quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25105: Blogues da nossa blogosfera (185): O que é feito do "Vidas Lusófonas", sítio fundado e animado por Fernando Correia da Silva (1931-2014) ? Fomos revisitá-lo no Arquivo.pt e encontrámos revelações surpreendentes na biografia de Vasco Cabral...

 

1. Há um ano atrás fomos "revisitar" a nossa lista de  "blogues da nossa blogosfera" (*),  blogues e outras páginas (c. 110) que  constavam da coluna estática do nosso blogue, no lado esquerdo (a "aba", como lhe chama o Carlos Vinhal). Há muito  que não era atualizada, essa lista.


Numa verificação por amostragem demos conta  que mais de metade dos blogue e outras sítios (ou "sites")  tinham sido  descontinuadas, já não existiam ou tinham mudado de URL. 

Comentámos então que era o preço que se pagava por uma existência virtual, que é sempre precária, dependente da boa vontade ou dos caprichos dos servidores, das contingências da vida dos fundadores e animadores, etc.

Uma das páginas que seguíamos era a da  "Vidas Lusófonas" (vd. logo acima): 

O sítio era animado por  Fernando Correia da Silva (1931-2014), e outros jornalistas e escritores de língua portuguesa (mais de 3 dezenas de colaboradores). Infelizmente o sítio já não existe... Entretanto, e felizmente,  foi capturado pelo robô do Arquivo.pt (a última captura de écrã terá sido feita em 21 de fevereiro de 2017):



2. O "Vidas Lusófonas" ainda se mudou para a página "A Viagem  dos Argonautas" (onde também é argonauta o nosso camarada Adão Cruz). Aí escreveu o seguinte, em 21 de julho de 2015, a filha do Fernando Correia da Silva, Ethel Feldman:

(...) Queridos colaboradores,

No início, em 1998, tudo indicava que seria mais um projeto utópico de pouca dura. Um site cultural, onde todos os colaboradores estavam empenhados, cujo o intuito era o de partilhar a vida de personagens que fizeram história, cuja língua materna é o português.

O dinheiro não fez parte da equação. A dedicada teimosia de todos mostra que o Vidas Lusófonas só morrerá depois de todos termos partido.

No dia do aniversário da morte do seu fundador, meu pai, cumpro a promessa de um site renovado. A todos quero agradecer a paciência e confiança. O site continua tendo um número de visitas extraordinário.

Que se mantenha assim e sob o lema do Fernando: "Acho que cada vida tem que ser contada como se fosse um romance. Portanto, morra a prosa de notário! Morra a chatice do verbete enciclopédico!” (...)
 

Em quase duas centenas de biografias de gente lusófona,  de A a Z  (de Portugal, Brasil, Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé Príncipe, Galiza, etc.) temos também a de Vasco Cabral (**), assinada pelo próprio Fernando Correia da Silva de quem foi colega da faculdade e amigo en Lisboa e depois ao longo da vida fora.  

Com o exílio de ambos, andaram desencontrados mais de vinte anos. Depois de regressar do Brasil, na sequência do 25 de Abril de 1974, o escritor e exilado político Fernando Correia da Silva integra a Federação das Cooperativas de Produção e +e numa viagem a Cabo Verde que reencontra o Vasco Cabral. Aqui vão excertos, com a devida vénia, do que ele escreveu sobre o seu amigo, e figura histórica do PAIGC.


3. Vidas Lusófonas > Biografia de Vasco Cabral  (Farim, 1926- Bissau, 2005)

por Fernando Correia da Silva


 (...) Achamos que o mais correcto seria convencer os operários a tomar conta dos meios de produção abandonados pós 25 de Abril. A ideia vinga e os trabalhadores de umas cinquenta pequenas e médias indústrias aceitam a proposta e assim nasce a Federação das Cooperativas de Produção.

Uma das metas da Federação é promover a compra de matérias primas e a venda de produtos manufacturados. Com a independência das ex-colónias portuguesas o mercado tende a alargar-se. Ainda em 1975 sou mandatado pela Federação para viajar até à Guiné-Bissau, já que Vasco Cabral, o Ministro da Economia da jovem nação, é meu amigo pessoal. 

Foi assim: em 1949 ambos participámos na campanha de Norton de Matos, candidato da Oposição anti-salazarista à presidência da República Portuguesa; em 1950 fomos colegas em Ciências Económicas e Financeiras, ele no 5.º e último ano, eu no 1.º; em 1953 participámos, em Bucareste, no IV Festival Mundial da Juventude (ele como militante comunista, eu apenas como aderente do MUD Juvenil, movimento unitário antifascista). Tanto bastou para firmar a nossa amizade. 

E agora passo a recordar o que vim a saber depois: Vasco é preso em 53 e libertado cinco anos depois. Em 62, numa fuga organizada pelo PCP, Vasco, juntamente com o angolano Agostinho Neto, de barco alcança Tânger. Ruma depois para o sul e vai procurar Amílcar Cabral para formalizar a sua adesão ao PAIGC e, junto com o fundador do Partido, lutar pela independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Cabral é pura coincidência de sobrenomes porque entre ambos não há qualquer parentesco. Em 63 começa a luta armada.

NA CIDADE DA PRAIA

Por telegrama, combino encontro com o Vasco Cabral em Cabo Verde, onde ele está transitoriamente. Desço na ilha do Sal, um longo, plano e calvo rochedo em alto mar. Dali, num pequeno bimotor sigo para a Cidade da Praia, na ilha de Santiago, esta já arqueada, cumes e vales, litoral recortado, arvoredo à beira-mar.

Na Alfândega, ao apresentar o meu passaporte, dizem-me que há um carro do Estado à minha espera. Sento-me ao lado do motorista. Atravessamos a Cidade da Praia e seguimos pela Marginal rumo à Prainha.

Paramos frente a uma vivenda e no alpendre está o Vasco Cabral à minha espera. Levanta-se e abre os braços, eu corro para ele, o grande e apertado abraço, há mais de 20 anos que a gente não se via. Em 54 eu fugira para o Brasil antes que a PIDE me deitasse a luva, o que parecia estar prestes a acontecer. Porém, sob a euforia do Vasco pressinto um alçapão. A ver vamos aonde é que ele vai dar…

Lá do fundo da vivenda surge então o Mário Pinto de Andrade, angolano meu amigo desde os tempos do Café Chiado, em Lisboa. Mais um longo e apertado abraço. O Mário fora um dos dirigentes da luta pela libertação de Angola. Mas depois da independência saíra do seu país por não suportar a prepotência do seu camarada Agostinho Neto e, na condição de refugiado, viera para Cabo Verde trabalhar na área da Cultura.

Anoitece, deito-me, durmo. No dia seguinte, de manhã, o Vasco convida-me a ir até à Cidade da Praia. Vou. Num clube local disputa umas partidas de ténis. Não tenho jeito para esse desporto e fico na bancada a assistir. Uma hora depois, já cansado, o Vasco vem sentar-se a meu lado enquanto, lá em baixo, outros pares continuam a bater bola. 

Evoco o IV Festival Mundial da Juventude. Sorrindo com malícia, o Vasco pergunta-me pela brasileirinha que eu andava a namorar em Bucareste. Óptimo! , se ele quer brincar talvez consinta que eu abra o seu alçapão secreto… 

Conto-lhe que em datas diferentes eu e a brasileirinha saímos de Bucareste porém marcámos reencontro em Paris. E de Paris rumámos para Lisboa onde viemos a casar em Janeiro de 54. O Vasco espantado com esta aventura mas não paro. Digo-lhe que ela era filha de judeus polacos emigrados para o Brasil e que o seu casamento com um não judeu causara traumas na família, apesar de progressistas serem eles. 

Digo ainda que, de navio, seguimos depois para o Brasil (eu já a furar o cerco da PIDE…) Ao descermos no porto de Santos lá estava toda a sua família, pais, irmão, avó, tios e primos. A avó, que teria mais de oitenta anos, dá-me um beijo e um abraço e, para a neta, diz qualquer coisa que me traduzem:

– Quando se cai de um cavalo, que seja de raça!

Aproximo-me da matriarca, dou-lhe um outro beijo e relincho.

O Vasco mata-se a rir com a história. Aproveito a galhofa para tentar abrir o alçapão. Pergunto-lhe como é que fora assassinado o Amílcar Cabral. Apesar de renitente, conta-me que um grupo de ex-guerrilheiros do PAIGC, controlados pela tropa colonial e pela PIDE, assaltara a sede do PAIGC na Guiné-Conacry, matara o Amílcar e preparava-se para matar outros dirigentes como o Aristides Pereira, o Pedro Pires e o próprio Vasco, quando Seku Touré, presidente da Guiné-Conacry interviera e frustara a tentativa. Pergunto depois se o bando de assassinos tinha sido caçado e justiçado. Responde-me o Vasco:

– Não quero falar disso.

E não fala, ponto final. Mas não desisto. No fim de tarde, ao regressar à vivenda na Marginal, puxo o Mário para o pátio e peço-lhe que me explique a agonia do Vasco. E ele explica ou tenta explicar:

Fernando, tu não sabes o que é a luta armada. Nem podes imaginar o que é ser traído por antigos companheiros de armas, a pretexto do tu seres cabo-verdiano e eles serem guineenses.

