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sábado, 9 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11217: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (10): Nunca pensei vir a gostar deste arroz e não me aborrecer de o comer praticamente todos os dias

1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, por Anabela Pires (Parte X) (*) [, Foto à direita; créditos fotográficos: JERO]


24 de Fevereiro de 2012

Nos últimos dois dias tivemos cá dois grupos de turistas.

Um dos grupos, de 11 pessoas, veio via Mali. Era constituído por 5 homens (americanos e ingleses) e 6 casais, dos quais 2 italianos. Vinham acompanhados de um guia do Mali e de outro guineense e já vinham do arquipélago dos Bijagós.

O outro grupo era um casal francês com 3 filhos, o mais pequeno dos quais tinha 5 anos. Vinham também acompanhados de um guia francês que trabalha para uma operadora no arquipélago. Fiquei a pensar que o meu João já cá pode vir, afinal os perigos não são assim tantos.

Pela primeira vez foi servida uma sopa no restaurante da Satu e adoraram a tarte de coco e banana, o bolo de laranja, as laranjas da Rosinda, os doces de limão e laranja, além do mel daqui e dos pratos tradicionais da Satu.

 Um dos pratos favoritos é a galinha ou cabrito à cafreal que é bem diferente do cafreal de Moçambique. Aqui, depois de grelhar a carne, é feito o tal molho onde a carne é metida. O molho tem 3 vantagens: torna a carne mais macia – mesmo as galinhas aparentemente pequenas têm a carne muito dura, permite manter a comida mais tempo quente e é o tempero do arroz que é só cozido em água e sal. 

Nunca pensei vir a gostar deste arroz e não me aborrecer de o comer praticamente todos os dias mas, na verdade, sabe muito bem. Não sei explicar como e nem porquê mas que sabe bem, isso sabe. Como dizem aqui as pessoas “muito sabe”. Outra expressão muito curiosa que usam quando uma comida é boa é dizer que pica. Um dia dei um bolo a provar à Pónu e ela começou a dizer-me “pica, pica”. Eu fiquei espantada e disse-lhe “mas eu não pus malagueta no bolo”. Então lá percebi que a expressão não tem nada a ver com picante mas que só quer dizer que é bom.

[Foto à esquerda: Anabela Pires, Catesse, janeiro de 2012. Foto de Pepito]


29 de Fevereiro de 2012

Hoje o Pepito vem cá. Foi bom de ver a Duturna cheia de pica ontem a fazer as limpezas! Ainda não consegui perceber bem o que muitas destas pessoas sentem pelo Pepito mas é um misto de respeito, de admiração, de medo? Mas de um medo bom, de um medo, creio, de o aborrecer, de o desiludir.

Ainda não terminámos as grandes limpezas, talvez seja hoje! Tem sido difícil convencer as mulheres a limpar paredes e a esfregar as junções dos ladrilhos. A sensação que tenho neste momento é que sempre que virei costas aldrabaram o trabalho, mas no final de Março faremos outra vez limpezas gerais e vou ter de estar sempre presente.

No Domingo voltei a ir à pesca mas só o Sambajuma apanhou uma raia. Mas foi um dia e tanto. Mudámos 3 vezes de piroga, fomos até ao “mar grande”, sempre em contra corrente e a partir de determinada altura só com um remo. Bem, uma maluquice do timoneiro! Passámos mais tempo a andar de piroga do que à pesca e o Sambajuma e o Alfa (irmão do Gassimo com 24 anos) “apanharam uma canseira” daquelas! Logo na mudança da 1ª piroga, quando olhei, estava tudo cheio de água, bem salgada, por sinal. Conclusão, entrou água para dentro da caixa onde ia o molho de galinha, para dentro do saco onde levava bolo que tinha feito de manhã …. Só comi meio “cuduro” com ovo mexido mas eles comeram tudo o resto. 

Já fizemos parte do caminho de noite, cansadíssimos e sem peixe! Como é costume, eu é que preparo e pago tudo, desde a comida, ao material de pesca, ao isco, e no fim ainda dou uma gorjeta a cada um. Ainda assim é muito mais barato ir à pesca aqui do que em Portugal. Compro isco para todos por menos de 50 cêntimos, as gorjetas são de 1,5€ por homem e não gastamos gasolina. Tenho de mandar vir material de pesca pois assim o que trouxe não me vai chegar para os 6 meses. Apesar de ter sido um dia louco foi muito saboroso pois a paisagem é muito bonita e repousante.

A bateria do PC está a finar-se e tenho mesmo de ficar por aqui. Ontem à noite o gerador só pegou às 21.30 e foi um bocado doloroso não ter luz logo às 19 horas. Coisas que acontecem!

[Foto acima: pescadores do Rio Geba, região de Bafatá, dezembro de 2009. Foto de João Graça]
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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11189: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (9): O batizado muçulmano da Aminata, a filha do padeiro

segunda-feira, 4 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11189: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (9): O batizado muçulmano da Aminata, a filha do padeiro

1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, por Anabela Pires (Parte IX) (*) 

[,  Foto à direita; créditos fotográficos: JERO]


20 de Fevereiro de 2012

Ainda não são 9 horas e vai uma grande azáfama no terreiro das mulheres. Eu não tinha percebido bem o que se ia passar. A Satu tinha-me dito que iam cortar o cabelo à Aminata, a menina que nasceu há dias e que é filha do meu vizinho padeiro e que, por sinal, nasceu com uma enorme cabeleira, e fazer uma festa. Afinal trata-se do batizado da menina.

Em frente à casa do Abubacar e da Satu está tudo a postos para a cerimónia à qual também vou assistir. Já fui ao terreiro das mulheres tirar umas fotos, ao panelão de arroz e ao tacho onde estão a cozinhar peixe. Ontem à tarde, quando cheguei da pesca, as mulheres estavam a encher saquinhos de plástico com sumo. Bom, hoje verei como é que organizam uma festa de uma família pobre. Claro que a mentora de toda esta azáfama é a Satu pois a mãe da criança, a Cadi [, a esposa do padeiro}, parece-me ser pessoa de nenhuma iniciativa. Mesmo quando ardeu o telheiro do marido ela não mostrou qualquer inquietação e estava aqui na casa da Satu.

O terreiro da frente já está cheio de homens que vêm assistir à cerimónia, o detrás cheio de mulheres.

Ontem voltei à pesca. Hoje dói-me, literalmente, tudo. Fui e vim a pé, com os habituais companheiros. A piroga de ontem tinha banco para me sentar mas saímos daqui às 9 horas e chegámos às 19. Ainda por cima estou adoentada, constipada e com tosse. Por regra dentro das pirogas há sempre uma enorme rede de pesca que só empata! Bem, fiquei com uma dor nos joelhos, por não poder esticar bem as pernas. Entra água na piroga e fica tudo molhado, tudo imundo. Tinha levado sanduíches dentro de uma caixa e outras num saco plástico. Quando fui tirar as do saco de plástico, aqui chamado oleado, estavam ensopadas em água salgada. 

Apanhei uma raia (estou a pensar fazer raia alhada para o jantar), 2 garoupas (aqui chamadas bedandas do mar de fora) e um barbo (o tal parecido com a faneca). O Sambajuma apanhou um charroco, um peixe maior de que não sei o nome e um tipo esquiló (ruivo cinzento) mas que não é esquiló. Isto está a melhorar. Desgosto foi ter perdido um peixe grande que conseguiu partir o fio quando já o estava a tirar da água. Não o cheguei a ver mas que era grande isso era. Para a próxima levo os empates com estralhos de aço pois ontem fiquei várias vezes sem anzol. E vou levar o carreto mais forte. 

O Sambajuma quer levar-me ao “mar grande” mas para isso não pudemos levar o Gassimo pois ele tem medo. Ontem, cada vez que me mexia na piroga o Gassimo refilava pois tem um medo enorme mesmo estando sentado no fundo da piroga. E eu até tenho algum receio de o levar pois já percebi que ele não sabe nadar bem e não temos quaisquer meios de salvação. Quem fica sempre na maior tristeza por não ir é o Alaje. Tenho muita pena de não o levar mas ele tem cinco anos e é responsabilidade a mais. É um menino muito inteligente, com um sorriso lindo. Adoro este menino que a toda a hora se aleija! Ando sempre a fazer-lhe curativos nos pés. Até me parece que ele já se aleija de propósito para eu lhe fazer os curativos. Gosta muito de cantar e aprende rapidamente as canções, que não sei, mas tento ensinar-lhe. Aí minha irmã, cá te espero com a viola para ensinares cantigas ao Alaje.

Por falar em meninos, quero dizer aos meninos de Portugal que, num mês, os únicos brinquedos que vi foram: um peluche às costas de uma menina, fisgas feitas de paus e borracha de câmara-de-ar e um aro de uma bicicleta tocado por um pau. A diferença entre os brinquedos que os meus meninos de Portugal têm e os brinquedos que os meninos da Guiné não têm é abismal. Mas estes meninos são felizes, desde que a barriga esteja cheia e não estejam doentes. O que mais me custa é ver meninos todos ranhosos. Porque sujos já percebi que é impossível não estarem. Aqui os meninos da Satu, como todas as pessoas que aqui vivem, tomam banho diariamente. Meia hora depois do banho as crianças estão sujas da terra.

Vou agora parar para ir ver o que se passa lá fora.


22 de Fevereiro de 2012

Acabei por perder a parte principal do batizado. A Satu, com a confusão, esqueceu-se de me chamar. Espreitei pela janela e vi os homens, rapazes e meninos, já a lavarem as mãos para comerem. Saí e a Aminata já tinha sido batizada e já tinha o cabelo rapado. Na varanda do Abubacar estava o Imã e o seu séquito. Ao fundo das escadas estavam duas mulheres grandes, as mulheres mais velhas, a mãe da criança e a menina. Tinham-lhe rapado o cabelo e numa cabaça havia água, folhas, cola e não sei que mais. Disse-me a mulher grande que era para a menina ficar de cabeça limpa. É curioso como os rituais entre as religiões muçulmana e a católica têm tantas semelhanças.

