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sábado, 6 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21859: Os nossos seres, saberes e lazeres (436): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (5): A despedida de Óbidos, em breve regresso (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
É o princípio do adeus temporário a Óbidos, a tal vila de grandioso acervo e muita história que deve ser visitada com um guião para não se perderem contemplações tão estimáveis como as torres medievais de D. Dinis e D. Fernando, os seus templos religiosos onde pontificam obras de Josefa d'Óbidos, há que visitar o palácio quinhentista de D. João de Noronha, transformado em pousada, percorrer a cerca, entrar nos museus e nas livrarias, sentir que até ao século XVI esta vila de Óbidos teve um desempenho determinante na região até que a rainha D. Leonor fundou o Hospital Termal das Caldas da Rainha. E poder usufruir dos diversos movimentos artísticos posteriores, caso do Renascimento e do Maneirismo, e aí o visitante anda entre os templos religiosos e o Museu Municipal que é o que de seguida vamos fazer antes de aqui partir com imensa vontade de regressar.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (5):
A despedida de Óbidos, em breve regresso


Mário Beja Santos

Está quase na hora de partir deste povoado que ainda guarda vestígios da antiga Medina, onde é marcante a presença do gótico, onde há muito Renascimento e Barroco, impressionantes livrarias, como a do Mercado Biológico, olha-se para um lado e temos o casario adossado à muralha, as igrejas esperam-nos com novas surpresas, há sempre elementos para nos surpreender no museu municipal, ninguém fica insensível à porta de Nossa Senhora da Graça. Temos o castelo e as torres medievais, a incontornável Rua Direita, quem tem tempo e pernas pode ir visitar a igreja medieval de Nossa Senhora do Carmo, fora das muralhas, a Oeste, o mesmo se dirá do Aqueduto Rainha Dona Catarina, da Torre do Facho, contemplar o edifício provável do que terá sido a judiaria, e temos finalmente o Paço Quinhentista. É a omnipresença do passado com a devassa permanente das atrações turísticas. Vila de grande influência, destronada pelas Caldas da Rainha. Percorrem-se as muralhas, e há aquelas fendas que mostram lá em baixo a Várzea estuante, os livros recomendam um passeio no interior da Cerca Velha, estamos agora na Rua Direita, há várias portas, a Porta da Telhada, a Porta do Vale, a Porta da Vila, a Porta da Cerca, a Porta da Traição. Prosseguimos desinteressados de nomes, o que queremos é panorâmica desafogada, talvez bafejados pela sorte captou-se esta primeira imagem e não se esconde regozijo, para todos os efeitos é uma imagem que iremos recordar deste encontro feliz com a história e a cultura de Óbidos.