– Compreendo, ou tento compreender. E o Vasco caçou os assassinos?

– Todos.

– Quantos eram?

Mais ou menos cinquenta entre matadores e cúmplices. Caçou e executou ou mandou executá-los. É por isso que ele anda sorumbático, porque cada um dos executados tinha sido seu companheiro de armas, portanto tinha sido seu amigo. Compreendes?

Sim, compreendo. Magoado, mas compreendo…

No princípio da noite um carro, acompanhado por quatro motociclistas, pára frente à vivenda. É Pedro Pires, o primeiro-ministro de Cabo Verde que vem despedir-se do Vasco, o qual viaja amanhã para Bissau. Eu também viajarei amanhã, mas num voo diferente. Não quero ser intrometido e recolho-me lá para os fundos da vivenda. Porém, pouco tempo depois o Vasco vai buscar-me e apresenta-me o Pedro Pires. É uma simpatia de homem. Entre outras coisas pergunta-me:

– Como é que vai a Reforma Agrária portuguesa? Vinga?

E eu respondo:

– Se o folclore revolucionário for substituído por uma eficiente gestão económica, não há quem possa destruí-la. (...)

(Seleção, transcrição, revisão / fixação de texto, negritos, para efeitos de edição deste poste, com a devida vénia, e à memória do autor: LG. )

4. Outras vidas lusófonas (apemas uma amostra) que podem ser lidas, no sítio agora recuperado pelo Arquivo.pt:

Amílcar Cabral (1924-1973) (Guiné-Bissau), por Carlos Pinto Santos

Eugénio Tavares (1867 - 1930), (Cabo Verde) por Carlos Lopes

Fernando Correia da Silva (1931 - 2014) (Portugal), por José Brandão

Joaquim José da Silva Xavier, "O TIraddentes" (17446 - 1792) (Brasil), por João Sodré 

Joshua Benoliel (1873-1932) (Portugal), por Fernando Correia da Silva

Mário Pinto de Andrade  (1928 - 1990) (Angola(, por Fernando Correia da Silva

NGungunhane (c.1850 - 1906) (Moçambique),por Carlos Pinto Santos

Rainha Jinga (1582 - 1663) (Angola), por Fernando Correia da Silva

Salgueiro Maia (1944 . 1992) (Portugal), por Carlos Lopes

Samora Moisés Machel (1933 - 1986) (Moçambique), por Fernando Correia da Silva)

Guiné 61/74 - P25104: Casos: a verdade sobre... (42): O "making of" do livro do Amadu Djaló (1940 - 2015), "Guineense. Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.) (Virgínio Briote)



Leiria > Monte Real > Ortigosa > Quinta do Paul > IV Encontro Nacional da Tabanca Grande > 20 de Junho de 2009 > Em primeiro plano, o Virgínio Briote e o Amadu Djaló, um e outro muito acarinhados por todos. Não sei o que é o que Virgínio, um homem sábio, europeu, estava a pensar, mas possivelmente estava a organizar a sua resposta à questão, pertinente, levantada pelo Amadúnico,    outro homem sábio, africano: 

"Os portugueses, a alguns povos, deram-lhes novos nomes e apelidos, livros para estudar e consideraram-nos civilizados. Desta civilização não precisávamos, mas faltava-nos a cultura, porque a cultura, de onde sai não acaba e de onde entra não enche. E no nosso Alcorão está tudo, moral, comportamento cívico e civilização e nós não precisávamos de ser civilizados, o que nos faltava era escola para aumentar os nossos conhecimentos"...




Projecto de capa do livro do Amadu Djaló, membro da nossa Tabanca Grande, já entretanto alterado... Finalmente, e depois de um longo calvário, chegam ao fim os árduos trabalhos do "making of"  do livro, da história de vida do Amadu que teve, no Virgínio Briote, mais do que 'copy desk', um editor literário, um amigo, um camarada, um confidente, um cúmplice, um advogado de defesa, um verdadeiro defensor dos seus interesses, editoriais, morais  e materiais. (...Na edição do 1º volume, que esteve cargo da Associação de Comandos, estava-se então, em fevereiro de 2010,  na fase final de revisão de provas tipográficas. O Virgínio referiu nessa altura a excelente colaboração de dois camaradas nossos, o Carlos Silva e o Manuel Lema Santos. (...)  (LG) (*)


Lisboa >  Museu Militar >  15 de Abril de 2010 > Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló,  membro da nossa Tabanca Grande, "Comando, Guineense, Português" (Lisboa: Associação dos Comandos, 2010, 229 pp., 150 fotos, preço de capa: 25 €). 

O Amadu e a seu lado a filha (e o neto, que não se vê na foto)...  Foi pena que, entretanto,  não tenha saído em vida o 2º volume, com as aventuras e desvanturas do autor, a seguir à independência do seu pais. Vivia então em Portugal, na Amadora. Acabou a sua carreira militar como alf comando graduado, na CCAÇ 21, comandada pelo ten cmd grad Jamanca, um dos primeiros camaradas guineenses a ser fuzilado pelo PAIGC.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Lançamento do livro do Amadu Bailo Djaló, membro da nossa Tabanca Grande, aqui na foto com o presidente da Associação de Comandos, dr. José Lobo do Amaral... 

Nas suas palavras de abertura, Lobo do Amaral  fez questão de, em nome da associação,  agradecer "ao sócio comando Virgínio António Moreira da Silva Briote a disponibilidade, competência e dedicação com que acompanhou esta Memória, sem a qual não teria sido poossível esta edição"... 

No final, também nos agradeceu a divulgação dada pelo nosso blogue e manifestou o seu regozijo pela entusiasmo com que foi recebida o 1º volume das memórias do Amadu bem pelo pluralismo das abordagens dos oradores.

Fotos (e legendas): © Luis Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Comentário de Virgínio Briote ao poste P25087 (**):

O Amadu depois do fim do Gr Cmds  "Fantasmas",  do Maurício  Saraiva, voltou para o QG e foi o Luís Rainha que, sentindo que o seu grupo tinha poucos guineenses experientes, o foi lá buscar e trouxe também o Kassimo. 

O Amadu distinguia-se pelas maturidade e pelo bom senso na análise das situações.

Quando o reencontrei em Lisboa, aí por 2005 (o meu anos da reforma), falou-me das recordações que tinha da sua Guiné, da sua família. Pouco tempo depois o Presidente da Assocaição de Comandos  telefonou-me, convidando-me a visitar as instalações na Duque d'Ávila. 

No contacto que tivemos pediu-me um artigo sobre os Gr Cmds do CTIG dos anos 1965/66. Foi pouco depois da publicação do artigo que me voltou a telefonar para novo encontro na Associação. E foi nesse encontro que me falou dos dois maços de folhas A4, que eram uma espécie de diário do Amadu Jaló. 

E depois, foi a leitura ou tentativa de leitura porque havia muitas partes ilegíveis para mim, o reencontro com o Amadú, a visita a casa dele, e o programa que estabelecemos para o esboço do livro. 

Seguiu-se o trabalho, encontros em minha casa, almoçávamos juntos, esclarecíamos dúvidas e andávamos para a frente. Ele fazia questão do livro ser "exactamente" o que tinha escrito, sem nenhum desvio. Foi um trabalho muito longo, por vezes ele adoecia ou tinha alguém em casa doente ou visita da Guiné, o que fez com que dessemos o trabalho pronto para entrega, quase um anos depois. 

O que se passou depois foram divergências, talvez o acordo entre as partes não tenha ficado bem claro, o que levou o Amadú a ficar um tanto queixoso da Associação de Comandos..

Amadu Djaló
Ficou no meu espírito a ideia que era um Homem. Adorava a sua Família e a sua Guiné. E estava numa fase de grande tristeza pela falta de rumo da vida política na sua Terra. Nos últimos meses da sua vida as dificuldades respiratórias acentuaram-se. Levei-o várias vezes ao Hospital Amadora-Sintra, deram-lhe alta e não havia ninguém para o ir buscar. Era inverno, peguei no sobretudo e fui buscá-lo ao hospital para o levar para casa. Não tinha roupa, deixei-o ficar em casa bem agasalhado.

Tempos depois foi novamente internado no Hospital de Belém e lá encontrei o cor Raul Folques em visita a um familiar muito chegado e lhe disse que ia visitar o Amadú. 

Vários episódios se repetiram até que ele queria escrever outro livro, eu disse-lhe que não contasse com a minha ajuda por motivos facilmente compreensíveis.  Ofereceu-me um molhe de folhas A4 e disse para eu fazer o que quisesse com elas. Morreu dias depois e, conforme nos tinha pedido, queria ser enterrado em Bafatá junto aos Pais.

Para finalizar este comentário que já vai longo, o Amadu Djaló, amava a sua Família, a Guiné e Portugal.
V Briote

Nota: este comentário vai sem revisão. Desculpem.


2. Comentário adicional de Joaquim Luis Fernandes ao poste P25087 (**)

Não sei porquê, mas ao acabar de ler o comentário do camarada Virgínio Briote, fui acometido por um sentimento de profunda dor, que me arrasou os olhos de água.