Foi então servido o pequeno-almoço ao sexo masculino. Grandes tigelas de arroz com peixe e os homens reúnem-se agachados à volta de uma tigela em função, mais ou menos, da idade e comem com a mão (com uma delas, a considerada limpa, creio que é a direita, porque a outra é aquela com que se lavam e por isso é considerada suja). Também havia um grupo de meninos à volta de uma tigela. 

As mulheres, à excepção das três que trouxeram a menina, não saíram do terreiro detrás. Depois foram distribuídos saquinhos de bolachinhas (um pacote destas bolachas custa 50 FCFA, o que equivale a cerca de 8 cêntimos, mas de 1 pacote foram feitos 2 ou 3) e de sumo. Entretanto foi morto um cabrito e, penso que a cada chefe de família, foi oferecido um naco de carne para levarem para casa. Levaram a carne na mão, sem qualquer tipo de acondicionamento. Lembro-me muitas vezes da ASAE e dá-me vontade de rir! Levadas à letra todas as exigências da ASAE por aqui já estaríamos todos mortos! 

E assim terminou o batizado. Os terreiros ficaram pejados de saquinhos de plástico que o Abubacar teve o cuidado de imediatamente mandar retirar. Ainda ontem continuava a retirada de plásticos e de latas de refrigerantes. Como só tinha comido um pacotinho de bolachas do batizado, e talvez por ter dado um contributo para o mesmo, ofereceram-me um pacote de bolacha Maria e 2 refrigerantes. Os contributos não são obrigatórios mas quem pode e quer dá. Assim, no final, havia um homem a contar o dinheiro recebido dos convidados. E assim foi a festa do batizado da Aminata que é de uma família com poucas posses.

Vi na festa, pela primeira vez, uma mulher de burca preta. Já tenho visto algumas de véu mas de burca foi a primeira vez. Estas mulheres são sempre da Guiné Conacri. As mulheres muçulmanas da Guiné-Bissau não usam véu, nem burca. São, aliás, muito “liberais” pois com frequência as vejo de blusas ou vestidos de alças.

[ Fotos, acima, Iemberém, dezembro de 2009:  © João Graça (2009). Todos os direitos reservados]

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Nota do editor:

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11155: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (8): Casamento tradicional, família, religião, homens, mulheres, gestão de conflitos... e pesca desportiva!

1. Comentário da nossa Anabela Pires, com data de 20 de corrente, ao poste P11098:

Luís, acabei de receber o teu e-mail e estou em estado de choque. Nunca percebi de que mal padecia a Cadi mas depois de ir para o Senegal e para o hospital de Cumura nunca pensei que o desfecho fosse este. Não imaginas como lamento esta notícia. E cuidado com a menina que pouco depois da mãe adoecer também ela andava doentita. Nunca me esqueço delas até porque no dia em que a Alicinha fez 2 anos (dia da minha chegada a Cantanhez) também eu ganhei uma "afilhada" em Catesse que tem o meu nome. As nossas "afilhadas" têm exactamente 2 anos de diferença. E não esqueço a visita que recebi da Cádi, da sua mãe (lindíssima mulher também), da Alicinha e do Ansumané (irmão mais novo da Cadi). Para sempre ficarão também no meu coração. Um grande abraço para ti e para a Alice. Anabela Pires

[Foto acima, à esquerda: Anabela Pires, em Catesse, Cantanhez, Região de Tombali, Guiné-Bissau, 20012. Créditos fotográficos: AD - Acção para o Desenvolvimento]

2. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, por Anabela Pires  (Parte VIII) (*)

16 de Fevereiro de 2012

Há seis dias que nada escrevo. Não tenho tido tempo!

Voltando mais atrás …. Aqui há dias um homem jovem deu uma surra no antigo namorado, também jovem, da mulher. A mulher fora-lhe prometida pela família, de acordo com os costumes muçulmanos. No entanto, a rapariga foi durante muito tempo namorada do filho do ex-régulo, falecido há pouco tempo. Deste namorado teve uma menina e claramente é dele que ela gosta mas chegada a hora de casar, e apesar de já ter uma filha do namorado, teve de casar com o rapaz a quem os pais a haviam prometido, levando para o casamento a sua filhinha.

Alguém a ouviu telefonar à família do antigo namorado, a dizer que ele andava doente e que cuidassem de lhe comprar os remédios, e foram contar ao marido. Este não esteve com mais – foi ter com o outro e deu-lhe uma surra que o deixou desmaiado e a sangrar dos ouvidos, boca e nariz. O rapaz foi socorrido, levado para o hospital mais próximo, onde estava o chefe da polícia que tomou parte da ocorrência.

Aqui no complexo existe um espaço aberto mas coberto que supostamente é o local de convívio dos turistas, chamada a Casa Redonda.  No entanto, este espaço é utilizado para diversos fins, e muito bem. Nele se reuniram todos os chefes de família de Iemberém, com a presença do chefe de polícia, e lá estiveram toda a tarde para discutir o incidente entre os dois jovens homens.

O objetivo destas reuniões é tentar uma reconciliação entre as partes mas sempre tem de ser determinado o culpado. Nestas reuniões não participam as mulheres, que toda a tarde mostraram uma grande preocupação com o que seria o final da estória. Foi uma longa tarde, mas no final o marido foi determinado culpado e teve de pedir desculpa ao agredido. Este aceitou as desculpas e deu-lhe o seu perdão. Tudo acabou em bem para grande alívio da população.

 O Abubacar explicou-me que a determinação do culpado é fundamental para que o agredido possa perdoar do fundo do coração pois caso contrário vai perdoar de boca mas não vai esquecer. Pergunto-me a mim própria se ele de facto perdoou do coração. A verdade é que a estória, pelo menos para já, ficou resolvida. Apesar das minhas dúvidas, não deixei de admirar este sistema de justiça em que o principal objetivo é a reconciliação entre as partes, sem processos judiciais, daqueles que nunca mais chegam ao fim, sem cadeia, sem mais delongas.

Aqui na tabanca não há cadeia mas há um armazém onde, caso alguém faça um mal muito grande, se pode prender uma pessoa até ser transferida para a cadeia mais próxima. Nas tabancas a prisão parece que só acontece em casos muito extremos mas,  se houver queixas aos régulos,  eles podem determinar castigos corporais, chibatadas. E assim se processa a justiça por aqui. É evidente que a Guiné tem sistema judicial, tribunais, cadeias, advogados, etc.. mas nas tabancas é em reunião de chefes de família que tentam resolver os conflitos.

Esta questão do casamento obrigatório é cada vez mais controversa e origina conflitos frequentes. Quando vinha de Bissau para aqui o jipe parou numa tabanca e também por lá havia um grande banzé! Uma rapariga prometida andava a fugir para ir ter com o namorado da sua escolha à tabanca vizinha. A família dela foi à outra tabanca atirar pedras ao rapaz, depois veio a família dele ao lado de cá e a discussão era acesa!

As raparigas cada vez estão menos dispostas a casar com quem os pais escolhem mas muitos pais insistem ainda neste costume. E é curioso ver a posição de pessoas diversas relativamente a este assunto.

[Já tinha falado em tempos com um casal meu amigo, os dois guineenses, obre esta questão. Ele],que apesar de muçulmano é um homem instruído e que já andou pelo mundo, é absolutamente contra este costume [, dos casamentos tradicionais arranjados pelos pais]. [Ela], bastante religiosa, achava que estava bem assim porque a religião diz que é assim, mas encontrava-lhe com frequência contradições no discurso. Ela era já a 2ª mulher dele, e para sorte dela a 1ª morreu. Apesar de ser a 2ª, também foram os pais que a ofereceram ao [atual marido], ela nunca o tinha visto quando casou com ele. Passou um mau bocado com a 1ª mulher que até uma dentada lhe deu numa orelha. Hoje tenho a sensação de que ela o ama (será? Ou não quer simplesmente confusões na sua casa?) e não quer, de modo algum, que ele tenha outras mulheres, pelo menos na mesma casa. Porque fora de casa ele [terá tido] filhos, [segundo julgo saber] (...).

Mas outras mulheres não se importam nada que os maridos tenham outras mulheres (combossas) em casa e acham até que isso é uma necessidade. É o caso da X... de Farosadjuma [...]. O marido dela tem 4 mulheres e creio que 20 filhos vivos. Vivem todos na mesma morança mais uma das mulheres do seu filho e respectivas crianças. Que grande confusão!

Mas a X... diz que não há problema nenhum e que há sempre alegria. Diz que tem de ser assim pois têm “manga” de trabalho (aqui muito é “manga”, em Moçambique é “maningue”). O marido é agricultor [...] e com tanta gente em casa há que fazer dinheiro para a todos alimentar e há muito trabalho doméstico para fazer. A X... é a 1ª mulher e a oficial, porque oficialmente só podem ter uma mulher. Parece-me que ela é quem manda nas outras todas.

Perguntei-lhe com quem é que o marido dormia e pelos vistos dorme duas noites, em rotação, com cada uma. E não chegam os sete dias da semana para uma rotação completa! E o pobre, pelos vistos, nem tem direito a descanso! Perguntei-lhe se não ficava incomodada, aborrecida, quando o marido vai dormir com as outras. Disse-me que não, que têm “manga” de trabalho. Não percebi se o que me quis dizer é que trabalhava muito e estando cansada até gostava de não ter de dormir todos os dias com o marido ou se aceita este sistema com agrado porque acha impossível terem tão grande labuta sem que o marido tenha outras mulheres.

Bom, um destes dias terei de ir a Farosadjuma dar formação à Fatu e nessa altura espero conhecer as tais mulheres de que me falaram. A Fatu tem 3 bungalows e também recebe turistas mas parece-me que por lá há grandes limpezas a fazer e muito a ensinar. Mas tem muita pose,  esta Fatu. É já mulher com 50 anos mas uma bela e forte mulher. Veio estes dias para aqui para ir vendo como se processam as grandes limpezas e aprender alguma coisa na cozinha.

No dia em que chegou estivemos aqui em casa, com a Satu também, a fazer sopa de alface e ovos verdes. Bem, o que eu me ri com as duas a provarem a sopa de alface! Até lhes tirei umas fotos! Nunca tinham comido sopa! Já outro dia tinha feito com a Satu sopa juliana, com repolho e cenoura ralada e ela adorou. Também adoraram os ovos verdes que só conseguimos fazer porque veio salsa de Bissau.

