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domingo, 20 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4980: Cartas (Carlos Geraldes) (9): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1966

1. Nono poste da série Cartas, (JAN a MAR66), de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66


2.ª FASE: O MATO

Paúnca, 04 Jan. 1966
Espero a visita de um coronel de Bafatá, o chefão cá do sítio e isto tem de ficar tudo a brilhar. O pior é que os soldados estão outra vez a perder o hábito de trabalhar.
Neste fim de mês de Dezembro, vivi atulhado em contas da Cantina. Fui obrigado a deslocar-me a Pirada, para na máquina de calcular de Secretaria, conseguir acertar as contas. Felizmente que tudo deu certo e até com um lucro bastante satisfatório.
As distracções continuam sempre as mesmas. Às segundas-feiras, um passeio matinal pela aldeia para ver a feira. À noite joga-se à Sueca ou às Copas. Perco quase sempre, porque não dou atenção às cartas que vão saindo, nem conto os trunfos já jogados. Agora, com esta mania das cartas, já não nos deitamos com as galinhas. Dá para passar o tempo, mas não me entusiasma muito.

Ao Sábado à tarde e ao Domingo parece que o quartel fica deserto pois toda a gente se deita na Caserna a dormir a sesta ou a ouvir rádio.
Quanto à Passagem do Ano, aconteceu sem novidade de maior. Quase sem darmos por isso, estávamos já em 1966.
À meia-noite do dia 31 de Dezembro, fizemos um arraial de trinta demónios e até disparámos, para o ar, foguetões luminosos de várias cores (os very lights). Mesmo assim a festa durou pouco tempo e antes das 02H00 da madrugada já todos dormiam sossegadamente.
Os soldados estão todos chateados comigo por ter comprado uma camisa verde do novo fardamento, mas não tive outro remédio porque as amarelas estão a desfazer-se aos bocados e já não existem à venda. Dizem que os atraiçoei, pois a farda antiga é que nos dá o valor de veteranos.

Paúnca, 17 Jan. 1966
Percorremos toda a região banhada pelo maior rio da Guiné, o Gêba, que entra no território da Província, aqui por esta zona.
O silêncio e a serenidade das margens, onde se escondem numerosos crocodilos, quase nos retinham ali, especados para sempre.
Éramos só 12 homens, 6 brancos e 6 pretos e na primeira paragem, acampámos no local de uma antiga tabanca, um grande espaço ainda limpo de mato, apenas com duas ou três árvores frondosas no centro. Ainda se viam por aqui e por ali, as ruínas de antigas vedações, paus e estacas que sustentavam as palhotas.
Deitámo-nos debaixo de dois mangueirais e fizemos uma fogueira enorme com algumas estacas das ruínas que, como estavam muito secas, arderam às mil maravilhas. Não tivemos que recear o frio, pois toda a noite a fogueira ardeu com força.
Apenas fomos importunados pelas formigas de um monte de bagabaga que inadvertidamente destruímos, quando limpávamos o chão junto das árvores. A nossa intenção era a de passarmos despercebidos por entre as tabancas que há nesta região, mas por nosso azar, ou apenas por imprevidência, quando estávamos a montar o acampamento apareceram quatro crianças vindas do mato, possivelmente em trânsito de uma tabanca para outra. Tentámos pregar-lhes um susto, dizendo-lhes que não éramos da tropa, mas sim guerrilheiros a caminho do Senegal. Por isso não os podíamos deixar seguir, teriam de ficar prisioneiros para não irem contar que nos viram. Mas os miúdos não acreditaram muito, talvez porque até já tivessem conhecido alguns de nós em Paúnca.
De modo que, ao fim de algum tempo, vendo que o ardil não resultava, optámos por deixá-los ir embora, não sem antes nos prometerem que, logo que chegassem à tabanca para onde iam, nos mandariam laranjas.
E na verdade, daí a um grande bocado, apareceu outro rapaz, de bicicleta, com um saco de laranjas e mandioca. Dei-lhe dinheiro e ele lá foi todo contente e ao mesmo tempo muito admirado.

No dia seguinte, como já não estávamos mais na clandestinidade, fomos direitos a uma outra tabanca, mais a Norte. Ao longo do rio a paisagem continuava soberba. Tirei inúmeras fotografias.
O chefe da tabanca é um velho amigo (pelo menos assim me parece) e, apesar de ele não perceber quase nada do que nós dizíamos, esteve um grande bocado a conversar connosco.
Passámos ali o resto do segundo dia a descansar, sempre rodeados de miúdos curiosos que enxameavam à nossa volta como moscas teimosas. Alguns eram muito engraçados, mas também havia muitos sofrendo de doenças nos olhos. Os mais fortes e desembaraçados eram com certeza os sobreviventes de toda uma enorme mortalidade infantil. Dormimos nas palhotas deles e, no dia seguinte, num local previamente combinado, apareceram as viaturas que nos levaram de volta ao quartel.

Nada de importante se tinha descoberto, a não ser que aquela zona, conhecida pelo nome de Mata do Sacaio, não era tão cerrada e inóspita como se dizia, pois afinal qualquer grupo de pessoas que, passasse por lá, seria facilmente detectado.
Fiquei no entanto com vontade de lá voltar, mas tão cedo não o poderei fazer porque, infelizmente dos meus 30 homens já só posso contar com 18 de boa saúde, o resto está, na maioria dos casos, com paludismo e outras doenças mais graves. Não têm o mínimo cuidado e apanham todas as doenças.
Com a milícia Fula não tenho problemas. Aquartelados num barracão ao lado do quartel, vivem felizes e despreocupados, alguns acompanhados pelas mulheres e os filhos.

No sábado à noite estava lá sentado ao pé da fogueira, conversando com eles, quando apareceram dois carros militares cheios de pessoal, numa grande algazarra. Prevendo o pior, voltei logo ao meu aquartelamento para ver do que se tratava.
Afinal vinham só divertir-se. O Capitão, o Alferes Castro que ainda julga que isto tudo é dele e o Doutor que nunca diz que não a uma promessa de farra.
Quando lhes perguntei o significado de tão inesperada visita, o Capitão explicou que tinham vindo ensinar o caminho a uma equipa de trabalhadores das Obras Públicas que anda a arranjar as estradas e que convidara o Castro e o Doutor para nos fazer uma visita informal

- E para bebermos uns copos! - acrescentaram logo o Castro e o Doutor, rindo às gargalhadas.