A dor e os dramas que a guerra tece! Quem nela andou e sofreu jamais os esquece.

Para o Amadu Djaló que partiu, que descanse em paz. Para todos nós ainda vivos, que não nos falte a paz.

Que saibamos optar sempre pela concórdia e pela paz E a exemplo dos Maiores, amar a Família e a Pátria Mesmo sentindo que algumas vezes nos é ingrata.

Abraços Fraternos
JLFernandes


3. Em complemento deste importante esclarecimento feito pelo Virgínio Briote, e que editamos na série "Casos: a verdade sobre..." (***): comentário do editor LG ao blogue criado em dezembro de 2010 pelo filho do Amadu Djaló, que vivia em Londres, Idriça Djaló, e que infelizmente não teve continuidade, embora ainda se mantenha "on line" (****)


Meu camarigo (camarada e amigo) Amadu:

Soube pelo teu mano Briote que estavas agora em Londres, ao pé dos teus filhos. Nós estamos bem onde estão os nossos entes queridos. Desejo-te boa estadia e boa saúde. Esse clima não é o melhor para os teus problemas respiratórios. 

Em contrapartida, tens o carinho e o amor da tua família. Na vida nunca temos tudo. Sei também do teu desejo de ainda voltar à tua terra, à nossa querida Guiné. Vamos manter acesa a chama da esperança. Isso vai concretizar-se, esse teu sonho. 

Até lá ficamos também a aguardar a publicação do teu 2º livro de memórias. É importante que o completes. Confia no Briote, que tem sido mais do que teu amigo e irmão. E confia em nós, os membros do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, onde tens muita gente que te estima, admira e leu o livro. (...) . 

Parabéns por este blogue que te abriu o teu filho Adriça. Mas é preciso alimentá-lo... Prometemos vir cá de vez em quando... 

Um Alfa Bravo (ABraço). Mantenhas para toda a família. Luís Graça
 
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de fevereiro de  2010 > Guiné 63/74 - P5883: Biliografia de uma guerra (55): Lançamento, previsto para fins de Março, do livro do Amadu Djaló, Guineense, Comando, Português: 1º Volume: Comandos Africanos, 1964-1974 (Virgínio Briote)


(***) Último poste desta série > 17 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25079: Casos: a verdade sobre... (41): "Canquelifá era o seu nome" - Uma batalha de há 50 anos (José Peixoto, ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, 1972/74) - IV (e última) Parte: O nosso batismo de fogo, na bolanha do Macaco-Cão, em 29 de agosto de 1973

(****) Vd. poste de 6 de dezembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7391: Blogues da nossa blogosfera (40): Amadu Bailo Djaló, agora em Londres: Guineense, Comando, Português (Idriça Djaló)

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25103: Blogoterapia (313): Irmãos de armas (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais)

Dire Straits - Brothers In Arms - Frame do Youtube, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil Op Especiais da CART 3492/BART 3873, Xitole/Ponte dos Fulas; Pel Caç Nat 52, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão e CCAÇ 15, Mansoa, 1971/73) com data de 21 de Janeiro de 2024:

IRMÃOS DE ARMAS

E de repente extinguiu-se-lhe nos olhos o olhar!

Um daqueles que estava sentado à mesa, bastante mais novo do que todos os outros, ficou admirado e perguntou a quem estava ao seu lado o que se passava com aquele cujo o olhar se tinha alheado.

Respondeu-lhe o que era mais velho e tinha por lá passado:

- Não te preocupes, porque ele foi viajar ao equador, passear nas bolanhas do calor, visitar as matas do horror, caminhar nas picadas da dor e enfrentar a guerra do desamor.
Agora não está cá, está mais longe, está por lá! 
Mas não te preocupes que ele vai voltar, assim que a recordação o deixar.

Já ninguém olhava para ele, porque todos percebiam aquilo que com ele se passava.

Iam conversando, comendo, bebendo, as vozes elevavam-se por cima de tudo o resto e ele continuava com o seu olhar absorto, passeando por onde ninguém já se encontrava. Passado um pouco de tempo o seu olhar ausente, regressou ao presente. 
Havia nos seus olhos uma espécie de lágrimas, uma espécie de dor, uma espécie de torpor, que ele com um abanar de cabeça, quis afastar daquele momento, mas de tal modo, que um daqueles que estava a seu lado lhe perguntou:

- Estiveste por lá agora. não foi?

Ele respondeu com um tom decidido e afirmativo:

- Sim, andei a passear por aquelas picadas, aquelas bolanhas, aquelas matas, onde tantos de nós ficaram, mas onde se construiu a amizade entre nós, que eu ainda não sei explicar.

Olharam-se nos olhos e aqueles que estavam na mesma mesa perceberam o que se passava. Pois, porque os outros que não tinham vivido aquela guerra, não conseguiam perceber o que se tinha passado naqueles breves e profundos momentos.

Olharam-se, sorriram, os olhos marejaram-se de lágrimas e disseram uns aos outros:

- Que aqueles que lá ficaram, estejam connosco agora, enquanto nós aqui estamos celebrando o que passámos.

Todos perceberam que o coração os oprimia, os levava a viver aquilo que já não queriam viver, mas que tinham vivido um dia. Olharam-se nos olhos mais uma vez, pensaram nos que não percebem aquilo que por eles passaram, e num breve momento de silêncio, perceberam que todos eles falavam afinal a mesma língua.

Raios parta a guerra, disseram uns, e os outros anuíram dizendo:

- Raios parta a guerra, que nos mói por dentro, sem sabermos quanto e quando.

Aquele que tinha começado aquele momento, estava ainda meio afastado de tudo o que se passava, porque não sabia o que havia de dizer, não sabia o que tinha sentido, não sabia como se exprimir.

Então um deles, cheio de coragem, levantou a voz e disse:

- Nós somos muito mais do que nós próprios, somos muito mais do que a opinião dos que pensam mal de nós, somos muito mais do que aquilo somos, porque com estas mãos, com este sentido que temos, com este viver que vivemos, somos tudo aquilo que fomos, mais do que ainda somos, mais do que podemos sentir, porque no fundo, meus caros camaradas, nós somos tão só e apenas, verdadeiramente, Irmãos de Armas!

Marinha Grande, 21 de Janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25102: Memórias cruzadas: o que o PAIGC sabia sobre Bissau, em 1969: (i) o "ataque" a Bissalanca em 19/2/1968; (ii) a carestia de bens essenciais como o arroz; (iii) a discriminação da população local no acesso aos cuidados de saúde; (iv) casos de violência verbal e física contra civis...


Vasco Cabral, membro do "bureau" político do PAIGC.
aqui em missão no exterior. Foto, s/d, s/l, cortesia do portal
Casa Comum >Arquivo Amilcar Cabral.
(Reeditada pelo Blogue Luís Graça
& Camaradas da Guiné, 2024)

1. É sempre interessante conhecer o que é que, numa guerra, os contendores sabem (e/ou pensam) uns sobre os outros... Mesmo quando a guerra acabou há muito, como foi o caso da guerra na Guiné (1961/74)... Daí esta série "Memórias cruzadas"...

As Forças Armadas Portugueses tinham as suas próprias fontes de informação: os serviços de informação militares p.d., a PIDE, a administração civil, os prisioneiros, os desertores, os gilas, etc. 

O PAIGC tinha também, embora mais elementares, os seus próprios serviços de recolha e tratamento de informação, quer de natureza política quer militar, a começar pelos seus próprios combatentes, e outros, incluindo os gilas (que atravessavam as fronteiras e faziam jogo duplo), os seus simpatizantes e militantes civis em Bissau e no mato, etc.  

Muitas das informações que o seu quartel-general recebia era grosseiras, pouco ou nada válidas em fiáveis,  porque a "ideologia" aldrava a "realidade": na ânsia de mostrar resultados no campo de batalha, comandantes e comissários políticos das FAPLA acrescentavam sempre muitos pontos aos seus contos... Mas, se calhar, era isso que os "Cabrais" (o Amílcar, o Luís, o Vasco, o Fidelis...) gostavam de ouvir...lá no bem-bom de Conacri. 

O documento que abaixo se reproduz,  é um exemplo das informações em bruto, que chegavam a Conacri, onde o PAIGC tinha o seu "quartel-general" e a sua "inteligentsia"...

Vasco Cabral (Farim, 1926 - Bissau, 2005) foi um dos mais qualificados quadros dirigentes do "Partido". (Não tinha qualquer relação de parentesco com o líder histórico do PAIGC, embora também fosse de origem cabo-verdiana ). Estudou em Portugal (licenciou-se em Ciências Económico-Finaneiras, pelo ISCEF/UTL),  apoiou a candidatura de Norton de Matos à Presidência da República em 1949, enquanto membro do MUD Juvenil, lutou contra o Estado Novo-

Não há muita informação (independente) sobre a sua biografia: foi preso político em Portugal, entre 1953/1954 e 1959, até que, já na clandestinidade, conseguiu fugir, em 1962, de barco até Tânger (cidade já itegrada, desde 1956, na soberania marroquina), juntamente com Agostinho Neto, com a ajuda (dizem)  do PCP - Partido Comunista Português. 