Ando a ver se as convenço a fazerem uma pequena horta com os legumes que aqui se derem para não estarem sempre na dependência do que pode vir de Bissau. Afinal ambas são mulheres de agricultores e o Abubacar é engenheiro agrónomo. A questão é que aqui não estão habituados a comer sopas e saladas e como tal valorizam muito pouco os legumes – usam cebola, pimentos e tomate, para fazer o tal molho e quando não têm tomate fresco substituem por massa de tomate em lata. Os legumes são todos pequeninos! Quase miniaturas! E eu que adoro trabalhar com cebolas grandes!

Hoje, para terminar, vou só relatar a minha 1ª ida à pesca no Domingo passado. Fui com o Sambajuma, que é aqui jardineiro e guarda durante o dia, que tem uns 65 anos e com quem falo francês pois só sabe esta língua e crioulo,  e o Gassimo, de quem já falei, e que é um menino adorável pela sua bondade. Fomos a pé até Camucote, tabanca pequena a que chamam porto, à beira de um largo braço de ria, todo ladeada de mangal (aqui chamado tarrafe) e com o solo de lodo e pedras e que fica a uns 2 ou 3 km daqui. Fomos todo o dia. Eu pensava que íamos pescar de terra mas afinal fomos de piroga. Enfim, 3 pessoas dentro de uma piroga, com a tralha toda da pesca e eu com uma cana de 5 metros de comprimento! 

O Sambajuma é pescador mas gosta mesmo é de pescar com rede. Só apanhei um pequeno peixe a que eles chamam barbo mas que penso ser da família da nossa faneca. O Sambajuma apanhou um esquiló, que se parece com um ruivo mas é cinzento. Apesar do fracasso desta 1ª pescaria devo dizer que adorei andar por lá todo o dia. Na 1ª piroga ainda tinha uma tábua para me sentar mas na 2ª piroga o meu banco e o do Gassimo eram pedras!

Valeu-me ter trazido as botas com que costumo andar na ria de Faro ao lingueirão pois na maré vazia o lodo é terrível. Mas a ria ou rio, como dizem aqui, é muito bonita sobretudo com a maré cheia. Tirei umas fotos e até ajudei o Sambajuma a remar. Assim que tivermos tempo vamos voltar e ele disse-me que me vai levar mais longe, até ao grande mar, que é o local onde começa o braço da ria junto ao mar. Penso que já percebeu que estou habituada a estas actividades e que não tenho medo. Para a próxima já levarei a cana adequada. 

No regresso viemos de jipe – estava cá um da AD e o Abubacar mandou-nos lá buscar. Soube bem vir de carro no regresso pois estava cansada e cheia de lodo por todo o lado! Depois foi o costume – lavar tudo e tirar o lodo de botas, mochila, etc… Mas foi um lindo dia, o dia 12 de Fevereiro. Antes de ir enviei sms de parabéns à Benilde e à Élia. Esta recebeu-a pois respondeu-me mas a Benilde não sei. O importante é que eu não me esqueci delas no dia dos seus aniversários.

Bom, tenho mesmo de me despachar para ir trabalhar.

[Fotos: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados]
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11121: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (7): Fogo!!!.... O forno do meu vizinho padeiro, o Mumini, completamente em chamas!

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11121: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (7): Fogo!!!.... O forno do meu vizinho padeiro, o Mumini, completamente em chamas!

1. Notícias da nossa Anabela Pires, com data de 17 do corrente:

[Foto à direita: Anabela Pires, em Catesse, Cantanhez, Região de Tombali, Guiné-Bissau, 20012. Créditos fotográficos: AD - Acção para o Desenvolvimento]


Car@s amig@s, família, ex-vizinhos e ex-colegas

Há 1 mês que estou em Auroville. Para aqueles que não sabem estou há 2 semanas a trabalhar numa quinta que está a fazer a reconversão para agricultura biológica. E já sei andar de lambreta!

Continuo bem e satisfeita por aqui estar. Há 2 dias começou a fazer aquele calor húmido que nos faz ter sempre a sensação de estarmos sujos. Felizmente esta tarde a trovoada chegou e com ela a chuva! Já o ar está mais aliviado!

Esta semana não vou enviar o habitual diário para aqueles que o pediram - não escrevi nada! Não me apeteceu, não tive oportunidade.

Os meus votos para que todos se encontrem o melhor possível. Ficarei feliz de também receber notícias vossas.Um enorme abraço, Anabela Pires.

2. Resposta imediata de L.G.:

Querida, não vistes o blogue, com a triste notícia da morte da Cadi... Esta semana que passou... [, Foto à direita, 2010, crédito fotográfico: Pepito].

 Obrigado pelas tuas notícias com os teus progressos em Auroville. Um beijinho. Luis

PS - Continuo a publicar o teu diário, que já tem fãs...

3. Continuação da publicação do Diário de Iemberém


Diário de Iemberém, por Anabela Pires [, que escreve de acordo com a antiga ortografia] (Parte VII) (*)

10 de Fevereiro de 2012

Ontem à tarde estava combinado que ia fazer com a Satu uma sopa e experimentarmos fritar bananas como a minha mãe fazia em Moçambique e às quais eu não resistia. Não fizemos nada pois apanhámos um susto!

Recebi ontem, finalmente, as encomendas que tinha metido no correio antes de sair de Portugal (já estavam em Bissau há uns 15 dias mas só ontem veio um carro da associação que as trouxe até aqui! Ai meu rico cafezinho que já andava a beber nescafé há quase uma semana!) e as coisas que tinha pedido à Isabel e à Binto para me comprarem em Bissau.


Estava toda contente, como uma criança pequena quando recebe um presente, a tirar as coisas dos caixotes, ouvi uma gritaria no terreiro. Não liguei, é frequente e ouvia a Jóia muito zangada e pensei que o pequeno Mamadu já tinha feito algum disparate. Entretanto sai da cozinha para ir à varanda procurar um saco com um pacote de manteiga e queijo de bola e o que vejo? O forno do meu vizinho padeiro, o Mumini, completamente em chamas! Quer dizer, ardia tudo menos o forno que é de barro. O telheiro é de colmo, como na grande maioria das moranças, os suportes de paus, a caixa de amassar o pão, a mesa, enfim, tudo de material muito bom para arder!

O forno fica a 1 metro de distância da parede lateral da minha casa. À minha porta estava já o jardineiro que me disse para eu tirar a roupa que estava estendida na varanda mas eu não era capaz pois o calor era imenso. Saí, apanhei umas roupas que não eram minhas e que estavam a secar na minha vedação de bambu (que, nem sei como, não ardeu!) e fui ao terreiro das mulheres. Nessa altura já elas vinham com bacias e baldes de água e alguns homens também para apagarem o fogo. Vi-os encostarem o grande escadote em metal à parede da minha casa e começarem a atirar água para o meu telhado que é de zinco. Um dos barrotes exteriores já estava a arder.

Tivemos muita sorte pois o vento puxava as chamas para cima e as árvores são muito altas. Lá andámos todos a transportar água e fiquei a saber que só não podíamos deitar água em cima do forno sob pena de se partir todo. Enfim, além do forno ainda se salvou a pá do padeiro, a mesa e a caixa de amassar o pão, bastante chamuscadas. Tudo o resto foi à vida!

Vi o rosto da Jóia transfigurado e imaginei que tinha sido “habilidade” do Mamadu, que entretanto já tinha levado umas valentes palmadas e tinha fugido para o mato. O Mamadu tem pouco mais de 4 anos e, pelo que, descobrimos mais tarde, foi com um outro menino, o Talibe, experimentar o isqueiro da Cadi [, esposa do padeiro] . Já me tinha apercebido do fascínio do Mamadu pelos isqueiros pois sempre que está ao pé de mim tenta acender o meu mas não consegue pois ainda não tem força suficiente.

Tudo acabou em bem, o Mumini nem se alterou, a Satu vai pagar o prejuízo, hoje começam a reconstrução do telheiro. A Jóia é empregada da Satu há 5 anos, mãe solteira de 2 crianças, mas a Satu já gosta dela como de uma filha. Fui buscar o Mamadu ao mato, trouxe-o aqui para casa de onde, literalmente, não queria sair! Dei-lhe banho, lanche, e pu-lo a desenhar no chão do quarto que está quase vazio. Mas primeiro levei-o a ver os estragos e creio que se a memória dele já funcionar não voltará a brincar com o fogo.

À noite, no terreiro, acabámos todas a rir pois a Satu, passado o susto, reconta a história com imensa graça e com muita mímica. Então a grande aflição foi a minha casa, o facto de eu ter uma botija de gás numa divisão que dá para o lado do forno, o facto de eu estar em casa! Mas em vez de me chamar e me dizer o que se estava a passar, não, diz que desatou a tremer e a gritar em fula (eu não percebo crioulo quanto mais fula!) “ajudem-me, ajudem-me!”! Alguém teve a imediata preocupação de apanhar a minha roupa que estava a secar numa outra corda ao lado do forno mas não me chamaram!

Enfim, nunca tinha presenciado uma cena destas. Certamente por causa do calor no meu telhado esta manhã tinha 2 morcegos a voar na minha cozinha! Devem ter saído pelo respiradouro do telhado que fica na casa de banho e que pedi desde o 1º dia para ser vedado mas ainda não foi! Tudo se vai fazendo ….. lentamente, muito lentamente. Um dos morcegos já saiu para a rua mas o outro não sei onde está! E assim foi a tarde de ontem!

Tentei telefonar à minha Mila duas vezes mas não consegui falar com ela! São horas de me ir despachar para ir trabalhar.

(Continuação)

[Foto acima: Farim do Cantanhez, 10 de dezembro de 2009. Crianças.  Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados]

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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11088: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (6): O mundo das mulheres é sempre muito especial e aqui ainda mais, onde mulheres e homens não se misturam muito no dia-a-dia, por razões da cultura muçulmana

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11088: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (6): O mundo das mulheres é sempre muito especial e aqui ainda mais, onde mulheres e homens não se misturam muito no dia-a-dia, por razões da cultura muçulmana


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Iemberém > Galeria fotográfica da AD - Acção para o Desenvolvimento > Iemberem atrai cada vez mais turistas > Foto tirada em 16 de maio de 2009 usando uma Canon Digital IXUS 85 IS.

