Africano que lá passou antes de eu lá chegar e encontrei ainda uma série de coisas espalhadas pelo chão, recolhi tudo o que pude e levei o que encontrei, mas não fiquei triste, porque a alegria de ter chegado de novo a Bajocunda, suprimiu tudo isso.

Nesse mesmo dia 13 de Fevereiro de manhã, foi-me destinada uma cama no abrigo 2, onde passei a pertencer até ao fim, onde travei novas amizades, com novos camaradas, nomeadamente, com os mecânicos Francisco e Campos.

Mas nesse mesmo dia, todo o pessoal que tinha regressado de Copá, seguiu para Pirada, inclusive eu, a fim de aí todos sermos vistos pelo médico do Batalhão, em virtude do mau bocado porque tínhamos passado em Copá. Dessas consultas resultou que o Banharia fosse mandado para Bissau, para uma consulta externa, a qual lhe viria a facilitar o regresso quase imediato à metrópole, por necessitar de tratamento psiquiátrico. O restante pessoal, tratava-se apenas dumas diarreias ou umas dores de cabeça, que foram tratadas com umas injecções ou uns comprimidos. Embora eu tenha de reconhecer que, todos nós saímos de Copá traumatizados com toda aquela violência.

Neste dia em que chegamos a Pirada, quando à hora do almoço entramos no refeitório, apareceu-nos lá o nosso Comandante de Batalhão, o Coronel Jorge Matias, que fez questão de abraçar os homens de Copá um por um e quando chegou a vez de abraçar o Alferes Manuel Joaquim Brás, eu que estava a seu lado, tive a oportunidade de ouvir as palavras emocionadas que ele lhe dirigiu, que foram as seguintes: “Ó Brás tu trazes os teus homens todos vivos?” Eu tenho que te pedir desculpa porque em Bolama te chamei básico e afinal és o oficial mais operacional que tenho no Batalhão. (Por este motivo eu dizia, quando estive em Bolama que mais tarde voltaria a falar deste 4.º Pelotão)

Neste dia 13 pelas 05.00 horas da manhã, um grupo de guerrilheiros do PAIGC (provavelmente os mesmos que estariam emboscados no dia anterior em MANSACUNDA  MAUNDE à espera de nos atacar quando regressávamos de Copá) talvez sentindo-se enganados, porque lhe trocamos as voltas optando pelo percurso um pouco mais longo e que passava pelas DINGAS, dirigiu-se à DINGA BANTANGUEL e penso que, como represália por a população não nos ter denunciado, queimou cerca de 50 Tabancas, grande quantidade de milho e alguma mancarra, tendo retirado depois novamente na direcção de MANSACUNDA MAUNDE, deixando ainda o gado todo tresmalhado nas matas, mas a população não foi molestada.

Logo no dia seguinte, 14 de Fevereiro de 1974, depois do almoço, o comandante de Batalhão Coronel Jorge Matias mandou formar na Parada do quartel de Pirada a 3.ª Companhia, bem como o pelotão de Copá em frente uma do outro e a seguir fez um discurso emocionado de homenagem aos homens de Copá, durante o qual nos explicou os esforços que tinha feito durante as horas dramáticas de Copá para nos socorrer com reforços e outros auxílios, nomeadamente, na noite de 7 para 8 de Janeiro de 1974, que culminou com a chegada a Copá no fim da tarde do dia 8 de um pelotão de Pára-quedistas. Dizia-nos isto ao mesmo tempo que dizia que, nesses momentos rezava a Deus por nós, dizia-o com tal emoção que as lágrimas lhe chegaram a correr pela cara, findo o discurso fez desfilar em continência para nós a 3.ª Companhia, o que também nos emocionou um pouco. Foi-nos ainda dado conhecimento de nova mensagem de S. Exa. o Comandante-Chefe que, citando a guarnição de Copá, enalteceu o relevante comportamento da mesma. A culminar esta cerimónia foi-nos dado um louvor colectivo que saiu à ordem com o nome de cada um de nós, falava-se ainda que teríamos um mês de férias na metrópole, o que não veio a concretizar-se, porque passados cerca de dois meses e pouco veio a dar-se a revolução de 25 de Abril. 