A partir daqui a sua história mistura-se com a de outros dirigentes (políticos) do PAIGC. Escapou à morte no atentado que tirou a vida a Amílcar Cabral.  Pertenceu ao "bureau" político e exerceu funções governativas depois da independência. Não se opôs ao "golpe de Estado" do 'Nino' Vieira, de 14 de novembro de 1980. Foi também escritor e poeta. E tem, juntamente, com Amílcar Cabral a melhor caligrafia de todos os dirigentes do PAIGC, a avaliar por esta amostra manuscrita que aqui hoje publicamos.

Não sabemos exatamente  onde decorreu esta "audição de camaradas fugidos de Bubaque" (sic), transcrita por Vasco Cabral em 5/12/1969 (*). Tudo indica que tenha sido em Conacri. Os três "camaradas", provavelmente de etnia bijagó (tal  como o Inocêncio Kani, o carrasco do Amílcar Cabral), eram o Marcelino Banca, o Marcos da Silva e o José Albino Sonda.  (Não parecem ter deixado "peugadas" na história do PAIGC...).

Vasco Cabral destaca o M.S. (Marcos da Silva) como informante priveligiado, que mostra conhecer razoavelmente Bissau (cidade que, ao tempo,  o Vasco Cabral já não devia cohecer de todo):

(i) fala, embora de maneira fantasiosa e propagandística, sobre a flagelação a Bissalanca, em 19 de fevereiro de 1968, quando um pequeno grupo, comandado por André Pedro Gomes e Joaquim N’Com,  fez uma incursão noturna na área de Bissau, atacando a BA 12 com tiros de morteiro e armas ligeiras; esta ação, embora audaciosa mas de alcance limitado, foi habilmente explorada por Amílcar Cabral para mostrar, sobretudo no exterior, a sua  capacidade para desferir ataques nos prósprios santuários do inimigo, neste caso a capital;

(ii) indica a localização dos principais quartéis em Bissau, Bissalanca e Brá, coisa que não era nenhum segredo militar, sendo conhecida de toda a gente; referência a um alegado "paiol da pólvora", a 800 metros abaixo do QG (Santa Luzia), de que nunca ouvimos falar;

(iii) refere o problema dos preços e do alegado racionamento de alguns bens essenciais como o arroz e o açúcar: já no meu tempo, em meados de 1969, em Bambadinca, o preço do arroz (comprado pela população) andava  à volta dos 6$00; o pré dos nossos soldados guineenses (600$00 + a diária para a alimentação, sendo desarranchados, 24$50) dava para eles compraram 2 sacos de 100 quilos de arroz (com que se podia alimentar uma família extensa e numerosa);

(iv) enfim, denuncia alguns casos (que naturalmente terão existido, pontuais)  de violência física e verbal contra a população civil de Bissau, já no tempo de Spínola...

Vamos lá a ver se há leitores que queiram cruzar,  com estas, as suas memórias de Bissau daquele tempo (1968/69).



ORGANIZAÇÃO, FORMAÇÃO POLÍTICA E IDEOLÓGICA
5-12-69

Audição de camaradas fugidos de Bubaque [folhas nºs, 13-16 ] 

(A láspis, no alto da folha nº 1, está escrito: "Informações recolhidas pelo camarada Vasco Cabral")

M.S.  [Marcos da Silva ]  - Depois do ataque do Partido a Bissau,  
[em fevereiro do ano passado,
muitos africnos em Bissau ficaram contentes com isso. Os colonialis-
tas reagiram violentamente no dia seguinte atacando algumas taban-
cas mais próximas do campo de aviação como as tabancas de Bis-
salanca e de Plaque. Fizeram-lhes de madrugada uma emboscada, 
tendo matado algumas pessoas, ferido outras, e prendido toda a popu-
lação restante. Mais tarde,vieram a soltar alguns presos, mas outros fi-
caram presos até lá até agora.

A partir desse ataque os tugas tomaram outras medidas: reforçaram
a vigilância; agora, a partir das 6h da tarde, dirigem-se para o cam-  



po de aviação 4 ou 5 camiões grandes Unimog 
[no original, Hanomag], 
 [cheios de soldados
e vigiam o campo até de manhã. De vez em quando efectuam bombar-
deamentos pelas redondezas. Minaram as imediações do campo. Puseram 
à volta do campo 2 filas de arame farpado que deve ser electrifica-
do, pois puseram avisos em que se diz: "Perigo de alta tensão!" - avis-
ando o povo para se manter afastado.

Com o ataque que se fez, ficaram destruídos aviões, hangares 
 [angares, no original]  uma parte 
importante da Central Elétrica, o que ocasionou falta de luz durante
1 dia.

A população de Bissau não se deixa influenciar pela popaganda do 
tuga de uma Guiné Melhor. Dizem que o Spínola segue uma política por


causa da guerra, mas sabem que a guerra não vai acabar,

Há em Bissau milhares de soldados. À  [há, no original] volta de Bissau  há
7 quartéis: o Quartel-General que está em Santa Luzia; há
uns 800 metros mais abaixo o Paiol de pólvora;  há o quartel
da Amura; o Batalhão de Serviço de Material perto da Amura;  em
Brá há o Quartel de Engenharia; há também em Brá mais 
dois quartéis: o de Comandos e um outro de Adidos. Há ainda
o Quartel dos Fuzileiros, ligado à ponte de Pidgiguiti.

Perto do campo de aviação há ainda 2 quartéis: o dos Páras e outro
da Força Aérea. Estes 2 quartéis estão dentro da cercadura de arame
farpado.

= Há bichas em Bissau para a compra de arroz e de carne. Isto acontece du-


rante todo o ano. O preço do arroz varia com frequência. O ano passado vendia-
-se a 5$60 / kg., agora custa 6$90/kg. Há grande falta de açúcar.

Estabelecem às vezes para a venda do arroz um contingente máximo de venda   
[avulsa
de 1 kg. Também para o açúcar estabelecem 250 gramas, por pessoa.  Mas  
[açúcar
falta âs vezes durante 15 dias ou mais.


Há dificuldades sanitárias grandes: em 1º lugar , às consultas; fazem-
se bichas para as consultas e há muita gente que não é atendida, às vezes
durante 1 mês; em 2º lugar quanto a medicamentos que faltam em grande
quantidade. Afirmam que os medicamenmtos são só para os militares.

Não há bichas para os europeus civis, é só para os africanos.

Também qanto às outras bichas, são só para os africanos, uma única


excepção do Serviço dos Correios, onde os europeus também entram nas bichas.

= Coisas que os soldados tugas dizem dos africanos abertamemte nas
ruas: "Barrote queimado", "saco de carvão", "nharro", "negro",
nas suas relações com os africanos.

De vez em quando os fuzileiros liquidam africanos. No Alto Crim
este ano mataram 4 mulheres, uma rapaz em Santa Luzia, 3 pessoas
(2 rapazes e 1 rapariga) na Avenida Gago Coutinho. Para isso fazem
provocações.

Este ano a 2 de Novembro houve um incidente no Alto Crim entre 
um fuzileiro e um rapaz africano. Este agrediu o fuzileiro. Então.
ele queixou-se no quartel dizendo que um terrorista o agredira. Mais



tarde mandaram do quartel um pelotão de soldados que incendiou
casas, bateram em várias pessoas e feriram outras.

Ha frequentemente incidentes entre a população e a tropa colonialista.
Há habitualmenmte cenas com as raparigas africanas que passam nas
ruas. Os soldados tentam beijá-las, como elas reagem, às vezes, batem-
-lhes. Quando os africanos se dirigem à Polícia, para se queixarem
de certos abusos dos europeus, a Polícia não liga, não toma nenhumas medidas.

= É proibido ouvir-se a nossa Rádio em Bissau. Mas há muita gente
que ouve. Um tio do camarada Conrado foi preso por estar a ouvir
a nossa Rádio, em Julho deste ano. Ainda está preso por isso.


Foram ouvidos os seguintes camaradas:
- Marcelino Banca
- Marcos da Silva
- José Albino Sonda

(Seleção, transcrição, fixação / revisão de texto, itálicos e negritos: LG. Observ: Mantivemos a ortografia usada por Vasco Cabral)
_________________

Citação:
(1969), "Informações sobre o Arquipélago dos Bijagós. Organização, formação política e ideológica dos Bijagós", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41391 (2024-1-16) (Com a devida vénia...)

Fonte: Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 07073.128.006 | 
Título: Informações sobre o Arquipélago dos Bijagós. Organização, formação política e ideológica dos Bijagós. | Assunto: Informações de carácter militar, extraídas da audição com os "camaradas" vindos dos Bijagós, sobre Soga, Bubaque, Formosa, Uno, Caravela, Orango, Orangozinho, Canhabaque, Galinhas e Uracane. Organização e formação política e ideológica dos Bijagós, manuscritos por Vasco Cabral. | Data: Terça, 2 de Dezembro de 1969 | Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios 1965-1969. | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Documentos.
___________

Nota do editor:

(*)Vd. último poste da série > 16 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25076: Memórias cruzadas: o que o PAIGC sabia sobre Bubaque, em 1969... "O antigo governador Schulz ia lá de vez em quando, com outros militares e algumas mulheres. O atual governador nunca lá esteve morado. Foi só visitar."...