Legenda: "Em plena floresta de Cantanhez, a tabanca de Iemberem tem vindo a oferecer melhores condições de acolhimento para os turistas que, vindos de Bissau ou da Europa, procuram nestas paragens um contacto directo com as populações locais, com a sua cultura, a sua maneira de estar na vida e ao mesmo tempo apreciarem a beleza única que este Parque Nacional proporciona em termos de flora e fauna selvagem.

Com o apoio da União Europeia e da ONG IMVF de Portugal, está em fase de conclusão a construção de um restaurante típico e a reabilitação de uma unidade de alojamento com 5 quartos. Em colaboração com a ONG italiana AIN Onlus foi identificado e ir-se-á implantar um Parque de Campismo que permita aos apreciadores estar mais perto da natureza e igualmente a identificação de dois itinerários marítimos: o da ilha dos pássaros e o do ilhéu de Melo."



Fotos: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2013). Todos os direitos reservados [, Com a  devida autorização e vénia...]



1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, da nossa grã-tabanqueira Anabela Pires, nascida em Moçambique, técnica superior de serviço social no Ministério da Agricultura, reformada, amiga dos nossos grã-tabanqueiros Jero (Alcobaça) e Alice Carneiro (Alfragide/Amadora)...

Em 2012, esteve na Guiné-Bissau cerca de três meses (, de meados de janeiro a meados de abril). Mais exatamente, em Iemberém, Parque Nacional do Cantanhez, região de Tombali, onde esteve a trabalhar como voluntária no projeto do Ecoturismo, da AD - Acção para o Desenvolvimento. Devido ao golpe de Estado de 12 de abril , acabou por sair da Guiné-Bissau, por razões de segurança, passouo um mês em Dacar, no Senegal. Regressou a Portugal, fez agricultura biológica e,  neste momento, vive na Índia, em Auroville (onde pensa ficar até meados do ano). 

Chegou em Iemberém no dia 17/1/2012. E ficou hospedada nas instalações locais da AD, a ONGD que é dirigida pelo nosso amigo Pepito. [, Foto atual de Anabela, foto da autora].



2. Diário de Iemberém, por Anabela Pires [, que escreve de acordo com a antiga ortografia] (Parte VI) (*)

[Foto à esquerda: Anabela Pires, em Catesse,  Cantanhez, 20012. Créditos fotográficos: AD - Acção para o Desenvolvimento]

9 de Fevereiro de 2012

Voltando ao dia 4… a tal música que ouvi toda a noite…e que se continuou a ouvir de vez em quando até às 14 horas, tratou-se de um ritual religioso dedicado aos mortos. É um rito muçulmano, que uma família organiza, para o qual faz convites e cujo objetivo é rezar para que aqueles que já morreram estejam ou fiquem em paz no outro mundo. Pelos vistos tem estado a cair em desuso e o Imã tem incentivado os fiéis a retomá-lo.

No dia 4, à tarde, chegou o grupo que está a produzir um filme sobre um “chão sagrado” para os Bijagós (uma das etnias locais, certamente com origem no arquipélago dos Bijagós). Eram 18 pessoas, guineenses e portugueses. O realizador é guineense, Sana (**), creio, os dois actores principais também, a equipa técnica é portuguesa, da LX Filmes. Tinham 2 responsáveis pela logística, a Isabel, portuguesa, e o Domingos, guineense, motoristas e outro pessoal de apoio.

À partida vinham por 3 dias mas acabaram por ficar 4. Foi uma canseira! Assim que chegaram, antes da hora que os esperávamos, foram, naturalmente depois de uma cansativa viagem, até ao restaurante beber umas bebidas frescas (aqui as opções são cerveja Cristal ou Super-Bock XL, Sumol, Fanta, Coca-Cola ou Lito-Cola e uns sumos sem gás enlatados, que podem ser de goiaba, manga ou tamarindo. Passei o Sábado com a Satu e a Mimi (2ª mulher do Adulai, primo-irmão da Satu, que já costuma fazer bolinhos de coco para vender e que a Satu tem tentado incentivar para que fique responsável pelas sobremesas no restaurante) a fazermos 2 Tartes de Coco e Banana e Laranjas da Guiné à moda da Rosinda. Chegada a hora do jantar, a Satu estava sem empregado de mesa, o Cabi. Pensei que fosse só nesse dia uma vez que tinha sido a sua família a organizar o tal rito religioso, mas não, o Cabi não voltou a aparecer. E assim passei os últimos dias no restaurante a ajudar a Satu, não só com as sobremesas, com a Salada de Repolho e Cenoura, com as sanduíches, mas também a pôr e servir à mesa. Enfim, fi-lo não por obrigação, mas por solidariedade para com a Satu, para que tudo corresse o melhor possível e o grupo pudesse sair daqui com uma boa imagem do serviço prestado.

Foram dias de bastante trabalho, pois tomavam o pequeno almoço, quase de seguida almoçavam e partiam para as filmagens com um farnel de sanduíches (o mais difícil foi decidir o conteúdo das mesmas, entre as poucas opções de ingredientes que há por aqui!), bananas, laranjas (têm de ser previamente descascadas pois a casca é tão rija que é preciso faca para as pelar!), sumos, águas, termos de chá Belgate (erva Príncipe), de água quente para o nescafé, de açúcar, de guardanapos (quando acabam fazem-se de lencinhos de papel)!

As sanduíches foram uma consumição! O melhor foi que o vizinho padeiro fez sempre os “cuduros” (tipo cacete feito em forno de lenha! Não sei se o nome dos pães tem a ver com o facto das pontinhas ficarem muito rijas …). Os recheios foram uma só vez de queijo (que era meu e dispensei para o efeito!), de mortadela enlatada (que os clientes apreciavam muito pouco! Lembro-me que em Moçambique também usávamos muito esta carne mas em Portugal penso que quase só os jovens comem esta carne quando vão para os festivais de verão), de ovos mexidos (que a Satu nunca tinha feito nem provado – diga-se que aqui não há abundância de ovos e são mais caros do que em Portugal!), de carne estufada de cabrito ou de frango.

O jantar e os almoços tiveram como prato principal (e único, pois só numa das refeições servimos uma salada) peixe, frango e cabrito, acompanhados quase invariavelmente de arroz, batata branca, mandioca e batatas doces fritas e …. Molho! O molho é que é, ao fim de alguns dias, um problema para os europeus! Sendo quase sempre feito com os mesmos ingredientes, o molho torna os pratos muito iguais, sejam de peixe, cabrito ou frango. O que comi de diferente foi frango com molho de amendoim (aqui designado mancarra), bastante bom, pesado para o jantar e cuja confecção é mais demorada, pelo que não foi possível fazê-lo em dia algum para os clientes. Fizemos também arroz doce, com leite em pó, e uma salada de fruta com laranja, banana e papaia.

Apesar de todas as limitações penso que tudo correu bem no restaurante. E para aqueles e aquelas que me gozaram uma vida inteira por eu não fazer nada na cozinha quando não tinha todos os ingredientes e/ou todos os utensílios necessários, aqui fica o registo – temos feito sobremesas sem balança, sem batedor de claras (só há garfo!), sem tarteiras, arroz de peixe sem coentros e muito mais! A Satu está bem habituada a desenrascar-se e assim encontramos sempre uma solução! Tenho-me adaptado melhor do que aquilo que eu própria esperava quando vim. EUREKA!

Nos alojamentos falhou a reposição de papel higiénico (a empregada responsável pela Casa do Ambiente esqueceu-se de o repor e a responsável pela gestão dos alojamentos não foi verificar nada!), a mudança de toalhas de banho (só existem em número igual ao das camas pelo que não havia para mudar e o tempo não permitiu que se lavassem de manhã e recolocassem à noite) e a falta de roupa mais quente para as camas (não entendo como nunca foram ainda comprados cobertores finos ou colchas quentes pois de vez em quando as noites são bem fresquinhas! Eu que o diga, que para a próxima, se voltar, não venho sem saco cama e outras coisinhas mais aconchegantes!). Espero que a curto prazo estes problemas se resolvam, assim a AD tenha verba para fazer algumas compras.

Sobre o grupo de clientes [...]. Estavam na deles e nós para os servirmos. É verdade que tiveram uns dias muito cansativos e o tempo não ajudou muito. No Domingo choveu um pouco, esteve sempre fresco (e eles trabalhavam no mato até às tantas da madrugada) e tem estado uma “neblina” permanente que é da poeira. Segundo me disse ontem a Isabel ao telefone até o aeroporto de Dakar tem estado fechado por causa da poeira. Pedi-lhes que antes de se irem embora escrevessem no nosso livro de visitas mas não o fizeram. A grande maioria das pessoas foi-se embora sem sequer se despedir! As únicas notas positivas foram:

(i) um dos jovens guineenses que logo no segundo dia foi à cozinha para me dizer que eu era muito bonita. Agradeci e disse-lhe que há muito tempo que ninguém me dizia tal coisa e perguntei se o que ele queria dizer é que eu era simpática. Ele disse que sim. Creio que os tocou o facto de eu tratar à mesa todo o grupo por igual. A mesma atenção e tratamento que dava aos europeus, dava aos guineenses, fossem eles o realizador, o actor ou o motorista. Aqui, como se calhar no mundo inteiro, ainda existem as discriminações pela raça, posição social, etc…, e por isso os mais desfavorecidos sentem a diferença de tratamento pela positiva ou pela negativa;

(ii) um senhor mais velho, preto, pareceu-me que seria originário de Angola, veio despedir-se;

(iii) o realizador despediu-se da Satu e o produtor de mim, porque estivemos a fazer as contas.

Considerando que o alojamento foi oferecido pela AD e que só pagaram as despesas de alimentação, que fizemos o possível e o impossível para os servir bem, era, no mínimo, expectável, um pouco mais de gratidão. Bom, esperemos que pelo menos agradeçam à AD. A única desculpa que lhes concedo é o facto de estarem extremamente cansados no dia da partida e cheios de pressa.