Como não achei muita graça, ripostei, perguntando se por acaso já estaríamos no Carnaval, para se fazerem assaltos. Mas perante a insistência dos foliões, não tive outro remédio senão abrir a Cantina. Acabaram por beber tudo o que havia e gastaram-me mais de 300$00 que, agora nesta altura me fazem muita falta, pois os negócios andam fraquinhos. Mas o que mais me irritou foi a atitude de gozo do Capitão, compactuando nesta farra de bêbados o que nele não é nada o seu estilo.
Como habitualmente, o Doutor quando se foram embora já ia de rastos, disparatando e cantando fados à lua. E o pior foi que, depois de eles saírem, um dos soldados que, por acaso nem é do meu Pelotão, mas do Pelotão do Castro e está cá emprestado, aproveitando o mau exemplo do seu chefe, embebedou-se também e foi para a caserna fazer reboliço. Armado com um pau começou a distribuir cacetadas a torto e a direito, mas logo por azar (seu) acertou num soldado negro que estava a tentar descansar. O Jau (um dos meus melhores soldados negros) acordado tão inesperadamente, não esteve com meias medidas, saltou da cama, pegou na primeira coisa que lhe apareceu à mão… uma pá e, zás! Enfiou com ela na cabeça do rufia, fazendo-lhe um golpe na testa que lhe curou instantaneamente a bebedeira.
O indivíduo ainda andou por ali a rosnar umas ameaças, mas nessa altura cheguei eu e tudo serenou como tinha de ser. Mais uma vez se comprovou que estas farras dentro do quartel dão sempre mau resultado.

Paúnca, 17 Fev. 1966
Ultimamente tem havido uma série de falsos alarmes, convergindo as atenções para esta mísera localidade.
Assim, de repente, sem qualquer aviso, surgiu aqui um Grupo de Combate de Nova Lamego e um Pelotão de Autometralhadoras Panhard, perguntando a toda a gente onde é que estava o inimigo!
Tratava-se, é claro, de mais um falso alarme, que fez logo saltar dos sofás, os chefões na sede do Batalhão.
Confirmado o engano, óbvio é claro, o Grupo de Combate regressou ordeiramente a penates, deixando, no entanto, para trás as Autometralhadoras Panhard, que já agora aproveitavam para fazer umas patrulhas pelas redondezas, não fosse o diabo tecê-las…
Assim temos passado agora umas noites bem divertidas com a companhia destes hóspedes inesperados, aliás excelentes camaradas, especialmente o Comandante, o Alferes Alexandre, um gigante de Angola, sempre bem-disposto.
A população que, tem um medo terrível das Panhard, com as suas imponentes metralhadoras de 20 mm, nem quer passar ao pé delas. No entanto soube que as populações mais afastadas parecem ter ficado tranquilizadas com o poderio de fogo que a tropa mostrou ter, para os proteger daqueles a quem eles chamam os bandidos (os turras).

Mas a miudagem atrevida, passada meia hora já andava encavalitada em cima dos blindados, brincando com as fitas das balas tracejantes de 20 mm, rindo com as brincadeiras dos soldados.
E tem sido assim esta guerra, sempre bem encenada, mas sem grandes palmas.
Agora que o Pelotão de Blindados também já se foi embora, voltámos àquela paz bucólica de sempre. Amanhã temos de dar uma grande limpeza no quartel e repor tudo nos seus lugares como dantes. Ficou como uma casa depois de uma grande festa, toda desarrumada e cheia de lixo.
Não deixei de ir a Pirada apresentar os meus hóspedes ao M. Santos, mas, não sei porquê, fui recebido com má cara. No entanto o Castro soube fazer as honras da casa e pagou as bebidas da praxe. Quando nos viemos embora, o M. Santos nem apareceu para as despedidas. Fiz de contas que não reparei. Afinal, não lhe devo nada e portanto, boa tarde!
Consta que já fez as pazes com o Cardoso e o recebe muito bem lá em casa. Alguém percebe isto?

Paúnca, 22 Fev. 1966
Hoje foi um dia extraordinário. Um dia de Carnaval como nunca gozei na minha vida. Resolvemos deitar fora as tristezas e brincar até fartar.
Felizmente, só houve um único caso de bebedeira, o soldado, o Facha, um pobre diabo que não faz mal a uma mosca, distraiu-se e bebeu mais do que a conta. Todos os outros, incluindo os furriéis, portaram-se sempre na linha, sem descarrilar nem perder a noção das realidades.
Começámos por organizar uma orquestra com os meus tambores, uma gaita-de-beiços, uma concertina, umas castanholas e um reco-reco, além dos já tradicionais ferrinhos. Dois dos soldados mascararam-se de casal de noivos, casados de fresco e um outro de polícia sinaleiro com um chapéu colonial na cabeça. Eu e um furriel pedimos umas vestimentas nativas e mascarámo-nos de fulas, simplesmente.
Formámos então um grande grupo e, logo depois do almoço, saímos pela povoação a fazer a nossa passeata. Foi um sucesso!
Rapidamente se juntou à nossa volta uma verdadeira multidão de crianças, de adultos e velhos primeiro julgando que nós teríamos endoidecido mas depois convencidos que aquilo era só festa aderiram também à pândega, acabando até a dançar o vira. Muitos acreditavam que nós tínhamos recebido a ordem de voltar para casa no dia seguinte.
Percorremos toda a povoação de casa em casa e foi um verdadeiro assalto carnavalesco às lojas que, àquela hora, estavam abertas como sempre. Mas tudo correu bem, sem excessos. Só muita brincadeira e muito ronco, muita festa e alegria.
À noite, repetiu-se a dose, agora com a orquestra mais afinada, só para fazer serenata no centro da povoação e não deixar os comerciantes irem cedo para a cama. Houve logo um deles que veio oferecer um garrafão de 10 litros de vinho que desapareceu em menos de um fósforo.
Eu, que de tarde me tinha mascarado, conseguindo não ser reconhecido por ninguém, desta vez limitei-me a assistir e a manter a ordem. Correu tudo bem e conseguimos contagiar de tal maneira os civis que, às dez horas da noite, Paúnca vivia num ambiente louco de Carnaval. Só se via gente a cantar e a dançar. Por todo o lado ouviam-se batuques e o som da nossa orquestra, mais conhecida como o Quinteto do Lopes que teve um sucesso inesperado. Quando tudo começou a esfriar, quem ainda bulia veio para o aquartelamento para um fim de festa rematado por um grandioso baile. Esgotaram-se as reservas da cantina para todo o mês.
Não sei como, desatei também a tocar desenfreadamente um tambor, enlouquecendo a multidão que pulava e se rebolava pelo chão numa completa histeria.
Curiosamente, ninguém se embebedou! Durante toda a noite bebi apenas um whisky, oferecido na casa de um dos comerciantes e naturalmente era o que estava mais lúcido.
Enfim, foi uma festa magnífica. Amanhã, Quarta-feira de Cinzas é dia de trabalho.