Guiné 61/74 - P25101: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (15): A vida é curta e a arte é longa: memórias de um médico que também passou pelo Hospital Militar de Bissau

 Guiné > Bissau >  O  antigo Pavilhão de Tisiologia, desenhado pelos arquitectos Licínio Cruz e Mário Oliveira, do Gabinete de Urbanização do Ultramar,  Projeto de 1951/53. Passará a Hospital Militar, o HM 241, com o início da guerra, em 1963.

Foto (e legenda): © Mário Beja Santos (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A vida é curta e a arte é longa: memórias de um médico que também passou pelo Hospital Militar de Bissau

por Luís Graça


Fizeram-te um almoço de despedida nessa semana em que passaste à reforma. Sempre detestaste as festas de despedida. E aquela tinha  qualquer coisa de amargo e ao mesmo tempo de inquietante. Era como partir, de barco, de um porto seguro para uma viagem desconhecida. Sabias o que tinhas, ou o que acabavas de perder, desconhecias o que te esperava o dia seguinte. Porque esse seria "o primeiro dia do resto da tua vida", citando a letra da canção  do Sérgio Godinho que costumavas ouvir no CD que punhas a tocar no carro logo pela manhã a caminho do hospital. (Maldita IC 19, foi o primeiro pensamento que te veio à cabeça no teu último dia de trabalho.) 

Aconteceu-te isso, a angústia da despedida, talvez pela primeira vez, quando foste mobilizado para a Guiné, em rendição individual, aos 28 anos, em março de 1968  (se a memória não te estiver a trair, o que já não podes garantir, cinquenta anos depois).

Amigos da faculdade e do hospital, colegas de curso e um ou outro "pilão" (antigo colega dos Pupilos do Exército), "poucos mas bons", fizeram-te uma festinha, discreta mas comovente, de despedida.

Foi num café-restaurante das Avenidas Novas, em Lisboa, que já não existe, hoje deve ser uma agência bancária ou imobiliária. 

Na altura, eras monitor de Anatomia na Faculdade de Medicina, um cadeirão que sempre foi o terror dos candidatos a médicos. E trabalhavas, para mais, no Hospital de Santa Maria, à borla, na equipa de um dos "barões" que eram os donos dos serviços… 
 
Não, não vale a pena recordar o nome. Não te deixou saudade, nem a ti nem aos outros "escravos". Era um professor que estava ligado a um dos grandes do futebol da cidade de Lisboa. Já ninguém se lembra dele. Arrumou as "chuteiras" com o 25 de Abril, foi coerente, não virou a casaca, como os "democratas do 26 de Abril"...

Carreira médica  ?  Não , também não havia ainda carreiras médicas, so foram criadas em 1971.... Os jovens licenciados em medicina tinham que "pagar para aprender", com um patrono, "um grande clínico ou um grande cirurgião"…

Como o local do almoço era público e a PIDE costumava ter "bufos" por aqueles sítios, não houve grande discursos, e muito menos efusivos, e muito menos ainda contestatários… Aquilo, o teu almoço de despedida, parecia mais um velório do que outra coisa... 

Bolas, tu eras médico, ias para a Guiné, haverias de voltar, com vida e saúde!.... A tropa protegia os médicos, não os mandava fazer operações, de G3 em punho,  "não iam para o mato" (como se dizia então) !... Era pelo menos a garantia que tu tinhas, de alguém importante do Hospital Principal na Estrela, com quem te aconselhaste.  E depois com a tua prática de "ajudante de  cirurgião" (sic) haverias de ficar em Bissau, nem seria preciso meter nenhuma cunha. 

Afinal, foste tu que tiveste de animar os teus amigos e colegas, todos mais acabrunhados do que tu, só de pensarem que, um dia destes, também veriam a tropa interromper-lhes  as "promissoras carreiras"  e despachá-los, com  "guia de marcha",  para a África dos tiros e dos mosquitos. Pelo sim pelo não adiavam-se casamentos e outras decisões importantes na vida de um homem como a de fazer um filho.

Só muito mais tarde, há uns anos atrás, é que tu foste à Torre do Tombo, movido por uma natural curiosidade,  legítima mas algo mórbida. Acabaste então  por saber que também tu tinhas  ficha nos arquivos da PIDE/DGS… (No teu íntimo, não foi nada que te revoltasse, até pelo contrário,  surpreendeu-te mas fez-te bem ao ego que de vez em quando também tem de ser massajado.) 

E verdade que o motivo era mesquinho, para não dizer anedótico: alguém te denunciara por seres amigo de um tipo da direção da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina, envolvido na crise estudantil de 1962… Uma pecha nacional, desde os tempos da Inquisição, comentaste tu para a malta da tua equipa: denunciava-se o primo ou o vizinho, às vezes por pura maldade ou inveja, como aconteceu com o grande Ribeiro Sanches, o nosso maior médico do séc. XVIII, que teve de sair do país e nunca cá mais  pôs os pés. Morreu em Paris, se  bem me lembro das aulas de história da medicina.

Fator aparentemente abonatório para a tua pessoa aos olhos da polícia política: eras filho de militar de carreira, com "boa folha de serviços no Ultramar" e tido como “adepto da situação”… E depois tinhas passado pelos Pupilos do Exército... Um "pilão" só podia ser um bom português! ...

Em boa verdade, tu nunca te tinhas metido em "encrenca" nenhuma até acabar o curso de medicina, não querias ver o teu pobre pai embrulhado em maus lençóis, e sobretudo perder a tua valiosa bolsa de estudo, paga por uma conhecida fundação.

Em suma, não tinhas liberdade económica para te poder armar em herói antifascista e anticolonialista, como alguns dos teus colegas (que tinham papás da classe média alta, gente bem relacionada ). Mas não escondias que, em 1968, eras "contra o regime" (como então se dizia) e achavas uma estupidez a continuação da guerra do Ultramar, sem fim à vista. (Para mais o "velho", o "botas", estava a "esticar o pernil"...)

Uma parte da juventude universitária daquele tempo começou a "ganhar consciência política" (como então se dizia) com a crise universitária de 62 e com o alargamento da guerra  do Ultramar aos territórios da Guiné e de Moçambique.

Não vais dizer "boa parte da juventude universitária",  porque isso era mentira: quem estudava naquela época eram filhos e filhas de gente da "situação", ou que tinha algum, para não dizer razoável, poder económico, empresários, proprietários, comerciantes, professores, advogados, médicos, médio e alto funcionalismo público… Conheceste inclusive vários estudantes que eram filhos de ministros e secretários de estado do Salazar... e que "degeneraram", cuspind0 na sopa ou mordendo a mão a quem lhes dera o ser e o ter...

A maior parte da juventude estudantil, liceal e universitária, acomodava-se e tratava da vidinha, como acontecia em todas as ditaduras até então conhecidas. Para mais a tua que até tinha a benção da Santa Madre Igreja... Bom, já não era bem assim, tiveste colegas, católicos, que já não liam a missa pelo mesmo missal do Cardeal Cerejeira, amigo íntimo de Salazar...

Entretanto, tu davas conta de que a guerra, de que pouco ou nada se falava em público, muito menos nos jornais, na rádio e na televisão (a não ser no programa do "Natal do Soldado"), 
começava a mexer com a malta. Havia mortos e feridos, havia faltosos, refratários e desertores, e alguns até eram da tua rede de relações ou conhecimentos… 

Guerra que, em todo o caso, era bem longe da nossa terra, da nossa casa, da nossa família, das nossas escolas e locais de trabalho, enfim, dos nossos cafés das Avenidas Novas... Portugal, naquele tempo, ainda era Lisboa e o resto era paisagem... 

Na altura, tu moravas por ali, perto do Campo Grande, num quarto alugado. E quando chegava a hora da verdade, poucos afinal davam o corpo ao manifesto. Participaste, em 1962, num ou noutra manifestação de estudantes, com cargas da polícia de choque, tinhas 22 anos, sangue na guelra e e começavas a ter asco ao autoritarismo (dos professores,  da policia,  das administracoes...) sem todavia nunca te teres metido em nenhuma organização clandestina, nem muito menos assinado papéis que te pudessem  comprometer. Nesse aspeto, sempre foste um "medricas", sabias que nunca aguentarias a tortura do sono por mais de 48 horas... (Se tivesses feito na altura um teste psicotécnico, terias chumbado de certeza para cirurgião!)

Também nunca tiveste conversas, nem grandes nem pequenas, com o teu pai, quando ele vinha de férias, ou regressava de mais um comissão de serviço, sobre a situação nos territórios ultramarinos, como então se dizia e escrevia. Sabias (ou melhor, suspeitavas) que ele "não morria de amores pelo regime" mas não podia dar-se ao luxo de morder a mão de quem lhe pagava o vencimento ao fim do mês. Além disso, era um militar de secretaria, oriundo da Escola Central de Sargentos que, se bem te recordas, funcionava em Águeda.


A tua mãe, embora apenas com a 4ª classe mal tirada, era mais politizada do que o teu pai. Ela era natural de Alcácer do Sal, emigrara, muito jovem, para Setúbal com a família. Trabalhara como empregada doméstica, logo acabada a escola, e depois como operária na indústria conserveira. Foi em Setúbal que os teus pais se conheceram. E foi aí que tu nasceste.  Tempos difíceis. Valeu-te uma bolsa de estudos que te permitiu ir fazer, em Lisboa, o curso de medicina, em 1958. És do curso de 1958/59.