Assim, se eu tinha a expectativa de puder conviver um pouco com os visitantes europeus começo a perdê-la e, de facto, com quem convivo, com quem me rio muito, com quem me divirto, com quem converso é com as mulheres com quem trabalho, com as crianças aqui do “meu terreiro” e esporadicamente com algum dos homens que aqui trabalham. Com a Satu, de quem o Pepito me disse ser uma mulher reservada, tenho-me rido imenso e muitas vezes! É muito divertida, a Satu,  e uma líder nata no mundo das mulheres. Sendo de uma imensa generosidade tem também a ajuda espontânea das suas amigas, quando precisa. E tem claramente espírito de empresária. Quer aprender tudo, toma atenção a tudo o que faço, seja no restaurante, nos alojamentos ou em minha casa, faz muito bem contas à vida e consegue dividir uma tarte, aí com uns 25 cm de diâmetro, em 18 fatias! E não me deixou servir mais! Disse que a outra tarte que tínhamos feito ficava para o pequeno-almoço do dia seguinte! E assim foi! No dia em que foi a Mimi, com as instruções da Satu, a colocar os ovos mexidos nas sanduiches, sobraram imensos ovos (com os quais nos deliciámos a seguir!); quando fui eu a fazer as sanduíches lá consegui, com muito custo, que sobrassem 2 colheres de ovos para os dar a provar às mulheres e crianças que estavam na cozinha e que nunca os tinham saboreado. Desta forma está decidido: quando houver pouco de qualquer coisa terá de ser a Satu a repartir! Vai sempre ser suficiente! O mundo das mulheres é sempre muito especial e aqui ainda mais, onde mulheres e homens não se misturam muito no dia-a-dia, por razões da cultura muçulmana.

Estes dias de trabalho no restaurante foram para mim a grande oportunidade para me aperceber melhor do que é preciso corrigir. Agora tenho uma noção mais clara do trabalho que é preciso fazer no restaurante, para além da diversificação das sobremesas e de alguns pratos. Há que organizar melhor o espaço da cozinha e do bar para facilitar o trabalho, há que ensinar a duas pessoas o serviço de mesa e alguém terá de ficar responsável pelas sobremesas. A Satu é a cozinheira e preocupa-se com a compra das matérias-primas, não pode arcar com mais trabalho, sob pena de alguma coisa correr mal, sobretudo quando são grupos maiores. O mais difícil será mesmo a escolha das pessoas pois a maioria gosta de trabalhar a um ritmo lento e nos dias que lhe apetece e o trabalho de restauração não se compadece com isso. Bem, a escolha das pessoas certas cabe à Satu, não a mim.

Saindo do tema trabalho, outros acontecimentos destes últimos dias são dignos de nota.

De Domingo para 2ª feira nasceu a filha da Cadi, mulher do nosso padeiro. Eu apostava que seria um rapaz e até que poderiam ser gémeos (era grande e bicuda a barriga e a senhora já tem gémeos!), mas foi uma grande menina. Aqui o nascimento ainda é uma surpresa! Não se fazem ecografias e o nome só é colocado ao 7º dia após o nascimento. A bebé, como sempre à nascença, é muito clarinha e rosadinha e nasceu com uma enorme cabeleira. O parto foi feito em casa da Mariama com a ajuda das mulheres, entre elas a Satu, que passou a noite em claro e no dia seguinte estava no restaurante a trabalhar. Correu tudo bem, pelo menos aparentemente, e dois dias depois a Cadi já andava no terreiro e já tinha leite para amamentar a bebé. E, como estou quase sem bateria no computador, fico-me hoje por aqui.

Não quero deixar de registar que a minha Mila faz hoje anos e lhe vou telefonar, que o Castelão fez ontem e recebeu a minha sms, mas o Mouzas e o António fizeram anteontem e não devem ter recebido as minhas mensagens pois nada disseram. Esta dificuldade em comunicar com o exterior é um bocado enervante mas muitas e muitas vivências têm sido aqui compensadoras. E continuo a gostar muito de cá estar!

[Fotos: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados]

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 6 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11064: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (5): Em Catesse, com o Pepito... Pela primeira vez tive medo!...Medo de não conseguir corresponder ao tanto que a população espera de todos nós!

(**) Presume-se que seja o Sana Na N'Hada, um histórico do cinema da Guiné-Bissau, a par de Flora Gomes.  Ver aqui nota sobre ele em texto de Filomena Embaló, de 10/2/2008, sobre o cinema guineense:

(...) Sana Na N’Hada, nasceu em Enxalé, na Guiné-Bissau, em 1950 e completou os estudos secundários em Cuba. Formou-se em Cinema pelo Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica, tendo também cursado no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC), em Paris. Em 1979 foi Director do Instituto Nacional de Cinema da Guiné-Bissau.

Foi na década de 1970 que Na N’Hada deu início à sua carreira de realizador com a produção de curtas metragens: “O regresso de Cabral” (1976), “Anos no oça luta” (1976), ambas em co-realização com Flora Gomes, “Os dias de Ancono” (1979) e “Fanado” (1984). Em 1994 realiza a sua primeira longa metragem com o filme “Xime", que esteve em competição oficial nesse mesmo ano no Festival de Cannes, na secção Un certain regard.

Em 2005, realiza o documentário “Bissau d’Isabel” que foi galardoado com o Prémio Revelação (RTP África) no ’05 Festival Imagens, em Cabo Verde no ano de 2005. O filme foi também exibido em diversos outros festivais e mostras de cinema: Mostralíngua – Festival de Cinema de Coimbra, Portugal (2007); Biblioteca Municipal Dr. Fernando Piteira Santos na Amadora, Portugal (2007); ... E África aqui tão perto – Programação do Museu Nacional do Traje e da Moda em Lisboa, Portugal (2007); IV Festival de Cine Africano Tarifa em Espanha (2007); Festival Internacional do Filme Documental de Guangzhou, na China (2006); Cineport – II Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa (2006) e na RTP África em 2005 e 2006. (...)


Sobre o filme de longa metragem, "Xime" (1994), com a duração de 95', Selecção oficial do Festival de Cannes 1994, vd aqui sinopse, retirada da mesma fonte (Filomena Embaló):

(...) A boa colheita que se anuncia neste ano de 1963, deixa optimista a tabanca de Xime. Porém, Lala, o viúvo, pai de Raúl e Bedan. está preocupado. Raúl, o seu filho mais velho, estuda com os padres em Bissau e as autoridades coloniais andam à sua procura. O seu filho mais novo, Bedan, que ficou na tabanca, entrou na adolescência, fase em que os jovens pensam que podem fazer tudo. Quando a tia Samy sai do seu estado de prostração, anuncia a Lala as piores catástrofes. Raul, o filho ausente, regressa à tabanca. O pai recusa-se a reconhecê-lo. Bedan, embora sensível às ideias revolucionárias de Raúl, não está pronto para aceitá-las. Raúl é também rejeitado pelo padre que o instruiu. Durante as ausências de Raúl, a tabanca volta a estar calma. Bedan deve submeter-se aos ritos de iniciação reservados aos jovens para se tornarem adultos. Esta iniciação ensina-lhes a trocarem a violência da adolescência pela doçura e reflexão. É durante a iniciação que os militares irrompem perseguindo Raúl que acabam por matar. O filme acaba no momento em que Bedan, iniciado à não-violência, vê a situação do país contradizer esta tradição. Bedan, diante do irmão morto, renega os ensinamentos dos seus mestres e declara: “Desta vez é a guerra”. (...)

[Fotograma retirado do sítio Mubi, com a devida vénia]

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11064: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (5): Em Catesse, com o Pepito... Pela primeira vez tive medo!...Medo de não conseguir corresponder ao tanto que a população espera de todos nós!

Adicionar legenda
1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, da nossa grã-tabanqueira Anabela Pires, nascida em Moçambique, técnica superior de serviço social no Ministério da Agricultura, reformada, amiga dos nossos grã-tabanqueiros Jero (Alcobaça) e Alice Carneiro (Alfragide/Amadora)...

Em 2012, esteve na Guiné-Bissau cerca de três meses (, de meados de janeiro a meados de abril). Devido ao golpe de Estado de 12 de abril , acabou por sair da Guiné.-Bissau, por razões de segurança. Passou um mês no Senegal. Regressou a Portugal. Vive neste momento na Índia, em Auroville. Em Iemberém, Parque Nacional do Cantanhez, região de Tombali, esteve a trabalhar como voluntária no projeto do Ecoturismo, da AD - Acção para o Desenvolvimento.

Chegou em Iemberém no dia 17/1/2012. E ficou hospedada nas instalações locais da AD, a ONGD que é dirigida pelo nosso amigo Pepito.






Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Catesse > Janeiro de 2012 > A Anabela Pires... Catesse fica na margem esquerda do Rio Cumbijã, a sul de Darsalame.

Fotos: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2012). Todos os direitos reservados [, Com a devida vénia...]


2. Diário de Iemberém, por Anabela Pires [, que escreve de acordo com a antiga ortografia] >  Parte V 

4 de Fevereiro de 2012

Voltemos ainda à minha chegada a Iemberém. Como referi,  contávamos almoçar aqui mas houve uma mudança de planos. Depois de despejar a minha bagagem na casa que me foi atribuída, seguimos em direcção a Catesse. Passámos em Farim de Cantanhez, tabanca onde vive a Alicinha [, filha da Cadi, foto à esquerda], que fazia exatamente 2 anos nesse dia. Lá deixei os presentes que a sua madrinha [, a Alice Carneiro, ]  tinha enviado e cantei-lhe os parabéns. É linda a pequena Alice, aliás como muitas das mulheres daqui. E vaidosas. É um gosto vê-las arranjadas.

Partimos de novo e um percurso de 20 Km levou-nos cerca de uma hora de viagem. O caminho é terrível mesmo nesta época seca. A determinada altura ouvimos chimpazés muito perto da estrada mas não os conseguimos ver. Mais adiante uma grande cobra preta a atravessar o caminho. Teve azar o Pepito! Foi-me sempre afirmando nunca ter visto cobras! Foi logo à chegada! As pessoas aqui dizem-me que elas se aproximam sobretudo na época das chuvas. Não é a minha imaginação e nem o meu pavor, elas existem mesmo, como é natural em África. 