E eis que surgiram novas ideias ao nosso Capitão. Teremos de construir uma casa-abrigo para o novo gerador de energia eléctrica que, virá (ou não…) dentro de dez dias! Quer tudo feito em bidões cheios de terra, à prova de bala de canhão…
Falta saber quem é que amanhã se vai levantar mais cedo para começar a trabalhar nessa obra.
Eu cá, é que não!

Paúnca, 01 Mar. 1966
A estação da mancarra está quase a acabar. Já circulam menos camponeses pela estrada, puxando os seus burros, carregados com os enormes sacos cheios de mancarra, a caminho dos armazéns dos comerciantes daqui que, depois se encarregam de a fazer chegar a Bafatá para aí embarcar para Bissau.
A temperatura chegou a descer tanto que me vi forçado a dormir de pijama e cobertor. Mas agora já está a subir de novo.
Passo o tempo entretido a ler ou a jogar às cartas com os furriéis. Neste último fim-de-semana, pela primeira vez, tivemos a visita de dois turistas. A fama da boa vida em Paúnca está a tomar tal consistência que já aparecem pedidos do pessoal de Pirada para virem passar aqui os fins-de-semana. Os dois primeiros turistas foram uns furriéis, nossos especiais amigos que solicitaram ao Capitão licença para passar cá o sábado e o domingo numa espécie de mini-férias.
A razão principal sei eu qual é. A comida da nossa Messe é muito melhor que a de Pirada. Se acrescentarmos a isso, os ares mais puros, a convivência mais alegre e sadia, as bebidas frescas e à borla que, os donos da casa sempre acabam por oferecer, e sobretudo o facto de estarem longe do 1.º Sargento e do Capitão, está explicada a razão deste fenómeno que não deixa de ser curioso. E agora são também os soldados que querem fazer o mesmo.
Quase que chega a haver necessidade de se meter uma cunha para conseguir gozar uma pequena licença em, Paúnca!

Este mês a cantina ia ficando completamente vazia. A alegria de estarmos a chegar ao fim da comissão é talvez uma das razões, mas o calor também tem ajudado. Os refrigerantes desaparecem num ápice, tal é a venda. Continuo a ser o gerente da cantina e até agora só tem dado lucro. No fim deste mês entrego tudo a outra Companhia o que já representa alguma coisa. Quando aqui chegámos não havia nada. Estou em crer que até meados de Abril deveremos marchar para Bissau. Até que enfim!
Soube agora pela rádio que os soviéticos atingiram Vénus com uma nave não tripulada. Agora só nos falta a nós sairmos daqui.

Paúnca, 08 Mar. 1966
No sábado passado, fui a Bafatá passear, pois apeteceu-me mudar de ambiente. No entanto apanhei uma valente estafadela pois a estrada está em péssimo estado e ainda por cima o jeep já não tem amortecedores.
Na companhia do M. Santos, almocei num café e depois fomos às compras. Apenas comprei uns livros e não encontrei mais nada de especial, a não ser um pequeno tapete com motivos árabes, alguns panos típicos, um canhangulo novo e uns pratos feitos de ráfia que podem servir de resguardo, quando se colocam panelas ou outros recipientes quentes em cima da mesa.
Mas o que mais de encontrava eram coisas feitas na China! Louça, lenços de seda e até cestas de vime colorido. Comprei ainda, antes da hora da partida uma espécie de rosário, ou simplesmente um colar de contas, que os fulas maometanos como são, usam constantemente, para os ajudar a recitar orações ou os versículos do Alcorão, julgo eu. Infelizmente, os indígenas de cá têm muito pouco artesanato para vender. As coisas mais bonitas vêm de fora, o que as torna mais caras, como é óbvio.

Como o Manel Jaquim agora parece ter medo de vir cá cima, não sei porquê, o nosso entretenimento continua a ser jogar às cartas ou ler alguma coisa. Quanto ao quinteto do Lopes, passou agora a octeto, com novos números e novas orquestrações.

Paúnca, 13 Mar. 1966
Na semana passada estive dois dias em Pirada, a pedido do Capitão. Esperava a vinda de umas autoridades senegalesas e como não tem lá ninguém que fale francês, pediu-me para lhe ir dar uma mãozinha.
Afinal a entrevista limitou-se a uma breve apresentação de cumprimentos mesmo sobre a linha de fronteira.
Em seguida, limitei-me a ficar por lá, ir até casa do M. Santos conversar e ouvir um pouco de música dos novos discos que tem recebido. Em suma passei dois dias sem fazer nada, tal como um verdadeiro turista, passeando e cumprimentando velhos conhecidos.
Quando regressei, todos me vieram falar como se tivesse voltado de uma longa viagem. Na minha ausência tudo tinha corrido sem problemas. Hoje está marcado um almoço, aqui no quartel, para o qual foram convidados todos os comerciantes de Paúnca, uns furriéis de Bajocunda e ainda o nosso Alferes Médico que, agora se dá muito bem comigo e com todos os militares de Paúnca. Foi uma grande festa que só acabou às 6 da tarde, porque os furriéis de Bajocunda tinham de regressar a casa e ainda tinham de percorrer uns 40 kms por picadas de 3.ª categoria.
O almoço foi galinha de chabéu, um prato típico cá do sítio que, consiste em galinha cozinhada em óleo de palma, acompanhado de arroz branco. Tudo muito picante, como é da tradição. O nosso cozinheiro (um balanta que anda quase sempre bêbado) desta vez esmerou-se e toda a gente gabou e repetiu, embora para alguns, tivesse sido a primeira vez que comiam tal especialidade. Éramos 10 pessoas à mesa e consumiram-se 10 galinhas!
Depois, como estava muito calor, fomos até casa de um dos comerciantes comer bolinhos de bacalhau e umas frituras de pasta de camarão, de origem chinesa, e beber whisky com muito gelo. Finalmente para espairecer, fomos dar uma volta pela tabanca e mostrar os locais mais interessantes aos nossos visitantes que, como nunca tinham vindo até cá, se mostraram encantados. Nós, depois de nove meses de estadia, como é o nosso caso, é que já não achamos graça nenhuma.
Acabou-se a tarde a jogar as cartas em casa de outro comerciante. O Doutor ficou para jantar que, entretanto se foi atrasando, pois tivemos de esperar pelo Furriel Vicente que tinha ido levar os camaradas de Bajocunda. Só voltou depois das 10 da noite, mas, bem atestados como estávamos com o almoço, aguentámos bem a espera. Apesar, do jantar (Bacalhau à Gomes de Sá) já estar completamente frio àquela hora, mesmo assim até soube melhor.
Ao serão rematámos com um campeonato de King que só terminou às 03H00 da manhã!
O pior é amanhã, segunda-feira…

Paúnca, 21 Mar. 1966
As novidades para esta semana resumem-se à chegada do Manel Jaquim e a pouco mais. Finalmente reapareceu por cá, com um filme tão ordinário que até senti ganas de lhe apertar o pescoço. Chamava-se “O Capitão Sindbad” e era uma historieta desconchavada tirada das Mil e Uma Noites, excedendo tudo o que já vi de mau gosto e estupidez.
Durante o resto dos dias fui até Pirada várias vezes, para mudar de ambiente, conversar com o M. Santos, ver alguns amigos.