Foto 1 - Com guerrilheiros do PAIGC junto ao pontão de Tabassai, Pirada

Foto 2 - No regresso de Copá a Pirada, reencontro com um amigo

Foto 3 - Pirada, 14 de Fevereiro de 1974, 4.º Grupo de Combate

 Foto 4 - Pirada, 14 de Fevereiro de 1974, Homenagem aos Homens da Companhia

Foto 5 - Pirada, 14 de Fevereiro de 1974, Coronel Jorge Matias 

Foto 6 - Passeando em Copá, Dezembro de 1973

Um abraço,
António Rodrigues
Sold Cond Auto do BCAV 8323

Mini-guião: © Colecção de Carlos Coutinho (2012). Direitos reservados. 

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

3 DE FEVEREIRO DE 2015 > Guiné 63/74 - P14214: Memórias de Copá (5): Janeiro e Fevereiro de 1974. (António Rodrigues)


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14244: Agenda cultural (374): A banda musical "Melech Mechaya" [leia-se: o rei da festa...] vai animar a longa louca noite de "Sexta-feira 13", em Montalegre, a rija capital do Barroso e do misticismo... Vivam os folgazões e prazenteiros barrosões! Vivam os nossos camaradas transmontanos!

os 

Montalegre - Sexta 13 (teaser oficial 2014) > Publicado a 01/02/2015 > "Noite de azares, bruxedos, contos, lendas e locais sombrios da memória que nos confundem os passos e escurecem a lógica. 13 de Junho 2014" > Vídeo alojado em You Tube > Montaleger Eventos (1' 10'')




Diz a organização do evento:

"O ano de 2015 abençoou Montalegre com três Sextas 13. A primeira do calendário acontece em fevereiro e promete cumprir o sucesso de edições anteriores. A capital de Barroso volta a vestir-se a rigor e lança o convite a toda a população. A celebração, focada nos azares, bruxedos, contos, lendas e locais sombrios da memória, volta a fazer uma forte aposta na música e teatro. Mais uma edição a não perder, dia 13 de fevereiro, onde o fogo espalhado por vários locais da vila promete aquecer a noite."

Da capital, Lisboa, segue a nossa conhecida banda musical "Melech Mechaya" para continuar a animar a louca longa noite de sexta feira 13 de fevereiro de 2015. 


MONTALEGRE - "Sexta-feira 13" (Vídeo Promocional) (


"Montalegre oferece o maior espetáculo de rua de Portugal com a celebração da 'Sexta-feira 13'. Um evento que já é uma referência cultural no país."

Vídeo promocional da Câmara Municipal de Montagre (Alojado no You Tube > Município de Montalegre > 9' 39'')

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Nota do editor:

Último poste da série > 31 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14207: Agenda cultural (377): Nós, os portugueses, e os 7 mil milhões de outros: Fundação EDP, Museu da Eletricidade, Lisboa, 7 de fevereiro, 16h00... A não perder!

Guiné 63/734 - P14243: História da CART 3494 (4): Ataque ao Xime em 16set1972 – CART3494 -, Entre trovões, raios, golos e bombas (Jorge Araújo)


1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 6 de Fevereiro de 2015: 



Caríssimo Camarada Luís Graça e restante equipa de co-editores.

Os meus melhores cumprimentos.

Enquanto a fonte não secar, a agenda o permitir e a memória RAM funcionar, lá vou escrevendo, a conta-gotas, as minhas memórias do meu/nosso tempo no CTIG., por um lado, alimentando o nosso Blogue e, por outro, cumprindo com o regulamento da nossa TABANCA GRANDE.

Dito isto, anexo mais uma peça da minha arma – a liberdade de comunicar na primeira pessoa – esta guardada desde o longínquo ano de 1972, ou seja, há mais de quarenta e dois anos, e referente aos meus tempos vividos no Xime.

Obrigado.