Chegámos finalmente a Catesse, uma tabanca bem mais pequena que Iemberém. Quando nos aproximávamos vi um grupo de jovens com camisolas todas iguais e pensei que fosse um grupo desportivo. Bem, Catesse tinha-nos preparado uma recepção que me deixou, literalmente, de boca aberta. A vinda do Pepito a Catesse foi motivo para feriado local. Ninguém foi trabalhar e todo o povo estava reunido para homenagear a AD. É uma tabanca com uma dinâmica muito especial que ninguém me conseguiu explicar porquê. Há associações de jovens, de mulheres, de tudo e mais alguma coisa. E funcionam. Tinham-nos então preparado um almoço que nos foi servido no terreiro com toda a população à volta. O grupo de jovens dançou, depois foram as mulheres mais velhas e às tantas já eu andava no meio delas a dançar também. 

Depois seguiram-se os discursos. Primeiro dos representantes da população, chefe da tabanca (o chefe da tabanca é sempre um descendente do primeiro homem que se instalou naquele lugar), régulo, Imã (representante local da Igreja muçulmana), dirigentes das diversas associações …. A AD tem vários projectos em Catesse: (i) apoiou a extração de flor de sal, (ii) está a ser reconstruído o porto de onde saem barcos para a Guiné Conacri (que fica aqui mesmo ao lado e com quem há intensas relações mesmo de natureza familiar), (iii) está a apoiar a construção de uma espécie de pensão para os viajantes que vão para o país vizinho, a qual vai ser gerida pela associação das mulheres, enfim, (iv) são muitos os projectos apoiados pela associação com toda a envolvência da população. 


Depois foi a vez dos discursos da AD: primeiro o Adulai que é o técnico local, depois o Abubacar Serra que é o responsável deste sector, depois o Pepito, Director Executivo da AD [, foto à esquerda].. A hierarquia aqui também funciona. No final fomos ver a tal pensão que está a ser construída e foi oferecida, a cada um de nós, uma camisa que nos foi de imediato vestida, mesmo por cima da roupa que trazíamos. 

A determinada altura pediram-me que escrevesse o meu nome num papel em letra de imprensa – tinha acabado de nascer uma menina na tabanca à qual ia ser dado o meu nome. Disseram-me que isso daria sorte, não percebi se a mim se à recém-nascida. Espero que às duas! Não sei se isto se concretizou ou não mas espero em breve voltar a Catesse. 

Pela primeira vez senti medo. Medo de não conseguir corresponder ao tanto que a população espera de todos nós. Foi um momento alto da minha chegada a estas bandas e que me deixou profundamente impressionada. Gostaria de vir a perceber por que razão há uma dinâmica tão especial em Catesse. 

Hoje estou aqui a escrever há mais de uma hora, são agora 7 e 42, porque, não sei que acontecimento houve esta noite, das 22 horas até às 6 da manhã foi uma cantoria só! Deve ter sido algo de cariz religioso pois a música não era de baile! Ontem à noite consegui adormecer mas hoje acordei às 5 e tal para ir à casa de banho e não consegui readormecer. No Domingo passado houve um casamento e foi também uma noite de música! Já tinha sido prevenida destes frequentes acontecimentos e até trouxe silicone para pôr nos ouvidos mas ainda não me dispus a usá-lo. Enfim, há muitas noites movimentadas e depois são os galos – assim que amanhece cantam, cantam, cantam!
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A Anabela Pires em Catesse: foi notícia da página (oficial) da AD na Net > Anabela Pires contribiu para o Ecoturismo do Cantanhez

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11042: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (4): Macacos, turistas e envelhecimento activo...

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11042: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (4): Macacos, turistas e envelhecimento activo...

1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, da nossa grã-tabanqueira Anabela Pires, nascida em Moçambique, técnica superior de serviço social no Ministério da Agricultura, reformada, amiga dos nossos grã-tabanqueiros Jero e Alice Carneiro...

Em 2012, esteve na Guiné-Bissau cerca de três meses (, de meados de janeiro a meados de abril). Devido ao golpe de Estado de 12 de abril , acabou por sair da Guiné.-Bissau, por razões de segurança. Passou um mês no Senegal. Regressou a Portugal. Vive neste momento na Índia, em Auroville. Em Iemberém, Parque Nacional do Cantanhez, região de Tombali, esteve a trabalhar como voluntária no projeto do Ecoturismo, da AD - Acção para o Desenvolvimento. 

 Chegou em Iemberém no dia 17/1/2012. E ficou hospedada nas instalações locais da AD, a ONGD que é dirigida pelo nosso amigo Pepito (*)


2. Diário de Iemberém, por Anabela Pires [, que escreve de acordo com a antiga ortografia] > Parte IV


31 de Janeiro de 2012

Há dias que não escrevo. Gosto de aqui me sentar de manhã bem cedo mas só o faço quando me levanto antes das 7 da manhã. Ontem iniciámos limpezas de fundo aos bungalows e à Casa do Ambiente. O conceito de limpeza das senhoras passa sobretudo pela limpeza do chão. Não admira. As suas casas, as moranças (uma morança pode ser um conjunto de casas tradicionais onde vive uma família alargada ou uma única habitação caso se trate de uma família nuclear; em Moçambique são as palhotas), não têm azulejos, nem vidros, nem outras coisas semelhantes.

Diga-se, em abono da verdade, que, pelo menos nesta época seca, é muito difícil manter uma casa limpa. A semana passada, na 4ª feira, fizemos uma grande “barrela” à minha casa. Só ainda não foram limpas as paredes. Pois hoje, 7 dias depois, os vidros da minha cozinha já estão castanhos da poeira! A mulher do meu vizinho padeiro, todos os dias a esta hora, faz o favor, por sua iniciativa, de varrer as traseiras da minha casa. O redor da casa é todos os dias varrido das muitas folhas (a que chamam palha) que caem, mas a poeira levantada vem para dentro de casa. 

Mais ainda do que em qualquer parte da Europa, os trabalhos domésticos são, aqui, inglórios! Não me admira agora que elas ignorem a sujidade provocada pela terra vermelha. Depois são as crianças … rebolam-se pela terra (quando os vejo e me lembro dos meninos em Portugal …. Que grande liberdade diária têm estas crianças!) e vêm à minha varanda! Mãos e pés sujos de terra e a parede em menos de nada está toda cheia de dedinhos vermelhos. Mas alguns já vêm mais limpos e arranjados. 

O Mamadu, ou Du para a família, tem 4 anos. É filho da Jóia, irmão da Oina. Estamos a tornarmo-nos bons amigos. Ainda não percebe tudo o que eu digo mas quando lhe peço um beijo já mo dá. E o Alaje Turé, um pouco mais velho, deve ter 5 anos, é sobrinho da Satu. É tão inteligente. Percebe tudo o que digo e explica aos outros. E quando não consegue dizer-me alguma coisa por palavras usa a mímica. Dos pequenitos, estes são, para já, os meus melhores amigos. 

Ontem o Alberto fez anos. Enviei uma sms à Priscila mas penso que não a deve ter recebido. A Isabel já me tinha dito que as sms nem sempre chegam ao destino. Já enviei umas quantas mas creio que poucas terão chegado aos destinatários. E continuo sem Internet pelo que só tenho tido contacto com a minha irmã. O que mais me tem custado é esta falta de comunicação e as poucas horas em que consigo sintonizar o meu rádio. Consigo sintonizar a RDP África de manhã, quando estou em casa, e pouco mais. À tarde já nem tento ouvir rádio. Pensei que conseguiria apanhar outras emissoras mais próximas mas nem isso. E quando consigo os ruídos são tantos que acabo por desistir. Será por esta razão que sempre vi os pretos em Moçambique de rádio na mão, quase encostado ao ouvido?! Se voltar, terei de ver como resolver este problema. 

Outro problema é o acesso a Bissau. Todos os meses um dos técnicos locais da AD lá vai buscar os salários, mas como atualmente o jipe desta região está avariado o Adulai foi de “Toca-toca” (tipo autocarro local). Assim, das inúmeras coisas que pedi à Isabel para me enviar, poucas irei receber, para já. No “Toca-toca” vem tudo ao monte e não sei o que me trará o Adulai. Aqui em Iembérem nem papel higiénico há à venda. Mas tudo se vai resolvendo. A Satu desenrasca-me sempre! Tem sido uma belíssima companheira, que começou por me chamar professora, que se recusa a tratar-me pelo meu nome (considera que isso é uma falta de respeito porque tenho quase mais vinte anos do que ela) e que acabámos concordando que me chama por “formadora”. Gostaria de continuar mas são 8 horas e daqui a pouco tenho de estar a ensinar as senhoras a limpar o que nunca limparam. Para isso tenho de demonstrar como se faz e, assim, ontem, fiquei cansadíssima!

3 de Fevereiro de 2012

Esta semana tem sido dedicada às limpezas de fundo dos alojamentos turísticos mas como as senhoras da limpeza só trabalham meio-dia só ficarão limpos 2 dos 3 bungalows e os 4 quartos e 2 casas de banho da Casa do Ambiente (antes chamada Casa de Passagem e que ainda assim está no site). 

Continuaremos para a semana pois nos próximos 3 dias teremos cá um grupo de 17 pessoas – um realizador guineense com parte da sua equipa. No fim-de-semana passado apareceram de surpresa 2 casais. Um era holandês, a viver na Suiça, de onde vieram de jipe até aqui. O senhor com 73 anos e a senhora com 66. O jipe estava preparado para dormirem lá dentro e por isso só quiseram acampar, de forma muito rudimentar. 

Ela passou o tempo a fotografar e ele a ler. Vi algumas fotografias que ela tirou aos macacos e fiquei a roer-me de inveja! Com uma super máquina conseguia apanhar os pormenores a uma grande distância. Penso que ainda não falei dos macacos. Aqui dentro da zona onde estão os alojamentos e onde vivo, há, para além de mangueiras, outras enormes árvores. Sobretudo da parte da tarde, quando começo a ouvir muitas folhas a caírem ao mesmo tempo, vou ver e lá andam eles aos saltos e pulos! Uns são de pêlo avermelhado (não sei ainda o nome da espécie) e outros são os macacos fidalgos que são pretos mas têm uma enorme cauda branca. 