A princezinha que nos acompanha, a minha adorada Benedita, a neta que testemunha o meu futuro, avisou que se quer expor numa grande angular, também para um dia recordar como estava feliz, mesmo sem ter subido à Torre de Menagem, mesmo sem ter dado um grande apreço aos acervos das igrejas de Óbidos, estava a dar-se muito bem com a viagem, o nome do rei D. Afonso Henriques não lhe era estranho e apreciava aquele entusiasmo do avô com os quadros da Josefa d’Óbidos e até não desgostou do túmulo de D. João de Noronha, havia aquela promessa não concretizada de à tarde haver um bom banho nas praias do Baleal ou na Lagoa de Óbidos, correu tudo ao contrário, a água bem fria e nevoeiros caprichosos. Mas nada disso tirou a boa disposição à Benedita, radiante com a sua boa mesa e a variedade de passeios, entre a serra e o mar. Daí não ser de estranhar ela estar a sorrir-nos como dona do mundo, e pronta para continuar o passeio, aprendeu a lição que a viagem nunca acaba desde que o viajante não desista.
Não há só um museu em Óbidos, Abílio Mattos Silva, artista plástico, cenógrafo de nomeada (1908-1985) era do Sardoal e de Óbidos por adoção, fez de tudo um pouco na vida, chegou mesmo a ser Diretor de Cena do Teatro Nacional São Carlos, distinguiu-se na Pintura e deixou cenários impressionantes, este está patente no museu que dele tem o seu nome, ali mesmo no centro histórico. No Museu Municipal também goza de digno acolhimento.
A região de Óbidos e das Caldas goza da fama e proveito de ter azulejaria de renome, ninguém resiste à decoração barroca da passagem central da Porta da Vila, invulgar em todos os sentidos. Envolvendo um oratório, temos, como era da praxe, alegorias à Paixão de Cristo, tudo admiravelmente integrado no suporte arquitetónico. O revestimento prolonga-se pelas paredes laterais, a obra é situável cerca de 1740, é associada ao pintor Valentim de Almeida. No livro Linha do Oeste, já aqui referido, escreve-se: “A decoração desta porta de Óbidos talvez esteja relacionada com as várias passagens de D. João V pelo local, para usufruir dos banhos das Caldas após o ataque de paralisia que sofreu, em maio de 1742, fazendo grandes ofertas e promovendo obras neste local”. O que interessa é a harmonia do conjunto e o deslumbramento que provoca cada um destes painéis, é a satisfação de todas estas partes somarem um todo.
Seguem-se imagens diversificadas, só possíveis de tomar em diferentes pontos da muralha do castelo.
Não foi ao acaso que a UNESCO atribuiu a Óbidos o título de Cidade da Literatura. Aqui se concentram livrarias de impressionante dimensão, é o caso da livraria da Adega ou a do Mercado Biológico, unidades de cultura de dimensão impressionante, há mesmo um livreiro que vende antiguidades e livros antigos e tem tipografia para edições quase personalizadas. Com regularidade, aqui decorrem encontros como aquele em que esteve presente Luís Sepúlveda, vítima mortal do COVID-19. Quem visita Óbidos não pode deixar de contemplar os livros transformados em obras-de-arte, como se fossem as mais criativas instalações de papel.
E volta-se ao bulício da Rua Direita, fixa-se a atenção numa buganvília, um vermelho de sangue a relevar do branco imaculado, com enfeites de vária ordem, chamariz para o turista, olha-se para o relógio, o grupo está de acordo, é a última visita ao Museu Municipal e depois ala morena que se faz tarde, estão todos com vontade de um bom peixe em Peniche, ainda há paragens pelo caminho, até Lisboa.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21826: Os nossos seres, saberes e lazeres (435): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (4): Regresso a Óbidos, o desfrute de uma vila artística, agradecimentos a Dona Josefa (Mário Beja Santos)