ATAQUE AO XIME EM 16SET1972 – CART 3494
(ENTRE TROVÕES, RAIOS, GOLOS E BOMBAS)

- mescla de acontecimentos… e novas emoções para recordar -


1– O AQUARTELAMENTO DO XIME

A funcionar como tampão de segurança ao tráfego rodoviário que circulava no troço «Xime-Bambadinca-Xime» e ao marítimo [Rio Geba] «Xime-Bissau-Xime», as várias gerações de ex-combatentes que cumpriram a sua missão ultramarina neste Aquartelamento sabem bem das dificuldades por que tiveram de passar. Algumas delas transformando-se em calvário permanente, pelas adversidades e desgostos produzidos, outras deixando marcas físicas e psicológicas insupríveis para o resto das suas vidas.

Convém recordar que a complexidade da missão acima descrita se agravou a partir do momento em que o efectivo da CART 1746 [1 GComb], comandado pelo Alf. Mil. João Guerra da Mata,instalados no Destacamento da Ponta do Inglês,recebeu ordens para o abandonarem regressando à sua CART, no Xime, de que era CMDT o Capitão António Vaz,com o acto a ocorrer em 7/8 de Outubro de 1968. Acredita-se que essa decisão foi da iniciativa do então Brigadeiro António de Spínola [1910-1996] comoconsequência da redistribuição das NT no terreno [P10009].

Entretanto, vários têm sido os testemunhos insuspeitos aqui narrados sobre esse contexto, todos eles de sentido único e de absoluta concordância com o acima exposto, independentemente dos tempos em que tiveram lugar as ocorrências, dos seus actores ou das unidades militares envolvidas. 

Destaco, tão-somente, dois exemplos ou duas imagens metafóricas de grande significado: a primeira da autoria do camarada Luís Graça “Xime: uma descida aos infernos” [P1317/8], a segunda do camarada Beja Santos “O Xime, sem ferro mas com fogo…” [P2810], ambos meus antecessores e, também eles, frequentadores assíduos daqueles circuitos pedestres.

Pelo Aquartelamento do Xime passaram, então, a CCAÇ 1550 [1966/68], a CART 1746 [1968/69], a CART 2520 [1969/70], a CART 2715 [1970/71], a CART 3494 [1972/73] e a CCAÇ 12 [1973/74].

No que à Companhia de Artilharia 3494 [CART 3494] diz respeito, a terceirae última unidade operacional do contingente do BART 3873, sediado em Bambadinca, a suachegada ao Xime verificou-se em 28JAN1972, 6.ª feira. Durante os treze meses contabilizados pela Companhia neste Aquartelamento [margem esquerda do Geba], muitas foram as flagelações que sofremos, quase todas elas com armas pesadas e, maioritariamente, à noite. 

O primeiro destes ataques ocorreu em 19MAR1972, domingo, cinco dias após concluída a sobreposição com a CART 2715, e o seu início verificou-se por volta das 23:00 horas, com uma duração superior a meia hora.

Esta facilidade, e a frequência com que o PAIGC passou a realizar os seus ataques contra as NT aquarteladas no Xime, foi consequência do abandono da Ponta do Inglês, uma vez que a partir desse momento estavam/ficaram criadas todas as condições objectivas para a total circulação em liberdade dos efectivos destacados na Zona [no Poindom, no Baio,Rio Buruntoni, na Ponta Luís Dias ou no Fiofioli], bem como da gestão de toda a sua logística incluindo, entre outras, a construção de esconderijos para camuflagem do material pesado e o controlo da população aí residente.

Como se identifica no mapa abaixo, o território a sul do Xime até à mata do Fiofioli [margem direita do Corubal] estava completamente liberto e sem controlo das NT, independentemente da actividade operacional diversificada que por lárealizávamoscom regularidade, umas vezes mais curta outras mais distante ou prolongada no tempo, mas quase sempre para o “empate” [digo eu!].Porém, o sentido destas acções não deixavam de contribuir para o aumento do consumo energético humano, com deficitde recuperação acumulado pelas sucessivas missões, corolário do trabalho físico [caminhadas intermitentes com obstáculos] e mental [concentração elevada, ansiedade e stress].