Outro dia vi um bando (não será este o nome de um conjunto de macacos!) de fidalgos a atravessarem o terreiro para subirem para as árvores que estão no centro. Mas não se aproximam de nós, andam sempre bem nas copas das altas árvores. Neste momento têm crias mas com muita pena ainda não consegui ver nenhum de perto (se voltar será boa ideia trazer binóculos), só o Neca. Este macaco não era daqui, terá vivido preso e foi devolvido à liberdade. Apesar de ser de uma espécie diferente (parece que portadora de Sida) das que habitam este Parque, adaptou-se bem. 

O Neca é o único que se aproxima dos humanos e ainda assim não se deixa tocar. Mas aceita mandioca, banana, laranja… Uma tarde os meninos pensaram em agarrá-lo para que eu lhe pudesse chegar ao pé. Pobre Neca! Apanhou um tal susto que agora não se tem aproximado. 

Até os gatos são arredios. Tenho a impressão de que as pessoas não lhes dão de comer, eles que se amanhem! Mas um deles já percebeu que eu estou disposta a dar-lhe os meus restos de peixe e já vem miar à minha porta. No entanto, se saio para lhe dar a comida foge logo! Tenho de deixar o peixe a alguma distância de casa para depois ele ir comer. Já vi uns 2 ou 3 cães, mal tratados também. Aqui a prioridade são mesmo as pessoas pois o que há chega mal para elas. São já 7 e 17 e ainda não vejo nada dentro de casa. Estou para aqui a tentar acertar nas teclas do computador pois ainda não arranjei forma de pendurar a bendita lanterna solar que a Catarina me deu. 
Voltando ao holandeses/suíços do último fim-de-semana. Só foram comer uma vez ao restaurante da Satu pois o senhor não gostava da comida guineense. Propusemo-nos então fazer uma salada de repolho e cenoura (receita da Tia Anica), arroz de peixe (sem coentros!) e Laranjas da Rosinda (sem licor de Whisky). Adoraram a refeição.

O outro casal que apareceu era francês. Uma senhora de Lyon, com a linda idade de 87 anos! Um espanto! Há três anos que vem com um amigo, bastante mais novo do que ela, passar 3 meses do ano a África. Viajam de avião até Burkina-Faso onde alugam um jipe e depois andam por aí. 

Depois da passagem desta senhora fiquei convencida de que ainda tenho muitos anos para por aqui andar! O mais engraçado foi o espanto das pessoas. Para elas eu sou velha, quanto mais uma senhora de 87 anos! Isto não significa que aqui não haja pessoas idosas. Há, mas são raras, e talvez até por isso muito veneradas. O Homem Grande que morreu em Madina de Cantanhez, logo após a minha chegada, deveria ter, pelos cálculos dos locais, bem mais de 100 anos!

(Continua)


[Fotos: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados]
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sábado, 26 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11009: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (3): De Varela a Guileje

1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, da nossa grã-tabanqueira Anabela Pires,  nascida em Moçambique, técnica superior de serviço social no Ministério da Agricultura, reformada, amiga dos nossos grã-tabanqueiros Jero e Alice Carneiro... Em 2012, esteve na Guiné-Bissau cerca de três meses (, de meados de janeiro a meados de abril). Devido ao golpe de Estado de 12 de abril , acabou por sair da Guiné.-Bissau, por razões de segurança. Passou um mês no Senegal. Regressou a Portugal. Vive neste momento na Índia, em Auroville. Em Iemberém, Parque Nacional do Cantanhez,  região de Tombali, esteve a trabalhar como voluntária no projeto do Ecoturismo, da AD - Acção para o Desenvolvimento.  Chegou em Iemberém no dia 17/1/2012. E ficou  hospedada nas instalações locais da AD, a ONGD que é dirigida pelo nosso amigo Pepito (*)


2. Diário de Iemberém, por Anabela Pires [, que escreve de acordo com a antiga ortografia] > Parte III


22 de janeiro de 2012 (continuação)

Estiveram cá a passar o fim-de-semana 9 jovens portugueses, 7 dos quais professores, mas na vinda tiveram um acidente e acabaram por vir só em 2 carros. Assim, não puderam dar boleia à Cadi. Bom, talvez também seja perigoso dar boleia pois em caso de acidente pode-se arranjar um grave problema. E problemas já eles tiveram na vinda com uma moto em contramão que se enfaixou de frente. Na mota vinha um homem e uma mulher grávida que ficaram feridos e tiverem que ir para Bissau.

Foi a primeira vez que estes jovens vieram a Iemberém, ficaram nos bungalows, comeram no restaurante da Satu e saíram para passear com o Zeca (guia turístico instrutor). Hoje às 5.30 da manhã saíram para irem ver chimpanzés e conseguiram ver três.

Uma das jovens era professora de matemática e colega da Cátia, amiga da Mariana, de Coimbra, do Aikido. Não a conheço mas mandei-lhe de presente uma cestinha feita aqui pelos Balantas (uma das etnias existente nesta zona da Guiné).

Regressando à chegada a Bissau…. No dia 14 de Janeiro, às 7 horas da manhã, depois de me ter deitado às 4 horas, fui com o Pepito, a Isabel e o Cláudio para Varela, no norte do país, na fronteira com o Senegal. O Cláudio é um italiano que trabalha num projecto de cooperação com a AD. É geógrafo e o seu trabalho tem uma grande incidência em Iemberém. Já vem à Guiné há 10 anos. Agora foi para Itália mas volta em Março com outros colegas italianos ligados ao projecto. Estarão alguns dias em Iemberém mas também irão trabalhar no norte, na zona de S. Domingos.

Logo à saída de Bissau, na estrada, o Pepito foi comprar aquilo a que aqui se chama “couscous”. São uns bolinhos feitos de arroz pilado, levemente açucarados, com a forma de um pequeno queque. Uma dúzia deles dentro dum saco de plástico preto de má qualidade e lá os fomos comendo pelo caminho. Achei-os bem saborosos e imaginei a maioria dos meus amigos portugueses a comerem aqueles bolinhos, feitos por uma mulher agachada na estrada! Aí a ASAE! Bem, ninguém ficou doente e eu aproveito para aumentar as minhas resistências a alguma suposta falta de higiene.

O Pepito e a Isabel têm uma casa de férias em Varela e estão a fazer uma nova com horta, mesmo no meio da floresta. Penso que Varela deve ter a melhor praia da Guiné, de areia branca e muito fina. Assim, fomos tomar banho de mar no Sábado à tarde e no Domingo de manhã. A água devia estar aí a 23º ou 24º, considerada fria aqui em África. Nesta zona, uma das etnias são os Flupes, a etnia do coração do Pepito, e que pescam de zagaia! Quem me dera ter tal habilidade! [, a Anabela levou canas de pesca para Iemberém!]

Neste primeiro dia fiz logo coisas que me tinham dito em Portugal para não fazer: lavei sempre os dentes com água da torneira (e assim continuo pois não me fez mal algum!) e atravessei um pequeno riacho descalça.

Na casa de Varela quem cozinha é uma jovem também chamada Satu, que cozinha igualmente muito bem e tem ar de ser bem inteligente. O seu irmão Moamed é o empregado de casa, que segundo o seu próprio pai deu uma pancada com a cabeça em pequeno e ficou afetado! Só se lhe pode pedir uma coisa de cada vez pois se pedirmos duas não faz nenhuma. Não tinha ouvido a voz ao Moamed e por isso não imaginei que falasse português. Comecei a falar com a Satu e espantei-me do seu bom português! E descobri que o Moamed também falava bem português. Então expliquei por que tinha vindo para a Guiné, disse que ficaria 6 meses e que depois voltaria ou não, caso me adaptasse e o Pepito gostasse do meu trabalho.

Moamed: “Vai voltar!”

Eu: “Não sei, não depende só de mim, também depende do Pepito gostar ou não do meu trabalho.”

Moamed: “Vai gostar!”

Eu: “Ah, não sei!”

Moamed: “Sim, vai gostar. Como a senhora fala na mesa, Pepito vai gostar!”

Fiquei de boca aberta com a sua observação e percebi que da conversa à mesa nada lhe tinha escapado! O Pepito e a Isabel explicaram-me depois que o Moamed é extraordinariamente curioso e que, se por acaso, eles estão ao computador, ele não sai dali. Quer ver tudo, sobretudo o que pode ser para ele algo de novo. Felizmente a tal pancada na cabeça não o afectou completamente!

Antes de chegarmos a Varela parámos em Ingóre, zona onde a AD também intervém. Fomos ver o infantário que está a ser construído pela população e para o qual a AD contribui com os materiais. Conheci o Eugénio, engenheiro agrónomo guineense formado no ISA [, Instituto Superior de Agronomia,] em Lisboa e a Ermelinda, também técnica da AD. Parámos em S. Domingos, em Suzana, onde o Pepito e a Isabel foram contactando outras pessoas ligadas ao trabalho da AD. Fizemos 170 km de Bissau a Varela, 120 dos quais em estrada alcatroada e os restantes em terra batida.

No Domingo, depois do almoço, fizemos a viagem de regresso. Nos primeiros quilómetros devemos ter parado uma dúzia de vezes. As crianças da zona conhecem o carro do Pepito e saem a correr em direcção à estrada – mesmo quando estão a guardar vacas – a gritar “Pepito, Pepito, Pepito!”. Ele pára o carro e eles pedem “caneta”! Então ele pergunta-lhes em que classe andam e de acordo com a que frequentam questiona-os sobre a tabuada. Quando acertam dá-lhes uma caneta, se não acertam manda-os estudar. Dá-lhes às vezes segunda hipótese, às vezes até uma terceira mas se não acertam nenhuma não têm direito à caneta. Ele já me tinha contado este jogo quando esteve em Portugal mas vê-lo ao vivo foi uma delícia! E assim, aqueles primeiros quilómetros demoraram uma eternidade. Quando chegámos a Bissau já tinham terminado as cerimónias fúnebres do Presidente da República [, Malam Bacai Sanhá, 1947-2012] e a cidade estava calma.

Adicionar legenda
Na segunda-feira, dia 16, de manhã, fui com a Isabel às compras a Bissau. Começamos por ir tomar um pequeno-almoço especial – pão de Deus, com manteiga e fiambre, sumo de papaia e depois uma bica. Muito bom, mas custou, para as duas, cerca de 8 €. Em Bissau encontra-se quase tudo à venda mas os produtos importados são caros.