sábado, 30 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21826: Os nossos seres, saberes e lazeres (435): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (4): Regresso a Óbidos, o desfrute de uma vila artística, agradecimentos a Dona Josefa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Aproxima-se o final da estadia em Óbidos, surge inevitavelmente esta sensação de pesar, por haver tanta coisa que fica por ver, em Óbidos e arredores. Hoje é dia de reverenciar uma das nossas artistas maiores, Josefa d'Óbidos, procurar visitar a preceito o Museu Municipal, uma instalação cultural magnífica, andar por igrejas, rever livrarias, passear pela cerca do castelo, registar o que estas ruas mostram de boa conservação, toda a vila tem um chamamento a civilizações pretéritas, vale a pena percorrer os jardins e até perceber porque é que a UNESCO atribuiu a Óbidos o título de Cidade da Literatura.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (4):
Regresso a Óbidos, o desfrute de uma vila artística, agradecimentos a Dona Josefa


Mário Beja Santos

Começo o dia na Igreja de Santa Maria, chegou o momento de reverenciar Josefa d’Óbidos, nada melhor que pegar no historiador de Arte Vítor Serrão, alto especialista no Maneirismo, e citar o seu trabalho publicado pela Quetzal Editores em 2003: “É a nossa mais conhecida artista barroca, e o testemunho mais vivo, em tonalidades regionais, de uma cultura de retórica imagética, de simbologia decorativa e de requintada elevação sensual que, aliadas a uma espiritualidade tridentina, a situam no mesmo mundo de referência de um Padre António Vieira na oratória messiânica, de um Dom Francisco Manuel de Melo nas exaltantes narrativas literárias desse ‘tempo escuro’ de bloqueio nacional, de uma Soror Maria do Céu na sua poesia feita de arrebatamentos místicos, ou de uma Soror Mariana Alcoforado na sua amorosa epistolografia paraerótica. Os quadros de Josefa respiram o mesmo sabor: falam da religião, e falam com Deus, como se se tratasse de coisas simples e a todos acessíveis, estimulam os saberes da vista e adoçam os sabores do olfato, dialogam com os frutos dos pomares, as flores silvestres, os rebanhos de ovelhas e as vacas em pastorícia, com a água das fontes, a humidade da terra arada, a bravura dos ventos marinhos, em suma, com todos os elementos naturais, assim simplificando nessa visão bucólica as complexas vias artísticas da alegoria moral (…) Foi autora de adoçados Cordeiros Pascais em cartelas de flores e de ingénuos Meninos Jesus ora nus, ora vestidos de tule e rendas, ora ataviados como fidalgos de província ou amoráveis peregrinos, que faziam as delícias de uma clientela beata doméstica ou monacal; foi criadora de numerosas naturezas-mortas de aparato efeito cenográfico na representação de barros, frutos e flores, género que lhe conferirá o grau mais afirmado de originalidade; foi autora, por certo irregular, de pintura religiosa para ciclos decorativos ou retábulos de altar; foi executante de miniaturas de cobre onde a expressão do desenho e o sabor das composições se aprimoram…”. Enfim, um dos nomes consagrados das Artes Plásticas em Portugal no século XVII.
Entrei na Igreja de Santa Maria também com outro livro na mão, já referido, Linha do Oeste, coordenação de Benedita Pestana, Assírio & Alvim, 1998. É que além de Josefa d’Óbidos a Igreja de Santa Maria reserva outras surpresas. O interior da Igreja está ricamente revestido com azulejos seiscentistas, tem peças de Arte extraordinárias como seja o retábulo maneirista da capela-mor e o magnífico túmulo renascentista de D. João de Noronha e D. Isabel de Sousa, figuras nobres que se destacaram pela sua ação mecenática. Se o nome de D. João de Noronha está ligado à construção do Paço dos Alcaides no castelo, o de D. Isabel de Sousa está intimamente relacionado com a encomenda do seu próprio túmulo e do seu marido. Construído em pedra calcária de Ançã, o jazigo apresenta um arco de volta perfeita, ladeado por plintos e respetivas pilastras decoradas com motivos ao romano, encimadas por estátuas de profetas, cobertas por baldaquinos. A coroar toda a composição, encontramos uma representação da Assunção da Virgem e de Deus-Pai abençoando. Não se conhece o autor desta maravilha, há quem o atribua a Nicolau Chanterene, pela semelhança estilística com outras obras suas realizadas entre nós. O mais importante é que pela sua estrutura e decoração o túmulo de D. João de Noronha e D. Isabel de Sousa introduziu o formulário renascentista na região, trata-se de um símbolo de grandeza e de poderio, testemunha um gosto estilístico que conheceu um período de vigência relativamente curto em Portugal, motivado pela utilização prolongada das formas tardo-góticas e pela adoção desde cedo das formas maneiristas. Dito preto no branco, trata-se de um exemplar mais magnificente da escultura renascentista em Portugal.
O Museu Municipal de Óbidos é de visita obrigatória, os pontos de referência são em bastante número: Cruzeiro, Igreja de S. João Baptista, livrarias, a porta da vila, toda a Rua Direita, o edifício dos Paços do Concelho, a Capela de S. Martinho, a Igreja de S. Pedro, a Igreja da Misericórdia, a Igreja-Matriz de Santa Maria, há dois museus, este e o Museu Abílio de Mattos e Silva, entre outras belezas. O Museu é um antigo solar do século XVIII, foi residência do pintor Eduardo Malta, é muito compósito, desde Arte Sacra a Arte Contemporânea encontramos lá um pouco de tudo. É um espaço que a museografia brindou, trata-se de uma residência, o pintor Malta procedeu a alterações, está ricamente beneficiado com azulejaria, é bom que o visitante, se estiver em Óbidos mais de um dia, ali regresse para rever e usufruir de espólio tão rico em condições de exposição atraentes. E terá mais uma oportunidade de contemplar obras magnas de Josefa d´Óbidos.
Museu Municipal de Óbidos
Peça sem título, de Graça Pereira Coutinho, um espantoso aproveitamento de restos de cerâmica que ascenderam a escultura… E que escultura!
Auto-retrato de Eduardo Malta
S. Sebastião na imaginação do artista José Aurélio