Em solteira, quando operária conserveira, aos 17/18 anos, ainda menor, a   tua mãe terá chegado a distribuir o clandestino jornal "Avante", na fábrica e no bairro onde residia. Não sabes se alguma vez foi "antifascista", um palavrão que nunca lhe ouviste, da sua boca. 

De qualquer modo, depois de casada, acabou o seu eventual "antifascismo". Casada com o teu pai, subira um degrau na hierarquia social. E depois vieram os filhos. Julgas que ainda viveu, com alguma euforia e esperança, o fim da II Guerra Mundial. A ditadura manteve-se de pedra e cal,  e a tua mãe teve de continuar a ser pai e mãe durante o resto da vida. Quando muito lembras-te,  isso sim, de ela  barafustar, à mesa,  contra a carestia da vida na época em que andavas na escola primária. Nunca te faltou nada, isto é, o pão à mesa.

A tua mãe também não era beata, se bem que fosse à igreja, uma vez por outra, em cerimónias militares oficiais e em certas datas, por conveniência social: na festa de Natal, no dia do Regimento, no dia nacional da infantaria, etc. Afinal, era casada com um militar de carreira (e isso era, de facto,  uma pequena promoção social naquele tempo, para uma filha e neta de trabalhadores dos arrozais). A tropa, mal  ou bem,  era também um pouco a sua família alargada… E depois tinha orgulho no seu "menino que andava nos Pupilos do Exército". Fazia gala de o dizer às amigas, vizinhas e patroas.  Todavia, não havia nesse tempo grandes misturas, entre as famílias dos senhores oficiais e as dos sargentos… Eram oriundos de estratos sociais diferentes, estava tudo dito.


Em todo o caso, para completar o magro vencimento do teu pai, a tua mãe vira-se obrigada a trabalhar de costura, em casa, e fazer bolos para festinhas, nomeadamente para as famílias dos oficiais e sargentos do RI 11, em Setúbal.

Não,  também nunca acompanhou o teu pai nas quatro comissões de serviço no ultramar (Cabo Verde, Índia, Angola e Moçambique), ou nas mudanças de regimento (além do RI 11, em Setubal, esteve em Tomar e nas Caldas da Rainha). E ficaria viúva bastante cedo, aos quarenta e oito anos. 

Era mais nova  do que o teu pai. Nascera em 1920 e teve-te, a ti, aos 20 anos, já depois do teu pai regressar de Cabo Verde. (Depois nasceria a tua irmã, já falecida, que foi enfermeira, estava nos finais dos anos 60 no Alcoitão, quando o teu pai faleceu em maio de 1968, ia completar os 57 anos e passar à reserva, se bem te lembras.)

Nasceste num ano bissexto, em 1940, no dia 29 de fevereiro, uma quinta-feira, recordava a tua falecida mãe. Nasceste em casa, de um parto difícil, já quase de madrugada. Daí talvez tu teres sido sempre mais mocho do que cotovia.

Não chegou a ser preciso chamar o médico do regimento, o RI 11, onde o teu pai estava colocado, na altura. O médico era um bom homem,  alentejano de Évora. O teu pai era de Estremoz. E até se dizia que o médico era do reviralho, só por ser alentejano e republicano.

Tens uma vaga ideia de o ter ido esperar, ao teu pai, já criança com quatro anos, ou coisa assim, a Lisboa, ao Cais da Rocha Conde de Óbidos. Regressava de Cabo Verde, com a sua companhia ou batalhão, não sabes ao certo.

Terá sido a primeira vez que andaste de automóvel e, depois, de barco. Foste tu, e a tua mãe, de carro, à boleia. Não sabes de quem era o carro, pensas que era conduzido por um amigo da família, que tinha carros de aluguer na praça de Setúbal. Talvez também fosse de Estremoz, conterrâneo e colega de escola do teu pai. 

Foste até Cacilhas, ainda não havia a ponte sobre o Tejo, nem nada que se parecesse. Apanhaste um cacilheiro até ao cais do Sodré. Não reconheceste o teu pai, naturalmente, ele andara fora trinta e tal meses. E tu eras ainda muito novo.  Ele não terá vindo bem de saúde, segundo contava a tua mãe. Tinha estado na ilha do Sal e depois na ilha de São Vicente, já para o fim, antes do regresso.

Ou, se calhar, foi mais tarde. Tens as memórias de infância baralhadas. Se calhar foi quando ele voltou a partir para outra comissão, desta vez para a Índia, já como 1.º sargento, aí por volta de 1947 ou 1948, quando masceu a tua irmã. Tu devias ter 7 ou 8 anos. Já andavas na escola, deve ter sido, pois, em 1948. Lembras-te que ainda não havia o Cristo-Rei em Almada.

Ele acabou por fazer lá duas comissões, a segunda como voluntário, com direito a vir de férias de licença graciosa. Aproveitou para fazer o 7.º ano no liceu de Goa. Virá depois a frequentar a Escola Central de Sargentos. Ainda esteve em Angola, em 1961, aqui já com o posto de  tenente SGE. Acabou a sua carreira militar em Moçambique, em 1965… 


Regressou em 1967, para morrer um ano depois, já tu estavas na Guiné. Morreu cedo demais, o teu pai, ainda primeiro que o Salazar. Foi em maio de 1968. Estava o Schulz a ir-se embora. E tu no mato, na zona leste,  quando recebeste a triste notícia. Não foste ao funeral do teu pai, não te deram a devida autorização a tempo de apanhar o avião da TAP. Uma prepotência ou uma mesquinhez que nunca perdoaste ao teu comandante do batalhão. Talvez por esse motivo nunca morreste de amores por ele. (Soubeste, mais tarde, que, sendo
  hipocondríaco e egocêntrico,  não suportava a ideia de ficar sem médico, em pleno mato,  na tua ausência.)

Escassos meses depois de chegares à Guiné, foste colocado no Hospital Militar de Bissau, "onde fazias muito mais falta do que no mato", segundo a ordem pessoal que recebeste de Spínola, ainda brigadeiro,  o teu comandante-chefe que  tiveste a honra de conhecer na altura. 

Com o recrudescimento da guerra e o aumento dos efetivos militares, havia falta de cirurgiões, anestesistas, estomatologistas, intensivistas, etc., para além dos tipos da medicina tropical, que as doenças infectocontagiosas eram mais do que muitas. Com um diganóstico de hepatite, mandava-se um desgraçado tratar-se na metrópole, o que para muitos era a "sorte grande"... 

Estás a falar do Hospital Militar de Bissau,  o HM 241 (ainda te lembras do número). E, em boa verdade, foi um grande escola para ti e outros medicos e cirurgiões. Foi lá que fizeste verdadeiramente o teu internato em cirurgia geral e  ortopedia. Tiveste lá grandes mestres. O que não admira, também não faltava "matéria-prima". E depois, com o Spínola, o Hospital tornou-se um verdadeiro orgulho para todos. Dizia-se, sem exagero, que era o melhor hospital da África Subsariana, só tendo paralelo nos hospitais centrais da África do Sul… (Não sabes, nunca lá estiveste nessa altura.)

Ganhaste admiração pelo homem e pelo militar, que fazia visitas frequentes  ao pessoal do hospital, aos serviços e aos doentes internados.  Ele e a esposa, a simpatiquíssima dona Helena, uma senhora muito fina. E falaste com ele mais do que uma vez. Chegou-te a convidar para ficares na Guiné. Ele sabia que tinhas sido "pilão",  e julgava que tinhas as virtudes militares no teu ADN (coisa que verdadeiramente tu nunca pudeste confirmar).

Em suma, e voltando à tua infância e adolescênia, cresceste com um pai ausente, que tu mal conhecias, a não ser pelos retratos que a tua mãe e espalhava pela casa, com uma velinha acesa para que a santa da sua devoção o protegesse. Quando vinha a casa, recompensava-te com alguns brinquedos, baratos, de lata, e sobretudo muitas histórias. Era um bom contador de histórias, sabia as aventuras todos do Tigre da Malásia, dos livros do Emílio Salgari. Mas nunca falava da guerra,  da guerra do ultramar, que depois passou a chamar-se guerra colonial...


Era um homem meigo, contrariamente à tua mãe (que, coitada,  tinha de ser pai e mãe, que tinha de
 dar o pão, o amor e a educação, a ti e à tu mana; era uma mulher precocemente marcada pela dureza da vida e pelas agruras do casamento com um homem ausente do lar).

Por tudo isto, é difícil responder a perguntas estúpidas como aquela de saber se tiveste uma  infância feliz...  Também não sabes por que razão é  que foste agora desenterrar estas memórias, recalcadas,  do passado.
Na semana em que fizeste 70 anos, o dia 28 de fevereiro de 2010 calhava a um domingo e o dia 1 de março era segunda-feira. Alguém sugeriu fazer a tua "festinha de despedida" na sexta-feira à noite, mas tu opuseste-te terminantemente.

