quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24813: Historiografia da presença portuguesa em África (392): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)", por António Carreira; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Nos preparativos de uma viagem que fiz a S. Vicente e Santo Antão fiz algumas leituras recapitulativas e meti no saco outras que me permitissem entender melhor a presença portuguesa naquele arquipélago. Resolvi reler uma obra indispensável de António Carreira, "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata", com sucessivas edições tanto em Portugal como em Cabo Verde, e foi assim que vi o modo tão bem organizado como este investigador de nomeada refletiu sobre a importância dos tangomaos ou "lançados" a quem Carreira atribui um papel de extrema utilidade. 

Esta obra data de 1972 e prenuncia outros estudos tanto de sua lavra como de outros. Carreira irá escrever sobre o tráfico de escravos, anunciará nesta obra da formação de uma sociedade escravocrata a presença nos rios de Guiné de judeus e cristãos novos, tema que outros autores desenvolverão. Neste trabalho aprofundará o papel das companhias majestáticas e dos seus insucessos. Aborda sempre conceitos todos este comércio negreiro, a partir do século XIX vilipendiado, dentro de um quadro da mentalidade do tempo em que para todos o comércio da escravidão era lícito.

Um abraço do
Mário



Lançados ou Tangomaos, a análise de António Carreira

Mário Beja Santos

Quando publicou em 1972 esta obra ainda hoje referencial, António Carreira já tinha largo percurso historiógrafo, consultara em Cabo Verde o registo de escravos, produzira a importante obra Panaria Cabo-Verdiana-Guineense, As Companhias Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos. No prefácio justifica porque é que o tema é ingrato já que tem a ver com o tenebroso período da escravatura e socorre-se do exemplo inglês: 

“Nenhuma nação negociou tanto como ela em escravos. Com este negócio amealhou lucros fabulosos. Em certo momento, e no seu interesse direto, arvorou-se em campeã do abolicionismo. Nessa campanha usou de todos os processos, lícitos e ilícitos. Publicou livros sobre o tráfico, nuns descrevendo os seus horrores e condenando-o; em outros defendendo a sua manutenção. E não parece que haja algum inglês que tenha qualquer sentimento de culpa pelo que os seus antepassados fizeram – e numa escala nunca igualada por um outro povo.”

Na capa da segunda edição, bem como na primeira edição, de iniciativa do autor, aparece a Casa-grande de S. Martinho, nos arredores da Praia, seria uma das últimas reminiscências da época escravocrata.

Voltei a ler esta obra exemplar em jeito de me preparar para uma viagem que fiz às ilhas de S. Vicente e Santo Antão e verifiquei que,  para além da história dos contratos de arrendamento, da obtenção de escravos, das mercadorias usadas neste comércio, da formação do crioulo e até se chegar à situação social na época que antecedeu a abolição, Carreira tratava com a melhor investigação possível do seu tempo os lançados ou tangomaos, e assim considerei da maior utilidade fazer uma recensão de personagem tão determinante do seu tempo.

“Na fase inicial, os lançados eram constituídos apenas por brancos (cristãos e judeus) estantes em Santiago, e por alguns reinóis não moradores que com aqueles se mancomunavam e faziam parceria nos negócios. Poucos anos volvidos o seu número avolumou-se não apenas pela afluência de mais brancos como pelo surto de mulatos e de pretos-forros, uns e outros de inteira confiança dos brancos. 

Admitimos que a participação de mulatos e de pretos-forros nas atividades comerciais de brancos (compra de géneros e de escravos, venda de mercadorias) nos rios de Guiné só foi possível após a formação de um meio de comunicação válido entre esses dois grupos – de brancos e de pretos e mulatos – ou seja, incontroversamente, a língua crioula.

Independentemente do condicionalismo criado pelas leis de comércio, temos também de considerar como outros dos factores a influir do surto do lançado os resultantes das normas fixadas para a residência de brancos no Ultramar (limitações postas ao fornecimento aos brancos de Santiago das chamadas mercadorias defesas necessárias aos tratos e resgates, política seguida no arrendamento das áreas de comércio e limitações postas à residência de brancos nos rios de Guiné).”


As referências aos lançados surgem no início do século XVI, são tratados como cristãos omiziados. E Carreira questiona de onde vem o nome de lançado e pouco depois o de tangomaos. Todos os cristãos que se instalassem nos rios e portos africanos sem licença régia eram havidos por lançados (de lançar, tomado no sentido de internar-se, avançar pelo sertão a negociar). O teor das cartas de arrendamento é drástico na proibição do que faziam os lançados, deviam ser mortos ou entregues aos capitães dos navios. Da documentação existente regista-se a presença de branco e de provavelmente judeus, e que faziam concorrência ao comércio régio, desarticulando-o, daí a pena de morte e o confisco de bens.

“Aparece nas leis (certamente já como linguagem corrente), um outro vocábulo que define esses mesmos transgressores: o de Tangomao e suas diferentes formas gráficas (Tanguomããos, Tamgo mãos, tangomao, tango-mao, tangosmaus, tangomagos, etc.), sempre com significado igual ao dado a lançado.” 

Carreira afasta qualquer hipótese de se relacionar este termo a uma divindade, refere apreciações da literatura de viagens como Valentim Fernandes, o padre Manuel Álvares que referem ídolos com tal nome, mas não encontra qualquer relação.

A economia mais afetada pela atividade dos tangomaos era a de Santiago, há pedidos constantes da câmara para tirar da Guiné os tangomaos. As ameaças não surtiram nenhum efeito, os tangomaos estavam de pedra e cal. Missionários como o padre Manuel Álvares tinham deles uma opinião que não era nada favorável dizendo que colaboravam com o gentio idólatra. André Donelha, em 1625, aponta a presença de tangomaos entre os Jalofos, na Serra Leoa e no rio de S. Domingos, outros relatos referem-nos nos Bijagós, em Cacheu e em partes de Geba.

E Carreira prossegue:

“No século XIX, e mesmo no atual, alguns autores tentaram esclarecer a origem do termo tangomao. A análise mais remota é de Tavares de Macedo, em 1857 que, depois de aludir às ordenações manuelinas e doações ao Hospital de Todos-os-Santos, cita o jurisconsulto Molina, tangomao é palavra que em terra de pretos significa os que vão pelas feiras e trocam mercancias por negros escravos que trazem aos portugueses a vender.”

Há outros autores que falam de tangomao como Pombeiro ou negociante de escravos. Carreira procura ser pormenorizado e avança com outras opiniões em que inclui Correia Lopes e Teixeira da Mota. Em sua opinião, os que viravam tangomaos não deveriam ser apenas reinóis idos acidentalmente aos resgates. Seriam, na grande maioria, os tais brancos estantes em Santiago e no Fogo e outros conluiados. Inicialmente tentou-se uma política de brandura para impedir a formação destes bandos de tangomaos, não resultou e mais adiante procurou-se a aplicação de sanções pecuniárias e depois a pena de morte.

E Carreira dá-nos o seguinte entendimento:

“Os lançados serviam de intermediários entre o traficante não estante, nacional e estrangeiro, e os chefes locais e as cáfilas procedentes do interior, vendedores de escravos e de géneros. Fixaram-se próximo do interior ou nos locais de concentração das caravanas, em regra junto aos portos de mar ou fluviais. Para atuar mais eficazmente valeram-se do seu conhecimento do meio e das línguas nativas. Esses homens duros e resolutos adaptaram-se facilmente a cada meio africano. Não se importaram de sacrificar a sua moral, a sua educação, a sua religião. Não temeram o clima de África, de si esgotante, nem a floresta ou as terras. O isolamento obrigou-os a ceder perante enormes forças sociais. Para se integrarem nos mais diferentes aspetos das sociedades onde viviam juntavam-se facilmente à mulher africana. Abjuravam da sua religião para seguir o chamado paganismo; aliavam-se a chefes amigos para combater e dominar inimigos. Não se intimidaram com a excomunhão. A onda de tangomaos cresceu por todo o século XVI e mais ainda na centúria seguinte, na proporção em que surgiam mais interessados no tráfico. Os primeiros a aparecer na competição foram os franceses, logo seguidos pelos ingleses e estes, a curto intervalo, pelos holandeses. De todos eles os tangomaos se tornaram clientes prestimosos.”

Em jeito de conclusão, os lançados ou tangomaos eram portugueses que violaram as ordens régias indo de Lisboa ou Santiago para os rios de Guiné na mira de enriquecer, adaptaram-se, socorreram-se de cerimónias mágicas para meter medo aos seus cativos, procedimento que deixou rasto, os escravos que irão para as ilhas de Cabo Verde manterão superstições (como aliás também muitos brancos) haverá nas ilhas feiticeiros e adivinhadores.

O caso mais célebre de tangomao que se conhece é de João Ferreira, natural do Crato, chamado pelos negros o Ganagoga, o que quer dizer na língua dos biafadas homem que fala todas as línguas. 

“Da ação dos tangomaos resultou, em parte apreciável, a ruína do comércio português em todos os setores do tráfico. Mas, a eles ficou devendo em grande medida o conhecimento pormenorizado de vastas regiões, do curso dos rios, das gentes e seus costumes e práticas, dos processos de comércio seguidos, das mercadorias preferidas, das produções locais de maior interesse. Difundiram costumes e concorreram para a formação e difusão do crioulo e do português. E ao fazer um balanço desapaixonado, tudo quanto se lhe aponta de nocivo fica compensado pelo que de bom e de útil fizeram.”
António Carreira, indiscutivelmente o mais influente e importante historiador de origem cabo-verdiana da sua geração. A sua obra "Cabo Verde, Formação e extinção de uma sociedade escravocrata", 1972, continua a ser incontornável na investigação universitária
Imagem constante no texto A poderosa "Bebiana Vaz" e o aparecimento dos "gans" Vaz e Gomes em Cacheu, por Celina Tavares, com a devida vénia
Imagem alusiva às “Signares”, que tiveram um papel determinante na construção do mundo moderno africano, a Guiné não escapou à sua influência, caso de Aurélia Correia
Imagem antiga da colonização portuguesa
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24793: Historiografia da presença portuguesa em África (391): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24812: Efemérides (409): 1 de novembro, dia de lembrar e homenagear os nossos queridos mortos


Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério > Talhão da Liga dos Combatentes > 1 de novembro de 2017 > "Conforme convite da nossa Embaixada, estive presente na homenagem aos nossos mortos.  As campas estavam pintadas e arranjadas. Foram benzidas por um padre. Estavam os nossos militares da cooperação militar, adido militar e funcionários da nossa Embaixada, o representante da Liga dos Antigos Combatentes, assim como alguns empresários portugueses que cá exercem a sua actividade." (*)

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. No dia em que, na nossa cultura cristã e ocidental, lembramos os nossos queridos mortos e visitamos as suas campas nos cemitérios, não podemos deixar de evocar aqui os membros da Tabanca Grande, amigos e camaradas da Guiné que este ano "da lei da morte já se foram libertando": foram 14 de um total que já vai em 141 (16% dos 881 membros registados). De aguns, só tardiamente tivemos a notícia do seu falecimento (vão assinalados com #).
  • António Branquinho (1947-2023)
  • António Cunha (Tony) (c.1950-c. 2022) (#)
  • António Eduardo Ferreira (1950-2023)
  • Armando Tavares da Silva (1939-2023)
  • Carlos Alberto Cruz (1941-2023)
  • Carronda Rodrigues (1948-2023)
  • Cunha Ribeiro (1936-2023)
  • Celestino Bandeira (1946-2021)
  • Fernando Costa (1951-2018)(#)
  • Fernando Magro (1936-2023)
  • José António Paradela (1937-2023)
  • José Carlos Suleimane Baldé (c.1951-2022)(#)
  • José Marcelino Sousa (1949-2023)
  • Manuel Gonçalves (Nela (1946-2019 (#)
 (#) Só soubemos da sua morte este ano.


2. É dia de lembrar, mais uma vez, e em especial neste dia (**), que há ainda centenas de antigos combatentes, inumados em vários dos antigos teatros de operações da guerra de África, como é o caso do cemitério de Bissau, Talhão Militar Português. Eram cerca de 350 até 2008  (***). 

Ver aqui aqui o vídeo do antigo sargento comando Julde Jaquité, do Batalhão de Comandos da Guiné, reproduzido na página do Facebook de Raul Folques (17 de Outubro às 16:34). 

Acrescenta o antigo comandante do BCmds da Guiné:

 (...) "Este talhão é tratado, graciosamente, pela Associação dos Antigos Combatentes da Guiné que é presidida por Amadu Dhjau. Bem hajam." (...) 

Muitos outros antigos camaradas nossos, falecidos em combate, ou por doença ou acidente,   ficaram inumados em condições indignas )e que ferem a nossa sensibilidade), em cemitérios "ad hoc" que já foram invadidos pelo mato e pelo crescimento urbano, desde Bambadinca a Catió.
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Guiné 61/74 - P24811: Facebook...ando (44): Bafatá no dia 22 de agosto de 1974: a fonte pública de 1918 e a mesquita, de 1968, duas obras da arquitetura colonial (Amilcar Ventura, ex-fur mil mec auto, 1ª CCAV / BCAV 8323, Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74)

Foto Foto nº 1


Foto nº 2

Guiné > Região de  Bafatá > Bafatá > 22 de agosto de 1974 > Fonte pública de 1918, e mesquita.

Fotos (e legendas): © Amílcar Ventura (2023). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Duas belas recordações de Bafatá, relativas à  presença histórica portugesa: 

(i) de um lado a fonte pública construída em 1918, ao tempo da I República,  no sítio da "Mãe de Água" ou "Sintra de Bafatá" (mais conhecido por "Boma", pelos guineenses da geração do Cherno Baldé, que estudou no liceu de Bafatá, a seguir à independência); 

(ii) do outro, a mesquita, inaugurada em abril de 1968, aquando da isita, à "princesa do Geba", do governador geral da Guiné, gen Arnaldo Schulz.

As duas fotos forma tiradas pelo Amílcar Ventura (ou pertencem ao seu álbum).

Comentários e legendas:

Foto nº 1:  "22 Agosto de 74, no  regresso a Bissau da minha Companhia que estava em Bajocunda, com passagem por Bafatá. Foto tirada no Fontanário de Bafatá. São os Furriéis da Companhia."

Foto nº 2: "No mesmo dia, mesquita de Bafatá" (percebe-se pelas poças de água, que estamos na época das chuvas)

O Amílcar Ventura foi fur mil mec auto, 1ª CCAV / BCAV 8323 (Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74); é natural de (e residente em) Silves; membro da nossa Tabanca Grande desde 9 de maio de 2009; publicou as fotos acima na nossa  na página do Facebook da Tabanca Grande Luís Graça, no passado dia 30 de 0utubro de 2023.


2. Sobre a mesquita de Bafatá, sugerimos o visionamento da reportagem da RTP sobre a visita do Governador Geral, gen Arnaldo Schulz, a Bafatá, num dos seus últimos atos públicos (abril de 1968). Apesar do vídeo não ter som, as suas imagens falam por si. Leia-se primeiro o resumo analítico disponível aqui, em RTP Arquivos. O vídeo tem a duração de 05' 34''. E passou no noticiário nacional da RTP de abril de 1968.

  • Aeródromo: esposa do Governador Geral cumprimenta individualidade militar, multidão nativa caminha na pista, guarda de honra da Mocidade Portuguesa, Arnaldo Schultz caminha no recinto;
  • caravana automóvel na estrada e a entrar em Bafatá
  • esposa do Governador Geral descerra lápide do Bairro Social Arnaldo Schultz, a construir; placa; Arnaldo Schultz, individualidades e populares assistem;
  • missa na igreja paroquial: Arnaldo Schultz dirige-se para o edifício e assiste à celebração, fiéis, crianças nativas e esposa do Governador assistem, celebração;
  • inauguração de instalação industrial: bênção, Arnaldo Schultz acciona manivela; comitiva na estrada.
(Resumo analítico: Revisão / fixação de texto / negritos: LG)
 
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P24810: Parabéns a você (2217): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4513/72 (Aldeia Formosa, Cumbijã e Nhala, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24800: Parabéns a você (2216): Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72) e Cor Inf Ref Luís Marcelino, ex-Cap Mil Inf, CMDT da CART 6250/72 (Mampatá e Colibuia, 1972/74)

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24809: As nossas geografias emocionais (14): Na fonte de Bafatá, nos anos 60, os almoços dançantes eram promovidos pela esposa do CMDT do Esq Rec Cav (Fernando Gouveia)


Fonte de Bafatá, 2010. Foto: © Fernando Gouveia

1. Mensagem do nosso camarada Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec Inf do Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70, com data de 29 de Outubro de 2022:

Olá Carlos,
Espero que esteja tudo bem convosco.
Sobre a fonte de Bafata, num comentário, já esclareci algumas coisas. Para completar o assunto mando-te uma foto de 2010 que seria bom ser publicada.
Desde já te agradeço.

Um grande abraço.
Fernando

2. Comentário de Fernando Gouveia no P24805:

Camaradas,
Passo a esclarecer:

1 - Os ditos "almoços dançantes" eram promovidos pela esposa do Capitão do Esq. de Cav, Capitão Campos[1] do Esq. que esteve antes do que é mencionado, penso que de 1967 a 1969.
2 - Quanto à fonte, que em 1968/69 estava num grau de conservação normal, quando fui lá em 2010 o terreno, por força das chuvas, tinha subido mais de um metro subterrando o tanque.
Também em 2010 já tinha desaparecido a placa com a data da construção.
3 - Tenho uma foto da fonte que tirei em 2010 e que vou fazer chegar ao Carlos Vinhal para publicação.

Abraços.
Fernando Gouveia

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Notas do editor:

[1] - O camarada Fernando Gouveia estará a refereir-se ao Cap Cav Carlos Fernando Valente de Ascenção Campos, CMDT do ERec 2350 que esteve em Bafatá e Piche entre Janeiro de 1968 e Novembro de 1969

Último poste da série de 30 de Outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24806: As nossas geografias emocionais (13): A fonte da Colina de Madina, 1945 (Manuel Coelho / Cherno Baldé / António Murta)

Guiné 61/74 - P24808: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (12): de Montemuro a Montmartre ou uma história de vida "casapiana"

 

"Bal du moulin de la Galette" (1876), do pintor francês Pierre-Auguste Renoir (1841–1919), uma das obras primas do impressionismo. O "Moulin de la Galette" ficava no bairro de Montmartre, Paris, onde se situava o estúdio do artista. Óleo sobre tela. Musée d'Orsay. Paris. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikimedia Commons.


Contos com mural ao fundo (12) > De Montemuro a Montmartre ou uma história de vida "casapiana"


por Luís Graça (*)



"Nascido no ano zero, 1945"... Lembro-me de tu teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira (e única) exposição de pintura, e logo  no SNI... Lembras-te do SNI, o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, nos Restauradores ?!

Lembras-te, dessa história, passada no já longínquo ano de 1967 ?!... Foi um sucesso, a minha "vernissage"... Os "meus padrinhos e mecenas" financiaram os comes e bebes. Ate meteu "foie gras", coisa que nunca tinha provado... 
E houve mesmo  umas críticas favoráveis em um ou dois jornais da capital. Para te ser franco,  acho que foi o único momento de glória na minha vida... 

Depois veio a ressaca, a descida à terra, a dura realidade... Éramos uns putos... Ainda pensámos em "dar o salto" até Paris, éramos os dois vagamente existencialistas, e ainda mais vagamente pacífistas  e anti-imperialistas (a guerra do Vietname estava  ao rubro e ninguém, na América, queria morrer pelo tio Sam; crescia a contestação) . 

Eu sonhava com Paris, Montmartre, a boémia e as copines das belas artes (o meu lado de mulherengo!), enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre e querias estudar filosofia, jornalismo ou sociologia, ou coisa parecida (na Sorbonne, que ficaria famosa um  ano depois, com o maio de 68) !... 

Eu estava quase a completar os meus vinte e dois anos, com a tropa à perna, mas sem a mais pequena consciência disso. Tinha-me esquecido completamente que, uns bons anos antes, fora à inspeção, tendo sido apurado para todo o serviço militar. Dei uma palmada na testa, quando tu me interpelaste : "E a tropa, pá ?!"... 

Tu eras ligeiramente mais novo, um ano e picos, mas com a mania da filosofia, da crítica literária, da poesia e do jornalismo, acho que eram esses os teus interesses na época.  Convidei-te para passares uns dias comigo, em Lisboa, por ocasião da montagem da minha primeira exposição de pintura. E, claro, escreveres o texto para o catálogo. 

Não conseguimos convencer o nosso "gestor de conta" (quem tinha  conta bancária nesse tempo?!) a financiar os nossos inconsistentes projetos de aventura. Ou melhor, só queríamos chegar a Paris, de comboio, à boleia, ou "a salto", o que desse mais jeito. Contámos os tostões. Quanto é que tu tinhas no bolso e no mealheiro ? Se calhar, bem menos do que eu...

E, quando descobriram a marosca, os meus "padrinhos e mecenas" de Lisboa, expulsaram-te de casa  (uma cena triste, confesso) e, a mim, cortaram-me a "mesada"... (Ficaram histéricos, ameaçaram até denunciar-me como se eu tivesse cometido,  ou estivesse à beira de cometer,  um crime hediondo!... E, na realidade, era,  na ótica deles, católicos,  conservadores e situacionista,  um "crime de lesa-pátria", e sobretudo um caso de simbólico parricídio e de inqualificável ingratidão!)

Foi nessa altura que eu te pus a dormir  na casa que a Flora partilhava com mais duas amigas, estudantes, no Campo Grande, em frente à feira popular... A Flora, a minha namorada, madeirense, estás recordado ?!, andava a tirar o curso de serviço social. (Aliás,  acabámos os dois por ir lá ficar uns dias enquanto não passou a zanga do meu "padrinho"; de resto, o andar do Campo Grande estava por conta da Flora e das amigas.)

Eu era mais corajoso (e, seguramente, mais inconsciente) do que tu, tens que admitir. Era artista e tu literato. Tu eras mais politizado e, sobretudo, mais pragmático do que eu:

– E os nossos pais ? – interrogavas-te tu. – E a PIDE à perna ? E a Guardia Civil espanhola antes de chegares aos Pirinéus?

E não te calavas, chamando-me à razão:

E os oito, nove ou dez contos de réis para dares ao passador ? E vais fazer o quê, em Paris? Trabalhar como maçon ? E dormir no bidonville? E comer baguettes com marmelada ?

Ano zero da idade atómica. 1945… Hiroshima. O cogumelo. O horror. Mas também o fim da guerra. Libération, gritavam  os parisienses, eufóricos, ainda em 1944. Para eles, era o fim do pesadelo da ocupação nazi e o início de uma nova era. O direito à esperança, ao sonho,  extensível à  nossa terra (pensavam alguns ingénuos), o recomeço da história da humanidade, etc., etc., blá-blá, blá-blá...  (
Mas ainda não fora dessa que o Salazar cairia da cadeira.)

As palavras eram tuas, escritas  no meu catálogo (exceto a referência ao Salazar, como é óbvio, o Salazar era tabu!)...   Até estava bonito e original, o catálogo ... não estava ?! ...Original,  "subversivo", no mínimo, provocador... Com o  teu treino de jornalista, aprendeste a  escrever nas entrelinhas, e a cultivar o sarcasmo, a ironia, o "non-sense",  o humor negro, para iludir a vigilância dos censores da nossa praça (que só mais tarde vim a descobrir que eram da tropa,   coronéis na reserva ou na reforma)...

Uma exposição no SNI em 1967!... "A arte ao serviço da Nação"!... Que privilégio, ironizavas tu!... O SNI, o Secretariado Nacional de Informação (ou da Propaganda, emendavas tu, sarcástico) no Palácio Foz, nos Restauradores, criado pelo António Ferro... Tu até tinhas repugnância em lá entrar, sei que fizeste esse "enorme  sacrifício" por amizade...

Mas, em boa verdade, não havia borra-botas, aprendiz de artista,  que não quisesse expor no SNI naquela época!... Ora, um merdas como eu a expor no SNI!... Um casapiano, novato, serigrafista, sócio de uma cooperativa de artes gráficas, estudante de Belas-Artes, filho de pai incógnito, nascido nas faldas da serra de Montemuro, afilhado de um gajo do regime, aprendiz de pintor que sonhava ir para as belas-artes em Paris e pintar, ao ar livre, nas ruas de Montmartre, de boina preta, lenço de seda vermelho ao pescoço, e uma rosa na lapela, ao som de um acordeão... Sempre adorei o preto e o vermelho. E o som do acordeão. E as rosas. E as francesas (que começavam a aparecer em Lisboa, nos seus 2 cavalos, Citroën, que lindas, vaporosas, livres, provocantes!)...

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, o fim de uma época, o início de outra… Que ilusão, meu amigo, tu que me chamavas o Renoir de Montemuro, só por que eu já frequentava o 3º ano das Belas Artes, e tinha um "padrinho e mecenas", em Lisboa, que terá metido uma cunha, ao patrão do SNI, o dr. César Moreira Baptista, para eu poder fazer a minha primeira exposição no Palácio Foz, ali nos Restauradores…  (Mas o melhor, dizias tu, era a "Ginginha", ali ao lado, no Rossio, no Largo de São Domingos...)

Só por que eu fazia umas coisas démodées, vagamente impressionistas, com mais de meio século de atraso... Vagamente impressionistas, mas já a caminho do abstracionismo... Enfim, aprendiz de Renoir, talvez imitador da Vieira da Silva, de que só conhecia umas reproduções de má qualidade. 

Alguns amigos, como tu, faziam-me o favor de me incentivar, mostrando que eu tinha talento e até uma carreira de futuro à minha frente!... (Sim, ao nível da gravura, da água-forte, da serigrafia, acho que podia ter ido mais longe!...Ainda ganhei, confesso, uns tostões com as minhas gravuras, havia gentinha com dinheiro fresco que comprava tudo o que fosse obra de arte, naquela época, em que começou o frenezim de investir em arte e ganhar dinheiro... A começar pelos amigos do meu "padrinho e mecenas" de Lisboa, que conseguiu impingir alguns trabalhos meus a um ou outro colecionador; coitado, eu, casapiano, fui para ele o filho que ele nunca teve, mas o contrário infelizmente não era verdadeiro.)

Enfim, aprendiz de Renoir, aprendiz de pintor, isso, sim, podes escrever, que o sonho naquele tempo não pagava imposto!... E esse sonho começou Casa Pia: devo-lhes esse favor, aos mestres que me ensinaram os rudimentos  de desenho e pintura nas oficinas, que ficavam lá por detrás dos Jerónimos.... Ainda hoje estou grato à Casa Pia por me ter acolhido e educado. Mas lá também me faltou o amor  de pai, coisa que eu nunca tive na vida.

Claro, fiquei inchado que nem um peru de Natal quando entrei em Belas-Artes. Ainda dei essa alegria à minha querida mãezinha e aos meus pobres avós. Infelizmente, nunca cheguei a acabar  o curso, a tropa cortou-me as pernas. 

Na minha cédula pessoal, podia-se ler um nota a lápis já meio sumida. Letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre ou de conservador do registo civil. Qualquer coisa como "mais uma boca com direito a senha de racionamento". Milho, açúcar, farinha, azeite, café, etc., que tinha que se ir à vila de Cinfães buscar, serra abaixo, serra acima… Uma porrada de quilómetros a pé ou de burro... Ou então na loja do "Francês", na minha aldeia, tudo mais caro, porque aqui não havia concorrência...

Havia racionamento de géneros por causa da guerra, a II Guerra Mundial. Lembras-te ? Talvez não te lembres, nasceste já depois, em 47, não apanhaste esses tempos que foram duros para a minha mãe e os meus avós, e para todos os demais pobres da minha aldeia. Tu estavas muito mais perto da capital, no Oeste Estremenho, imagino que lá se vivia melhor, à beira-mar.

Nesse mesmo ano em que eu nasci, filho de mãe solteira e "de pai incógnito" (lá estava escarrapachada a infamante expressão, originando um estigma social que me perseguiu até ir para a tropa, ou me persegue ainda hoje!), acabava de regressar da Índia (da Índia portuguesa, como então se dizia, englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) o filho do "Francês", o cabo chefe ou regedor da aldeia e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 

Seria depois, esse filho do "Francês",  o primeiro rapaz da terra  a ir estudar para a Universidade. Casou-se no Porto, ainda estudante, teve um primeiro filho em 1947 ou 1948, o Gustavo.  E no Porto acabaria por estabelecer-se como advogado.

O "Francês" tinha uma pensão do ministério da guerra. Fora gaseado na Flandres. Regressara herói medalhado de La Lys. Admirava Pétain, Sidónio Pais, Gomes da Costa, Salazar e Franco. (Só não gostava dos "boches"...).  Vociferava contra "a corja dos republicanos e dos 'rojos' que tinham destruído a Espanha". Berrava, igualmente, contra a malta do "reviralho", os que eram contra a "situação", como então se dizia. Mas não havia malta do "contra", na minha aldeia, a não ser um pobre diabo, sem eira nem beira, que ficava na corte dos animais, e que era meio atolambado, sobrevivendo à custa de pequenos recados e fretes que ia fazendo, a este ou aquele, e que no largo da escola, onde se hasteava a bandeira nacional,  dava vivas à  República no dia 5 de Outubro!

O regedor era o meu... "padrinho de batismo"! Por favores que lhe deviam (e deferências que lhe prestavam) os meus avós e a minha pobre mãe!... Nunca soube quais. Nunca quis saber. Ou melhor, acabei por saber, ainda muito novo: havia quem na aldeia insinuasse que ele era o meu pai biológico... Na escola, chamavam-me "o filho do Francês", o "zorro", o filho bastardo... 

Nas aldeias, toda a gente sabe tudo (ou quase tudo) da vida de todos. Mas eu ia aos arames, cheguei a andar à porrada na defesa do bom nome da minha mãe e dos meus avós (que, coitados, eram mal vistos na aldeia pelo "pecado da filha").

A minha mãe tinha sido criada de lavoura na casa do "Francês", desde muita nova, ao longo dos anos da guerra... Solteira, menor, com 18 anos, apareceu grávida, teve-me a mim em agosto de 1945...Uma mulher, muito bonita, e sobretudo de enorme coragem  e capacidade de sofrimento, como muito poucas que conheci na vida: recusou-se a casar à pressa, só para salvar as aparências, não acatando o "prudente e caridoso conselho"  do padre de Cinfães ou de Resende (já não me lembro), que ainda era aparentado com os meus avós... 

O escândalo foi rapidamente abafado.  A minha mãe desapareceu das vistas da aldeia.   Por uns tempos refugiou- se na casa de uns parentes no concelho vizinho, Resende. Casaria, sim, mais tarde, "de livre vontade",  com um rapaz bastante mais novo, pastor de cabras, o "cabreiro", de quem teve mais filhos, meus meios-irmãos (com quem, de resto, pouco convivi, e  de quem perdi praticamente o rasto, lamento dizê-lo).

Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, passei a detestar as relações de clientelismo, dependência e nepotismo (e de hipocrisia) que vigoravam na minha terra, uma aldeia da serra de Montemuro, a meia encosta, uma aldeia de pastores e de rendeiros que não era muito diferente de tantas tabancas, fulas e balantas, por onde eu haveria de passar, depois, na Guiné…


Gostava que ainda chegasses a conhecer a minha aldeia, hoje completamente diferente e com pouca gente, muito menos nova, Não sei se terei coragem para lá levar-te. Disseste-me que de Candoz, no Marco, a que chamas a "tua tabanca", se via Cinfães, do outro lado do rio Douro, com a serra de Montemuro à tua frente... Em agosto, no teu "querido mês de agosto", quando vieres de férias,  bem poderemos lá dar um salto!…

Eu, confesso, que ainda gostaria de regressar, pela última vez antes de morrer, às minhas raízes telúricas, mas tenho uma relação de amor-ódio com a terra que me viu nascer, como deves imaginar.

Voltei lá uma meia-dúzia de vezes, se tanto, depois de regressar da Guiné, a última das quais, para enterrar a minha pobre mãe, nos anos 90... Morreu cedo coitada, de doença oncológica, com sessenta e poucos anos. E os seus filhos, meus meios-irmãos, muito mais novos do que eu, são-me completamente estranhos, conheci alguns de vista, no enterro da nossa mãe, mas já não seria capaz de os reconhecer se os encontrasse. Foram à vida, espalharam-se pelo mundo. Tal como eu, a partir dos 10 anos.

Havia sempre festa na aldeia quando um filho regressava das colónias. No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. O filho mais velho e herdeiro do "Francês", estava a chegar em meados de 1945, no final da guerra, tinha eu uns escassos meses, e uma ama de leite, a minha mãe ficara sem peito, talvez devido a depressão pós-parto e ao alarido social  que provocara a sua gravidez de rapariga solteira... Os meus avós maternos, com quem fui criado, é que me contaram  isso, mais tarde, quando eu já tinha entendimento para as coisas da vida e do mundo...

Quando puto, imagina!, ainda sonhei ser missionário, e ajudar a converter os pretinhos lá nas missões do Ultramar. Problemas de pulmões impediram-me de seguir essa vocação precoce.  Estás-me a imaginar de sotaina branca,  longas barbas pretas e óculos de tartaruga,  não estás ?! E acabar, mártir e santo, frito no caldeirão de uma tribo de canibais! Ah!, como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!... 


Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça, por certo o padre, a catequista ou a professora, o pregador da quaresma que vinha de fora... Ou o até próprio regedor... Mas a serra de Montemuro, que abarca Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire e Lamego, deu muita gente para as colónias, as missões e, depois, para a guerra, mas também para a emigração. Eu próprio estava longe de imaginar, no verão de 1967, que um ano e tal depois estaria a desembarcar em Bissau... como combatente!

No início de 45, quando nasci, os tempos ainda eram bem duros. Escondia-se, na serra, nas fragas, nas minas de água, o milho, o centeio, os cabritos e os anhos, dos fiscais do Governo. Como sempre se escondera o pão (e o gado), da vista de todos os invasores,  usurpadores e bandidos. Contavam os meus avós, maternos, esses com quem vivi até ir para a Casa Pia, em 1955, depois de feita a 4ª classe com distinção. 

Mesmo assim fazia-se festa rija quando os nossos rapazes regressavam das guerras do Ultramar, ou alguém, mais raramente, voltava do Brasil... para construir casa e casar!...

O foguetório não era como hoje, em que se gastam rios de dinheiro... Nesse tempo era um luxo. Lançavam-se uns petardos. Pólvora seca. Não havia dinheiro para nada. Só no São João, que era a festa anual do concelho. Era a altura em que se fazia algum graveto. Os cabritos e os anhos do São João ajudavam a compor o magro orçamento das gentes da minha aldeia, incluindo os meus avós.  Não havia dinheiro, pura e simplesmente. Não me recordo,  até aos meus dez anos, de ver uma nota de 20, 50, muito menos de 100 escudos. Só tostões, pretos, encardidos como as mãos, sebentas e rugosas, daquela gente. 

Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro. Os cabritos e os anhos. Ou até nos barcos rabelos, embarcados no ancoradouro de Porto Antigo. À boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido. Ainda não havia as barragens, e o Douro era belo, puro, duro e selvagem, com um percurso cheio de cachões… Hoje está completamente amansado, como tu bem sabes, e já aqui não chegam a lampreia e o sável.

O "Francês", meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. O homem mais rico da aldeia, dono de casas e terras  compradas ao desbarato na crise dos ano 30 e 40.  Era, além disso, negociante de gado arouquês, com clientes no Porto e até em Lisboa Mas antes  ganhara muito dinheiro no garimpo e no contrabando do volfrâmio, com um sócio, seu antigo camarada de armas, a quem também chamavam "Francês", o "Francès de Moncorvo", por ter andado na guerra e ser natural daquela terra transmontana.


Tinha fama de ser violento8 e andava sempre armado, o meu padrinho. Os caminhos da serra não eram seguros na época. Percorria os concelhos à volta, de Resende a Castro Daire, numa velha camioneta Ford. Foi o primeiro a ter transporte automóvel. 

Além disso, era o dono da única mercearia da aldeia, com um anexo, misto de café e tasco, onde se podia ouvir a Emissora Nacional, através do único rádio existente ali nas redondezas… Vendia a fiado. E ele próprio era o "carteiro" e  lias cartas e os telegramas para os analfabetos.  

Não havia luz elétrica, nem muito menos ainda a barragem do Carrapatelo, mas ele já tinha gerador... Ia lá a casa o povoléu, parolo,  para ver (e, de olhos arregalados,  benzer-se!...) aquela máquina que "parecia coisa do demo", que transformava a noite em dia...E tinha também o único telefone da aldeia... 

Por todas estas razões, mais o rol dos fiados, era o homem mais importante, mais poderoso e sobretudo temido e venerado da aldeia... Todos, de uma maneira ou doutra, lhe deviam favores e precisavam dele...

Ainda por cima, dava-se bem com a gente graúda de fora: por exemplo, um tal "mandjor" de Porto Antigo, que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto, e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época, a nível do distrito de Viseu. Não sei, nunca o conheci, nem posso confirmar.

Ao que parece, a esposa desse tal  major, a "Fidalga", mandava cartas diretamente ao Salazar, contava a minha mãe, a pobre da minha mãe, sempre atenta a (e não menos temerosa de) os fios com que se costurava a manta do poder.

Nem por isso o meu padrinho, que era militante da União Nacional (coisa que eu não sabia o que queria dizer), e amigo dos presidentes das câmaras da região e do governador civil do Porto, metera uma cunha para livrar o filho da tropa, durante a II Guerra Mundial. Honra lhe seja feita!... O rapaz esteve em Goa, como expedicionário, com muito orgulho do pai e maior mágoa da mãe (a quem chamávamos a "Madama", com reverência e despeito, para mais sendo de fora).

Ele, o meu padrinho de batismo, sempre teve um grande carinho por mim. Ou, talvez melhor,  algum discreto  carinho por mim: chegava a beijar-me na testa, mas nunca em público. Aos 10 anos deixei de o ver... Ele, o padre, a professora da escola primária e os meus avós arranjaram maneira de me mandar para a Casa Pia em Lisboa, para "estudar e aprender um ofício "... (Ainda pensaram no seminário, mas ficava mal a um futuro padre ter sido concebido "em pecado".)

E foi em Lisboa que arranjei (ou me arranjaram, já não sei como ) uns novos "padrinhos", um casal sem filhos, que me "adotou" e me "protegeu" até à minha ida para a tropa..., e que tu chegaste a conhecer na sua casa, em  Benfica.

Ao fim de semana, eu saía da Casa Pia, em Belém, apanhava o elétrico,  e ia ficar na casa deles, uma vivenda, em Benfica, perto do jardim zoológico. Depois de fazer o 5º ano, aos 16 anos, passei a viver com eles, fiz o liceu e matriculei-me nas Belas-Artes. Ele era um quadro superior do Ministério das Corporações e Previdência Social. Sempre o tratei cerimoniosamente como "padrinho". Nunca houve adoção legal, porque eu já não tinha idade para isso.

Já doente, com setenta e tal anos, o meu outro padrinho, o da terra natal, o de batismo (meu hipotético pai biológico!),  soube da minha partida para África em finais de 1968, depois de eu ter chumbado em Belas-Artes, por ser cábula e andar na má vida. 

Eu nunca lhe pedira nada, nem ele nunca me dera nada, nem sequer o tradicional folar da Páscoa que qualquer padrinho, mesmo pobretana, oferece a um afilhado. E muito menos lhe iria pedir agora que me safasse de ir parar à Guiné. Sempre tive o meu orgulho. Inclusive proibi a minha mãe e os meus avós, ainda vivos, de o fazerem por mim. Nem ele era homem para aceitar um pedido desses,  mais do que humilhante, inconcebível, para ambos. Nem sequer ao "padrinho" de Lisboa eu meti qualquer cunha (a não ser a entrada no SNI, mas isso foi até iniciativa dele, se bem recordo a esta dostância).

Tal como o "Francês" (nunca o tratei pela alcunha!, era "sua benção, padrinho" e pouco mais, sentia-me inibido na sua presença), eu tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada, enfim, da coerência. Coisas que hoje não vejo ser valorizadas pelos mais novos, por exemplo os meus filhos e sobrinhos.

Quando voltei da Guiné, evacuado, no 2º semestre de 1970, ele já tinha morrido, de um AVC isquémico. Ele e o Salazar ( que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente, mas de quem era um admirador acérrimo e acrítico).

O seu maior desgosto era um dos netos que devia seguir as peugadas do pai (como te disse, advogado no Porto, e meu putativo irmão, mais velho)... Numas férias de verão, em meados dos anos 60, o Gustavo ficou em Londres a lavar pratos. No final desse ano já estava na Suécia, em Lund, aclamado como "herói", por ter fugido à guerra colonial... Fazia 18 anos, era dois anos e picos mais novo do que eu, já tinha dado o nome para a tropa.

Terá sido considerado  refratário pelas autoridades militares.  Como estava a estudar na Faculdade de Direito de Coimbra, já no 2º ano, beneficiava do adiamento da data de incorporação, tal como eu, de resto. Aproveitou para dar o "salto", numa viagem de intercâmbio universitário, segundo me constou. 

Eu sei que nessa época ninguém escapava à tropa e depois   à guerra, até filho de general era mobilizado  (era o que se dizia). Nunca conheci nenhum general,  mas imagino que, na pior das hipóteses, os filhos dos generais ficavam na guerra do ar condicionado: em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques… 

Nunca conheci nenhum, minto: conheci o Spínola (o Schulz já não o apanhei), mas não sei se ele tinha filhos em idade de ir para a tropa, julgo que nunca teve filhos.

O avô, o "Francês", pelo menos publicamente, viu na traição do neto uma desonra para a família (e para a terra, que considerava, abusivamente, uma extensão da família).
 
– Coimbra, a república dos estudantes jacobinos, dera-lhe a volta à cabeça  lamentava-se ele.

 Para mais era o seu neto querido, o mais ladino, o mais  vivaço, o mais parecido com ele.

– Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça –  concluía o meu padrinho, quando o fui visitar, nas minhas férias no verão de 1969.
 
 Sua bênção, padrinho   foram as primeiras palavras que lhe disse, desde há anos…

– Já o pai não prestava, era um fraco – arrematava  ele, entre dois ataques de tosse. 

– As melhoras, padrinho !– foram as últimas palavras que eu lhe dirigi… 

Julgo que eram sinceras, que nada tinham de cínico. (Mas como eu tanto gostaria de lhe poder chamar pai, se ele tivesse tido a coragem, nessa ocasião única, e irrepetível, de me chamar filho!...)

Puxou então de uma nota de 100 paus (!), e disse-me que era "para a viagem de regresso à Guiné, meu rapaz". Fiquei banzado, nunca me tinha dado nada, nem um rebuçado ou um pirolito... Quis recusar, mas ele sentiu-se ofendido...

Impressionou-me a sua decadência, a sua descida do pedestal, acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… A saúde a falhar, a família a desmoronar-se, a Pátria a esvanecer-se, o Império a ruir, a aldeia a minguar com a emigração… Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, que era para ele o coveiro do Estado Novo e do Império. 

Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois, respeitado, por certo,  mas não amado. Durante décadas fora pai, padrinho, cacique e patrão, um verdadeiro "capo", um "padre padrone" (como dizem os italianos), um cabo chefe de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal… que até então  pouco mudara,   apesar das mudanças de regime.

Gustavo, o neto do meu padrinho da aldeia, ainda me escrevera um dia para o SPM de Cacine.  Éramos amigos e, provavelmente parentes: eu podia ser tio dele, mas tinha desistido há muito da ação de investigação da paternidade "post mortem"!... (Mais por respeito pela memória da minhã mãe, tenho que o confessar; se por um lado, eu bem gostaria de ter um pai como toda a gente, por outro repugnava-me a ideia ter como meu progenitor o violador da minha mãe.)

Ou melhor, éramos "mais vizinhos do que amigos", eu e o Gustavo: tínhamos brincado juntos até aos 10 anos, a idade da inocência, nas férias de verão,  Ele estudara em colégio particular, e vivia em zona fina, na Foz, no Porto. Só quando entrou para a Universidade, é que se mudou para Coimbra. Não gostava da aldeia do avô e do pai, que achava terra de gente "parola". Mas ia lá algumas vezes, com os pais, nas férias grandes, no Natal e na Páscoa. De carro.

 Nessa altura (até eu entrar para a Casa Pia de Lisboa) brincávamos por entre as fragas que cercavam a aldeia. Havia aquela cumplicidade de putos, pesem embora as diferenças sociais e até de idade. Ele era o "menino", que comia ovos estrelados e bebia leite,  e eu o "catraio", alimentado a caldo e a broa... Nós, os putos da aldeia,  éramos a "canalha".

Agora, em Lund, na Suécia, militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer e angariava dinheiro para o PAIGC e para apoio aos "exilados políticos. refractários e desertores da guerra colonial". Dinheiro que, no caso do PAIGC, tanto servia para comprar livros e medicamentos como armas e munições, questionava-me eu. Irritou-me a sua missiva, cheia de metáforas, clichés, prosápia, slogans, frases pomposas, retiradas do livrinho vermelho do execrável camarada Mao. (Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo.)

As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC, algo quixotescas, guevaristas, românticas (inculcadas nas Belas Artes), desvaneceram-se com os imperativos da camaradagem na caserna e com a prova de fogo na frente de batalha, quando cheguei à Guiné. Não se podia objectivamente estar "do lado de cá", fardado de camuflado, e equipado com a G3, e ser-se um simpatizante, vagamente romântico, mesmo quixotesco, dos gajos do "outro lado de lá", daqueles que nos combatiam (e nós combatíamos)… E que feriam e matavam os nossos camaradas e a população que estava do "nosso lado".

Além disso, devo dizer-te, chocavam-me os métodos de terror usados pelo PAIGC contra os fulas (e os demais que não alinhavam com eles), quer na zona leste quer no sul (que também conheci)… Tinha alguns amigos guineenses, entre eles, fulas, guias, picadores e milícias, desde Nova Lamego até Bafatá, e depois em Cacine…

Nunca lhe respondi, ao Gustavo. Achava-o um puto mimado, egoísta, oportunista e provocador. Em suma, um cabrãozeco. Não me admirei de o vir a encontrar, depois do 25 de Abril, num dos partidos do arco do poder. Andará hoje por Bruxelas, segundo me disseram, assessor de um qualquer político da nossa praça, com assento no Parlamento Europeu ou funcionário na Comissão Europeia. Tinha-se casado com uma sueca. Mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. (Foram, por certo,  amores de verão.)

Confesso-te que, secretamente, ainda lhe cheguei a invejar a sorte, ele ali no bem bom da Suécia e das suecas louras, de olhos azuis, que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos…... E eu a gramar a pastilha de uma comissão de serviço militar na Guiné!... (Bolas, qual comissão!... Eu fui para um teatro de guerra!)

Achei que o mundo não era justo.  Mas mesmo assim não me podia queixar. Estava vivo. E os primeiros tempos, passados entre Piche, Nova Lamego e Bafatá, até nem foram maus de todo. Ainda fiz o gosto ao dedo e pintei alguns quadros, em acrílico, que até tiveram um ou outro comprador, a preço simbólico. Outros ofereci a gente conhecida e amiga, incluindo uma família de comerciantes libaneses cuja casa costumava frequentar, e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar. (Eram bonitas,  as libanesas.)

Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta, isto é, da aldeia de Montemuro. da Casa Pia, do bairro de Benfica e, depois, do leste da Guiné … Montmartre fora apenas uma miragem... Enfim, uma deceção, a minha vida!... Nunca me perdoei, de resto, ter estupidamente chumbado nas Belas-Artes e de ter sido chamado, prematuramente, para a tropa, acabando,  para azar meu,  nas matas e bolanhas da Guiné.

Nunca falei disto a ninguém, passei por uma grave crise existencial nos últimos meses da comissão, ainda tive, uma vez, uma única vez, depois de ter despejado uma garrafa de uísque, a pistola Walther apontada ao céu da boca. Senti a atração da morte, a vertigem do nada, a comiseração da autodestruição, a autopiedade, a autocompaixão... Mas, mesmo anestesiado, era demasiado cobardolas para resolver, com um tiro mortal, as minhas contradições "pequeno-burguesas" (dirias tu), agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, que tu  conheceste, no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, em 1967, a bela menina-família do Funchal, que estava a estudar serviço social, ali no Campo de Santana, em Lisboa, tinha-me trocado por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… Ainda trabalhara uns tempos na Misericórdia de Lisboa, num dos projectos de realojamento de população de um bairro de lata, antes de regressar à Madeira (creio que no Natal de 1969). 


Não esqueço a última carta que ela me mandou, de despedida, no início do ano de 1970 (já não posso precisar o mês), a dizer que ia para a Venezuela, para casar. (Estava já eu em Cacine, no sul da Guiné, sei que era a época das chuvas.) 

Era um encanto de miúda, delicadíssima como uma orquídea, linda de morrer, com pele de veludo e blusinhas de renda, que mal tapavam os seus deliciosos marmelos, mas com pouca ou nenhuma margem de decisão em relação à sua vida pessoal e sentimental.

O clã é sempre quem mais ordena. O pai, tanto quanto me apercebi, seria um homem do regime, da média ou média-alta burguesia funchalense, mas com problemas financeiras, por negócios, mal sucedidos, na área do import-export, bananas, frutas tropicais, flores, eletrodomésticos e coisas assim do género. Família numerosa, muitos manos, muita cagança e estaleca a menos. 

Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora. Nunca pensei, de resto, em pedir-lhe a mão. Muito menos depois de conhecer o paraíso da Guiné. Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão. Namorávamos apenas... Ou trocávamos cartas e aerogramas. Gostava da sua companhia e do seu perfume. E ela fora inclusive ao meu embarque, no Cais da Rocha Conde de Óbidos. Ficou chorosa, mas não de coração destroçado. (Foi aí que me convenci que ela nunca iria esperar por mim.)

Fiquei surpreendido quando um furriel de uma companhia madeirense, meu conhecido, por sinal do Funchal e das relações da família da Flora, e que sabia da nossa história, veio-me lembrar que seria bom decidir-me e pedir-lhe a mão em casamento, de acordo com os usos e costumes da terra... 

– Porque  há mais pretendentes na fila, à porta de casa!...  

Estávamos a comer umas ostras e a beber umas cerveja, numa esplanada em Bissau, talvez no "Pelicano", já não me lembro. Viera a uma consulta de estomatologia. Foi um choque. Fiquei engasgado. Não estava preparado para tomar nenhuma decisão, e muito menos naquela parte do mundo, no cu de Judas. Muito menos para decidir quem deveria ser a mãe dos meus filhos. 

Estava na Guiné, estava na guerra, sem saber o que fazer da minha vida, sem saber sequer se iria chegar à meta, que era cumprir a minha pena de 21/22 meses, de “perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”, a que fora condenado pelo único crime de ser português, natural de Cinfães, filho de mãe solteira, e de pai incógnito, o filho da puta que a violara… e que, cinicamente, se oferecera para ser o meu padrinho de batismo. 

No mínimo, a minha pequena grande ambição, e a única,  era chegar inteiro à meta, de novo ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, donde havia partido... Inteiro, de cabeça, tronco e membros, e com os tomates no sítio. Ainda tentei telefonar-lhe, à Flora, de  Bissau (fiquei lá uma noite nos correios à espera de ligação para o Funchal). Em vão. As ligações com a Madeira (e para a Metrópole) não eram fáceis. Desisti. Sempre fui, afinal, um merdas, um fraco, um falhado. Nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido com a minha encantadora namorada madeirense que, cansada de esperar, acabou por me trocar por ... um padeiro venezuelano rico! (Hoje não a condeno, nem sei  se está viva e é feliz; nenhuma mulher  ficava à espera de um gajo que ia para a Guiné e que,  se regressasse vivo, seria sempre um teso de um artista plástico!)

Já agora, e se ainda tiveres pachorra para me ouvir, conto-me o resto da história, já que me apanhas em maré-alta de (in)confidências...

Acabei, já em Lisboa, por não conseguir voltar a estudar  (não me perguntes porquê, não tinha cabeça ) e por tornar-me bancário (o primeiro emprego que arranjei, ali à mão, não longe da sétima colina, aonde tive a  sorte de descobrir umas águas-furtadas para morar). 

Infeliz, acabei também por me casar,   na primeira oportunidade, com uma galega de Orense, que vivia no bairro, e que nunca chegarás a conhecer, pela simples razão de que já fomos cada um à sua vida… É apenas a mãe dos meus dois filhos, um deles, o rapaz, a viver em Vigo, e cada vez mais galego como a mãe. (Ainda por cima foi ela que pediu o divórcio!, a minha ex, o que feriu o meu orgulho de pobre macho lusitano.)

Mas ainda antes de tudo isso , meu amigo,  já te devida ter falado do rol de desgraças que me aconteceram na Guiné. A descida aos infernos. A cafrealização, à maneira do Rimbaud, dirias tu. A porrada do segundo comandante no Gabu. A ida, por castigo, para o sul, para Cacine, em rendição individual. O tiro de Kalash que me mandou uns largos meses para o Hospital Militar da Estrela, e que me podia ter deixado tetraplégico.  Enfim, poupo-te os pormenores macabros, um dia contar-tos-ei, se ambos tivermos tempo e pachorra, eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos guardados no armário da minha memória…

Esqueci a Guiné durante décadas. Ou tentei esquecer a Guiné (o que é difícil quando te vês ao espelho e tens uma bruta cicatriz abaixo  das costelas, e que só por milagre não me atingiu nenhum órgão vital). 

Esqueci a Guiné... até ao dia em que, não sei como nem porquê, vi na Net o teu nome, a tua cara, os teus óculos, associado a uma terra, um dos poucos sítios de que eu até guardava boas memórias, da minha breve passagem por lá, em trânsito para Bissau… Toda a malta do leste tinha que passar por lá, por Bambadinca... Eu sei que fiquei lá umas duas ou três  noites, à espera do "barco turra", para Bissau quando fui de férias. 

É verdade, desencontrámo-nos na Guiné. (Estarias tu ainda em Contuboel, pelo que me contaste ao telefone.) Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado, na Guiné, podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro ,  no 2º semestre de 1969, nomeadamemnte em Bafatá, onde devemos ter estado algumas vezes, no mesmo dia e na mesma hora, embora eventualmente em sítios diferentes, mas muito perto um do outro. 

Achei piada ao teu jogo de palavras, quando, ao telefone, me respondeste ao meu olá: “o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te para marcarmos um encontro e matar saudades. Com mais tempo e vagar. Se ainda formos a tempo... É coisa que, de resto, me vai faltando, o tempo. Cada vez mais. Ando agora com o frenesim (chama-lhe compulsão,  se quiseres), das viagens, por terra, ar e mar: só para saberes, já visitei mais de sessenta países dos cinco continentes... E ainda me faltam dois terços do planeta...

Tenho pressa de viver, à medida que eu vejo os meus parentes, amigos e conhecidos lerparem, naquela idade em que ainda há a ilusão de que temos o resto da vida toda à nossa frente. Eu já não tenho essa ilusão:  vivo o dia a dia!... "Carpe diem", é o meu lema. Tornei-me cínico, cético e hedonista.

Preciso de ganhar coragem. Confesso que tenho medo de revisitar o passado. Tenho medo das armadilhas do passado. E, por agora, ando a recuperar o tempo perdido, depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco, a lidar com o dinheiro dos outros. (E a fingir, à noite, que era um promissor artista plástico.) Aceitei vir-me embora do banco, com uma indemnização. Ou mandaram-me embora, para ser mais correto. O que foi humilhante: afinal, eu estava lá a mais!

Até lá, ao nosso próximo encontro, se formos vivos, um abraço, como vocês dizem, do tamanho do nosso Rio Geba.

Assina este relambório o teu falhado amigo pintor, e, pior do que isso, frustrado companheiro da viagem "a salto", até Paris, viagem que nunca passou de um devaneio de umas tantas tardes de verão em que estivemos, juntos, em 1967, na casa dos meus "padrinhos" em Benfica e no SNI, o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, a preparar a exposição que foi a minha "vernissage", entre copos de ginjinha e amendoins. Recordo esse tempo com muita saudade, muito mais do que a Guiné.  Tenho saudades de ti, da Flora e das suas amigas do Campo Grande.

Até sempre, amigo (e camarada)!


Teu F..., o Renoir de Montemuro.


PS1 -  E já que falei o meu "padrinho" de Lisboa, que tu conheceste, embora mal (era um homem irascível e autoritário, quando se zanagava), tenho a dizer-te que ele foi, pobre diabo, uma das primeiras vítimas do 25 de Abril: trabalhava na Praça de Londres, no Ministério das Corporações e Previdência Social, foi saneado, pela Comissão de Trabalhadores, por ser assessor de um "fascista", entrou em depressão, tentou cometer suicídio... Não morreu logo, ainda esteve uns dias nos cuidados intensivos do Hospital de São José.

Confesso que fiquei desolado: nunca foi o substituto ou o sucedâneo do pai que eu nunca tive,  mas foi, para mim, um  bom homem, um amigo, um protetor... À maneira dele, quis sempre o melhor para mim. Estou-lhe grato por me ter ido "buscar" à Casa Pia, me ter acolhido na sua bela casa,  me ter dado uma "família normal"... Foi graças a ele que continuei a estudar e entrei em Belas-Artes. A minha "madrinha", essa, ainda aguentou uns anos, morreu de abandono e demência... Era professora de liceu...

Nunca mais voltei ao Rossio para  beber uma ginjinha… E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para o seu lado... Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto, quando voltar a Lisboa. Afinal fiquei com uma pensão de Deficiente das Forças Armadas, a par da reforma do banco. Vivo sozinho, e com poucos luxos, tirando as viagens. (#)


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(#) Duas notas do autor:


(i) Ainda estou para beber a tal ginjinha, prometida  pelo meu amigo F..., "aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre"... Nunca mais deu sinal de vida, depois que falámos longamente ao telefone, há uns anos atrás. Deve ter mudado de mail e de telemóvel. Sei que adora(va) viajar. E que tem(tinha) uma filha, casada, arquiteta, a viver nos arredores de Paris (além de um filho em Vigo, com quem não falava). Enfim, deve andar por aí a dar o resto da volta ao mundo... Ou a descobrir novos mundos (se é que ainda os há)...

Mas perguntar-me-á o leitor mais atento ou curioso: "como é que, afinal, o conheceu e onde, a esse tal rapaz de Montemuro"? A resposta é simples: no Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã, no verão de 1964.. Tinha eu 17 anos. Os "padrinhos de Lisboa" costumavam lá alugar uma casa de verão e adoravam a lagosta suada do Zé Felipe... Foi lá que eu descobri o seu talento artístico de ex-casapiano...  Passámos a corresponder-nos. Até que veio o inesperado convite, em 1967,  para lhe escrever o catálogo para  a exposição no SNI.


(ii) Um bilhetinho para o F...

Meu caro F...

Não tenho a certeza se alguma vez vais ler este texto, que resume o essencial que eu sabia de ti mais o que passei a saber,  na nossa última (e única) conversa ao telefone, em 2008. Conversa que reconstitui, tendo sido, tanto quanto possível, fiel à tua oralidade, tão expressiva quanto torrencial.

Mas sempre te direi que ninguém é feito de uma só peça, nem muito menos a nossa história (individual e coletiva) é escrita a preto e branco.

Foi o nosso autorretrato possível (ou a "selfie", como se diz agora)  para este meu possível livro de "contos  com  mural ao fundo"... 

"O passado (e nomeadamente, o meu tempo na Guiné) está morto e enterrado", acho que foi a tua resposta  quando eu insisti em que escrevesses umas notas sobre esse tempo, para "memória futura"...  Percebi que és daqueles casmurros que puseram (ou gostavam de poder pôr) uma pedra (tumular) sobre o passado...

Sabes onde vivo. Se (ou quando) passares por aqui perto, faz-me uma visita, dá -me um toque. Eu, pessoalmente, ficarei radiante. Por mim, por ti, pela nossa velha amizade de juventude e os nossos sonhos juvenis. E até pelo "carimbo da guerra no nosso passaporte da vida"...

Como a vida, afinal, também é feita de surpresas, talvez a gente ainda se encontre, mum qualquer dia do meu querido mês de agosto, nas Portas de Montemuro... E a propósito, nunca me chegaste a dizer qual é a tua aldeia. (Conheço algumas, mal: Alhões, Boassas, Bustelo, Gralheira, do lado de Cinfães... E gosto de ir tomar um café no parque de lazer  do rio Bestança em Pias, sitio onde  tu  seguramente nunca foste, foi inaugurado há uns anos). 

Da minha tabanca de Candoz até à tua tabanca de Montemuro, do outro lado do rio Douro, deve ser  apenas a distância  de um tiro de obus 14. (...)

© Luís Graça (2009). Nova versão, revista e melhorada, em 31/10/2023. 
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Nota do editor  L.G.:

(*) Último poste da série > 22 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24781: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (11): E na hora da nossa morte, ámen!

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24807: Notas de leitura (1629): "Memórias de um Combatente na Guiné de 69/71", por Diogo Aloendro; 5livros.pt, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Um relato memorial de quem passou a sua comissão militar na região de Nova Lamego, conta os antecedentes, como se formou antes de ir para a guerra, desvela como aqueles pontos da região Leste passaram da acalmia à turbulência. É uma narrativa serena, não há para ali prosápias nem arroubos heroicos, o que o António Henriques de Matos desejava era preparar os seus soldados para terem a quarta classe, foi um sucesso completo. Manifesta um pleno orgulho em ter concluído em regime noturno o curso liceal e a licenciatura em economia, depois da vinda da Guiné, trabalhou num banco prestigiado mais de 40 anos, chegara a hora de pôr por escrito a sua vida militar e as suas recordações do Gabu.

Um abraço do
Mário



Memórias de um combatente na Guiné (1969-71), por Diogo Aloendro

Mário Beja Santos

Diogo Aloendro é pseudónimo de António Henriques de Matos, fez parte do BCAÇ 2893, pertenceu à CCAÇ  2618, e escreveu agora as suas memórias, 5livros.pt, 2021. Dá-nos conta da sua vida de furriel atirador desde a recruta nas Caldas da Rainha, a especialidade em Tavira, a passagem pela Amadora, a ida para Chaves formar batalhão, e depois toda a sua comissão na região de Nova Lamego. Deixa-nos belos parágrafos de profundo afeto por quem o tratou bem em Lisboa, para onde emigrou aos quinze anos, não esqueceu as vicissitudes da sua formação militar, as novas formas de camaradagem, largados na Serra do Caldeirão com alguns instrumentos de orientação e rações de combate, chuvas inclementes, e guardou memória de um episódio de terem andado por sítios inóspitos, ali estava todo encharcado e apareceu alguém a convidá-lo a entrar para secar a roupa e descansar um pouco, uma senhora convidou-o a ir ao quarto do filho e vestir um pijama. Observou que o quarto estava impecavelmente arrumado e com a cama feita, tinha numa das paredes uma moldura de um soldado, vestiu o pijama, entregou à dona de casa a farda encharcada, comeu um caldo à mesa com o casal. O filho tinha falecido havia dois anos, morto em combate na Guiné.

São parágrafos tocantes:
“O quarto mantinha-se tal qual ele o deixou na última noite que ele lá dormiu. Não estávamos preparados para tamanha desgraça. Levaram-nos o nosso filhinho que era tudo o que tínhamos Como poderemos suportar esta dor, sabe explicar-nos?
– Ninguém sabe explicar – desabafava a mulher – numa voz sofrida. Ninguém sabe, acrescentava, como que a pensar alto. Soletrava estas frases com os olhos tristes já sem lágrimas para verter, enquanto o seu homem a aconchegava no ombro pedindo-lhe, carinhosamente, força e ânimo para o ajudar também a ele, a suportar o desgosto.”


Ele não podia aceitar dormir na cama do filho, acabou por ir descansar num barracão onde havia palha no chão. E na manhã seguinte juntou-se aos seus camaradas para continuar a subir e descer na Serra do Caldeirão. Concluída a especialidade, foi enviado para Beja, depois para o Regimento da Infantaria 1, na Amadora, mobilizado para a Guiné foi formar batalhão em Chaves. Continuava a estudar, queria concluir o sétimo ano.

Em novembro de 1969 chega à Guiné. Descreve Nova Lamego, é ali que está a sede do batalhão:
“Era uma pequena cidade implantada ao longo de uma rua principal, que se confundia com uma estrada, à imagem do que aconteceu na formação das nossas aldeias e vilas. Aqui se encontravam algumas casas de betão, a sede da Administração, composta pelo Comando Administrativo. Para além deste edifício, havia uma casa comercial, um cineteatro e o quartel militar, um edifício colonial de dois pisos, que servia de instalação ao Comando do batalhão. Contíguo a este edifício na parte de trás, existia uma vasta área onde se localizavam as casernas e alguns espaços, como sendo um campo para jogar futebol de salão. Nestas casernas se instalaram duas companhias. Vivia-se então um estado de acalmia.
Não fossem as preocupantes notícias, trazidas pela tropa que aportava a Nova Lamego, onde se vinham abastecer, ou de passagem para os respetivos aquartelamentos, nada se passava naquele paraíso”.

Lê, escreve e estuda. Tendo ficado órfão de pai aos oito anos de idade, dedica-lhe uma elegia, uma conversa em voz alta no fulgor das recordações de quando era petiz, gostaria muito de um dia ir à Angola visitar-lhe a campa.

Cabe-lhe fazer patrulhamentos à volta de Nova Lamego, há um pelotão que está destacado em Canssissé, este a cerca de 40 km da sede do batalhão. Fazem-se patrulhamentos diários, o objetivo era impedir as movimentações dos guerrilheiros, recorda que Madina do Boé fora abandonada em fevereiro de 1969, ficara uma grande área a descoberto para infiltrações. Surgem situações inesperadas, por vezes caricatas, barulhos dentro da mata, pensa-se inicialmente que vai haver confronto com grupo guerrilheiro, afinal é um grupo de javalis que passa a tropel. Descreve minuciosamente esses patrulhamentos, perto e longe de Nova Lamego, os contactos com o inimigo são esporádicos. O comandante do pelotão entra em depressão, foi hospitalizado depois de uma emboscada, é ele que assume interinamente as funções de comandante.

Decide dar aulas aos soldados que ainda não possuem a quarta classe, constituíam a maioria, é por essa altura que o pelotão do Matos é destacado para Cansissé, descreve a povoação e o sistema defensivo, as casernas dos soldados eram feitas de lona, a situação era um pouco melhor para furriéis e alferes. Não perde oportunidade de descrever as alegrias no recebimento do correio. E dá a compreensível importância às aulas para se chegar ao exame da quarta classe. “Achei mais apropriado ter apenas uma sessão diária de duas horas em simultâneo para ambos os alunos, logo após o pequeno-almoço, o rancho da manhã. Tinha inscrito catorze alunos para a quarta classe e dois cabos e um soldado propunham estudar para fazerem o primeiro ciclo, ou seja, o primeiro e o segundo ano, a fazer num só ano. Do nosso pelotão de trinta soldados, vinte e sete e três cabos, pelo menos, catorze, não tinham a quarta classe”. E dá-nos conta de como implantou o método mais adequado e obteve apoio do batalhão para adquirir livros. A vida em Canssissé podia não ser o paraíso, mas não havia flagelações, não se esquece de nos contar as desinteligências e até homicídios entre civis. Fizeram-se obras, apareceu o heliporto. E de Canssissé regressam a Nova Lamego. Continua a estudar e irá fazer exames no Liceu Honório Barreto.

A vida calma naquela região do Leste da Guiné vai conhecendo sobressaltos. Chegou a hora do pelotão do Matos provar uma mina anticarro, felizmente sem danos mortais. As coisas parecem complicadas em Pirada e Buruntuma. Foi o que aconteceu quando o pelotão do Matos foi até Cabuca, tudo parecia estar a correr bem, não picaram no regresso, uma mina anticarro rebentou no rodado da GMC.

Já se passou um pouco mais de um ano da sua comissão, como muitos outros autores ele vai acelerar a prosa, descreve sumariamente a ação psicológica nas tabancas à volta de Nova Lamego, os patrulhamentos, há depois o ataque a Nova Lamego, aparecem os mísseis, e o Matos vai dar instrução a pelotões de milícias em Contuboel, experiência que lhe agradou imenso. Ainda voltou a Cansissé, a comissão está praticamente no fim, já estão no Cumeré a aguardar embarque.

Concluída a viagem, frente ao Cais da Rocha do Conde de Óbidos, sente a diferença do que vivera dois anos antes:
“Não voltaram ao cais os familiares dos camaradas que lá perderam a vida. O desespero, os gritos e desânimo de quantos, há dois anos se vieram despedir, contrastava com a alegria incontida, em cada abraço que se multiplicavam no cais da nossa esperança”.

Igreja de Nova Lamego, Foto Serra, Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24799: Notas de leitura (1628): "Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau", por Catarina Laranjeiro; Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021 (2) (Mário Beja Santos)