Volta-se ao exterior, o tempo é ameno, o céu azul de nuvens em viagem, pode-se ir passear entre livrarias e andar ali à volta da Cerca do Castelo, subir e descer, descer e subir, contemplar a extensa Várzea. Há sempre um pormenor a reter nestas ruas calcetadas a rigor. A hidrângea floresce e lá ao fundo temos uma janela de caraterísticas manuelinas. Vamos então desfrutar este exterior antes de emergir noutros interiores artísticos.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21799: Os nossos seres, saberes e lazeres (434): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (3): Das Caldas da Rainha à Foz do Arelho (Mário Beja Santos)

sábado, 23 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21799: Os nossos seres, saberes e lazeres (434): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (3): Das Caldas da Rainha à Foz do Arelho (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Era impossível escapar à rota caldense, um convívio que se encetou há mais de 60 anos, tudo por causa das férias na Foz do Arelho, inevitável não ir à Praça da Fruta, D. Anita, minha madrinha, acolitada por marido e ajudantes, abastecia-se de fruta e legumes, carne e peixe, nenhuma das refeições tinha menos de dez pessoas. Havia escapadas até à Pastelaria Machado, com os seus doces icónicos. Atravessava-se a cidade para ir até Peniche, o meu padrinho era conserveiro, ali havia fábrica, uma outra na Nazaré, aqui havia o ritual de uma sardinhada servida por mulheres indumentadas com as sete saias, refeição de arromba. Interessava-me visitar a azulejaria de muitos edifícios caldenses, um legado de Rafael Bordalo Pinheiro, não perdia ocasião de ir até ao Museu José Malhoa, o mestre pintou os pais do meu padrinho, são dois retratos fabulosos.
O parque continua muito bem tratado, é aprazível e dá gosto vê-lo sempre cheio de vida. Pedi a quem ia ao volante de não fazermos diretamente a estrada para a Foz do Arelho, ocorreram outras recordações, os passeios ao Bom Sucesso e à Serra, atravessar a lagoa até à Lapinha, então um lugar bem pobre. E assim se contornou a lagoa para ver o oceano e os areais como num grande ecrã, longe da aglomeração hoje urbana, da Foz do Arelho. E foi maravilhoso reviver o passado, lembrar os meus mortos muito queridos e aqueles que estão distantes, que a roda da fortuna separou. A viagem continua, regressa-se a Óbidos, há que fazer as honras à casa, e depois, de orelha murcha, fazer uma pausa nas férias.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (3):
Das Caldas da Rainha à Foz do Arelho


Mário Beja Santos

Tive esse privilégio, fazer vilegiatura na Foz do Arelho, anos a fio, em casa dos meus padrinhos, a última casa que alugaram tinha sido a colónia de férias do Colégio Moderno. Era inevitável vir às Caldas, primeiro pelo abastecimento, não há nada no país como a Praça da Fruta, muita dela proveniente de localidades limítrofes, caso da Benedita. O parque é de visita obrigatória, sempre o conheci bem mantido, com os seus cortes de ténis e a escultura de José Malhoa como que a convidar a visita do museu com o nome deste ilustríssimo caldense. E a igreja-matriz, que vem do tempo da donatária, a Rainha D. Leonor, que deu certidão de nascimento em 1488, eram as Caldas um mero lugarejo. Falava-se das cerâmicas de Rafael Bordalo Pinheiro, havia sinais do seu trabalho no Museu José Malhoa e em edifícios da cidade, bastava olhar para aquela azulejaria do tipo sevilhano. Era estância termal, não perdeu a fama, quase no final do século XIX as termas passaram a ser local obrigatório associado a férias, a população cresceu. Isto são coisas que eu estou a ler no livro Linha do Oeste, que também anuncia a chegada do comboio, a modernização urbanística, a importância da cerâmica, o Hospital Termal e a beleza do parque, obra do Administrador Rodrigo Maria Berquó, um arquiteto que procedeu à construção do parque com um lago e áreas aptas à prática de desportos. Nesses cortes de ténis, jogaram muitos estrangeiros fugidos aos horrores da II Guerra Mundial, eles estavam estacionados nas Caldas por decisão política superior, há mesmo livros que recordam a sua presença. E no século XX, em 1927, passou a cidade, destaca-se pelo seu trabalho de planeamento urbano o jovem arquiteto Paulino Montez. Mas voltemos atrás, por aqui andou Rafael Bordalo Pinheiro e deixou sinais do seu génio, a sua cerâmica era tão engenhosa que ainda hoje se reproduz e tem ávidos compradores.