Durante os dias úteis da semana não dava jeito, porque afetava o normal funcionamento do serviço e muita gente não poderia vir. E depois nunca se devia comemorar o aniversário natalício, na véspera, porque dava azar. E tu nessas coisas, eras mesmo supersticioso. Ou não fosses cirurgião.

Ah, sim, as profissões de rilsco têm os seus mlecanismos de defesa contra o sofrimento psíquico. Já alguém te explicara isso, num congresso médico em França: dos toureiros aos pilotos de avião, dos mineiros aos tipos que trabalham nos arranha-céus, dos artistas de circo aos pescadores de alto mar, sem esquecer os polícias e os militares… Todos têm que saber racionalizar os riscos a que estão expostos. 

No caso dos médicos, eles lidam todos os dias com a doença e a morte, pelo que acabam por ter a perigosa ilusão de que são invulneráveis e imortais. Por outro lado, estão sujeitos ao erro, à incerteza... Mas o preço a pagar é, muitas vezes, a exaustão. 

Enfim, a "tua festa" (ou foi a festa dos outros ?)  acabou por ser marcada para um sábado, dia 6 de março de 2010.

Bolas, já lá vai uma boa dezena de anos!... Como o tempo passa. Há mais de meio século atrás andavas em Bissau a amputar pernas e braços, de homens, brancos e pretos, apanhados pelas malditas minas e armadilhas que o PAIGC punha nos trilhos e picadas. Mas também da população civil, nomeadamente fula, que era atacada com armas pesadas e balas incendiárias, nas suas tabancas, sem dó nem piada. 

Enfim, mesmo na retaguarda de um hospital viste o suficiente da guerra para não falar dela de ânimo leve e, muito menos, com saudade.

Com Spínola, há uma escalada da guerra. Mas não se discriminava ninguém... Propaganda? Não, no HM 241  chegava-se a a operar "turras" do PAIGC (e até um cubano, o capitão Peralta!),  feridos e aprisionados pela tropa e evacuados de helicóptero, que custava uma pipa de massa à hora. 

Recordas-te da péssima disposição com que te levantaste, nessa sexta-feira, dia 26 de fevereiro de 2010. Era o teu último dia de trabalho. Segunda feira era já o início de outro mês. Costumavas dizer que só fazias anos de quatro em quatro anos, nos anos bissextos. A partir de 2010, fizeste questão, talvez por pirraça, de deixar de fazer anos...

Nessa semana tu atingias o limite legal de idade para trabalhar na função pública, neste caso no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Já te poderias ter reformado alguns anos antes, acumulando os anos de serviço com o tempo da tropa. Mas não quiseste. Por altruísmo? Por amor ao serviço  público? Não  tens a certeza... Se calhar, foi antes por medo de ir para casa onde ninguém te esperava de braços abertos . Chamavam-te, por isso, o “dinossauro” do Hospital, o "velhadas", o "marreta", o "missionário"  e outros mimos. 


É uma imposição estúpida: sentias-te ainda, aos 70 anos, em boa forma, física e mental, com forças para continuar a dirigir o serviço de ortopedia, que era o teu mimo,a menina dos teus olhos. É certo que já não operavas há uns tempos. Ou melhor: ias fazendo uns “biscates” para não perder a firmeza da mão… Enfim, umas coisas mais leves: fraturas simples, joanetes, uma ou outra artroplastia do joelho, umas infiltrações... Por outro lado,  tinhas uma excelente equipa, de fazer inveja a qualquer hospital.

De qualquer modo reconhecias que um tipo, aos 70 anos,  já não tem o mesmo treino de mão, a mesma agilidade, a mesma paciência, a mesma resistência e os mesmos reflexos de quando era mais novo. E sobretudo a mesma pachorra para aturar os diretores clínicos e os administradores hospitalares e as suas folhas de excel, os gráficos de desempenho, qualidade e produtividade, enfim, para lidar com a burocracia e a numeracia da saúde. Um hospital, público ou privado, é uma fábrica, é cada vez mais gerido como uma fábrica. E infamante foi a imposição do controlo biométrico da assiduidade, da iniciativa de um ministro qualquer, de quem também já esqueceste o nome.

Uma parte dos teus colegas, nesse tempo,  reformava-se do público, logo que preenchia os requisitos legais, na expetativa de vir a poder trabalhar na privada. Alguns até aceitaram ser penalizados na contagem de tempo. Mas era uma ilusão. No privado eram esmifrados até ao tutano. E tinham que alimentar todos os setores da fábrica, da imagiologia ao bloco operatório, da hotelaria aos cuidados médicos e de enfermagem, do nascer ao morrer...


Nunca pensaste em vir a trabalhar na privada, querias tu dizer, numa clínica ou num hospital fora do SNS. E muito menos depois de acabar a carreira no público. Afinal estavas cansado de aturar doentes cada vez mais reivindicativos (e que sabiam tudo da sua doença através da Wikipedia!),  para além dos constrangimentos impostos pela direção clínica e o conselho de administração, da escassez de recursos humanos e materiais, das birras dos anestesistas, da ingratidão dos internos, dos narizes empinados das senhoras doutoras enfermeiras,  

Acho que fizeste bem em pôr um ponto final na tua aventura terrena no domínio da saúde… Na próxima encarnação, serias o que Deus ou o Diabo quisessem…

Estavas em regime de dedicação plena, o que era raro na tua especialidade, que até pode ter uma baiuca cá fora numa qualquer clínica com nome de santo. De qualquer modo, aos 70 anos, punha-se o dilema: o que irias fazer a partir de então, com todo o tempo do mundo à tua frente?!... 

Cedo te apercebeste, depois de reformado, que o tempo era, afinal, depois da saúde e da liberdade, o recurso mais precioso que um homem tinha, e que em geral era mal gerido... 

Afinal, deste conta de que desperdiçaras uma boa parte da tua vida. E, de ciência certa, só se vivia uma vez. Tiveste essa terrível certeza quando, logo aos sessenta, começaste a ver desaparecer alguns amigos e conhecidos.

Não eras escritor nem pintor como alguns dos teus colegas médicos, mais talentosos e famosos. Vivias na periferia de Lisboa e tinhas perdido as tuas raízes em Setúbal e no Alentejo. Perderas completamente o rasto aos teus parentes de Alcácer do Sal e de Estremoz. Também nunca tiveste o culto da família. E infelizmente também nunca tiveste um filho. A tua vida conjugal não fora feliz. Casaste-te, descasaste-te, e com o tempo, depois de alguns relacionamentos desastrosos, começaste a  ficar cada vez mais... misógino.

Mas, voltando ao teu almoço de despedida e à tua retirada de cena…Desde o início do ano de 2010, tinhas o sacana do teu adjunto à perna, a contar os dias do calendário, sempre  à espera do "grande dia" em que o "o filho da puta do velho" (sic) arrumasse de vez o bisturi e despisse a bata… Se ele não o dizia, bem o pensava: “O filho da puta do velho!”…

Reconhecias que tu eras o último obstáculo para ele subir até ao topo da hierarquia do serviço… Para isso, era preciso "matar o pai"…

Mas tu não o condenavas… No lugar dele, tu farias o mesmo, confidenciaste a alguém. De certo modo, acontecera-te o mesmo com o teu "patrão" no hospital anterior, onde começaste a tua carreira. Desististe de esperar que ele arrumasse as botas, tinhas mais três ou quatro rivais à frente… O que fizeste foi concorrer para outro hospital, que ia abrir e que tinha vagas para ortopedistas, e logo a chefiar. Aliás, foste tu  que, aos quarenta e tal anos, foste montar o serviço… E essa foi a tua coroa de glória, abrir um serviço de raiz.


Em suma, já estavas ali, no último hospital em que trabalhaste, há uma eternidade… Enfim, chegara a vez do render da guarda, por muito que isso te custasse. 

Mas voltando ao teu sucessor: e se tu foste um pai para ele!... E que pai!... Recebeste-o de braços abertos, ajudaste-o a fazer o internato da especialidade e, se ele hoje é um grande ortopedista, muito melhor do que tu (és tu próprio a reconhecê-lo), a ti também o deve. Pelo menos em parte. O resto é mérito dele e da estrelinha da sorte que o levou até ao estrangeiro onde aprendeu novas técnicas que tu não dominavas... É verdade?!

Em contrapartida, ele foi o filho que tu nunca tiveste.

Reconheces igualmente que tu foste uma espécie de pai tirano. Foste muito mais exigente e menos condescendente com ele do que com qualquer outro dos internos que por lá passaram pelo serviço. Porque ele era melhor do que os outros, ou tinha que ser o melhor. Provavelmente ficou-te a odiar… Mas nunca o deixou transparecer. É apenas o teu “feeling”…

Em suma, tu e ele tinham, então, na véspera da tua jubilação (odeias a palavra!), uma relação de amor-ódio, latente.

No almoço, nesse tal sábado, foi ele que fez o discurso da praxe… E que discurso! Deixou-me sensibilizado, quase até às lágrimas (a ti, que não tens lágrima fácil)… É difícil, se não impossível, saber se foi sincero, ele era um homem, ainda jovem, brilhante, eloquente, de grande inteligência e um sedutor nato, um "charmoso", bendito entre as mulheres.