No domingo tivemos cá a visita de um velho comerciante de Pirada, o Gomes que vive muito só, acompanhado apenas por um criado preto, quase tão velho como ele. Muito amigo de alguns furriéis, foram estes que se lembraram de o convidar para vir também conhecer esta já famosa estância turística. Bebemos uns whiskies e comemos galinha assada no espeto. Com o desenrolar da conversa, caiu na esparrela de se gabar que tinha uns paios no frigorífico em casa dele, em Pirada e, no meio do entusiasmo geral acabou por convidar toda a gente para ir lá prová-los.
Claro que nem foi preciso repetir, todos tinham ouvido perfeitamente bem. Corremos para os jeeps e depois de uma louca corrida por 30 kms de picada, caímos em casa dele. Em menos de um fósforo desapareceram três paios e uma garrafa de whisky. O pobre do homem ao ver aquela pressa toda, acabou por fugir para os fundos do quintal a pretexto que precisava de tomar banho.
Por acaso, nesse dia, o Capitão e o Alferes Castro tinham ido a Nova Lamego fazer um piquenique (!) e só voltaram à noite.
Imagine-se! Darem-se ao luxo de fazerem piqueniques aqui. Aposto que ninguém acredita.

Ah! É verdade, segundo os últimos boatos a nossa partida está marcada para 21 de Abril e seguiremos para Bissau no dia 5, mas nada é oficial ainda.
Aqui os dias permanecem sempre iguais. Se começa a chover é porque começou a estação das chuvas. Quando pára de chover, pronto, começou a estação seca!
E é tudo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

1. Mais um poste da série Cartas, (OUT65 a DEZ65), de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66


2.ª FASE: O MATO

Paúnca, 10 Out. 1965
Todos os dias procuro levantar-me cedo, lavar-me, vestir-me como se tivesse algo muito importante e diferente para fazer.
Depois da cerimónia do hastear da bandeira, do pequeno-almoço e da distribuição dos trabalhos pelos homens que estão de faxina, vou até a caserna, ao posto de socorros, ao refeitório e está mais uma manhã passada!
Ultimamente tenho-me dedicado à limpeza do aquartelamento, principalmente a cortar o capim que cresce que eu sei lá e a reforçar a rede de arame farpado. E como os soldados estão a ficar uns sornas e só trabalham se forem obrigados, tenho de andar sempre atrás deles, muitas vezes até com um pau na mão (na brincadeira, é claro)

À noite, quando não chove, geralmente sento-me cá fora e coloco o gira-discos a tocar. Como sei que eles não apreciam jazz, pedi ao M. Santos uns discos emprestados, entre eles, os do Solnado (os famosos discos com os monólogos da “Ida à Guerra”), que têm tido um sucesso estrondoso, pois ficam ali à minha volta, sentados em cadeiras, caixotes ou mesmo no chão. E assim passamos grandes bocados da noite, entretidos a conversar e a rir.

Anteontem, quando receberam o pré, lembraram-se que eu lhes poderia descontar todos os meses uma pequena quantia para poderem comprar uma bola de futebol. Assim o fiz e descontei 5$00 a cada um. Eu e os furriéis pusemos o resto para os 300$00 que custava a bola. Ontem, fomos a Bafatá, aproveitando a boleia dos carros de Pirada, para comprar a bola, uma bela bola vermelha e à noite já cá a tinham. Hoje de manhã levantaram-se todos mais cedo para a estrear.
Organizei um jogo entre solteiros e casados e, é claro, ganharam os casados 3-2. Eu não joguei, mas já ficou combinado que, a partir desta semana, todos os dias orientarei os treinos. Isto vai servir às mil maravilhas para abater as gorduras que se estão a acumular nesta vida tão sedentária. Passaremos a levantarmo-nos às 05H00 para um pequeno crosse e um bocado de ginástica. Depois tentarei dar-lhes um pequeno treino de futebol mais ou menos no estilo do velho Szabo, tal como ainda me recordo de o ver, quando esteve no Vianense. Com palavrões e tudo!
Temos cá uns soldados pretos muito jeitosos e tenho esperanças de qualquer dia ir a Pirada e fazer uma surpresa aos soldados do Comando da Companhia que têm a fama de ser os melhorzinhos

Paúnca, 17 Out. 1965
Novidades do futebol: o Nacional de Paúnca já começou. A equipa do Comando do Pelotão formada pelos condutores, radiotelegrafistas, o maqueiro e o corneteiro, ganhou à 1ª Secção de Atiradores, por 3-0. No segundo dia, a 2ª Secção de Atiradores ganhou à 3ª Secção, por 6-0, deixando-a completamente desanimada. Na caserna não se fala noutra coisa. E, para cúmulo, uma equipa constituída por uma selecção dos melhores do Pelotão jogou contra uma equipa de civis (quase todos rapazes indígenas, que jogam muito bem) tendo ganho por 3-0.
A glória já começou a subir-lhes à cabeça e ninguém os atura. Os civis ficaram amuados e pedem a desforra que será disputada ainda hoje por volta das 17H00, para evitar o calor. É provável que ganhemos novamente, estou cá com uma fezada.
O futebol faz muito bem ao moral das tropas. Tenho a impressão que até andam com melhor aspecto, melhores cores. Eu também me sinto bem e, embora não jogue, participo nos treinos e de manhãzinha lá vou fazendo os meus crosses.

Paúnca-Pirada, 24 Out. 1965
Hoje fui até Pirada ver um jogo de futebol com a Companhia de Cavalaria que está em Bajocunda.
Em Paúnca já temos professor primário, é o Timóteo, um rapaz negro muito alto e ligeiramente coxo. Grande falador e grande bebedor também, como deu também para verificar. Esperemos que não me venha a dar problemas, pois parece ter prosápia a mais.

(De facto, como que a comprovar a minha estranheza quanto a alguns aspectos da sua conduta, vim a saber depois, pelo M. Santos, quando já estava na Metrópole, que ele afinal, tinha sido sempre um elemento do IN infiltrado e que, desaparecera repentinamente, quando sentiu avolumar as suspeitas sobre ele.)