Praça da Fruta, Caldas da Rainha

O Museu José Malhoa não se cinge ao romântico naturalismo deste caldense ilustre. É certo que ele está altamente representado por figuras prestigiadas da aristocracia, cenas campestres, figuras populares, retratos de amigos e discípulos como, caso do consagrado retrato que dedicou à sua discípula Laura Sauvinet, mas outros grandes artistas justificam uma demorada visita. Com efeito, a coleção de pintura, desenho, aguarela, escultura e cerâmica, onde predomina o movimento naturalista, tem obras de grande mérito e mesmo modernistas como Eduardo Viana aparecem aqui representados com obras de significado.

Estátua de José Malhoa, junto do museu do mesmo nome, Parque D. Carlos I
Retrato de Laura Sauvinet, por José Malhoa


Cidade termal, fundada em finais do século XV, sofrerá novo impulso no período joanino. Ganhou muito com o comboio, com a modernização urbanística, com o dinamismo do Hospital Termal. Não há viajante que não se abisme com aquelas construções fantasmáticas, parece que uma parte fundamental do termalismo deixou de pé uns edifícios esventrados, numa plácida agonia, mas na prática é um abandono chocante.

Os pavilhões termais, imponentes mas decadentes, Parque D. Carlos I
Os edifícios termais vistos de perto


O Parque é de uma indizível beleza, muito bem cuidado, e a prova de que é atrativo é a sua utilização para atividades desportivas, para recreio e lazer, e as instalações museológicas favorecem a atmosfera local, entra-se e sai-se para contemplar edifícios, visitar lojas de cerâmica, o meio envolvente é muito sugestivo. E é imperdível a visita à igreja-matriz, Nossa Senhora do Pópulo, está marcada pelo tardo-gótico, o seu interior é uma preciosidade em azulejaria, talha e escultura.

O viço das buganvílias num parque primorosamente mantido
A torre sineira da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, Caldas da Rainha
Uma imagem interior da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo


Prossegue a viagem em direção à Foz do Arelho, com uma nuance, não se vai propriamente pelo Nadadouro e contorna-se a lagoa, tom-se outra direção, caminha-se pelo lado oposto, há necessidade de recordar certos passeios de outrora, a praia e a lagoa eram uma outra coisa, caminhava-se pelo areal naqueles dias de bandeira vermelha e mar em turbulência, as ondas em cachão, uma constante neblina, impossível ver as Berlengas. Ia-se em direção ao Gronho, um maciço todo ornamentado de vegetação rala. Faziam-se burricadas quase até Peniche, o mar em vazante, todos na galhofa montados na azémola, com farto piquenique, ia-se até às praias de Peniche, o nosso guia sabia exatamente a tabela das marés, regressava-se à Foz do Arelho são e salvo. E foi com essa recordação, também a pensar nos passeios em que se atravessava a lagoa de barco para vir até à Lapinha, hoje tudo radicalmente transformado, que se parou diante daquele mar imenso, lá está a lagoa sempre ameaçada pelo assoreamento, deste ponto é tudo uma beleza, nem dá para acreditar que aquela aldeia que conheci vai para 60 anos se transformou e adaptou ao turismo de massas. Está na hora de regressar a Óbidos, amanhã vamos visitá-la a preceito, conviver um pouco com essa pintora extraordinária que foi Josefa d’Óbidos.

A Foz do Arelho contemplada do Gronho, a permanente ameaça da Lagoa de Óbidos assorear
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21773: Os nossos seres, saberes e lazeres (433): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (2): Conservas de peixe, um naufrágio com grande riqueza, uma fortaleza-prisão: Peniche (Mário Beja Santos)