Foi ele e a tua secretária clínica que organizaram tudo… Apareceu quase toda a gente, médicos, enfermeiras, assistentes técnicas e administrativas… O mulherio em peso, não tanto por ti mas mais provavelmente por ele, que era o teu sucessor. O poder é afrodisíaco, alguém o disse.

Veio também o teu colega de Ortopedia B, que nunca foi teu amigo íntimo, mas era um colega, bom e leal (também passara pela Guiné)... E  mais alguns médicos, esses, sim, amigos, dos poucos que tu tinhas no Hospital. Nunca foste um homem muito sociável nem de trato fácil, mas sempre foram vinte e tal anos passados naquele hospital, a que chamavas a tua casa. Achavas que era respeitado e, no mínimo,  estimado. Hoje não tens tanta certeza.

O hospital, ou seja, o conselho de administração, ofereceu-te uma salva de prata com o teu nome gravado, e duas linhas de blá-blá de cujo teor já não te lembras. O Ministério da Saúde também te deu uma medalha de mérito (era o mínimo!). E o pessoal do serviço, incluindo os participantes no almoço, tiveram a gentileza de te presentear com um “voucher” para tu fazeres um cruzeiro à Grécia, com visita ao sul da Itália (Vesúvio, Nápoles, Pompeia...), e uma excursão ao templo de Asclépio, em Epidauro, no Peloponeso, na Grécia, onde começou a grande aventura da medicina ocidental de que tu, embora insignificante ator (modéstia tua), também fazias parte.


Não sabes porque é que estás agora a recordar o teu passado. E, depois, a conversa é como as cerejas. Tem piada, reconheces que há séculos que não falavas da tropa, do teu passado como alferes miliciano médico, entre 1968 e 1970, na Guiné de má memória. Em boa verdade, desde que regressaste em 1970... (Também nunca ninguém tivera curiosidade em saber, nunca te perguntaram, nem tu falavas sequer sobre esse período da tua vida. )


Guiné de má memória?!... Confessas que não tens saudades desse tempo, a não ser pelo que aprendeste como médico e como ser humano. Da guerra não tens saudades, as guerras nunca são populares, e aquela muito menos o era. E tens pena de então não teres conhecido melhor os Bijagós onde fizeste uma pequena visita,  num fim de semana prolongado, 

Com os primeiros tempos de Spínola, logo em meados de 1968, tens a ideia de que a guerra se agravara, de um lado e do outro. Chegavam feridos muito graves ao Hospital de Bissau, politraumatizados, que era preciso tratar de imediato. O teu maior orgulho foram as vidas que conseguiste salvar, embora alguns dos rapazes que tu (e a tua equipa) operaste, tenham ficado deficientes para o resto da vida. Nunca, como naquele lugar distante da tua terra, tu tiveste a perceção da justeza do velho aforismo hipocrático: "A vida é curta e a arte é longa"... A arte, a  medicina, a cirurgia, as ciências da saúde. Quantas vezes não te sentiste impotente, inseguro, frustado com as limitações do teu conhecimento e do teu treino, com a escassez de recursos, técnicos e humanos....

A Guiné era pequena, aí do tamanho do Alentejo, e ainda mais pequena na maré-alta, a Força Aérea chegava a todo o lado, nomeadamente os helicópteros, os Alouettes III, que faziam as evacuações Ypsilon (se bem te recordas). Eram as ambulâncias do céu,  estavam equipadas com bom material de suporte de vida, e enfermeiras paraquedistas que prestavam logo, "in loco", no mato ou em pleno, os primeiros socorros, essenciais para manter o fio da vida até Bissau.

Elas eram poucas, mas desdobravam-se em múltiplas missões e foram uma mais-valia (como se diza agora...) para os serviços de saúde militares. Eram muito jovens mas corajosas e competentes. Já não te lembras do nome de nenhuma delas, nem sequer da cara. 

Sabes, isso sim, que, às vezes, ao domingo, chegavam a almoçar juntos, os médicos do HM 241 e elas. Se bem te recordas, os oficiais paraquedistas e os pilotos de Bissalanca guardavam-nas com algum ciúme e e sentido de posse, como "fêmeas do seu harém" (dizia um despeitado de um colega teu)... Uma coisa patológica? Nada, era mais uma manifestação do corporativismo castrense... Na realidade, elas eram poucas e valiosas e pertenciam à Força Aérea, se bem que não dormissem na base de Bissalanca.

Do mato, propriamente dito, tens poucas recordações. Fotos, algumas, mas não te lembras  onde param. Uma das situações que te marcou, talvez pela positiva (o que até pode parecer estranho!), foi a receção que te fizeram no quartel que te calhou na rifa (já não te recordas do número do batalhão).  

Tu já estavas avisado que os gajos mais velhos gostavam de pregar partidas aos "periquitos"… Mas nunca mais te lembraste desse precioso "lembrete", que já trazias de Mafra…  

Recordas-te de ter chegado ao sítio onde foste colocado, em 1968, não longe de Bafatá (não interesse agora o nome), 
nos finais da época seca,  a de maior atividade operacional, de parte a parte. Ao que parece, o quartel nunca tinha sido atacado, nem nas proximidades havia atividade inimiga recente, a não ser a norte do rio Geba e ao longo da margem direita do rio Corubal donde o PAIGC nunca fora desalojado...

Foste de avioneta, viste aquela enormidade de terras pantanosas e alagadas, e aqueles rios em ziguezague que eram a estreita porta de entrada na zona leste.

Mal acabaras de arrumar os teus pertences, num quarto partilhado com mais dois alferes, no edifício do comando, ouves alguns rebentamentos e rajadas de armas automáticas. E depois um profundo silêncio… Nem tiveste tempo de ficar acagaçado, veio logo um militar de transmissões chamar-te à pressa, porque tinha havido uma emboscada com mina anticarro, ao fundo da pista, ali a menos de um quilómetro e tal… Havia “manga de mortos e feridos”!… Manga? Não percebeste...

Logo as Daimlers e o piquete que estavam de serviço, partiram a toda a velocidade, ao longo da pista, do lado de fora do arame farpado…

Um dos majores, talvez o segundo comandante, já não podes precisar, eufórico, quase histérico, apareceu, equipado a rigor (o que te surpreendeu, já que tinhas estado com ele, há menos de um hora!), a conduzir um jipe, mais o furriel enfermeiro, com a bolsa dos primeiros socorros… Os maqueiros já tinham seguido com o piquete, garantia-te o furriel. Havia uma grande excitação no ar, com gente a correr pelo corredor que ia dar à messe, atropelando-se uns aos outros...

O major deu-te ordens, com voz grossa (mas que te pareceu... algo teatral), para tu subires para o jipe. (Tratava-te, com alguma deferência, por doutor e não pelo teu posto.) … Tu nem sequer estavas de camuflado, nem tinhas nenhuma arma de defesa distribuída… Ficaste sem pinga de sangue, confessarás mais tarde, mas veio ao de cima o teu sentido do dever hipocrátrico, mais forte do que o medo do cagarolas do militar "periquito"… Pegaste na tua malota, ali à mão, e lá seguiste com o major a todo o gás…

Até apareceu uma "enfermeira paraquedista", vinda não sabes
 donde, de calça de camuflado, cabelo bem apanhado, e uma T-shirt branca, e  que, para vergonha tua, era bem  bem mais expedita e desembaraçada do que tu, no socorro aos "feridos"… Eles eram tantos que tu não sabias para onde te virar… E cada um gemia mais do que o vizinho... Mas, estranhamente, não havia fraturas expostas...

Ainda levou uns bons minutos até tu te aperceberes que tinhas caído… na esparrela!... Foras praxado, que nem um pato, para gáudio daquela cambada de malandros que estavam a escassos semanas de acabar a comissão!... Disseram-te depois que os oficiais "periquitos", de rendição individual, eram todos praxados à chegada... Mas nem todos gostavam da brincadeira!...

A encenação estava tão bem feita que até o sangue era sangue mesmo, embora de galinha ou de vaca, não era mercurocromo, como nos filmes de cobóis.

Soubeste mais tarde que a "enfermeira paraquedista" era a esposa de um dos furriéis ou alferes da CCS, e o que o furriel enfermeiro tinha sido o "cérebro" da brincadeira, com a cumplicidade sacana do major… 

Não levaste nada a mal, mostraste o teu "fair play", convidaste a malta  para o bar de sargentos, pagaste logo uma rodada de uísque a toda a malta, atores e figurantes… Em boa verdade, duas rodadas, que te custaram o equivalente a duas ou três garrafas!... Os gajos eram umas esponjas...

Pronto, são estas as histórias de que tu ainda  te lembras do teu passado, da infância, da juventude, e da guerra, ou das guerras, a da Guiné e dos hospitais onde, num caso como noutro, procuraste sempre fazer (e dar) o teu melhor… Tens a consciència do dever cumprido como médico, quer civil quer militar.

E aqui fica o resumo  da entrevista que aceitaste dar, com alguma relutância, para um projeto de investigação  sobre os médicos na guerra colonial...  Não tens a certeza da tua história valer grande coisa, mas esperas, ao menos, que os jovens historiadores façam bom uso dela. 

© Luís Graça (2019). 

Revisão: 21/1/2024
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Nota do editor: