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domingo, 25 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23643: (De)Caras (188): a morte em combate, em 21/2/1967, na sequência da Op Sobreiro, do alferes mil Américo Luís Santos Henriques, natural de Ourém, contada pelo seu cmdt da 4ª CCAÇ, cap inf Aurélio Manuel Trindade (Bedanda, 1965/67)


Lista dos alferes mortos em combate, no CTIG, no período entre 1963 e 1967 (n=20)... Entre eles, o Américo Luís Santos Henriques, da 4.ª CCAÇ, Bedanda, Sector S3, em 21/2/1967, na sequência da Op Sobreiro, em que participou também a CCAV 1484 (informação do Jorge Araújo).  Infelizmente não há nenhuma foto do Henriques.

Dos 81 alferes mortos no CTIG, entre 1963 e 1974, houve 1 por doença, 24 por  acidente e os restantes 56 em combate (*). No período em apreço (1963/67), dos 20 alferes mortos em combate, 4 pertenciam a companhias de guarnição normal: dois  da 4ª CCAÇ, um  da 3ª CCAÇ e outro da 1ª CCAÇ (que em 1967 irão dar origem à CCAÇ 6, CCAÇ 5 e CCAÇ 3, respetivamente).

Infografia: Jorge Araújo (2018) 






Guiné > Região de Tombali >  CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67) > 22 de fevereiro de 1967 > A caminho Catió... Regresso, em LDM,  da Op Sobreiro, em que perdeu a vida o alf mil Henriques, da 4ª CCAÇ (Bedanda, 1966/67). As fotos parece ter sido tiradas ainda no rio Ungauriuol, afluente do rio Cumbijã (este mais largo, entre 200 e 600 metros, pelas nossas contas grosseiras, de acordo com a carta de Bedanda, 1956, escala 1/50 mil).

Fotos do álbum de Benito Neves, ex-fur mil, da CCAV 1484.

Fotos (e legendas): © Benito Neves (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Esta morte está dramaticamemte narrada  no livro de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do antigo cap inf Aurélio Manuel Trindade, hoje ten gen ref),  "Panteras à Solta", ed. de autor, 2010, 399 pp, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército).

Os familiares, vizinhos, colegas de escola, conterrâneos, amigos e antigos camaradas do Américo Luís Santos Henriques, natural de Valada, Seiça, Ourém, bem como os nossos leitores, têm direito a conhecer esta versão, que consta de uma fonte de difícil acesso: o livro está fora do mercado livreiro, foi impresso na Alemanha, e nem sequer consta na Porbase - Base Nacional de Dados Bibliográficos. O que é uma pena: é um documento de interesse para a historiografia da guerra colonial. 

O nosso infortunado camarada só está identificado pelo apelido Henriques. Nas memórias do cap Cristo (o único nome fictício que aparece no livvro, e que é um "alter ego" do cmdt da 4.ª CCAÇ / CCAÇ 6, no período que vai de meados de 1965 a meados de 1967), o Henriques  veio substituir o Ribeiro, até então o melhor operacional dos alferes da companhia, juntamente com o Carvalho, todos eles, tal como os restantes graduados, de origem metropolitana e de rendição individual. (Descobrimos que o Ribeiro é o José Augusto Nogueira Ribeiro, nascido em Fafe, em 1940, e já falecido, em 2017: seguiu a carreira militar, chegando ao posto de cor inf quando se reformou; foi condecorado com a "Torre e Espada" por feitos nos TO da Guiné e Moçambique; no CTIG, acabou a sua comissão na 4ª CCAÇ em 15 de maio de 1966, sendo então rendido pelo Henriques).

Antes da descrição da operação em que o Henriques é morto, por um tiro isolado (seguido de forte tiroteio em emboscada do IN nas proximidades da nascente do rio Ungauriuol), vale a pena reproduzir também um pequeno excerto da sua chegada em Bedanda, em data que não podemos precisar (presumivelmente em meados de 1966, já que  foi render o alf mil Ribeiro), e em que é praxado...


Excertos de "Morto em combate" 
(pp. 349-353)


Antecedentes: 

(...) Um dia chegou o alferes Henriques, o substituto do alferes Ribeiro. Bom moço mas
ainda muito cru
. Logo no primeiro jantar foi o Carvalho a atirar:

─ Meu capitão, o posto da árvore hoje é guarnecido pelo Henriques. Eu já lhe disse que o meu capitão e nós todos não temos confiança nos negros e por isso havia um posto que durante a noite era guarnecido por um oficial ou sargento. Ele diz que eu estou a gozar com ele. O meu capitão sabe bem que todos têm de passar por aquele posto várias noites. Esta noite era eu. Como se apresentou o Henriques é ele que deve ir.

(...) Assim, nessa noite, o alferes Henriques passou todo o tempo num posto de vigia,
em cima duma árvore, com uma granada de mão sem cavilha apertada na sua mão. Teria de a lançar ao mínimo sinal de perigo, para acordar o capitão e os outros alferes.

Ele não sabia, mas a granada estava inerte pois tinha-lhe sido retirado o detonador e a
carga explosiva. Esta era uma das brincadeiras que faziam aos maçaricos que chegavam à companhia. O capitão, embora conivente, não se metia no assunto. 

Ao outro dia o Henriques estava contente porque se tinha mantido acordado toda a noite. Ele, que era um dorminhoco, não teve sono. Teve muito medo, segundo confessou, mas
aguentou. No dia seguinte contaram-lhe que tudo não tinha passado duma brincadeira.
Riu-se e achou piada. Actos destes faziam parte integrante da praxe no quartel. (pp. 184/185)

O confronto fatal

(...) O dia começou com o capitão reunido no seu gabinete com os seus subalternos.

─ Tenho informações que me dizem que depois da nossa acção no cruzamento do Cantanhez, a guerrilha construiu um acampamento na mata junto à nascente do Ungauriuol 
 [de acordo com a carta de Bedanda, e 1/50 mil] . Vamos sair esta noite para lá. Vamos apenas três pelotões mais o pelotão do Tala [alferes de 2.ª linha, cmdt do pelotão de milícias de Bedanda]. Sai à frente o Henriques, a seguir o Cristóvão e o Tala, e por último o Manuel. Penso sair do quartel à meia-noite para chegarmos ao raiar da aurora, não sei o local exacto do acampamento. Batemos a mata e seguiremos qualquer pista que encontrarmos até chegar ao acampamento. Não levamos um objectivo concreto, pretendo apenas explorar uma notícia e, mediante isso, impedir que os guerrilheiros fortifiquem o acampamento. Não pretendo deixar os tipos sossegados nesta área. Alguém tem alguma coisa a dizer?

─ Não, meu capitão. De qualquer modo gostaríamos de ir lá com um objectivo concreto em vez de bater a zona ─ disse um dos alferes.

─ Também eu gostava de ter um objectivo concreto, mas não temos. Não se preocupem porque a área está cheia de guerrilheiros e iremos encontrá-los de certeza. Saímos à meia-noite em ponto, ração de combate para um dia. Teremos um helicóptero em Cat
ió [sede do BCAÇ 1858], para evacuações. Até logo.

(...) O capitão estava preocupado. Estava desfalcado em oficiais e os que havia tinham pouca experiência ou eram fracos em termos operacionais. O capitão terá que ir mais atento a todos os pormenores. Queria falar com o Tala.

─ Tala, vamos fazer uma batida na mata entre o Ungauriuol 
[afluente do rio Cumbijã, e que passa por Bedanda], o Lama e a estrada para Guileje [a nordeste de Bedanda]. Vai à frente o nosso alferes Henriques. Tu vais entre o alferes Fernandes e o alferes Manuel. Quero que mandes falar comigo, hoje às dez horas da noite, dois guias que conheçam a zona. Não dizes nada aos guias. Quero falar com eles na presença do alferes Henriques. Levas ração de combate para um dia. Percebeste bem o que eu quero?

─ Percebi, nosso capitão.

─ Então podes ir embora. Quero o teu pelotão à meia-noite pronto para sair. Até logo.

A seguir o capitão falou com o alferes Henriques.

─ Tu vais na frente da coluna. Embora não tenhas experiência de mato, és o subalterno com mais operações feitas. O teu pelotão é bom. Vou dar instruções aos guias que pedi ao Tala e entrego-te depois esses guias. São dois bons guias. Confio em ti. Sabes bem a importância que eu dou ao pelotão que vai à frente. Da sua visão e da sua actuação depende o êxito da operação. Temos que ir muito atentos, os guerrilheiros estão lá de certeza. Eu irei sempre contigo entre a primeira secção e a segunda. Tu deverás ir no meio da primeira. Estarei perto de ti para qualquer apoio que precises. Elucida bem os homens sobre o que terão de fazer. Se encontrarmos pistas vamos explorá-las com cuidado. Olhos bem abertos para não sermos surpreendidos. Se vires que não estás em condições de ir à frente, dou essa missão a outro.

─ Não, meu capitão. Agradeço a sua confiança em mim.

─ Prepara o teu pelotão. A mata que vamos bater é muito densa e vamos ter dificuldades se formos surpreendidos. Até logo.

(...) O capitão mandou depois chamar o Lassen 
 [, seu guarda-costas] para preparar as coisas e avisar o Joãozinho   [, 2.º guarda-costas] . Deu as instruções normais aos sargentos. Sobrou-lhe ainda tempo para meditar em todas as hipóteses que poderiam acontecer e na forma de ultrapassar dificuldades inesperadas. Tinha pensado profundamente a operação e ficava convencido de ter dado todas as instruções. Só faltava esperar que a sorte não o abandonasse. Em tudo na vida é preciso ter sorte, e na guerra é fundamental. Há militares que têm boa sombra no mato e outros não.

À hora combinada a companhia saiu para o mato. O capitão decidiu ir através da bolanha direito a Feribrique, passar depois por Melinde e atravessar depois o rio Lama para começar a bater a mata. A marcha era lenta e difícil. As bolanhas ainda tinham água e eram atravessadas por pequenas ravinas e fios de água difíceis de transpor de noite. A certa altura a coluna partiu-se. O capitão mandou parar o Henriques e ordenou aos guias que fossem recuperar a coluna.

─ Como te sentes, Henriques?

─ Mal, meu capitão. Sinto-me triste. Nunca me senti assim numa operação. Não sei o que se passa comigo.

─ Não é nada. É a primeira vez que tens a responsabilidade de abrires a coluna e estás a sentir esse peso. Só prova que és um oficial responsável. No entanto, se vires que não te sentes bem, passa o Manuel para frente. Vê lá se estás bem de saúde.

─ De saúde estou bem, fisicamente não tenho nada. Sinto-me é muito triste. É como se uma desgraça estivesse para me acontecer.

─ Tens a certeza de que queres continuar à frente?

─ Tenho, meu capitão. Não podia perder a oportunidade da abrir a coluna da companhia.

─ Então segue lá. Continuamos porque a coluna já está unida. Devagar que o terreno é difícil.

Assim se reiniciou a marcha. O rio Lama foi atravessado sem novidades. Com o raiar da aurora iriam dar início à batida. O capitão mandou seguir a corta-mato até encontrarem um caminho que desse indícios de uso recente.

Passado algum tempo o Henriques falou.

─ Cristo, aqui Henriques. Tenho aqui um caminho que parece ter sido utilizado, escuto.

─ Henriques, vou já para aí, depois falamos.

Rapidamente o capitão juntou-se ao Henriques e observou o caminho. Vinha do Cantanhez e seguia para noroeste, para a nascente do Ungarinol. O capitão nem hesitou.

─ Vamos seguir este caminho até à nascente do rio. Temos de ir com muito cuidado para não sermos emboscados. Podem começar a andar.

Dadas estas instruções , o capitão chamou os seus comandantes de pelotão.

─ Fernandes, Tala, Manuel, aqui Cristo. Encontrámos um caminho utilizado recentemente. Vem do Cantanhez e segue para noroeste. Vamos seguir por aí. Manuel, cuidado com a retaguarda. Se houver tiroteio o Tala e o Fernandes aguardam ordens. Cuidado e muita atenção. Já estamos no meio deles. Digam se entenderam, escuto.

Todos tinham entendido e o capitão reportou terminado. A progressão da companhia continuou muito lenta. Os soldados, olhos bem abertos, procuravam detectar no terreno e em cima das árvores algo de anormal, um sinal dos guerrilheiros. Silêncio total. Nem a bicharada se fazia ouvir. O capitão avançou um pouco e aproximou-se do Henriques. Sabia que, se houvesse emboscada, a sorte dependeria da reacção dos homens da frente.

Apesar de todo o cuidado na progressão, ouviu-se nitidamente um tiro isolado seguindo de um tiroteio enorme. A situação foi tão inesperada que todo o pelotão se deitou imediatamente no chão. O alferes Henriques estava caído uns três a quatro metros à frente do capitão. O capitão correu para ele para lhe dar instruções e verificou que o Henriques estava ferido com um tiro na barriga. De imediato tomou conta do pelotão, dando ordens directas aos soldados. O Lassen foi buscar o enfermeiro que rápido chegou ao local.

─ Eu já trouxe o alferes Henriques aqui para trás deste monte de baga baga  ─ disse o capitão. ─ Tome conta dele e veja o que pode fazer. Eu tomo conta do pelotão e vou sair daqui ou ainda cá ficamos todos. Arrancamos directos a eles. Passo rápido e fogo sobre eles.

Os soldados levantaram-se e meteram-se pela mata dentro com o capitão. Os guerrilheiros pararam o fogo e retiraram. Na perseguição foi localizado um acampamento improvisado.

─ Fernandes, Tala, Manuel, ─ aqui Cristo ─ sofremos uma emboscada. O Henriques parece que está gravemente ferido. Localizei um acampamento que vou ultrapassar. O Fernandes deixa alguns homens recolher o Henriques e os outros feridos, traz o Tala e vem ter comigo. O acampamento fica por vossa conta. Destruamno.

O pelotão do Henriques garante a segurança frontal. Manuel, segurança à retaguarda. Depois do acampamento destruído retiramos para a bolanha e fazemos as evacuações. Digam se entenderam, escuto.

─ Cristo, aqui Fernandes. Entendido. Agora vou seguir para aí com o Tala. O Henriques morreu, informou o enfermeiro. Há mais três feridos, escuto.

─ Cristo, aqui Manuel. Entendido. Segurança à retaguarda garantida. Escuto.

─ Aqui Cristo, terminado para todos.

─ Bedanda, aqui Cristo. Fui emboscado. Tenho quatro feridos um dos quais oficial. Solicito presença helicóptero para evacuações. É urgente. Estou na mata a oeste do rio Lama e vou agora para a bolanha onde assinalarei a minha presença. Diga se entendido, escuto.

─ Cristo, aqui Bedanda. Entendido. Terminado por agora.

Rapidamente o acampamento foi revistado e destruído. Acampamento recente, estava localizado numa zona de difícil acesso onde os guerrilheiros se sentiam seguros.

O capitão estava triste. Tinha morrido um oficial que era para ele como um filho. Gostava de ir com o capitão para todo o lado e tinha grande admiração pelo seu comandante de companhia. Depois de destruído o acampamento e assegurada na bolanha a segurança para se fazerem as evacuações, o capitão disse ao Fernandes:

─ Sou o responsável pela morte do Henriques. Quando a coluna se partiu eu estive a falar com ele e o rapaz parecia que adivinhava a morte. Estava muito triste. Devia tê-lo mandado para a retaguarda e passar o teu pelotão para a frente. Nunca me perdoarei.

─ O meu capitão não tem culpa. Cada um de nós morre quando tem de morrer. Tinha chegado a hora do Henriques. Se me passasse a mim para a frente e o Henriques para a retaguarda, a emboscada seria à retaguarda e o Henriques morria na mesma.

─ Talvez tenhas razão. Mas nunca mais esquecerei a cara de angústia quando foi ferido e a conversa que tive com ele.

─ Não pense mais nisso, meu capitão. Está aí o heli. Vamos fazer as evacuações.

─ Eu vou falar com o piloto. Trata de trazer o Henriques e os feridos.

O capitão, acompanhado do Lassen, do Joãozinho e do rádio telegrafista, dirigiu-se para o helicóptero onde falou com o piloto.

─ Um dos feridos já morreu. Foi o alferes Henriques. Peço-lhe para o levar para Bissau juntamente com os feridos.

─ Eu vou fazer isso,  embora o senhor capitão saiba que não nos é permitido levar mortos para Bissau.

─ O senhor pode dizer que ele morreu na viagem. Queremos evacuá-lo para Lisboa,  e se estiver em Bissau é mais fácil para nós.

─ Esteja descansado, senhor capitão, que eu levo tudo para Bissau.

Quando o corpo do Henriques e os feridos estavam dentro do helicóptero, o Lassen perguntou ao capitão se também podia ir.

─ Não, não podes. Tu podes é levar já duas lamparinas no focinho. No helicóptero só vão os feridos. Eu fico cá e tu também ficas.

─ Nosso capitão, olhe, eu também estou ferido.

Só nessa altura o capitão deu conta de que o seu guarda-costas estava a perder sangue. Para estar sempre ao lado do seu capitão durante a emboscada, o Lassen não disse a ninguém que também estava ferido e nem sequer tinha sido visto pelo enfermeiro. O capitão viu então a amizade e o respeito que aquele soldado tinha pelo seu capitão.

─ Desculpa, Lassen. Agora devias levar duas bofetadas por não me dizeres que estavas ferido. Vais embarcar depois de o enfermeiro te fazer um penso.

Penso concluído, o Lassen entrou no helicóptero. De dentro do helicóptero falou para o Joãozinho:

─ Joãozinho, eu vou para Bissau. Toma conta do nosso capitão.

O capitão ficou emocionado. Como era possível tanto amor, lealdade e ternura dum soldado para um capitão de Lisboa. Coisa que só a vida dura de combate na Guiné pode explicar.

Depois da evacuação dos feridos, o capitão deu ordem para regressar ao quartel onde chegaram por volta das cinco horas. Um avião sobrevoou o quartel e o capitão deu ordens ao 1.º sargento para ir à pista ver quem tinha chegado.

Quem chegava era o coronel comandante do sector. O capitão já estava de tronco nu e calças desapertadas, preparava-se para tomar banho.

O comandante do sector disse ao capitão.

─ Parabéns, Cristo. Foi uma operação em cheio. Você não deixa os guerrilheiros descansar nem um pouco.

─ Meu comandante, não aceito os parabéns. Tive quatro feridos e um morto. O morto é um oficial que era como um filho para mim. Por favor, tenha dó de mim e compreenda a minha tristeza.

─ É certo que teve um morto e quatro feridos, mas isso não pode ofuscar o êxito da operação. Dou-lhe os parabéns e quero falar aos seus soldados. Mande formar a companhia.

─ Talvez o senhor não saiba como está a companhia neste momento. As ordens que dei foram que quem quisesse comer ia comer, quem quisesse tomar banho ia tomar banho e quem preferisse ir dormir ia dormir. Isto significa que tenho homens a dormir, a tomar banho e a comer. A companhia não está em condições de formar.

─ Olhe, Cristo, eu já estou farto de ver homens nus e posso vê-los mais uma vez. Mande formar a companhia como estiver.

─ Ouviu, nosso primeiro? ─ perguntou o capitão. ─ Não está aqui nenhum oficial. O senhor vai formar a companhia e tem dois minutos para o fazer. Os homens podem formar nus. Formam como estão. Ninguém perde tempo a vestir umas cuecas ou umas calças. Dê ordem para formar a companhia e acompanhe o nosso comandante. Se me dá licença, meu comandante, eu vou tomar banho que era o que eu estava a pensar fazer. O nosso primeiro forma a companhia porque os nossos alferes, tal como eu, não estamos em condições de receber parabéns quando nos morreu um alferes. Isso é mais que suficiente para eu considerar a operação um fracasso.

Dito isto, o capitão que segurava as calças com as mãos, deixou-as cair e ficou em cuecas em frente do comandante e do 1.º sargento, que deitou as mãos à cara. O capitão, imperturbável, começou a descalçar-se, tirou as calças e as cuecas e foi tomar banho sem dizer nada ao comandante. Quando saiu do banho mandou chamar o 1.º sargento para saber o que se tinha passado. A companhia tinha formado, e a maior parte dos homens estavam de cuecas ou de calções. Mesmo assim, o nosso comandante tinha falado com eles e dito que não deviam estar tristes por terem feridos e por ter morrido um alferes, porque os guerrilheiros tinham tido mais baixas. A operação tinha sido um êxito.

O capitão foi para a messe, pediu uma cerveja e falou com os alferes.