sábado, 16 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21773: Os nossos seres, saberes e lazeres (433): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (2): Conservas de peixe, um naufrágio com grande riqueza, uma fortaleza-prisão: Peniche (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Desta feita, dei por bem registar dois períodos de férias aos ziguezagues, umas vezes estou na Serra da Estrela, outras em Óbidos ou Peniche, posso passar para o Vale Glaciar da Serra da Estrela e descer a Pedrógão Pequeno ou percorrer as Caldas da Rainha e entrar no Museu José Malhoa, não ofende ninguém, o que está em causa é o escrutínio de imagens apropriadas. Andava eu às voltas com memórias de Peniche e já tinha uma correnteza de outras imagens associadas a fábricas de burel, uma matéria-prima de que nos devemos orgulhar e que Manteigas capricha, preferi Peniche, só por razões sentimentais, memórias com 60 anos de padrinhos que foram tão influentes na minha vida, e até a recordação daquela conferência dentro da Fortaleza de Peniche em que veio à baila um dos mais importantes naufrágios de navio espanhol, se não se tivesse recuperado a carga teria sido um cataclismo económico para o nosso vizinho da Península, felizmente que quase tudo se recuperou, mas ainda ficou o suficiente para deslumbramento de quem anda na arqueologia subaquática.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (2):
Conservas de peixe, um naufrágio com grande riqueza, uma fortaleza-prisão: Peniche


Naquela semana de férias em Óbidos, lancei a proposta de passarmos um dia em Peniche, terra de memórias da juventude e mais recentes, não há muito tempo ali tinha arribado para voltar às Berlengas. O meu padrinho de batismo chamava-se Filipe da Nazaré Fernandes, era o filho mais velho de Agostinho Fernandes, um rico conserveiro, proprietário da Portugália Editora e seguramente o maior colecionador de Arte da primeira metade do século XX. Estando a passar férias em casa dos meus padrinhos na Foz do Arelho, não era incomum ele sugerir idas a Peniche, por assuntos da fábrica. No caminho, abastecia-se de vinho rosé, tanto quanto me recordo num fornecedor das Gaeiras. Enquanto ele tratava de assuntos da fábrica eu passeava pelo Bairro dos Pescadores e metia conversa com quem, na soleira da porta, fazia de bordadeira, os bordados de Peniche são requintadíssimos, felizmente hoje são credores de museu penicheiro. Outra recordação que guardo, muito mais recente, foi quando um amigo penicheiro me levou a uma conferência do arqueólogo Jean-Yves Blot na Fortaleza de Peniche sobre os achados arqueológicos então recentes do naufrágio do navio San Pedro de Alcantara, que saiu de Callao, Perú, em 1784, um navio de 64 canhões, que naufragou na Península da Papoa, Peniche em 2 de fevereiro de 1786, trazia um carregamento fundamental para a economia espanhola: 156 toneladas de metais preciosos com um valor de 7,6 milhões de pesos. Durante meses procedeu-se à recuperação desse tesouro, ficaram vestígios que Jean-Yves Blot e outros recuperaram graças à arqueologia subaquática. Perderam-se muitas vidas, 128, conseguiu sobreviver Fernando Tupac-Amaru, filho mais novo do chefe rebelde índio executado em Cuzco, em 1781. Uma belíssima comunicação, mostrando achados, pinturas, estudo de ossadas no cemitério onde foram sepultadas as vítimas.

Fábrica do Algarve Exportador em Peniche

Pintura alusiva ao naufrágio do navio San Pedro de Alcantara, perto de Peniche

Monumento evocativo às vítimas do naufrágio

Vista aérea da fortaleza que foi prisão do Estado Novo

Uma das singularidades destas habitações penicheiras assentes no alcantilado é a cor, o magnífico contraste entre as águas em cachão a ribombar sobre a rocha, a vegetação rala e o casario colorido


Fizemos as honras da casa, um bom passeio pedestre pela Peniche antiga, sem descurar a área portuária. Chegou a hora de amesendar, a neta reclamou arroz com marisco, a restante comitiva atirou-se a carapaus, sardinhas e chocos. Satisfeita a gula, marcha-se para esse maciço de pedra que o Conde da Atouguia implorou a D. João III, para intimidar a pirataria e o corso até então impune. Foi satisfeita a vontade, vê-se rapidamente que andou ali projeto importado, a localização é magnífica, respira-se poderio e segurança, é preciso entrar e ver que aquela fortaleza que servia de intimidação ao corso foi uma terrível prisão que funcionou até ao 25 de Abril. As panorâmicas são deslumbrantes, quando nos viramos para a massa líquida. Olhando lá de cima, vê-se então a prisão que começou a funcionar na Ditadura Militar, deu-se depois honra a oposicionistas de vários matizes, consagrando-lhe uma prisão que hoje é visitável. Ali viveram vários dirigentes comunistas, seus militantes, outros opositores ao regime. Houve fugas audaciosas, como aquela em que se escapuliu Álvaro Cunhal e mais outros. Passeia-se à volta deste maciço e então recorda-se a viagem de barco para as Berlengas que permite entender a extensão de toda esta nave de pedra, passear à volta de Peniche pode deslumbrar com todos estes pélagos, fragas alcantiladas, o permanente rumorejar das águas sobre os rochedos. Havia obras de conservação, certos espaços estavam interditos, deu para visitar o parlatório, ali os presos recebiam os familiares.
A neta de nove anos impacienta-se, quer ver praia, no mínimo molhar os pés no Baleal. E partimos, há o cheiro da maresia, muda-se de direção, a imponente fortaleza de Peniche fica para trás, há que voltar, e tentar descobrir por onde andam os achados arqueológicos de San Pedro de Alcantara, uns ficaram no Museu Nacional de Arqueologia mas eu quero mostrar à neta as piastras negras de Peniche, são as moedas de prata escapadas ao naufrágio que sofreram uma corrosão em presença da água do mar que dá a este betão um aspeto enegrecido. Está prometido, neta, voltamos, desde que depois vamos até ao banho de mar...

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21750: Os nossos seres, saberes e lazeres (432): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (1): Hoje em Óbidos (Mário Beja Santos)

sábado, 9 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21750: Os nossos seres, saberes e lazeres (432): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (1): Hoje em Óbidos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
A pandemia a todos incitou a fazer férias cá dentro, tentou-se a diversidade e o resguardo com muitas cautelas, no grupo incluía-se uma criança de nove anos. Assentou-se num ponto de partida, com poder irradiante, Óbidos, foi um sucesso em encontros e descobertas, até uma tarde de saudades daquela Foz do Arelho que se conheceu ainda nos anos 1950, uma quase aldeia, com passeios de burro, de bateira atravessando a Lagoa para diferentes pontos, ver-se-á adiante a radical transformação que ocorreu, para ser sincero só na Lapinha é que se encontrou vestígios desse mundo antigo, retocado e beneficiado. Há que reconhecer que o Parque D. Carlos I, nas Caldas da Rainha, está muitíssimo cuidado e entrar no Museu José Malhoa ou na Igreja de Nossa Senhora do Pópulo é muito mais do que um dever. O calor era muito, fazia-se o itinerário às parcelas, para que a vista não esmorecesse com as pernas moídas e o corpo suado. Tempos para recordar, depois mudou-se de azimute, seguiu-se para o Pinhal Interior e Serra da Estrela, tudo será contado a seu tempo, ou quase.

Abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste: Hoje em Óbidos (1)

Mário Beja Santos

Partimos para Óbidos com a declarada vontade de aqui ter poiso irradiante para vários locais de grande estimação, caso de Peniche, Caldas da Rainha e Foz do Arelho. À cautela, inclui-se na bagagem o livro Linha do Oest, Óbidos e Monumentos Artísticos Circundantes, coordenação de Benedita Pestana, Assírio & Alvim, 1998. Trata-se de uma linha ferroviária que constituiu o último grande troço da rede ferroviária nacional construído na segunda metade do século XIX. Partia de Lisboa para Torres Vedras, seguia por Bombarral, Óbidos, Caldas da Rainha, Marinha Grande, Leiria e Figueira da Foz. Encontrava em Alfarelos a Linha do Norte. Mas foi a propósito desta Linha do Oeste que se lançou um projeto coletivo de olhares sobre o património abrangendo Óbidos, Bombarral, o Mosteiro de Alcobaça, Atouguia da Baleia e outros locais circundantes. Se arribámos a Óbidos, essa preciosa vila muralhada, com belas igrejas, um palácio quinhentista e uma urbanização cuidada, havia que lhe conceder a primeira manhã de itinerância. Entre os séculos XII e XVI a vila teve o seu papel preponderante, só lhe veio a ser subtraído pelas Caldas da Rainha, a estância termal tornou pálida a sua estrela. História ligada à fundação da nacionalidade, mesmo com as Caldas a bater-lhe o pé manteve um património histórico-cultural incontornável, na dita Linha do Oeste não tem rival, mesmo depois da concorrência das Caldas retomou o esplendor, há hoje imenso turismo que vem à procura de um mundo antigo e de uma arte espetacular como seja o túmulo de D. João de Noronha ou a pintura de Josefa d’Óbidos.

Linha do Oeste, estação Algueirão Mem-Martins, 1953

Percorrendo a Rua Direita, depara-se-nos, aí a meio caminho, o Pelourinho, tendo uma importante igreja ao fundo. Deste livro da Linha do Oeste retiram-se algumas memórias do pintor Filipe Rocha da Silva, que aqui viveu a sua juventude, durante as férias. Recorda a miséria de quem andava descalço, usa alguns estrangeiros que aqui arribaram e diz: “Viver em Óbidos era um pouco um conto de fadas, uma fatalidade como a de pertencer a uma família real. A verdade é que desde então Óbidos se desertificou de habitantes e se povoou de lojas de artesanato e restaurantes, para além do zimmer, bem entendido. Tornou-se uma vila de serviços pouco diversificados. Por vezes interrogo-me sobre qual é o nexo entre um sítio como Óbidos, que se visita, e um objeto qualquer que se compra, dito de artesanato. As aldeias vizinhas, entretanto, foram-se enchendo de gente e ganhando poder e animação, como se a pesada estrutura arquitetónica da Vila-mãe dissuadisse as pessoas de lá se instalarem. O que sucedeu nos séculos anteriores em relação às Caldas e ao Bombarral, pode vir a repetir-se como as Gaieiras e a Usseira. E Óbidos restringe-se ao seu habitual papel: Centro que deve ser histórico e de lazer”.


Mais adiante, o pintor não esconde o seu entusiasmo: “A cerca do Castelo e a face adjacente das muralhas voltadas para a Várzea da Rainha são uma região notável, que deverá ser defendida a todo o custo, pois trata-se de uma espécie de bolsa ecológica mais ou menos intocada pelo boom turístico, e que funciona como um pulmão que faz que o resto seja mais equilibrado e suportado”. É um texto eivado de saudade e de uma contida melancolia, um olhar imenso sobre a Lagoa de Óbidos, lembra a chegada do pintor Eduardo Malta em cuja casa onde viveu funciona hoje um museu com uma interessante polivalência.
E por ali se circunda, anotando cuidados na boa conservação, dando muita atenção a pormenores, deixa-se para depois os pratos de substância, como a pintura e a escultura, já se saliva por ir visitar o Retábulo de Santa Catarina, na Igreja de Santa Maria de Óbidos, obra da magistral Josefa, nem sequer mesmo entrar no Museu Municipal onde há belíssimas telas de Belchior de Matos, Diogo Teixeira e até do pai da magistral Josefa, Baltasar Gomes Figueira. É uma viagem solta, sem guia, entregues à pura curiosidade, daquela que permite entrar em construções monumentais que hoje são livrarias, e que estão na base de um festival que percorre fronteiras.

E é nesta deambulação sem azimute que chego à Livraria Artes & Letras e me confronto com Luís Gomes que na década de 1980 me cuidou do arranjo gráfico e ilustrou uma publicação minha sobre a camada de ozono. Quando eu trabalhava no Ministério da Qualidade de Vida, sito na Rua do Século, aproveitava a hora do almoço para bisbilhotices culturais. O Luís, ali no Largo da Misericórdia, pontificava uma loja de livros antigos e antiguidades de vários continentes. Pressionado pelo disparo das rendas, veio para Óbidos e mantém nos mais elevados níveis de bom gosto o seu negócio. Quis surpreender-me, levou-me a uma tipografia imemorial onde a mulher produz as suas obras, que assombro, que rico depósito da história da imprensa e da tipografia.

A surpresa foi só minha, estava esquecido que no Largo da Misericórdia, em frente à Santa-Casa e à Igreja de São Roque já o Luís alardeava o seu bom gosto mostrando o que de melhor há na arte Bijagó e mesmo Nalu. A título meramente exemplificativo, embeveça-se o leitor com três peças dignas de museu. A surpresa foi total, a de rever o Luís na sua costumada caverna de Ali Babá, a de regressar à Guiné inesperadamente neste primeiro dia da Linha do Oeste. Bem feita!

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21725: Os nossos seres, saberes e lazeres (431): De Trancoso para Santa Maria de Salzedas (Mário Beja Santos)