Quanto a batuques, são todos os dias, mas não têm metade da graça dos que se faziam em Pirada. A população daqui é menos simpática e pouco comunicativa. Se não fosse por causa do capitão e daquela convivência forçada com o porcalhão da companhia (refiro-me ao Cardoso) andaria desejoso de voltar para lá. Mas assim é preferível ficar estagnado nesta absurda calma de Paúnca. À noite, tenho até experimentado ir até casa de um ou outro comerciante, para uma visita, mas francamente, são de tal maneira broncos e soezes que, regresso sempre sem vontade nenhuma de lá voltar.
Ultimamente, eu e os furriéis entretemo-nos a jogar ao Poker de dados ou à Sueca, mas também cansa e aborrece. Recebi no correio os quatros rolos de revistas que a mãe me mandou. Foi vida nova, mas também já devorei tudo!
À noite tento ouvir as emissões da Voz da América, em ondas curtas, pois costuma dar boa música de jazz, mas nem sempre se consegue ter boa audição.
Enfim, o tempo passa e, não passa…

Paúnca, 09 Nov. 1965
Fiz ontem seis meses de casado e só hoje é que me lembrou.
O Martins, o meu quarto furriel, foi para Pirada fazer parte, com a Secção dele, do novo Pelotão que o Capitão resolveu criar para o oferecer ao Alferes Cardoso que, por se o alferes adjunto dele, tinha tido sempre a sorte de nunca comandar nenhum. Apenas comandava o grupo de sargentos e praças que constituíam o núcleo de comando e serviços da Companhia, embora na verdade quem mandasse fosse o 1º sargento. Assim acabou por nunca ter participado em nenhuma das grandes operações que fizemos em Bissau e em todos os patrulhamentos regulares que fazíamos no dia-a-dia. Isso era até, como seria de esperar um dos motivos de celeuma e discórdia entre os alferes e sargentos que viam nesse facto um favorecimento de que ele soube sempre aproveitar-se escandalosamente. Agora que ele tinha pregado aquela partida de ter ido de férias que, seriam de trinta dias, e ter lá ficado três meses fingindo-se doente, o Capitão que finalmente o começou a topar, resolveu alterar a orgânica da Companhia, tirando uma Secção a cada um dos Pelotões (ou melhor, Grupos de Combate, por terem 4 secções) dos outros três alferes para, assim constituir um Pelotão para o Zéquinha (como jocosamente nos referimos ao José Cardoso) começar a alinhar como toda a gente.
Agora que ele regressou, está ainda mais repugnante. Toda a gente diz o pior dele e quase ninguém lhe fala, inclusive eu próprio. No entanto, só agora é que o Capitão fez uma coisa que já deveria ter feito logo de início. Assim talvez ele não se tivesse tornado tão nojento e cobarde.
Parece que até a própria namorada cortou relações com ele e o pobre coitado vai de mal a pior.

Paúnca, 16 Nov. 1965
O Alferes Castro que, está agora em Pirada, fez anos no passado dia 11 e convidou-me a mim e a mais dois dos meus furriéis, para irmos lá festejar com ele. Dois dias antes pedi autorização ao Capitão para me deslocar com os furriéis a Pirada. Respondeu-me que autorizava, mas no dia seguinte mandou uma mensagem via rádio a dizer que afinal só poderia ir acompanhado apenas por um furriel, pois nesse dia, teriam de ficar, obrigatoriamente, dois no quartel. Fiquei tão chateado com aquela manobra deselegante que resolvemos não ir ninguém à tal dita festa de aniversário do Castro.

O que tornou este caso ainda mais desagradável, foi o facto de o Capitão estar até a esquecer-se que, naquele dia em que me mandou fazer aquela patrulha a pé de 40 km, que durou 48 horas, no quartel tinha ficado apenas um furriel! Então para quê dois pesos e duas medidas?
Conforme depois me contaram, parece que a festa esteve um bocado fria. O Cardoso fez-se também convidado e não largou a casaca do Capitão, portando-se como um autêntico verme, sempre a bajulá-lo. Aliás o Capitão também não se portou melhor, pois insistiu com o Castro para convidar igualmente o patife do 1º sargento com quem ele não pode nem à lei da bala. Não sei porquê, o Capitão desdobra-se em mesuras com o 1º sargento, favorecendo-o com todas as benesses. Se calhar porque também pretende ficar de bem com ele ou lhe deva alguns favores, não sei.
Agora que o tempo vai acumulando tantos factos ridículos, a paciência vai-se também esgotando.

Paúnca, 21 Nov. 1965
Já são quase 5 horas da tarde, pois estou a ouvir preparar o Unimog que todos os dias vai buscar água à bolanha.
Agora mudámos de patrão. A nossa Companhia deixou de pertencer ao Batalhão de Cavalaria de Nova Lamego, para passar a pertencer ao de Bafatá. A nova estrutura do Sector modificou-se e tanto Pirada como Paúnca passaram a constituir uma faixa de terreno dependente inteiramente de Bafatá. Estamos a fugir da zona Oeste e simultaneamente da zona Norte, pois agora já não seremos chamados para actuar em Canquelifá (no canto superior direito do mapa da Guiné), como quando dependíamos de Nova Lamego, que continua a comandar essa zona.

No passado dia 19, tive cá a visita do novo Comandante que me pareceu ser um tipo mais simpático que o anterior.
Como tinha mandado caiar todo o quartel na semana antecedente, estava tudo com um aspecto impecável, o que pareceu agradar de sobremaneira ao indivíduo.
Os soldados fizeram a formatura com o melhor fardamento que ainda possuíam e ele dirigiu-lhes algumas palavras de elogio que os encheu de vaidade.
Naquela tarde, depois de se ter ido embora, decretei feriado geral e ninguém trabalhou mais, pois merecem coitados. Fazem sacrifícios que, se fosse eu a fazê-los, me tornariam esta vida mais negra que uma folha de papel químico (do preto, claro!).

Quando, em conversa, aqui na Messe, contei o boato que corria na Metrópole, sobre a possibilidade de regressarmos a casa mais cedo, um dos soldados, o Zé Maria que trabalha aqui e eu dispensei de fazer sentinela de noite por estar muito fraco, até disse:

- Se isso for verdade até engordo com a alegria!

Hoje o Furriel Ricardo adoeceu com paludismo. É a sétima ou oitava vez que lhe acontece. É também o mais fraco dos furriéis. De todos nós, parece que só eu e alguns muito poucos, é que ainda não adoeceram com a febre. Também, tenho muito cuidado de não me esquecer de tomar o comprimido de Resoquina, o que raramente acontece com a maioria dos outros soldados.
Estamos a caminhar para os 14 meses de mato e estamos de tal modo mergulhados neste ambiente que já tratamos e compreendemos os fulas como se fôssemos da mesma raça.
Ontem fomos fazer uma emboscada numa cambança (local onde habitualmente se atravessa um rio de piroga) não muito longe daqui. Suspeitava-se da presença inimiga, o que, felizmente não se confirmou mais uma vez.
Enquanto estávamos escondidos entre os arbustos junto à margem, alguém do outro lado chamou pelo rapaz que tomava conta das pirogas e que estava, muito calado, junto de mim. Depois de lhe ter feito sinal para que respondesse ao chamado, atravessou para a outra margem para satisfazer os fregueses.

O frete da passagem do rio tem uma tabela: 3$00 uma pessoa só; 6$00 uma pessoa e uma bicicleta. Ora estes nossos fregueses, que não suspeitaram que, na outra margem, os estavam a vigiar e a ouvir, quiseram intrujar o rapaz e um deles só queria mesmo pagar 5$00 por ele e pela sua bicicleta.
Por fim, o rapaz lá os trouxe e, qual não foi o espanto do mariola, quando ao desembarcar do lado de cá se viu rodeado por soldados armados.
Sentado calmamente num tronco caído, chamei-o e disse-lhe por intermédio de um soldado da milícia negra que, o que ele tinha feito não estava correcto e que teria de pagar tudo conforme a tabela, senão que o atirava ao rio obrigando-o a voltar para trás a nado. Assustado começou numa grande ladainha jurando que não tinha mais dinheiro, que tinha vindo de um enterro de um parente, etc. etc.
Mesmo assim e para que não julgasse que nos levaria por trouxas obriguei-o a pagar o resto do que devia ao rapaz, em nozes de cola que, trazia num embrulho, amarrado à bicicleta.
Mas ficou-me cá a parecer que, o que o tinha assustado mais, foi ele ter percebido que eu tinha entendido tudo o que ele tinha dito ao rapaz na outra margem do rio. E deixei-o ficar nessa convicção…
O rapaz da piroga é que estava todo divertido. Conquistei mais um amigo que, para aqui ficará a desaparecer nas brumas da memória…
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No próximo dia 1 de Dezembro, Timóteo, o professor da escola de Paúnca, vai organizar uma festarola comemorativa do feriado. Vai haver desfile e grupos folclóricos!?
Só não sei onde é que os miúdos foram buscar as fardas de Mocidade Portuguesa que exibem com tanta vaidade e orgulho, mas aquele Timóteo consegue sempre surpreender-me.

Paúnca, 10 Dez. 1965
O Alferes Castro foi a Bafatá e disse-nos que falou com o Comandante do Batalhão de Nova Lamego, acabado de chegar de férias. Segundo ele o nosso regresso está previsto para 27 de Abril, no navio Niassa.
Cheira-me a mais um boato, mas no entanto…
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O futebol continua, mas a bola é que está toda esfarrapada, de tanto bater na cerca de arame farpado. Ainda apareceu um sapateiro improvisado para a cozer, mas agora mais parece um melão.
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Finalmente acabei por me tornar empreiteiro!
Caiámos novamente o quartel e vamos agora cimentar o chão da Cantina que era em terra batida. Fiz um balcão com bambus entrelaçados e uma grossa prancha de madeira, tudo pintado com tinta de esmalte vermelha. Consegui que o Capitão me emprestasse o carpinteiro da Companhia por uma semana. Arranjei uma estante e organizei uma pequena biblioteca com livros e revistas que vou pedinchando por aqui e por ali, para que os soldados tenham mais qualquer coisa com que se entreter.
Vamos também montar um sistema de chuveiros nos balneários dos soldados que, vai evitar muito lodaçal. Felizmente toda a gente tem aderido e trabalha com entusiasmo. Já nem é preciso perder tempo a convencê-los.

Fui a Bafatá comprar bebidas e outros artigos que cá em cima não havia e agora podemo-nos gabar de ter uma Cantina em condições. Há cerveja, sumos de frutas, limonadas, leite achocolatado, vinho da Madeira, whisky, brande e licor Tríplice e até licor Drambuie. Tabaco de todas as marcas, pilhas para as lanternas e para os rádios, sabonetes, pastas de dentes, papel de carta, canetas, creme para a barba, lâminas, latinhas de Foie-Gras, espelhos e roupa interior.
Temos também latas de pó de talco Gardénia, da Diana Marsh. Até vou guardar uma para levar no regresso. Enfim, um sortido como nunca se viu igual.

Em Bafatá comprei também quatro baralhos de cartas e um jogo de Dominó. À noite, a Cantina está sempre super lotada. Espero fazer a inauguração oficial antes do Natal e até vou convidar o Capitão.

Na ceia de Natal, contamos dar a toda a gente bacalhau cozido com as tradicionais batatas e couves, bolos, fruta em calda e vinho do Porto. Para o almoço do dia de Natal, será um quarto de galinha para cada um, vinho a dobrar e pudim Flan, que conseguimos comprar num comerciante daqui.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965

1. Sétimo poste da série Cartas, (JUL65 a SET65), de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66


2.ª FASE: O MATO

Paúnca, 03 Jul. 1965
As coisas estão a alterar-se bastante, quebrando a rotinas dos últimos tempos. Esta semana foi mesmo muito atribulada, mas não para mim que, nela fui apenas espectador.
A Lili (nome familiar da esposa do Castro) acabou por ter uma zanga terrível com o marido.
No início, já tinha notado uma certa frieza da parte dela para com ele. Vim depois a saber que a vida que os dois aqui levavam não era nenhum mar de rosas e que discutiam frequentemente, inclusivamente durante as refeições, feitas juntamente com os furriéis.

Na passada terça-feira, o Castro saiu de jeep para visitar outro alferes de um destacamento aqui próximo, mas de outra Companhia. Almoçou por lá e só regressou ao fim da tarde, demasiado alegre, parecendo vir até com um grão na asa.
Foram os dois logo para o quarto enquanto nós ficávamos a ouvir uns discos que ele tinha trazido.
Passado pouco tempo, repentinamente, a Lili abre a porta e sai a correr espavorida. Pelo que nos pudemos aperceber, ela ter-lhe-ia dito qualquer coisa sobre o estado eufórico dele, resultando daí uma zanga em que se insultaram mutuamente com os piores nomes, chegando mesmo à agressão física.
Nessa altura já era noite cerrada e eu lá fui atrás da Lili, que dominada por forte estado emocional, com choro, soluços e nem sei que mais, foi sentar-se no chão, no meio da enorme parada do quartel de Paúnca. Acorreram alguns furriéis mas afastei-os e fiquei só eu a acalmá-la, a tentar que desabafasse comigo. Quando finalmente vi que parou de chorar e de tremer convulsivamente, deixei-a e regressei à Messe onde ainda todos estavam reunidos, consternados com toda aquela cena.
Entretanto o Castro fez várias tentativas para chegar junto dela mas foi repelido aos gritos.