Mapa da Zona Leste> Sector L1 > Xime:o alvo de todos os ataques perpetrados pelo PAIGC. O território a Sul era percorrido com total liberdade pelos guerrilheiros, permitindo-lhes escolher, optar e/ou variar o local da colocação das suas armas pesadas, bem como definir a quantidade de munições adespejar e a duração temporal de cada um.

2– XIME - 16 DE SETEMBRO DE 1972 - SÁBADO

Os pontos principais da presente narrativa, tal com tem acontecido com as anteriores de teor semelhante aqui divulgadas, emergem das vivências do contexto da nossa missão ultramarina. Cada um deles pretende ser um testemunho singular que, em interacção com outros, procuram ajudar na compreensão mais global [para memória futura] sobre o quotidiano da vida dos ex-combatentes, dos momentos de alguma satisfação e prazer e de outros factos que apelavam à superação permanente e à solidariedade entre pares.

Deste modo, o relato desses factos socio-históricos identificados em cada um dos pontos a baixo,ocorrem num quadro mesclado de acontecimentos em cadeiaobservados [e gravados...] na tarde/noite de 16SET1972, sábado, e que, tal como o título sugere, envolvem vários fenómenos: - a natureza, o desportivo e o militar, ou seja, trovoada tropical [raios e trovões], futebol [golos]e ataque com armas pesadas [material bélico].

2.1 – ANTES DOS FACTOS

O sábado, 16Set1972, estava a ser um dia normal, em que cada um de nós fez o que tinha a fazer, cumprindo as diferentes tarefas no quadro da organização militar - internas e externas - com destaque para a segurança à Ponta Coli, às embarcações civis que sulcavam o Geba e à vigilância do aquartelamento feita a partir dos postos colocados em locais estratégicos.

Por outro lado, a Guiné tem um clima tropical o que significa que tem duas estações distintas – a estação das chuvas e a estação seca. A primeira inicia-se em meados de Maio e a segunda em meados de Novembro, pelo que cada estação completa um ciclo de seis meses.Daí que Setembro é um mês que faz parte da primeira estação – a das chuvas – em que as precipitações são geralmente abundantes, tendo maioritariamente o seu início ao fim da tarde ou às primeiras horas da noite.

Esse dia 16Set1972 não fugiu a esta regra. Após o jantar na messe de sargentos recolhemos à nossa “tabanca”um pouco antes das vinte horas, para um merecido repouso, uma vez que a noite prometia vendaval, o que veio a verificar-se, como teremos a oportunidade de relatar no momento próprio.Inferindo-se da legenda abaixo [foto 3], para se chegar ao quarto era só atravessar a rua de terra batida, a única existente no interior do Aquartelamento e que unia as duas principais entradas – a porta-de-armas, com acesso ao Cais ou à estrada alcatroada em direcção a Bambadinca [foto 1; da esqª.] e a da tabanca [foto 2; da dtª.]


Foto 3 – Xime/1972 – No edifício da esquerda funcionava a secretaria, uma arrecadação, o armeiro e o quarto do Guia Malan [parte visível]. Nas traseiras; o quarto dos 1.ºs. Sarg. Bagorro e Simões, o bar/messe de sargentos, o WC e um pequeno abrigo de apoio. O edifício da direita estava dividido em quatro partes e era ocupado por furriéis. No quarto da esquerda, a que corresponde a janela sem protecção, residiam o C. Ferreira, o J. Godinho e o J. Araújo, trio de comando do 1.º GComb.


Foto 4 – Xime/1972 – Da esq./ditª – Cláudio Ferreira, João Godinho e Jorge Araújo, trio de furriéis responsáveis pelo 1.º GComb.

2.2 – OS GOLOS… O FUTEBOL… EM LISBOA

O camarada Cláudio Ferreira, que era [é] sportinguista ferrenho e uma enciclopédia da história do SCP [um forte abraço para ele], lembrou-se de que a 2.ª jornada do Campeonato Nacional de Futebol, daquela época: 1972/73, tinha um jogo antecipado para essa noite, e que era, nem mais nem menos, o [seu] Sporting com o Uniãode Tomar, no Estádio José de Alvalade. Estávamos, então, na hora de tentar localizar a transmissão do relato na Emissora Nacional [EN], o que aconteceu.A partir daquele momento, na Guiné [Xime],eram mais três os que assistiam ao jogo através das imagens sonoras transmitidas pelo repórter de serviço [creio que era oArtur Agostinho (1920-2011), um dos mais brilhantes relatores desportivos da época].

Iniciado o jogo, e quando estavam decorridos apenas sessenta segundo, eis a primeira grande emoção da noite vivida pelo Ferreira por efeito da marcação do primeiro golo do Sporting. Foi seu autor Nelson que, apesar de ter visto o seu primeiro remate devolvido por um defesa opositor, a passe de Fraguito, conseguiu fazer a recarga vitoriosa, ainda que em desequilíbrio. Decorridos mais quatro minutos e nova emoção, para gáudiodo Ferreira, com o segundo golo do Sporting obtido agora por Marinho, com remate forte e colocado, depois de se ter isolado na sequência de passe longo de Manaca. Aos 23 minutos, novo golo e novo momento alto no interior da “tabanca” do trio de combatentes/desportistas. Era o terceiro golo do Sporting, este concretizado pelo argentino Héctor Yazalde [1946-1997], a grande esperança para os lados de Alvalade, esperança que se tornou realidade na época seguinte, pois H. Yazalde viria a conquistar a Bota de Ouro Europeia, ao contabilizar 46 golos em 30 jogos com a camisola do SCP. E o intervalo chegou com o resultado em 3-0.

2.3 – OS TROVÕES… E OS RAIOS… NO XIME

Durante o decorrer da primeira parte, a principal atenção estevefocada, naturalmente, nas peripécias do jogo e as emoções resultaram dos três golos obtidos. Nem nos apercebemos que, no exterior do quarto [tabanca], a noite tinha chegado e os ventos fortes transportavam cada vez mais nuvens, dando origem à queda de água com grande abundância. Estava uma noite verdadeiramente tropical. O contacto directo comeste fenómeno da natureza metia respeito a qualquer um de nós ou, como diz o povo, era de meter medo ao susto.Os trovões eram cada vez mais fortes, fazendo abanaros telhados de chapa dos edifícios ali à volta, enquanto os raios rasgavam, à nossa frente, o céu do Xime, iluminando todo o espaço físico do Aquartelamento [fotos 5 e 6]. Ainda assim a experiência estava a ser pedagogicamente interessante e daí a termos gravado na memória de longo prazo, e agora passada a escrito.

2.4 – O ATAQUE… E AS BOMBAS… NO XIME

De regresso ao quarto para audição da segunda parte do jogo, voltámos à posição anterior [na cama] com a roupa que a nossa mãe nos deu durante a gestação. A partir de então passaram a ser mais perceptíveis os diversos sons em presença: o da rádio, os das ventoinhas presas aos ferros das cabeceiras das camas e os dos trovões cada vez mais intensos. Entretanto, um outro som se juntou aos anteriores, sendo que este já nos era, também, familiar neste contexto. Tratava-se do rebentamento de granadas de canhão sem recuo, enviadas lá das bandas de Gundaguê Beafada [ver mapa acima] conforme refere a HU [6.º fascículo].

Quando nos apercebemos que estávamos perante um novo ataque ao Xime perpetrado pelo PAIGC, o ritmo cardíaco e as emoções/tensões aumentaram, mas a reacção surgiu espontânea por parte da nossa equipa de artilheiros do 20º Pel. Art., sob a supervisão do Alf.Mil. Maurício Viegas e dos furriéis Manuel Lino e José Pacheco, coordenados pelo meu/nosso Capitão Pereira da Costa. Porém, a dificuldade maior que se colocou na prontidão das respostas das nossas bocas-de-fogo [obuses 10,5] residiu no facto de não ser possível identificar no imediato, com fiabilidade, o que era a claridade provocada pelos raios e a claridade produzida pelo material bélico. Mesmo assim não deixámos de comunicar com o IN.

Decorridos aproximadamente quinze minutos, deixámos de ouvir e/ou sentir os rebentamentos das granadas, todaselas atingindo pontos situados aquém ou alémdo alvo, que era o Aquartelamento do Xime e o seu efectivo militar,com excepção de uma granada que caiu a dez metros da messe de sargentos, situada nas traseiras do edifício da foto 3, sem fragmentar, ou à mesma distância da foto seguinte [7].


Foto 7 – Xime/Set1972 - Espaço envolvente à messe de sargentos reconstruído pela CART 3494, onde é possível identificar a porta e a janela do Bar. A granada, anteriormente referida, caiu a dez metros do local onde me encontro na foto. [Na época das chuvas… uma carecada era uma boa decisão… muito higiénica e saudável].

A partir de então, o alerta manteve-se por mais algumas horas, não havendo, no entanto, danos a registar.

Quanto ao futebol, viemos a saber no dia seguinte, domingo, que o resultado final tinha sido de 4-0, sendo o último golo da autoria de H. Yazalde, aos 75’, que assim bisou na partida. 

Sobre os factos mais relevantes da segunda parte do jogo [que no Xime teve outros jogadores… outro ambiente e diferente dinâmica grupal… e outra excitação…], só tomámos contacto com eles depois da recepção do Jornal Desportivo «A BOLA», da edição de 2.ª feira, 18Set1972, pois este jornal, à época, era trissemanário [2.ª, 5.ª e sábado]. A sua remessa da Metrópole, maioritariamente a edição das segundas-feiras, tendo por objectivo o contacto com o fenómeno desportivo nacional e resultados do fim-de-semana, chegava-nos três dias depois, como aconteceu na situação presente.

Relembro que o tema sobre«o que a malta lia, nas horas vagas», foi já abordado por um grupo significativo de grã-tabanqueiros.

Como testemunho histórico, epara encerrar esta narrativa, aqui vos deixo a crónica escrita pela pena do saudoso e amigo Carlos Pinhão [1924-1993], sobre o jogo em apreço. 


E agora a constituição das três equipas:

SPORTING C.P. – Damas; Pedro Gomes (cap.) (45m - Dinis), Laranjeira, Bastos e Carlos Pereira; Manaca, Fraguito e Vagner; Marinho, Yazalde e Nelson.

U. TOMAR – Nascimento; Kiki, João Carlos (cap.), Cardoso e Barnabé; Pavão, Manuel José, Raul (45m - Pedro) e Fernando (30m - Bolota); Raul Águas e Camolas.

Árbitro – João Nogueira, da A.F.Setúbal.

Porque cheguei ao fim de mais uma curta viagem pelas memórias do Xime envio, a todos vós, um forte abraço.

Um abraço,
Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494
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Nota de M.R.: 
 

Último poste da série de 3 de dezembro de 2014 > Guiné 63/734 - P13970: História da CART 3494 (3): A ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CART 3494 (XIME / ENXALÉ–[N]AS DUAS MARGENS DO GEBA) - A única presença no Enxalé (Jorge Araújo)

Guiné 63/74 - P14242: Manuscrito(s) (Luís Graça) (45): A arte lusitana de bem comunicar em toda a parte...



Uma carraca portuguesa em Nagasaki, fins do séc. XVI/princípios séc. XVII. Pintura de biombo nanban. Kano Naizen - Kobe City Museum., Imagem do domínio público (Fonte: Cortesia de Wikipedia)


(...) "O Comércio Nanban (japonês:南蛮貿易, nanban-bōeki, "Comércio com os bárbaros do Sul") ou Período do Comércio Nanban (japonês: 南蛮貿易時代, nanban-bōeki-jidai, "Período do comércio com bárbaros do Sul") na história do Japão compreende o período que vai da chegada dos primeiros europeus, oriundos de Portugal, em 1543, até sua exclusão quase total do arquipélago entre 1637 e 1641, com a promulgação do "Sakoku" - o Édito de Exclusão." (...)  (Fonte: Wikipédia > Período Nanban)



1. A atual geração de gestores das nossas empresas, os putos que fazem gala de exibir o seu diploma de MBA tirado nas melhores universidades europeias e norte-americanas, não sabem o que é a comunicação face a face. Vivem na aldeia global mas só conhecem a comunicação virtual, à distância. São dos que se gabam de despedir trabalhadores por email… As más notícias agora vêm por email. E já não há a pancadinha nas costas, à moda antiga autoritário-paternalista… O tecnocrata não precisa nem sabe nada de comunicação humana... Lembra-me a história de um desgraçado que só soube que tinha sido despedido, quando foi ver o saldo da conta bancária no fim do mês… Era dos que nunca viam a caixa de correio electrónica...


2. Lembro-te também de ter lido que, em 1995, há 20 anos atrás, os trabalhadores portugueses eram, em toda a União Europeia (UE), aqueles que tinham menos probabilidades de ter uma discussão franca, cara a cara, com o seu chefe acerca do seu desempenho profissional… Apenas 23% admitiam que isso acontecia contra 41% no conjunto dos então 15 da UE, segundo os resultados do Segundo Inquérito Europeu sobre as Condições de Trabalho, realizado nesse ano pela Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho, com sede em Dublin. O português não é(era) treinado para dar notícias, nem boas nem más.

3. E, todavia, os estrangeiros têm (ou tinham, no século passado) um arreigado estereótipo, a nosso respeito: "Les portugais sont toujours gais". Leia-se: os portugueses são… pobretes mas alegretes. Hoje há outra versão que por aí corre: os portugueses veem-se gregos para poder continuar a viver em Portugal, que é(era) a sua terra de origem.


4. Quando chegámos ao Japão no final da 1ª metade do Século XVI, os nativos acharam-nos com “falta de maneiras” porque, além de comermos com as mãos, expressávamos os nossos sentimentos em público, sem ponta de pudor!… Comer com as mãos, era inconcebível para um japonês feudal, em que as relações sociais ainda eram (e continuaram a ser até à era meiji) feudais, as do servo e do suserano… Etnocêntricos, como qualquer povo, chamaram-nos “bárbaros do sul”… Mas exprimir as emoções em público era tabu… Mesmo assim devem ter-nos achado uns "gajos porreiros", ou pelo menos tiveram a santa paciência de nos tolerar durante um século... E incorporaram, no seu vocabulário, mais de 2 centenas de palavras portugueses... A língua, o comércio e os jesuítas foram os principais veículos de intercâmbio entre os dois povos: exemplos de palavras portuguesas de origem japonesa: biombo, catana; exemplos de palavras japonesas de origem portuguesa: amanderu (amêndoa), bauchizumu (batismo), beranda (varanda), bisuketto (biscoito), botan (botão), kapitan (capitão), kappa(capa), koppu (copo), kasutera (castela, bolo tipo pão de ló), kompeitou (confeitos, doces), karuta (carta), pan (pão), shabom (sabão), shabon dama (bola de sabão), tabako (tabaco), etc.


5. Afinal, em que é que ficamos? Haverá uma arte lusitana de bem comunicar ? Comunicar, na verdade, não é fácil… mas é preciso. Muitos dos nossos conflitos em casa e no trabalho começam justamente por falhas no processo de comunicação. Não sei se há uma “arte lusitana de bem comunicar em toda a parte”… Mas somos capazes de exprimir emoções e sentimentos por formas culturais como o fado, que os atuais filhos do “sol nascente” apreciam de sobremaneira, quando vêm a Lisboa, como turistas… São os “toyotas” (outro estereótipo) que enchem (ou enchiam há uns anos atrás) as casas de fado do bairro Alto e de Alfama… Será a atração dos contrastes ? Dois povos que vivem nos antípodas, afinal tão próximos e tão afastados…

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