─ Os sacanas hoje agiram com inteligência. Aquele tiro contra o primeiro branco da coluna foi o sinal para a emboscada. Sabiam que com esse tiro feriam ou matavam um oficial ou um sargento. O Henriques era o primeiro branco da coluna e eu o segundo. O Lassen levou um tiro numa perna que era dirigido a mim. Não fui ferido ou morto por muita sorte. Hoje renasci. O nosso coronel deve estar chateado comigo. Eu não podia fazer nada. É de muito mau gosto vir dar os parabéns a um capitão por uma operação com quatro feridos e um oficial morto. Há indivíduos que nunca serão capazes de compreender a mentalidade dos combatentes. Que se lixem.

─ Olhe, meu capitão, ─ disse o Manuel ─ eu não fui à formatura mas espreitei. Cumpriram-se integralmente as ordens. Formou rapidamente mas em cuecas. Alguns de tronco molhado, pois tinham acabado de sair do banho. O nosso comandante não viu os homens completamente nus mas fartou-se de ver corpos de homens quase nus. Talvez tenha aprendido a lição e na próxima já não nos chateie. Vamos beber mais uma cerveja para esquecer as tristezas. (...)

Emoção na hora da despedida, em julho de 1967:

Quando chegar a hora da despedida,  em meados de julho de 1967, o capitão Cristo, cmdt da 4.ª CCAC,  irá recordar com muita saudade, o Henriques (a par do Ribeiro, Cordeiro, Carvalho e Oliveira, os seus queridos alferes):

(...) O capitão estava emocionado porque não contava com este almoço de despedida. Quando falou no alferes Henriques, um dos mortos em combate, as lágrimas vieram-lhe aos olhos, pois a morte do Henriques estava muito viva no seu coração.(...) (pág. 373)

[Seleção, revisão e fixação de texto, negritos,  itálicos, parênteses retos e subtítulos: L.G.] (Com a devida vénia...)


Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1956) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Bedanda e dos rios Cumbijã, Ungauriuol (afluente do Cumbijã) e Lama (afluente do Ungauriuol)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)


2. Sinopse da Op Sobreiro, 21fev1967

Realizada para localizar e destruir as instalações inimigas referenciadas na região compreendida entre o rio Lama e o rio Ungauriuol, sector S3 (Bedanda), efectuando uma batida que foi executada por forças da CCav 1484,  4ª CCaç e Pel Can s/r 1154. 

Foram localizados 2 núcleos de casas que constituíam o objectivo, que foi destruído. O lN sofreu 3 mortos, além de outras baixas prováveis. As NT sofreram 2 mortos (o alf mil Américo Luís Santos  Henriques, natural de Ourém,  e o sold Sambel Baldé, natural de Bafatá, ambos da 4ª CCAÇ),   2 feridos graves e 2 ligeiros.

Fonte: Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II: Guiné: Livro 2. 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015, pág. 34. (Com a devida vénia...).

PS - No livro supracotado, há um erro sistemático em relação ao nome do rio, que não é Ungarinol, mas sim Ungauriuol (carta de Bedanda, escala 1/50 mil). Erro que vamos corrigir nos postes anteriores em que há referências a este rio, afluente do Cumbijã.
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18860: Os 81 alferes que tombaram no CTIG (1963-1974): lista aumentada e corrigida (Jorge Araújo)

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23618: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte II: Testemunho de Jorge (ou George) Freire, ex-cap inf, comandante da 4ª CCAÇ , no período de novembro de 1962 a maio de 1963



Jorge Freire, ex-cap inf, que esteve na Guiné, em 1961/63, e desde então a viver nos EUA (aqui com a sua esposa), e onde é conhecido por George Freire, engenheiro e empresário. Desde julho de 2019, o seu blogue tem estado inativo. Esperamos que ele e a família estejam bem de saúde.

Foto: © George Freire (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 

 Vídeo (9' 56'') George Freire > Nov 62 / mar 63 > Vídeo 2/3 > Nova Lamego, Buruntuma, Bissau, Cacine, Bedanda, Chugué... Os primeiros sinais da guerra, no sul da Guiné, em março de 1963: O primeiro morto, o primeiro prisioneiro, as primeiras transferências de população, ... A farda amarela, a mauser...Fauna local: a hiena, o crocodilo... O Rio Cumbijã...

Inserido na conta do Virgínio Briote no You Tube / bra6567 (licar aqui, como alternativa, para visionar o filme)

1. Todas as guerras tem um começo, um desenvolvimento e um fim... É como um rio, que é alimentado, desde a nascente, por mil e um riachos, ribeiras e outros rios... A guerra pela independência na Guiné, levada a cabo pelo PAIGC,  era perfeitamente previsível... Só restava saber a data,  a hora e o local do primeiro tiro, como viria a acontecer em 23 de janeiro de 1963, em Tite, pelas 01h45.

Depois foi o jogo de xadrez... Nem sempre há xeque-mate, como foi o caso... Estupidamente, os dois contendores (e os seus estrategas, patrocinadores e  claques de apoio) deixaram a guerra / o jogo arrastar-se demasiado tempo, por onze (ou mais) longos anos. Acabou por se encontrar uma "solução política", esgotada a sorte das armas... que nem sempre protege os audazes.

Recuemos, pois,  ao princípio imediato, passando por cima das complexas condições antecedentes (causas próximas e remotas), que isso fica para os historiadores... 

Do lado português, é impressionante ver como uma  escassa força de algumas centenas de homens guarnecia, em agosto de 1962,  todo o sul da Guiné, compreendendo a região de Quínara (onde a guerra começou) e a região de Tombali, que era o celeiro da Guiné: Comando do BCAÇ 237 (Tite); CCAÇ 152 (Cacine, Gadamael Porto, Aldeia Formosa, Saltinho); CCAÇ 153 + Pel Caç 859 (Fulacunda);  1 Pel Caç / CCAÇ 84 (Empada e Cufat), 

ZA (Zona de Acção) de Tite - Abrangia o sul com fronteira com a República da Guiné (*):
  • Comando do BCaç 237 (Tite); 
  • CCaç 152 (- Pel e 1 Sec) (Buba);
  • 1 Pel Caç / CCaç 152 (Cacine) com 1 Sec Caç (Gadamael Porto); 
  • 1 Pe1 Caç (-)/CCaç 152 (Aldeia Formosa) com 1 Sec Caç (Saltinho);
  • CCaç 153 (-1 Pel) e Pel Caç 859 (Fulacunda); 
  • 1 Pel Caç/CCaç 84 (- 1 Sec) (Empada) com 1 Sec Caç (Cufar); 
  • 4ª CCaç (-1 Pel e 1 Sec) (Bedanda) com 1 Pel Caç (Tite); 
  • 1 Sec Caç (Cacine); 
  • CIM: 2 Pel Caç (I) (Bolama); 
  • Pel Mort 19 (Tite);
  • Destac Man Mat 245 (Tite).

Guiné > Dispositivo das NT em 8 de agosto de 1962.  Destaque para a ZA de Tite (que abrangia todo o sul, com fronteira com a Guiné-Conacri: umas escassas centenas de homens concentrados em Tite, Fulacunda, Bolama, Buba, Empada, Aldeia Formosa, Bedanda, Catió e Cacine:

Infografia: CECA (2014) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné  (2022)

Quatro meses depois, em 1 de janeiro de 1963, o  Sector Sul era guarnecido pelas seguinte forças,  parte delas do recrutamento local: 4ª CCAÇ + Pelotões de Caçadores Indígenas (*):
  • 1 Cmd BCaç, 1 Sec Caç Indígena (I) e 1 Pel Mort todos aquartelados em Tite;
  • 1 Pel Caç (+) em Aldeia Formosa
  • 2 CCaç (-2 Pel e 3 Sec) e 1 CCaç I (- 2 Pel e 4 Sec) em Bedanda
  • ClM, 1 Pel Caç (Pel Indígena - 1 Sec) em Bolama
  • 1 CCaç (-1 Pel) + 1 AMetr em Buba
  • 1 Cmd BCaç, 1 CCS (-1 Pel Rec Inf), 1 CCaç, 1 Sec Caç (Ind) e I Pel Mort todos aquartelados em Catió
  • 1 Pel Caç (1 Sec Ind) em Cabedú
  • 1 Pel Caç (l Sec Ind) em Caboxanque
  • 1 Pel Caç + 1 Sec Caç (Pel Ind) em Cacine
  • 1 Pel Rec Inf em Cufar
  • 1 CCaç (-3 Pel) + 1 Sec (1 Sec Ind) em Empada;
  • 1 CCaç + 1 Pel Caç + 1 AMetr em Fulacunda
  • 1 Pel Caç (-1 Sec), Pel Ind (- 2 Sec) em Chugué
  • 1 Pel Caç (1 Sec Ind) na Ilha das Galinhas.

2. Contemporâneo destes acontecimentos, temos o Amadu Bailo Djaló (**), ex-sold condutor auto, que esteve em Bedanda, na 4ª CCAÇ durante o 1º semestre de 1963, antes de se oferecer, em 1964, para os Comandos do CTIG. Do que viu não gostou, nem teve saudades de Bedanda.  

Verificamos agora que ele teve como comandante, nesse período, o ex-cap inf Renato Jorge Cardoso Matias Freire (ou só George Freire, como é conhecido nos EUA, para onde emigrou logo em meados de 1963, e na nossa Tabanca Grande, onde ingressou em 29/12/2008).

Da leitura do diário da Guiné, de George Freire,  depreende-se que houve um rápido alinhamento da população local, com os fulas a mostrarem-se leais às autoridades portuguesas e os balantas (e outros: biafadas, nalus...) a ficarem do lado do PAIGC...  Ficamos a saber, por exemplo, que a população (fula) de Bedanda, em meados de 1965, ao tempo do cap inf Aurélio Manuel Trindade, era fundamentalmente oriunda do Cantanhez, e mais concretamemte de Iemberém (no nosso tempo, Jemberém).

Houve seguramente terror e contraterror nestas ações de ambos os lados, nos primeiros tempos da guerra. Mas repare-se que os prisioneiros feitos pela 4ª CCAÇ eram  entregues ao batalhão (o George Freire não o identifica, claramente, mas seria o BCAÇ 356). 

Por outro lado, um dos alvos privilegiados da ação da guerrilha são as casas comerciais, a Ultramarina (ligada ao BNU) e à Gouveia (pertencente à CUF)... O PAIGC apropriara-se, em Cafine, em 25 de março de 1963, do navio "Mirandela", pertencente da casa à Gouveia,  e do navio "Arouca",  da casa Brandão (serão depois utilizados  para transporte de pessoal e material em águas da Guiné-Conacri).

A produção de arroz vai decrescer drasticamente nos anos seguintes. A importação de arroz mais do que triplica de 1962 (c. 9 mil toneladas) para 1964 (c. 30 mil toneladas). A Guiné nunca mais será a mais a mesma, depois do ataque de Tite, em 23 de janeiro de 1963. As comunicações (por terra e por rio), em particular, tornaram-se impossíveis ou difíceis.

(...) A situação no Sul piorava. O inimigo actuava então em quase todo o sector, aproveitando o facto de serem muito escassos os efectivos militares. As deslocações destes tornaram-se cada vez mais difíceis, em face das obstruções das principais estradas da região. Em 2/3Abr, o ln atacou por três vezes o aquartelamento do Destacamento do Chugué; assassinou nativos e régulos que resistiam ao aliciamento; no dia 07, atacou elementos militares em reconhecimento na região de S. Miguel Balanta; em 21, numeroso grupo inimigo opôs forte reacção à CCaç 414, nas ilhas de Caiar e Como. Em 22, o ln atacou por duas vezes forças militares que actuavam em Jabadá.

Esta actividade do ln levava a admitir que, no Sul da Província, só estavam efectivamente sob controlo das autoridades as populações que viviam próximo das guarnições militares; as mais afastadas consideravam-se sujeitas à pressão do ln, como é natural em guerra subversiva" (Fonte_ CECA, 2014, pág. 92).

Todos estes topónimos, citados pelo George Freire, no seu diário, são-nos familiares, para muitos de nós: Bedanda, Cabedu, Caboxanque, Cacine, Cadique, Cafal, Cafine, Catió, Chugué, Jemberem, Mejo, Salancaur...  Ainda não se falava de Guileje nem de Gadamael... Repare-se que há tabancas que vão ser logo de imediato abandonadas (caso de Jemberém, cuja população fula é transferida então pela 4ª CCAÇ  para Bedanda), 

Achámos oportuno voltar a publicar este documento que, a par do testemunho escrito do Amadu Djaló, nos ajuda a perceber a rápida degradação da situação mlitar no sul da Guiné, nos primeiros seis meses de 1963.

2. O testemunho de George Freire [ex-cap inf Jorge Freire, da CCAÇ 153, da 3ª CCAÇ e da 4ª CCaç, Fulacunda, Nova Lamego, Bissau, Bedanda, 1961/63; hoje engenheiro, a viver desde agosto de 1963 nos EUA]

(...) "Durante o Natal de 1961 a minha mulher veio passar um mês a Bissau onde eu estava na altura a comandar uma companhia de nativos. 

Em Julho de 1962 a minha mulher voltou para a Guiné e passou quase 3 meses no Gabu (Nova Lamego), onde eu comandei uma companhia mista [3ª CCAÇ, futura CCAÇ 5, "Gatos Prertos", a partir de 1/4/1967, Canjadude, 1967/1974]. 

Do Gabu fui transferido para Bedanda   [4ª CCAÇ, futura CCAÇ 6, "Onças Negras", a partir de 1/4/1967, Bedanda, 1967/1974], onde ela ainda passou quase um mês, mas nos fins de Dezembro tive que a mandar de volta a Portugal pois as coisas começaram a aquecer demais. (...) 


O meu Diário da Guiné
 
por George Freire

Como história, transcrevo partes de um diário que encontrei no meio de papelada antiga numa gaveta da minha secretária. A primeira entrada no diário foi no dia 31 de janeiro de 1963 e a última, no dia 28 de maio do mesmo ano. Aqui vai:

31/1/63:

Ataque de terroristas aos Fulas de Jemberem 
[no original, Emberém, hoje Iemberém]. Mataram o chefe da tabanca e outros 6 Fulas.

2/2/63:

Acção em Boche Falace pelas minhas forças de Emberém. Um grupo de terroristas balantas em fuga deixou grande quantidade de arroz cozido (!).

6/2/63:

O nosso destacamento em Salancaur foi atacado às 00:30. Tivemos baixas: um furriel e um soldado foram mortos do nosso lado e vários terroristas foram abatidos. 
[O furriel foi o José do Rego Rebelo, açoriano de Ponta Delgada, CCAÇ 274 / BCAÇ 237; foi o segundo  furriel miliciano a morrer no TO da Guiné].

Nesta mesma noite, também atacaram o nosso destacamento em Cacine, mas felizmente não houve baixas a assinalar.

8/2/63:

Fui a Bissau tratar de vários assuntos da Companhia [4ª CCaç].

9/2/63:

Volta de Bissau. Manga de trabalho em atraso devido as acções dos últimos dias. Recebemos informação de que vários terroristas passaram ao largo, vindo de Catió para a zona de Cacine. As instalações da Ultramarina foram assaltadas e o encarregado europeu foi morto.

10/2/63:

Lista de material extraviado em combate: 1 capacete em Chugué, 1 espingarda Mauser e 1 pistola-metralhadora em Jemberem.

Esta madrugada as instalações da Gouveia em Salancaur foram atacadas. Os terroristas levaram cerca de 10 toneladas de arroz e outros géneros de comida.

11/2/63:

Efectuámos acções em Jemberem, Salancaur e Cadique. 

Vários elementos terroristas que tinham tomado parte no assalto aos Fulas de Jemberem foram aprisionados e enviados para a sede do Batalhão.

12/2/63:

Um alfaiate mandinga, Mamude Djassi, que tinha sido aprisionado em Chacual pelos terroristas e que passou vários dias num dos seus acampamentos, conseguiu fugir e apresentou-se ao nosso destacamento do Chugué. Foi transportado para o nosso quartel em Bedanda. Enviei um rádio para o Batalhão para que este Mandinga possa ser aproveitado como guia na acção que está a ser preparada pelo Batalhão.

13/2/63:

Enviei um pelotão para Salancaur para proteger o embarque de arroz da Ultramarina e da Gouveia.

14/2/63:

Patrulhamento feito em Jemberem e Cadique. Nesta última povoação tivemos contacto com terroristas Balantas que puseram alguma resistência mas acabaram por fugir. Três foram abatidos.

15/2/63:

O nosso quartel em Bedanda foi visitado por 3 directores da CUF, procurando informações do que se está a passar na região. 

Nessa mesma altura, terroristas rebentaram um pontão na estrada de Catió junto de Timbo

Houve também grande tiroteio em Chugué e algumas explosões na estrada próxima da área. 

Os 3 directores ficaram bem informados do que se está a passar...

16/2/63:

Chegou o Pelotão de acompanhamento da Companhia 273. Uma patrulha das nossas forças do Chugué foi atacada por um grupo armado de pistolas-metralhadoras. Não sofremos baixas mas 2 terroristas foram abatidos.

Regressou à base o Pelotão destacado em Salancaur. Foi rendida por novas forças a Secção que se encontrava destacada em Emberém.

17/2/63:

Continuaram a chegar mais elementos da companhia 273.

18/2/63:

Reconhecimentos feitos a Salancaur, Jemberem e Cadique

Aprisionámos alguns dos elementos que tinham atacado o nosso destacamento de Salancaur.

22/2/63:

Fomos visitados aqui em Bedanda pelo Comandante Militar e pelo Major Mira Dores, durante a altura em que tínhamos começado uma acção no mato de (Nhairom?), com 2 pelotões da CCaç 273 e 1 Pelotão da minha Companhia.

23/2/63:

Regresso da acção. Pobres resultados. Foram encontrados vários acampamentos terroristas, abandonados mas com indícios de terem sido ocupados recentemente. 

Foi rendida a secção de Jemberem.

25/2/63:

Reconhecimento feito em Salancaur e Mejo. O Capitão Delfino, Comandante da Companhia que substituiu a CCaç 74, visitou-nos, para discutirmos colaboração.

26/2/63:

Outra visita pelo Comandante Militar e o Comandante da Força Aérea, para discussão sobre a colaboração da FA na próxima operação que iremos executar. Pormenores foram discutidos em detalhe.

27/2/63:

O Capitão Relvas veio da sede do Batalhão visitar-nos em Bedanda. Aparentemente, o Comandante do Batalhão está chateado por não ter sido consultado nos detalhes de apoio pela FA. e tomou a decisão de fazer a operação sem esse apoio. (Incompreensível!).

A acção começará esta noite a partir das 00:04.

A acção terminou pelas 15:00 do dia 28/2/63. Os resultados que poderiam ter sido bastante satisfatórios, foram praticamente nulos, pois vários grupos de terroristas conseguiram, (devido a configuração e extensão do terreno de acção), fugir e dispersar. Se a FA tivesse colaborado os resultados teriam sido tremendos, pois o número de terroristas que conseguiram infiltrar-se entre as nossos forças foi considerável. (Esta foi a opinião de todos os comandantes de pelotão directamente envolvidos na acção. Na área onde a minha companhia actuou, notamos exactamente os mesmos resultados).

É evidente que os terroristas foram avisados da operação a tempo de poderem debandar. Nada me admira, pois temos um número considerável de soldados nativos, incluindo Balantas...


1/3/63:

Hoje pela 09:30 e mais tarde pelas 14:30, pessoal do pelotão do Cabedú sofreu emboscadas respectivamente entre Cafal e Cafine e no cruzamento de Cabante. Na segunda emboscada sofremos um morto e um ferido. Uma viatura Chaimite 
[lapso: talvez Daimler ou Fox ou White, não havia Chaimites em 1963], foi destruída na primeira emboscada. Seguiram dois pelotões reforçados para os locais das emboscadas.

Em Impungueda uma patrulha da CCaç 859 travou contacto com os terroristas e feriu alguns e os outros conseguiram fugir.

2/3/63:

Durante parte do dia de ontem e durante todo o dia de hoje as nossas forças percorreram todo o terreno nas zonas das emboscadas. Encontraram vestígios dos atacantes, fizeram um prisioneiro que tinha tomado parte numa das emboscadas, mas nada mais. O soldado ferido seguiu de avião para Bissau e o morto foi enterrado no cemitério de Bedanda.

O prisioneiro foi interrogado mas poucas informações conseguimos. Foi enviado para o Batalhão para ser interrogado.

3/3/63:


O Comandante Militar veio cá hoje de avião com o segundo Comandante do Batalhão 356. Depois de informados dos acontecimentos dos últimos dias, seguiram para Catió.

4/3/63:

Recebemos informação do Batalhão de um possível ataque planeado pelos terroristas a Caboxanque e Jemberem.

Enviei dois pelotões para Jemberem e Cadique, ponto de onde, segundo a informação, os terroristas se estavam a organizar para os ataques. Em Caboxanque executámos acções por um pelotão da minha companhia e outro da CCaç 273.

6/3/63:

Fizemos um reconhecimento à zona de Jemberem. O Alferes Gonçalves encarregou-se de falar aos chefes Fulas de Jemberem e discutir a possível mudança das suas tabancas para Bedanda. Há toda a vantagem dessas mudanças para incrementar a protecção da população Fula. Poderemos também formar aqui e em Bedanda um pelotão de uns 40 Fulas, o que nos poderá ajudar substancialmente na segurança da área e aliviar as nossas forças. Os chefes Fulas aceitaram a nossa oferta de braços abertos.

7/3/63:

Começámos o transporte da população Fula de Jemberem. Usámos 10 viaturas neste movimento. Calculamos que serão necessárias 3 mais viagens semelhantes.

8/3/63:

Continuação do transporte dos Fulas. Seguiram dois pelotões da CCaç 273 para a região de Salancur.

9/3/63:

Continuação do transporte dos Fulas. Os pelotões da CCaç 273 continuaram a operar na região de Salancur.

Elementos Fulas de Emberem conseguiram aprisionar um nativo que sabiam estava ligado ao movimento terrorista. Quando este nativo (Balanta) foi interrogado aqui na Companhia, deu-nos a informação de que elementos terroristas estão no mato de Boche Falace a prepararem um ataque àquela povoação. Enviámos um pelotão da CCaç 273 para a área.

Recebemos também informação, por elementos do Chugué, que um grupo de terroristas bem armado estava concentrado do outro lado da fronteira com a Guiné Francesa, perto da zona de Banta-Sida.

Mais informações recebidas do pelotão de Emberem: cerca de 300 elementos terroristas estavam a preparar um ataque à nossa companhia em Bedanda na madrugada de amanhã.
Dei ordens para que todo o nosso pessoal, (estávamos um pouco desfalcados pois tínhamos 2 pelotões em operações longe de Bedanda), estar em alerta em posições defensivas, já há muito preparadas para eventualidades semelhantes. Foi uma longa noite de nervos, mas o ataque nunca se deu.

10 e 11/3/63:

Acabámos o transporte dos Fulas de Emberem para Bedanda, contudo ainda teremos que transportar abastecimentos e víveres que ainda lá ficaram, em especial uma grande quantidade de arroz. 

Os Fulas fizeram um outro prisioneiro que, após interrogado, nos deu boas informações sobre o grupo terrorista que tem actuado na zona de Boche Falace: nomes de comandantes, armamentos e locais aproximados do grupo. Este prisioneiro foi enviado para o batalhão.

13/3/63:

Recebemos novas informações sobre um outro possível ataque ao nosso aquartelamento no dia 16 ou 17.

O Benfica venceu o Dukla de Praga para a Taça dos Campeões Europeus. Ouvimos o relato no rádio.

15/3/63:

Chegou um pelotão da CCaç 417 que seguirá para Caboxanque. Enviei uma grande coluna de 10 viaturas para Jemberem para trazer o resto dos víveres pertencentes aos Fulas.

16/3/63:

O pelotão da CCaç 417 seguiu para Caboxanque para render o Pelotão 859.

18/3/63:

Chegou o Pelotão 859 que seguirá para Bafatá. A CCaç 273 partiu para Jemberem em operações, não se sabendo por quantos dias.

19/3/63:

Visita do Major Pina para discutir os pormenores do movimento dos Pelotões 859, 870 e 871 para Bafatá. Eu irei a comandar a coluna e voltarei para Bedanda de avião.

20/3/63:

O Alferes Mendes seguiu com um pelotão para o Chugué dentro do novo plano de ordenamento dos dispositivos.

22/3/63:

Cabedú enviou uma mensagem informando que os terroristas estavam a planear uma emboscada às viaturas da CCaç 273 que se tinham deslocado para a região de Darsalame. Enviei imediatamente um rádio para o Capitão Gaspar com todos os detalhes da informação.

23/3/63:

Chegou outro pelotão da CCaç 417. Seguirá amanhã para Cabedú para render o Pelotão 871, que virá para Bedanda e depois para Bafatá na minha coluna.

(...) O meu diário, cobrindo os acontecimentos que se passaram entre a minha partida para Bafatá com a coluna, a minha vinda de retorno a Bedanda e as semanas até ao dia 18 de Maio, extraviou-se, infelizmente.

Lembro-me de alguns detalhes de possíveis ataques a Bedanda que, felizmente, nunca se concretizaram. Nós estávamos muito bem preparados, com todo o terreno à volta do aquartelamento (cerca de uns 150 metros), completamente limpo de arvoredo e vegetação.

Tínhamos os morteiros de 60 todos treinados nas áreas prováveis de ataque, além de explosivos enterrados e comandados à distância. Bem no fundo, eu estava com esperança de que os terroristas tentassem um ataque, pois seriam totalmente aniquilados, mas nunca aconteceu, possivelmente porque eles sabiam que tal acção seria muito difícil e arriscada.

No dia 18 de maio, o Capitão Nelson (meu colega de curso) (****) veio render-me. Durante os 4 dias seguintes fiz a entrega da 4ª CCaç ao Nelson e no dia 21 de maio segui de avião para Bissau.

Ai estive à espera de transporte e finalmente no dia 27 de maio parti de volta a Portugal no navio da CUF “Ana Mafalda”.




Curso finalista da Escola do Exército (hoje, Academia Militar) do ano de 1955, do qual faziam parte (além do George Freire, com 75 anos de idda em 2008, residente nos EUA, antigo comandante da 4ª CCAÇ - Fulacunda, Bissau, Nova Lamego Bedanda, Maio de 1961/ Maio de 1963),  os seguintes oficiais reformados do exército português: generais Hugo dos Santos, António Rodrigues Areia, Adelino Coelho e António Caetano; coronéis João Soares, Costa Martinho e Maurício Silva, entre tantos outros.  O capitão José Manuel Carreto Curto, ex-cap inf, CCAÇ 153 (Fulacunda, 1961/63) era "do curso um ano mais velho do que o meu". (Faleceu em 18/11/2018, com ten gen ref.)

Foto (e legendagem): © George Freire (2008). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Fonte: Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 6.º volume: Aspectos da Actividade Operacional. Tomo II: Guiné. Livro I. Lisboa: 2014, pp. 62 e 88.


(***) Vd. poste de 27 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11011: Efemérides (119): Diário de George Freire, ex-comandante da 4ª CCAÇ (Bedanda, 1962/63): o início da guerra no sul do CTIG (jan / mar 1963)...Recordando topónimos que nos são familiares: Cabedu, Caboxanque, Cacine, Cadique, Cafal, Cafine, Catió, Chugué, Jemberém, Mejo, Salancaur...

Vd. também poste de 24 de janeiro de  2013 > Guiné 63/74 - P10996: Efemérides (117): O início da guerra no CTIG há 50 anos: Nova Lamego, Bissau, Bedanda... O paraíso... perdido (set 62/mai 63): filme de George Freire, ex-cap inf QP, a viver nos EUA há meio século (Virgínio Briote / Luís Graça)

(****) Comandantes da 4ª CCAÇ (Bolama, Buba e Bedanda, 1958/67): Cap Inf Manuel Dias Freixo | Cap Inf António Ferreira Rodrigues Areia | Cap Inf António Lopes Figueiredo | Cap Inf Renato Jorge Cardoso Matias Freire (membro da Tabanca Grande, onde é conhecido como George Freire)| Cap Inf Nelson João dos Santos | Cap Mil Inf João Henriques de Almeida | Cap Inf Alcides José Sacramento Marques | Cap Inf João José Louro Rodrigues de Passos | Cap Inf António Feliciano Mota da Câmara Soares Tavares | Cap Inf Aurélio Manuel Trindade 

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23615: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte I: Testemunho de Amadu Djaló (1940-2015), relativo ao período de dezembro de 1962 a junho de 1963

 

Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada. 

Em rigor, o livro (escrito na primeira pessoa, portanto autobiográfico) deveria ter como segundo autor, o nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf  mil,  CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966),  que fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk"... Referindo-se a esse trabalho, o nosso crítico literário, Mário Beja Santos, escreveu aqui (*): 

(...) "Este livro é um sortilégio, sente-se permanentemente o pulsar de uma cumplicidade de alguém que não renega a identidade ou ilude os diferentes níveis da memória e de um outro que escuta, reelabora, clarifica, adensa a trama. O produto final é brilhante, deixa perceber a intimidade do Eu e a disponibilidade do Outro. Fica-se com orgulho pela obra feita pelo Virgínio Briote, o Outro que garante um relato estuante transformado na árvore da vida.
“Guineense, Comando Português” é uma soberba colectânea de memórias, assegura a visão prismática de um fula que se orgulha das suas origens e que se releva apaziguado, propondo a todos os seus leitores guineenses que façam um esforço de reconciliação.

"(...) A dupla Amadú Djaló – Virgínio Briote é um monumento de camaradagem inesquecível, um testemunho que os historiadores não poderão evitar." 



1. Quando o livro foi publicado, Amadu Djaló então com 69 anos, era, como escreveu o seu editor, camarada e "cúmplice", Virgínio Briote, um dos raros sobreviventes que podia falar de todos os anos que durou o conflito, de 1962 até ao fim.


"Incorporado em 1962, percorreu todo o território onde se combatia na então província portuguesa. Futa-Fula, natural de Bafatá, oriundo de famílias da antiga Guiné Francesa, Amadu escolheu um dos lados, combateu no Exército Português, ao lado de milhares de guineenses. (...) Em 1964, ingressou nos Comandos do CTIG e fez parte de um dos primeiros grupos então formados em Brá, perto de Bissau". (...)

É justamente dos primeiros tempos da sua vida militar que queremos falar hoje. Em homenagem à sua memória, e com a devida vénia aos seus herdeiros, à Associação de Coamndos (que oportunamente, ainda em vida do autor, editou livro, entretanto há muito esgotado), e com um especial agradecimento ao Virgínio Briote que nos facultou o "manuscrito" (em formato pdf),  vamos reproduzir aqui alguns excertos, sem as resepctivas fotos,   excertos esses que correspondem ao tempo em que o Amaduy Djaló, sendo soldado condutor auto, esteve na 4ª CCAÇ, em Bedanda, de dezembro de 1962 a junho de 1963 
(pp. 27-35). (Fez a recruta em Bolama, e a instrução de especialidade no CICA/BAC 1, em Bissau; depois de Bedanda, conseguiu a transferência para a 1ª CCAÇ, instalada em Farim a partir de 1 julho de 1963.)

Este é um valioso (e raro) testemunho, escrito na primeira pessoa do singular, sobre os  primeiros tempos da 4ª CCAÇ, em Bedanda, e o início da guerra no sul do território... Repare-se que no final de 1962 ainda se ia do Enxudé,  na região de Quínara até Bedanda, passando por Tite, Buba e Aldeia Formosa, e daqui até Catió e Cacine, em viatura, de viatura, praticamente sem escolta... 

A guerra (oficialmente iniciada em Tite, em 23 de janeiro de 1963) veio alterar complemente o mapa do sul da Guiné, com destaque para os sectores de Bedanda, Catió e Cacine. A administração portuguesa vai perder rapidamente o controlo de uma série de povoações. E o PAIGC começa a pôr os seus primeiros "pioneses" no seu mapa das "áreas libertadas"...


Sem saudades de Bedanda (dez 61/ jun 63)

por Amadu Bailo Djaló


Na 4ª CCaç, em Bedanda

No dia seguinte, 28 de Dezembro de 1962, embarcámos no porto de Bissau, com destino ao Enchudé, para depois seguirmos para Bedanda, para a 4.ª Companhia de Caçadores Indígenas.

Ninguém gostou da colocação. Foi uma viagem silenciosa, sem entusiasmo. No Enxudé, aguardava-nos um jipão com uma pequena guarnição de soldados europeus, chefiados por um 1º cabo.

–   Pessoal, são vocês os condutores que vão para Bedanda? Toca a subir.

Feita a arrumação, prosseguimos para Tite, outra localidade de passagem. Entrámos no quartel e aguardámos pelo almoço, anunciado pelo tocar da corneta. Ninguém tocou na comida, era carne de porco. Em substituição, deram-nos rações de combate. Depois de comermos, seguimos para Bedanda, com passagem pelo porto de Cobumba.

Quando chegámos a Cobumba, no rio Cumbijã, avistámos na outra margem, colegas gesticulando e gritando, em grande alvoroço, muito satisfeitos com a nossa chegada. Éramos nós que os íamos substituir.

As canoas chegaram e despedimo-nos do cabo e do soldado condutor. Responderam que só se iam embora, quando tivéssemos atravessado o rio. Na outra margem fomos recebidos pelos companheiros que vínhamos render, com grande entusiasmo, abraços, galhofeira e conversa animada. E do outro lado do rio vimos os companheiros que nos escoltaram, a acenarem, num adeus de despedida.

Na viagem até ao porto de Cobumba tínhamos sido escoltados por soldados brancos, e nesta, que nos levou a Bedanda, fomos escoltados por soldados negros.

Assim que chegámos ao quartel de Bedanda, fomos à arrecadação para levantar armas, munições, camas, lençóis e cobertores. Íamos começar nova vida e exercer a nossa especialidade de condutores.

No dia seguinte, procedeu-se à distribuição das viaturas. Um condutor foi destacado para o Chugué, outro para Caboxanque e ficámos oito condutores em Bedanda. Sete tiveram carros, jipes e Unimogs, e o outro mais moderno, que era eu, ficou com uma Ford Canada, uma viatura muito velha, que largava um fumo muito negro, com mudanças à esquerda e quente como o inferno. Aguentei-a até à chegada do alferes Mendes.

O alferes tinha sido meu instrutor na recruta, em Bolama, e dedicava-me amizade. Quando, de manhã, íamos para a instrução, trazia sempre dois pregos, um para ele e outro para mim.

Ficou muito surpreendido quando me viu entre os colegas ali presentes.

– Amadu, tu aqui, em Bedanda?

Contou que, no regresso das férias em Portugal, tinha passado na 4.ª repartição do QG e, quando procurou saber do meu paradeiro, informaram-no que eu tinha sido colocado no Gabu.

Não lhe dei a conhecer o que tinha acontecido sobre a minha colocação em Bedanda, disse-lhe só que tinha sido eu quem tinha pedido para ser colocado aqui. Uma mentira minha, para evitar complicações.

Mas, regressando às viaturas. O alferes Mendes perguntou:

– Já tens carro?

 – Tenho, sim, meu alferes. É aquele, ali em frente   
  apontei.

 – Aquele ? Vai chamar o nosso sargento-mecânico.

Na presença deste, disse-lhe o alferes:

 
   Arranje outra viatura para o Amadu. É um soldado da minha confiança e nas colunas passa a sair comigo.

E em vez da velha Ford Canada passei a conduzir um Unimog 411.

A minha primeira saída ocorreu nos primeiros dias de Janeiro de 1963, não me lembro agora exactamente da data. Pelas 20h00, uma força constituída por um pelotão de militares africanos, com furriéis europeus, comandado pelo alferes Mendes e outro de milícias, partiu de Bedanda em direcção a Cabedú, em cinco viaturas, quatro Unimogues e um jipe, conduzido por mim.

Chegados ao cruzamento de Cafal, pelas 23h00, os pelotões seguiram a pé, embrenhando-se na mata e nós, os condutores, trouxemos as viaturas para Cabedú, um percurso que não demorou meia- hora.

Quando chegámos arrumámos as viaturas, dispostos a dormir, o que foi impossível com tantos mosquitos. Tivemos que acender uma fogueira, e estivemos acordados até quase às 05h00 da manhã, altura em que fomos ao encontro da patrulha.

Saímos da estrada no local onde os tínhamos deixado e seguimos a picada que tinham tomado. Antes de atingirmos Cafal Nalu, Bacar Sambu, o condutor mais antigo em Bedanda, e que, por isso, caminhava à frente, viu na estrada um objecto estranho. Evitou tocá-lo e a seguir parou. A minha viatura seguia atrás da dele e o Bacar fez-me sinal para parar. O tal objecto ficou debaixo do pára-choques do meu jipe.

– Apanha aquela coisa    disse-me o Bacar.

Ao abaixar-me para ver o que era, senti o meu coração bater mais depressa. Levantei-me rapidamente e perguntei-lhe o que era aquilo?

 
  Não sei  respondeu Bacar. – Tens medo?

Claro que tinha. Bacar saiu do Unimog, aproximou-se e, quando ia apanhar o objecto, pedi-lhe para me deixar primeiro tirar o jipe.

Podia ser uma granada ou qualquer armadilha. Bacar começou a recuar. Tomámos a decisão de não mexer em nada e prosseguir a caminhada para recolher os militares que se encontravam em patrulha, passando por Cafal Nalu e Cafal Balanta.


Quando chegámos à ponte avistámos os militares que vinham de Cafine. Entraram para as viaturas e, com o jipe à frente, iniciámos a viagem de regresso para Bedanda, com o alferes Mendes ao meu lado. Depois de passarmos por Cafal Balanta e Cafal Nalu, relatei ao alferes que tínhamos visto na estrada um objecto que nos pareceu suspeito. Que parecia uma garrafa de plástico, pequena, de cor preta, com uma tampa verde, que estava aberta, com uma fita vermelha pendente.

Quando chegámos ao local, o alferes parou a uma certa distância e foi, a pé, examinar o objecto. Vi-o tirar a pistola e depois de três ou quatro tiros, ouviu-se uma explosão.

 
  É a granada espanhola que perdi na caminhada  disse um furriel.


Mutma, prisioneiro em Cacine

Cacine era uma povoação agradável, a população era quase toda de etnia nalu e, na altura, tinha um pelotão independente [1], comandado por um alferes chamado Brandão, reforçado com duas secções, uma da nossa 4ª  Companhia de Caçadores. Por isso íamos a Cacine quase todas as semanas.

Na primeira vez que lá fui, chegámos a Cacine cobertos de pó. Perguntámos onde podíamos tomar banho e indicaram-nos uma fonte junto ao arame farpado.

A ajudar a acarretar água para o quartel estava um rapaz da nossa idade, com o corpo coberto de feridas, com marcas de chicotadas, um ar cansado. Julguei que fosse algum militar que tivesse sido castigado. O que terá feito para sofrer castigo tão forte, perguntei para mim. E, curioso, perguntei-lhe o que tinha acontecido.

– Bateram-me   respondeu.

 – Quem te bateu?

– Pessoal da tropa.

 – E porquê?

 
– Sou prisioneiro.

Em Janeiro de 1963, quando estava em Bedanda, secções de tropas europeias e africanas encontravam-se destacadas em algumas tabancas, para a segurança das populações. Havia no Chugué, Boche Cul, Caboxanque, Gadamael Porto e Cacine.

Num dia que me não lembro ao certo[2], uma viatura com um furriel ou 2º sargento e alguns soldados vieram passar o dia ao quartel de Bedanda. À tardinha regressaram a Boche Cul e nessa mesma noite foram atacados a tiro. Um soldado, que estava de sentinela, matou o guerrilheiro que o estava a atacar com uma catana e acabou também por ser morto com uma rajada de tiros disparada por outro guerrilheiro. Quando o comandante da secção ouviu os tiros foi em defesa do soldado, e foi também ele abatido pelo PAIGC. Eram onze ao todo com o furriel. Tiveram dois mortos[3] e a maioria foi ferida.

Nós, em Bedanda, ouvimos os tiros. Organizou-se uma coluna comandada por um alferes e chegámos lá noite escura. Só quando, ao longe, viram as luzes das viaturas, os feridos e sobreviventes saíram do celeiro e aproximaram-se de nós. Passámos lá a noite e no dia seguinte arrancámos para Bedanda, com os dois corpos, os feridos já tinham sido transportados durante a noite para Bedanda. Os corpos ficaram no Unimog a aguardarem que viesse algum heli recolhê-los. Não apareceu, tivemos que os enterrar fora do aquartelamento, junto ao arame farpado de Bedanda.

Houve logo ordem para recolher todas as secções e, três dias depois, já não havia nenhuma destacada nas tabancas. Fui, nessa altura, numa coluna, a conduzir o Unimog que me estava distribuído, levar a secção que estava em Gadamael Porto para Cacine. E fiquei lá com a viatura a arrastar troncos de árvores para fazer os abrigos. O meu serviço passou a ser ir buscar troncos de árvores para a construção de abrigos, que em Cacine, naquele tempo, nem um tinha.

Em Bedanda a situação andava muito tensa, ocorriam, por vezes, denúncias, acusações e espancamentos. Quando soube que em Cacine precisavam de um Unimog, fui ter com o Aaferes Mendes e pedi-lhe para me deixar ir para lá.

Parti no dia seguinte. Cheguei a Cacine para cumprir um período de serviço, que sabia ir ser por pouco tempo. Depois de arranjar alojamento, fui-me lavar à fonte. Quando me dirigia para lá passei junto à prisão e vi o tal moço com o corpo coberto de feridas.

O Mutma, assim se chamava o moço, passou a ir comigo no carro trazer os troncos das árvores. Um dia, o alferes disse que queria um porco, se eu podia arranjar um junto de alguma tabanca.

Em Cacine a população era muçulmana, ninguém criava porcos. Disse ao alferes que eu podia falar com o Mutma, que era balanta, talvez ele soubesse onde se podia arranjar. Fomos em dois carros à tabanca do Mutma e escolhemos um bom porco, que em Bissau podia custar à volta de dois mil escudos e trouxemo-lo por quinhentos. Depois, o Mutma passou a ser minha companhia assídua. Um dia disse-me:

 –   Amadu, lembras-te da vez em que me encontraste na fonte, quando me perguntaste o que é que eu tinha no corpo?

 
   Sim, lembro-me.

– Quando ouvi o ruído das viaturas a regressarem a Bedanda, fiquei satisfeito por te ver ir embora. Tinha medo de ti. Agora voltaste, tiraste-me da prisão, vou contigo a todo o lado, jogo futebol convosco e só volto à prisão quando vou dormir. Antes comia os restos, agora como no refeitório.

– Mutma, as pessoas enganam-se, às vezes.

Mutma acabou por ser libertado e regressou à tabanca dele. Mais tarde, como aquelas tabancas deixaram de ter a protecção da tropa, foram recolhidas pelo PAIGC e vim a saber, já depois do 25 de Abril, que Mutma tinha morrido na guerra.


Condutor, nunca mais

Uma secção pertencente à guarnição de Buba[4], que estava destacada em Gadamael, foi mandada recolher a Cacine, para reforçar o pelotão independente[5], e pediu ao alferes duas viaturas, um jipe e um Unimog, para se deslocarem a Buba, a fim de receberem os salários e trazerem alguns materiais em falta.

Na véspera à noite, por volta das 22h00, fomos encarregados de recolher em Cacoca ou em Sanconha uma secção nossa que se encontrava em patrulha na zona, junto à linha da fronteira.

Chegados a Cacoca, à hora e local combinado, como a patrulha não apareceu até à 01h00 da madrugada, dirigimo-nos para Sanconha, onde ficámos até às 04h00.

Voltámos para trás, a Cacoca, e também não a encontrámos. Como não sabíamos o que se estava a passar com a secção, regressámos ao aquartelamento de Cacine e fui-me deitar.

O furriel atestou a viatura e, mal tinha acabado de adormecer, acordaram-me. Eram mais ou menos 6h30, peguei na viatura e rumámos a Buba. Quando chegámos a Sanconha, fomos alertados pelo guarda alfandegário que os militares da secção que devíamos ter recolhido na noite anterior, tinham regressado por volta das 05h00 e estavam a dormir numa casa ali perto.

O furriel disse-me para os ir acordar e, juntamente com um soldado, levá-los rapidamente a Cacine e que devia regressar logo para retomarmos o nosso caminho para Buba. Assim fiz, peguei na patrulha, levei-a a Cacine e regressei a Sanconha.

Quando chegámos a Gadamael, parámos para entrar o régulo de Froia, Baro Baldé, uma das esposas, três filhas e quatro homens com cinco balaios grandes, cada um com 40 a 50 quilos de noz de cola. Foi nessa altura que eu descobri por que é que eu trazia um atrelado na minha viatura.

Retomámos a marcha. Estávamos na descida para a ponte, no rio Balanazinho, com o sol da manhã a bater-me na cara e adormeci. O carro entrou numa valeta bem funda, inclinou-se e acordei dentro da vala, com um pé no travão e o Unimog inclinado. Parecia-me que estava a sonhar, ninguém se mexia até que ouvi uma voz de mulher a gritar, na língua fula, “Ai, minha mãe, o carro virou”.

Conseguimos pôr a viatura na posição normal e, com a ajuda de todos, tirámos o carro da vala, sem nenhum ferido nem danos e prosseguimos a nossa marcha para Quebo[6], onde se apeou o régulo, a família, os acompanhantes e a carga.

Logo depois da chegada a Buba fui ter com o furriel e disse-lhe que não queria conduzir mais na minha vida, mas como ele não me quis ouvir fui procurar o comandante[7].

– 
Meu comandante, eu nunca mais quero conduzir! – e pousei as chaves da viatura na mesa dele.

– De onde vieste, qual é a tua unidade?

Mandou chamar o furriel e perguntou-lhe o que tinha sucedido. Que tinha havido um pequeno acidente, sem consequências, respondeu.

– Não entregas aqui a chave, entrega-la na tua unidade, em Bedanda, e vou arranjar um condutor para levar a viatura para Cacine    disse o comandante, voltado para mim.

E avisou o furriel que não voltasse a vir a Buba com apenas duas viaturas, que agora era muito perigoso. Que, quando regressássemos iríamos integrados numa coluna.

No dia seguinte, depois do café, partimos numa coluna de seis viaturas, escoltados até Cacine. A minha viatura foi conduzida pelo Madalena, um soldado muito conhecido em toda aquela zona, comigo ao lado dele.

Quando chegámos a Cacine, quando o alferes Brandão me viu sentado ao lado do condutor quis saber o que se tinha passado. Depois, falou comigo, aconselhou-me e voltei a pegar no volante.


Patrulhas em Bedanda

Estive destacado em Cacine cerca de três meses, de Janeiro a Março de 1963, altura em que me mandaram voltar a Bedanda.

Dias depois de regressar fui integrado num grupo de combate da 4ª Companhia de Caçadores, comandado pelo 1º cabo Martins.

O nosso objectivo era patrulhar as tabancas até Incala. Depois de atravessarmos o rio, entrámos em Contubum, uma pequena tabanca balanta, com algumas casas. À porta de uma, estava um homem grande, descalço, barba branca, com um grande pano vermelho que lhe cruzava o tronco, e um barrete vermelho a cobrir-lhe a cabeça, também toda branca. O 1º cabo Queba Sanha disse ao 1º cabo Martins:

– Eu conheço aquele homem, vi-o em Caboxanque. Não sei o que é que ele está aqui a fazer.

Queba e o cabo Martins foram ter com ele e entraram na casa. Martins fazia perguntas, Queba era o intérprete. O que está aqui a fazer, desde quando está aqui na tabanca, se tem visto pessoal do PAIGC, se conhece alguém da guerrilha, se eles vêm cá à tabanca.

Eu encontrava-me à porta, a ouvir a conversa e, a certa altura, o que ouvi foi o barulho de uma estalada. Na varanda da casa, estava um velho, sentado, a mulher, velha também, a cozer uma cabaça e uma menina, filha deles, de 14 ou 15 anos, também sentada, a torcer pontas de um pano novo, daqueles panos com que se vestem.

Com o barulho da estalada, calaram-se todos. Aproximei-me e, quando cheguei junto da menina, vi lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo.

– 
O que é que se passou?    perguntei.

Que tinha sido um rapaz que lhe tinha dado uma bofetada. Porquê, quis eu saber.

Ela tinha as pernas unidas, um soldado quis abri-las, ela fazia força para ele não conseguir e ele deu-lhe um estalo.

Saí e perguntei quem tinha sido o soldado que tinha acabado de sair da casa. Um apontou para outro. Na frente de todos, perguntei-lhe se ele ficava contente se fizessem o mesmo a uma irmã dele. Não respondeu, olhou para o chão.

Entrei na casa e contei o que tinha acontecido ao cabo, que saiu logo, zangado, e disse ao soldado que se voltasse a fazer uma coisa dessas, voltaria sozinho a Bedanda.

Mas as coisas não ficaram por aqui. Quando chegámos à outra tabanca, Rossum Óle, o Queba avisou as pessoas que cada casa lhe tinha que dar cinco galinhas, que as levava quando regressasse. O cabo Martins não contrariou, nem disse nada.

Prosseguimos para Incalá, chegámos entre o meio-dia e a uma hora. Algumas pessoas da tabanca estavam a comer. Quase todos os soldados entraram nas casas, tiraram as malas para fora e abriram-nas, algumas com tiros das Mausers. Tiraram panos novos, dinheiro, ouro, o que puderam. No fim de pilharem as casas deitaram-lhes fogo. No regresso, recolheram as galinhas da outra tabanca. Os únicos que saíram dali sem nada foi o cabo Martins e eu.

Casos destes passaram a ser frequentes e, a partir de certa altura, deixei de me sentir bem em Bedanda.


Noutra saída com o alferes Gonçalves, chegámos de surpresa a uma tabanca de que não lembro o nome. Ninguém ouviu as viaturas. Quando estávamos a chegar junto das casas, ouvimos ruídos de gente a fugir, muita gente, talvez mais de cinquenta pessoas e ainda os vimos a correr para a mata.

O alferes chamava pelo Ansumane, “ó Ansumane, não corram, pá, somos nós, porque estão a fugir?” E gritou alto para nós, “não façam fogo, não façam fogo”. Ninguém disparou.

O alferes sentou-se numa cadeira de bambu, feita por eles, com as mãos na cabeça, quase a chorar. O Ansumane ganhou coragem, regressou com os companheiros à tabanca. Então, o alferes perguntou-lhe:

– Por que é que estavam a fugir? Nós não vos fazemos mal!

Que tinham tido medo, quando nos viram chegar sem eles terem ouvido o barulho dos carros.

– 
E que estão aqui a fazer tantos homens? Morreu alguém?    perguntou o alferes.

– 
Não, nós só estávamos todos reunidos para dar o nome a um bebé, recém-nascido.

Nós sabíamos que era mentira. Não havia farinha e se fosse verdade o que ele estava a dizer, deveria haver muitas bolinhas de farinha de arroz com açúcar e noz de cola e no local não vimos nada disso.

Era uma grande reunião do PAIGC.


Férias em Bafatá

Em bril  [de 1963]
, quando me estava a deslocar para Bafatá para gozar férias, junto da minha família, encontrei em Bambadinca alguns soldados do pelotão independente[8] de Cacine, com quem tinha estado há cerca de um mês. Foram eles próprios que me reconheceram e me chamaram.

 – O que é que vocês estão a fazer aqui?    perguntei, admirado.

Que tinham sido colocados em Bambadinca, responderam, muito contentes.

Uma semana depois, em Bafatá, ouvi contar que algumas viaturas civis de transporte de fruta tinham sido aprisionadas no sul e que um dos ajudantes de motorista[9] tinha sido aprisionado e levado para o PAIGC.
A partir desta altura as viaturas civis deixaram de circular sozinhas.

Depois, quando as férias começaram a aproximar-se do fim,  o meu pensamento estava no regresso a Bedanda.
A terra era bonita, a gente era boa, da minha etnia. Mas estavam a viver-se os primeiros tempos da guerra, andava muita coisa no ar, denunciavam-se pessoas por tudo e por nada.

Despedi-me dos meus pais com as lágrimas a escorrerem-lhes pelas faces e entrei para a camioneta de transportes, que me ia levar para Bissau.

No meu último dia de férias apresentei-me no QG e lembrei-me de procurar o capitão Simões, na 4.ª repartição, para lhe pedir que me tirasse de Bedanda.

Quando entrei no gabinete do capitão apercebi-me que já não era capitão, tinha sido promovido. Fixou-me demoradamente, talvez tentando lembrar-se de onde me conhecia.

– Então, tu ainda estás cá?

– 
Meu major, nós já fomos todos colocados.

– E, agora, o que queres?

– 
Vim cumprimentar o meu major e solicitar mais um favor, que me transferisse de Bedanda.

O major Simões, que tinha um capitão junto dele, virou-se para ele e disse:

– 
Estás a ver o que vais ter de enfrentar nesta repartição? Este soldado apareceu aqui, há três ou quatro meses, a pedir que o tirasse do CICA. E agora, aqui está ele outra vez, a pedir outra transferência. E eu a pensar que ele me vinha agora agradecer.

E, fixando-me:

–  Olha, isto não é assim. Tens que requerer a transferência, indicando para onde pretendes ir.

– 
Meu major, eu já requeri duas vezes. E por duas vezes foi indeferido o meu pedido!

– 
E porquê? Talvez, por falta de substituto ou por ninguém querer ir para lá, não?!

– 
Mas a mim, meu major, ninguém perguntou se eu queria ir para Bedanda! E mandaram-me para lá!

– 
E para onde queres ser transferido?

– 
Para a 1ª CCaç[10], se fosse possível, meu major.

– 
Bem, vou ver, não prometo nada. Vou saber junto do comandante da 1ª CCaç quais as possibilidades. Passa por cá amanhã, pode ser que já haja novidades.

Saí dali, para casa, cheio de esperança. No dia seguinte, ainda não eram 10h00, lá estava eu no QG, à porta da 4.ª Rep.

– 
Meu major, dá licença?

– 
Estás transferido para a 1.ª CCaç    E continuou:

– 
Olha, não sejas ingrato. Se amanhã a 1ª CCaç for transferida para a zona da fronteira com o Senegal, Ingoré, Bigene ou Farim[11], tu vais, ouviste?

Pareceu-me um sonho, uma notícia tão rápida.

– 
Meu major, eu ainda tenho de ir a Bedanda, entregar os materiais que estão à minha responsabilidade. Desculpe o incómodo, meu major, mas eu gostava de levar uma carta para o nosso capitão de Bedanda, indicando os motivos da minha transferência.

– Não vale a pena. Já foste transferido e a informação já foi para Bedanda.

– 
Desculpe a insistência, meu major. Peço encarecidamente que escreva ao nosso capitão de Bedanda, informando sobre a minha transferência.

Pegou num papel, começou a escrever e no fim entregou-mo, com a recomendação de entregar a carta pessoalmente ao capitão de Bedanda[12].

Fui-me apresentando todos os dias no QG, procurando saber da data do barco para Bedanda. Durou cerca de duas semanas esta espera e fiquei a saber que também se encontravam em Bissau dezasseis militares a aguardarem transporte.

Chegado o momento do embarque, com a guia de marcha na mão, compareci, bem cedo, no cais de Bissau. Abraços e lenços de despedida a acenar e o barco afastou-se, lentamente, para sul, rumo a Catió.

Sem saudades de Bedanda

Antes de chegarmos a Catió,  desembarcámos em Bolama. Talvez devido à euforia que sentia, lembrei-me de mostrar aos meus companheiros de viagem a carta do major Simões para o capitão de Bedanda.

– 
Quem te deu essa carta? – perguntou  um colega.

– Foi o nosso major que me conseguiu a transferência para Bissau, para a 1.ª CCaç.

– 
Por que é que não nos disseste nada? Devias falar-nos, para também pedirmos!

– 
Não falei, porque éramos muitos. Se pedisse para todos,  estragava a minha sorte!

Na manhã do dia seguinte desembarcámos em Catió. Agora tínhamos que procurar que no quartel nos arranjassem transporte para Bedanda.

– 
Não disponho de viaturas nem desloco os meus soldados sem ordem expressa de Bissau  informou-nos o capitão.

Não contávamos com esta resposta, mas não podíamos fazer outra coisa se não procurar um local para ficar. Dirigimo-nos para o bairro Príame, onde cada um encontrou hospedagem em casas de amigos ou conhecidos.

Eu fui para casa do João Bacar Jaló[13], que comandava, na altura, os caçadores nativos. Quando lhe falei das nossas dificuldades em arranjar transporte para Bedanda, o João Bacar prontificou-se a escoltar-nos, mas que, primeiro, eu tinha que ir pedir transporte ao administrador.

Na manhã seguinte dirigimo-nos à administração do concelho, onde fomos recebidos pelo administrador.

– Se vocês tiverem escolta, dou-vos a camioneta. Mas, sem escolta, o transporte não se faz!

Escolta já tínhamos, o João Bacar dava-nos. O administrador chamou o seu condutor, o Aliu, e disse-lhe que aprontasse a viatura.

Seguimos para o bairro Príame, onde o João Bacar nos aguardava com os seus homens. João Bacar distribuiu os seus homens, uns à frente e outros atrás, ficando nós, os escoltados sem armas, no meio. Tudo arrumado, seguimos em direcção ao porto de Cobumba, onde chegámos sem qualquer novidade.

Quando chegámos a Cobumba telefonei para o quartel, a dar conhecimento da nossa chegada e pedi que nos mandassem uma viatura. Minutos depois, uma nuvem de pó levantava-se na estrada e anunciava a chegada do nosso transporte.

Entretanto João Bacar avisou-nos que só retiraria quando tivéssemos atravessado o rio para a outra margem. Assim fizemos. Terminada a travessia e montados na viatura, João Bacar e os seus homens acenaram-nos e retiraram-se.

Quando chegámos a Bedanda fomos apresentar-nos. Chegada a minha vez, o 1º sargento disse que tinham recebido uma mensagem com a informação da minha transferência para a 1ª CCaç.

– É verdade, meu sargento, vim entregar o material que estava à minha responsabilidade.

– 
Mas vais fazer serviço até à chegada de barco.

Passados alguns dias chegou um barco carregado com géneros. Tinha sofrido um ataque de que resultou um ferido grave que acabou por morrer e ser enterrado em Bedanda.

Preparei as malas para o regresso que, no meu pensamento, estava para breve. Recebi das mãos do 1.º sargento os pagamentos que me eram devidos e disse-me que partiria no dia a seguir. Não foi assim.

A protecção dos aviões ao barco, por um motivo imprevisto, não se pôde fazer e a viagem teve que ser adiada para dois dias depois. Aproveitando essa disponibilidade, o 1º sargento informou-me que eu iria voltar a entrar de serviço nesse mesmo dia. E eu, disse-lhe que não achava bem.

– Se não te apresentares ao serviço, levas uma porrada!

– Está bem, meu sargento! Posso levar a porrada, mas não faço o serviço!

Mandou-me acompanhá-lo ao gabinete do alferes Gonçalves.

– Este gajo, meu alferes, está hoje de serviço e recusa-se a fazer.

– Não queres fazer o serviço porquê?    perguntou-me o alferes.

– 
Meu alferes, o nosso 1º sargento, pelos serviços prestados até ontem, pagou-me. Mas, pelo serviço de hoje, não me vai pagar, porque embarco amanhã!

O alferes virou-se para o 1º sargento:

– Se lhe pagar, ele, de certo, faz o serviço!

Saímos juntos, cada um para seu lado, eu com ar de vencedor e ele, um tanto comprometido.

Embarquei no dia seguinte, na companhia de três militares, ainda não eram 10h00 da manhã e cheguei a Bissau às 15h00 do outro dia.  (...)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. Corrigimos a grafia de alguns topónimos, de acordo com a cartografia portuguesa, e sem desprimor para o trabalho paciente e incansável do Virgíno Briote: Cobumba (e não Cubumba), Enxudé (e não Inchudé), Sanconhá (e não Sancoia)... Por outro lado o nome do prisioneiro balanta deve ser Mutna (e não Mutma), de acordo com o entendimento do Cherno Baldé, nosso assessor para as questões etno-linguísticas. ] 

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Notas do autor (Amadu Bailo Djaló) e do editor literário ou "copydesk"  (Virgínio Briote):

[1] Pelotão de Caçadores 859

[2] Nota do editor: 27 janeiro de 1963, domingo.

[3] Nota do editor: esta secção talvez tenha pertencido à companhia destacada em Cabedú. À data, em Cabedú estava, desde dez62, o Pel Caç 871, encontrando-se o Pel Caç 870 em Bedanda.

[4] CCaç 152

[5] Pel Caç 859

[6] Conhecida na altura por Aldeia Formosa, na qual estava destacado um pelotão da CCaç 152.

[7] Muito provavelmente o Capitão de Infantaria Alberto Blasco Gonçalves

[8] Pel Caç 870.

[9] Chamava-se Caba e a mãe, pouco dias depois, dirigiu-se a Sansalé, Guiné-Conacri e conseguiu convencer os chefes da guerrilha a devolverem-lhe o filho.

[10] Em maio e junho de 1963 ainda instalada em Bissau.

[11] Nota do editor: para onde foi transferida em 01 de julho de 1963.

[12] Nota do editor: nesta ocasião, já devia ser o Capitão de Infantaria Nelson João dos Santos.

[13] Anos mais tarde, comandante da 1.ª CCmds da Guiné.

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Nota do editor LG;

(*) Vd. poste de 8 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6694: Notas de leitura (126): "Guineense Comando Português", de Amadú Bailo Djaló (Mário Beja Santos)