O jantar estava na mesa e nem um nem outro se decidia a vir fazer-nos companhia, ele no quarto, ela lá fora.
Foi então que faxina, ao entrar no quarto do Castro para o chamar para vir comer o foi surpreender a cortar as veias do pulso esquerdo com uma lâmina de barba. Acorremos imediatamente, o enfermeiro aplicou-lhe logo uma ligadura e nem chegou a haver perigo. O Castro caiu então num estado de completa prostração física e durante os três dias que se seguiram quase nem se levantou da cama, não comendo nem falando com ninguém.

A Lili, essa, nunca mais quis dormir na mesma cama com ele e tem teimado em dormir numa cama de lona na palhota-alpendre que cá fora servia de bar.
À medida que os dias foram passando, investiguei alguns factos passados, na mira de tentar ficar a saber o porquê de se ter chegado àquela situação. No entanto não o fiz apenas com o propósito de bisbilhotar os pormenores escabrosos do escândalo. Precisava de ter em meu poder o conhecimento de todos os factos que me ajudassem à compreensão e possível resolução deste problema.
Sim, porque estava determinado em ajudar estes dois. Ele em primeiro lugar, porque estava a fraquejar de modo lamentável, ela para que não enlouquecesse. E digo, enlouquecer pois é isso mesmo que aqui pode vir a acontecer aos espíritos mais fracos.

Assim constatei que as coisas estariam neste pé: o comportamento da Lili para com o marido era frio e distante já desde a primeira vez que ela cá tinha estado, ainda em Bissau. No entanto, quis vir para Paúnca, com o intuito de animar os soldados e todos os outros que aqui também viviam a sua solidão. Esse impulso levou-a talvez longe demais, pois nem todas as pessoas têm uma boa formação moral e, a maioria, vive dominada pelos mais estranhos e complexos traumas, quase todos de origem sexual.
Começaram logo por surgir os inevitáveis boatos sobre o comportamento dela, que era uma mulher leviana, que atraiçoava o marido, inclusivamente com um dos furriéis, enfim que não passava de uma vulgar libertina.
O Castro, se chegou a suspeitar disso, nunca a soube defender nem resguardar, pois ele tem aquela estranha mentalidade, segundo a qual a verdadeira e única camaradagem leal que existe entre os homens é a que se cria entre os que se embebedam em conjunto. E é também verdade que ele, antes e depois de ter cá a mulher, costumava embebedar-se na companhia dos seus soldados, talvez com a intenção de aumentar a sua popularidade (o que de facto conseguiu). Um dos indícios claros da sua personalidade é ter sempre um desejo incontrolável pelo luxo, o sonho de possuir bons carros, mulheres deslumbrantes, vida de playboy, etc. Mas para além disso tudo, a sua maior obsessão foi e será sempre a de ser popular.

Mas voltemos aos acontecimentos. Todos os dias falo com um ou com o outro, tentando serenar ao ânimos e fazer voltar tudo ao seu lugar.
Ela quer a separação a todo o custo. Ele quer que ela volte para ele e o acarinhe. Ela continua a manifestar total repulsa por ele. Até que ontem (sexta-feira) consegui convencê-lo de que a melhor atitude que poderia tomar, era levantar-se da cama, lavar-se, barbear-se, comer qualquer coisa e deixar de, teimosamente, tentar discutir ou pedir explicações à esposa. Mas logo em seguida, voltou a fazer o mesmo, a pedir que ela voltasse para ele, o perdoasse e contemporizasse com ele.
Mas ela cada vez mais se inteiriçava e se recusava a falar com ele, não querendo nem sequer que ele a tocasse. E o inevitável sucedeu novamente, uma tremenda discussão com um final outra vez grave.

Aproveitando uma distracção nossa, ela cortou-se selvaticamente nos dois pulsos e pelos braços acima em total desespero e descontrolo. Tivemos que a agarrar à força para que deixasse fazer os curativos, pois estava completamente desvairada. E o Castro, sempre de volta dela, massacrando-a insistentemente, perguntando porque é que ela estava assim, o que é que ele tinha feito de mal, numa cegueira tal que tive de empregar a violência para o afastar da mulher.

No fim de muita luta e muita paciência consegui que finalmente, ainda nessa noite, os dois jantassem connosco à mesa. Felizmente agora a crise está a abrandar, mas as coisas nunca voltarão a ser como dantes, nem haverá reconciliação, pois entre eles ficou decidido o divórcio.

Hoje de tarde o Castro não parava de chorar a perda daquilo que ele mais gostava. Pode-se dizer que hoje, tiveram uma recaída psicológica, talvez por cansaço. Ele, num acto de abandono, vagabundeava pela estrada, para baixo e para cima, sob uma enorme chuvada, como para se punir. Ela, não conseguia adormecer, dizendo que o estava constantemente a ouvir gritar e que ouvia também outras vozes a chamarem por ela. Apesar de eu lhe ter cedido por diversas vezes o meu quarto, ela nunca mais quis deixar a palhota-alpendre, teimando sempre em dormir na cadeira de lona. Por lá adormeceu, após o enfermeiro lhe ter administrado uma injecção calmante.

Como se calhar já repararam, a minha actuação aqui tem sido agora como a de um comandante. Por que de facto já o sou. Recebi ontem à noite uma ordem por escrito do nosso capitão a determinar que a partir de hoje (dia 3), o pelotão do Castro regressava a Pirada, vindo o meu para cá, beneficiando já da minha estadia aqui e alegando a tal prometida rotatividade dos destacamentos como teria sido combinado quando viemos para o mato. Aconteceu portanto aquilo que já ninguém esperava, eu vir a ser o comandante de Paúnca, o melhor e o mais cobiçado aquartelamento aqui da zona.

Isto acabou por arrasar ainda mais o Castro. A Lili chegou a pedir-me para a deixar ficar em Paúnca até vir a altura de poder embarcar para a Metrópole, mas por fim decidiu ir também para Pirada na condição de nem ver o marido, nem o capitão, que continua a detestar igualmente.
No entanto continuamos a construir o aquartelamento que querem criar aqui ao lado para um outro pelotão.