Dia 17, 3ª feira, vim então para o Sul, às 6 da manhã. Devemos ter feito cerca de 150 km em estrada alcatroada e depois começou a estrada de terra batida. Parámos em Quebo onde o Pepito comeu um pão (cacete) com a margarina de cozinha aqui usada mas eu preferi comer pão seco.

Passámos em Farosadjuma, onde a Fatu, que será também minha formanda, tem três bungalows e energia solar. Parámos em Guileje, onde existiu um quartel português. Um dos antigos edifícios (foram todos destruídos após a retirada da tropa portuguesa e por sua ordem) foi reconstruído e serve de habitação e escritório aos técnicos locais da AD – O Domingos e a Maimona. O exterior da entrada do edifico está todo coberto de garrafas de cerveja enterradas pelo gargalo – um piso curioso feito pelos soldados portugueses e que evita a lama à porta de casa no tempo das chuvas. Depois visitei a antiga capela, também já reconstruída pela AD, com um pequeno altar, uma cruz, uma Nossa Senhora de Fátima, oferecida por antigos combatentes portugueses, e à entrada uma antiga pedra gravada pelos nossos soldados. De seguida fui ao memorial de Guileje, outro edificio reconstruído, onde estão memórias dos combatentes portugueses e do PAIGC. Uma homenagem a todos os que tiverem de fazer a guerra.

É um sítio de reconciliação e não pude deixar de me sentir emocionada. Onde se fez a guerra há 40 anos faz-se hoje a paz. Gostei especialmente da frase de Amílcar Cabral colocada à entrada “A cultura é um elemento essencial da história de um povo”. A AD vai agora começar a reconstrução de outro edifício do antigo quartel. A Fundação Mário Soares contribui financeiramente, e penso que não só, neste projecto. No Memorial existe uma detalhada maquete do antigo quartel. No exterior está um antigo Unimog português e uma arma anti-aérea que era do PAIGC.

Chegámos finalmente a Iemberém, onde era previsto almoçarmos.

(Continua)

[Fotos: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados]

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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10988: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (2): A adaptação

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10988: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (2): A adaptação

1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, da nossa grã-tabanqueira Anabela Pires, técnica superior de serviço social no Ministério da Agricultura, nascida em Moçambique, reformada, amiga dos nossos  grã-tabanqueiros JERO e Alice Carneiro... Esteve na Guiné-Bissau cerca de três meses (, de meados de janeiro a meados de abril de 2012), a trabalhar como voluntária no projeto do Ecoturismo, da AD - Acção para o Desenvolvimento, em Iemberém, Região de Tombali, Parque Nacional do Cantanhez. Chegou em Iemberém, do dia 17/1/2012. E fiquei hospedada nas instalações locais da AD, a ONGD que é dirigida pelo nosso amigo Pepito (*)


2. Diário de Iemberém, por Anabela Pires [, que escreve de acordo com a antiga ortografia]  > Parte II

 20 de Janeiro de 2012 [A adaptação]
São quase 10 horas da noite. Estou constipada. As noites e manhãs têm estado frescas, eu não trouxe um pijama de meia estação e só agora desencantei o meu xaile indiano que estava na mala que ainda não tive tempo de desmanchar. Os dias têm sido bem ocupados!

Hoje é sexta-feira, feriado na Guiné, e vêm 9 pessoas passar o fim-de-semana prolongado aqui aos bungalows. Estive até há pouco à espera deles com a Maria Pónu e a Satu mas, como se atrasaram, e me sinto adoentada, vim para casa.

A vinda destes clientes ocupou-me o dia de ontem e de hoje a acompanhar/ensinar a Mariama e a Maria Pónu a preparar os 3 bungalows que têm no conjunto 10 camas. Creio que ficaram acolhedores, com as condições existentes neste momento. Pela primeira vez colocaram uma jarra com flores em cada bungalow. As jarras foram feitas de garrafas de água de litro e meio (de plástico)! Não havia outras e aqui na tabanca também não as há à venda.

Muito há a melhorar mas a Mariama, que limpa estes alojamentos e faz as camas, pareceu-me com boa capacidade de aprendizagem e sensibilidade para este tipo de trabalho. As suas mãos alisavam os lençóis com delicadeza. Pela primeira vez limpou o chão com uma esfregona (costumam limpá-lo com um trapo molhado) e gostou. Disse-me que faz menos dores nas costas, que é mais fácil. Ainda não se atreve a falar português mas creio que compreende a maior parte do que digo.

À tarde estive com a Satu a fazer as Laranjas da Rosinda mas sem licor de whisky. Para além daqui não existir tal coisa, a Satu é muçulmana e como tal não poderia provar as laranjas se elas levassem álcool. A ideia é apresentar as laranjas de outra maneira que não seja ao natural, para variar.

A Satu cozinha muito bem mas carrega no sal! Hoje comi uns peixinhos fritos com um molho e batatas-doces fritas. Estava uma delícia, o almoço! Se não tiver cuidado, penso que em vez de emagrecer vou engordar! Ontem trabalhei com ela as ementas para este fim-de-semana. A maior dificuldade são os legumes que não existem por aqui. Com tantos afazeres acabei por não enviar uma SMS de parabéns à Fátima Real e ao Vasquinho do Celso. Não me esqueci dos aniversários mas aquilo que não fiz logo de manhã acabou por me passar!

E agora vou-me deitar pois de manhã terei de fazer, com a Satu, uma tarte de coco e banana, receita da Odile, para o almoço. Espero que não saia asneira pois nunca a fiz, não tenho balança e o coco em vez de seco é fresco! Bem, falta dizer que a Satu é a senhora que explora o restaurante que a AD construiu e que serve os turistas que cá vêm. Ah, e é minha vizinha, casada com o técnico agrícola da AD, o Abubacar Serra, responsável pelo sector de Bedanda. São aqui o meu “porto de abrigo”.

21 de Janeiro de 2012  [Os bangalós] 


[Foto à direita, créditos fotográficos: AD - Acção para o Desenvolvimento, 2008. Vd. aqui precário]

Levantei-me antes das 7 horas mas só agora, às 8 horas, começo a ver alguma coisa dentro de casa. É das coisas que mais me está a custar – a falta de luminosidade dentro das casas mesmo quando lá fora já é ou ainda é dia. Contribui para isto o facto de aqui existirem muitas árvores, enormes, entre as quais mangueiras, que fazem muitas sombras. É uma grande vantagem quando ando na rua mas dentro de casa há pouca luz. Sempre tive dificuldade em trabalhar com pouca luz e aqui tenho de lidar com isso. Ainda ontem, quando fomos limpar os bungalows quase não se via nada lá dentro. Têm umas janelinhas pequenas, para protecção do calor, mas dificilmente se vê o que está sujo. Assim é difícil fazer uma boa limpeza. Temos de pensar numa solução para isto.

Bem, tenho de me ir vestir mas queria registar que a esta hora oiço todos os dias o som do varrer dos meninos do Abubacar. Varrem as folhas que caem todos os dias em abundância no terreiro em frente às nossas casas. Estamos no Inverno, apesar de durante o dia eu transpirar. As vassouras são de pauzinhos e ainda assim, até agora, não consegui comprar uma e outra não tenho. Varrem curvados. Ainda terei de apurar se sofrem da coluna mais ou menos do que nós.

22 de Janeiro de 2012 [ Aqui há pão fresco]

[Foto à esquerda: meninos de Iemberém, 9 de dezembro de 2009; créditos fotográficos, João Graça, 2013]

Ontem à noite já não estranhei o restolhar que ouvia lá fora logo depois de apagar a luz. Há dias atrás, ouvi restolhar tanto lá fora a partir da meia-noite! Não imaginando o que pudesse ser, pensei que talvez andassem javalis por aqui à procura de comida.

De manhã levantei-me e vi o meu vizinho padeiro a trabalhar no forno do pão. Pensei que ele estava a começar o trabalho mas de repente vi que o pão já estava cozido! Então percebi que o barulho que tinha ouvido durante a noite era ele a varrer o forno do pão! Ri-me sozinha da minha ignorância e imaginação.

O meu vizinho padeiro começa a fazer pão à meia-noite e pela manhã, quando me levanto, vou à varanda buscar pão fresquinho. Só é pena ele não trabalhar todos os dias mas aqui os padeiros são amigos e têm estabelecida, entre si, uma rotação de produção. Ainda não sei quantos padeiros existem em Iemberém mas produzem rotativamente. Hoje comi pão acabadinho de fazer mas recebi visitas e logo de manhã o pão acabou. Por sorte o negócio correu bem ao meu vizinho e ele já está a fazer outra fornada, sem ainda ter dormido. Os pães são do tipo cacete e as pessoas andam com eles nas mãos como em França.


 [A visita da Cadi]

Falando nas visitas ….. a Cadi, mãe da Alicinha , foto à esquerda, maio de 2010,] , afilhada da Alice Carneiro, veio visitar-me. É tão bonita e elegante a Cadi! Como aliás muitas das mulheres guineenses. E que bem que se vestem, muitas vezes até quando andam a trabalhar mas sobretudo quando saem da sua tabanca e em dias de festa.

A Cadi já fala razoavelmente português. O seu marido [, António Baldé, fula de Contuboel, com casa em Caboxanque, futuro apicultor,]  está em Lisboa e há 2 anos que não vem cá. Ela mora em Farim de Cantanhez, uma tabanca que fica aqui a uns 10 km. É uma pena ela não viver em Iemberém, poderia ajudá-la a preparar-se para ir para Portugal ter com o seu marido. Mas o mais preocupante é que ela anda doente. Diz-me que sente calor na barriga, diz-me que é do estômago, que tem a tensão baixa mas …. não vomita, quis comer pão com queijo. Depois ouvi-a tossir e fiquei a pensar se não será algum problema pulmonar. Ela veio hoje a Iemberém, a pé, para tentar arranjar transporte para ir a Bissau ao médico.

(Continua)

[Legendas, subtítulos ou notas dentro de parênteses retos, a par das fotos, são da responsabilidade do editor]
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Nota do editor:

Último poste da série > 21 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10978: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (1): A chegada