Paúnca, 10 Jul. 1965
Agora estou só em Paúnca. O Castro e a mulher foram para Bissau onde arranjou lugar para ela num avião da TAP, segundo contou num aerograma que mandou de lá, para o capitão. Parece também que, depois desta fita toda que aqui fizeram, já se reconciliaram de novo, o que me deixou boquiaberto.
Mesmo no último domingo ainda me deram que fazer, pois ela resolveu fugir, embrenhando-se pelo mato. Um pouco antes da hora do almoço, demos pela falta dela e depois de muito a procurar, soubemos por uns nativos que ela tinha sido vista a correr pela mata já longe do quartel. Fomos todos atrás dela e só a conseguimos agarrar perto das 4 horas da tarde, quando finalmente a encontrámos numa tabanca a 10 km daqui, estafada e cheia de sede. Só com uma grande dose de paciência é que conseguimos convencê-la a voltar para o quartel e tive pelo menos a satisfação que, se não tivesse sido pela minha presença, a crise teria tido contornos muito mais graves, ou vamos lá, até muito mais ridículos.

Mas já nem gosto mais de falar neste assunto, principalmente com quem tanto civis como militares se limitaram a ser simples espectadores, deste caso.
De uma coisa fiquei certo: ninguém está suficientemente autorizado para a poder julgar. Ela era uma pessoa de muito difícil compreensão para esta gente ainda com mentalidade de bichos-do-mato, chamemos-lhes assim.

Mas ainda não vos falei de Paúnca como deve ser.
O quarto que era do Castro, passou agora a ser o meu. Está dividido a meio por uma cortina verde-escura, comprada por ele mas que ma deixou ficar, pois em Pirada não lhe iria servir para nada. O quarto fica assim dividido em escritório e quarto propriamente dito. Já pendurei o meu canhangulo na parede e coloquei os tambores a um canto.
A minha lavadeira continua a ser a Ti Clara e até ver será sempre ela.

O quartel tem apenas dois edifícios cobertos de telha, a caserna e a Messe com os quartos dos sargentos e o meu. Os outros edifícios são simples cobertos, ou então, como no caso do Refeitório, edifícios com paredes de cimento mas cobertos com chapas de zinco ou lusalite, mais baixos que a caserna.
O aquartelamento fica logo à entrada da povoação, dominando a estrada que lhe dá acesso. Andando mais um pouco chega-se a um largo formado por cinco casas comerciais dispostas mais ou menos em quadrado. Aí é o centro do povoado, onde se faz o movimento principal.
Esta gente daqui é mais rica que a de Pirada, pois enquanto lá, os quatro comerciantes existentes, vivem principalmente do comércio que fazem com o Senegal, estes aqui (e são cinco!) vivem do comércio que fazem apenas com os indígenas desta região e com os que vêm do interior para se abastecerem.

Estamos agora na época em que se lavra a mancarra e o trigo e é precisamente nesta altura que os agricultores estão sem dinheiro. Mesmo assim ainda conseguem fazer algum negócio, vendendo arroz e tabaco para poderem comprar o que necessitam. É agora que nós aproveitamos também para lhes comprar os ovos e as galinhas que quisermos, pois deixam tudo muito mais barato.
Resumindo, gosto de estar aqui embora me sinta muito só. Mas por outro lado, fico contente por saber que os meus soldados finalmente estão a descansar das canseiras que tiveram em Pirada, sempre a fazerem obras aqui e ali. Quero mesmo que isto se venha a tornar um autêntico sanatório para eles.

Paúnca, 18 Jul. 1965
Ontem, sábado, organizámos um baile para o qual convidámos as duas filhas e a sobrinha de um comerciante negro de alcunha, o “Passarinhas”, que tem a loja mesmo aqui em frente do quartel do outro lado da estrada.
Elas coitadas, eram só três e nós quase 40, de maneira que acabaram todas derreadas. Mas foi uma noite divertida e alegre, com bebidas à discrição, galinhas à cafreal, batatas fritas, salada de frutas, etc., etc. Foi pelo menos uma coisa inédita aqui na vila, especialmente para os soldados que há muito tempo não davam o seu pezinho de dança…
As raparigas que, por acaso, até não são nada feias, ficaram deslumbradas com as amabilidades de que foram alvo, vestiram as suas melhores roupas e pentearam a carapinha o mais à europeia possível. Os soldados, obriguei-os a apresentarem-se com a farda n.º 1, ou então à civil e, assim, o baile teve um até um aspecto bastante decente.
Devo acrescentar que ninguém se embebedou, embora tivesse havido um soldado, mais emocionado que não resistiu a recitar o “Amor de Mãe”. Um sucesso!
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Recebi hoje as camisolas que me mandaram pelo Correio e já dei a dos quadrados à Ti Clara e a outra, a vermelha, à amiga dela, a Cumba. Quase lhes chegam aos pés, mas assim largas é que lhes ficam bem. Ficaram maravilhadas porque nunca ninguém lhes tinha feito tamanha oferta. Não se cansam de agradecer. As restantes vão ser distribuídas aos poucos por aqueles mais necessitados.
Aqui em Paúnca ainda não arranjei grandes amizades, a não ser com um rapaz, de nome Iaia que é o enfermeiro civil de cá. De raça Fula, muito simpático e muito mais culto que o normal sabe ler e escrever correctamente, tanto em árabe como em português. Como fala ainda vários dialectos locais tem sido muitíssimo útil como intérprete.

Paúnca, 25 Jul. 1965
Hoje fui a Pirada assistir a um jogo de futebol entre a equipa do meu Pelotão e a equipa do Comando da Companhia. Afinal o jogo acabou mal. Foi interrompido porque os jogadores envolveram-se à pancada, quando estavam empatados 0-0.
Mas mesmo assim prometemos vingança!

Paúnca, 01 Ago. 1965
De novo em Pirada agora a comandar a própria Companhia!
O capitão foi de férias e como o Cardoso, que é o alferes mais graduado, ainda se encontra na Metrópole, tive de vir eu para o comando das tropas, pois sou o alferes que se lhe segue quanto a graduação.
Assim fiquei instalado no quarto do capitão, nas novas instalações dentro do quartel, com luz eléctrica e quarto de banho privativo. Não é nada mau, embora o ruído do gerador seja um bocado chato. Mas é quase como estar a bordo de um navio. A gente habitua-se ao barulho e depois até deixa de o ouvir.
O quarto é pequeno, atulhado de armários com roupas, sapatos, botas e papelada, quase tudo do capitão. Também tenho uma ventoinha o que é muito bom pois agora, depois de chover, faz sempre um calor húmido e insuportavelmente abafante. Forneci-me de livros e revistas para me entreter e para não andar por aí feito parvo.

Continuo a ir todas as tardes e principalmente depois de jantar, a casa do M. Santos, onde jogamos umas partidas de xadrez, novo entretenimento que descobrimos. Mas perco sempre pois ele é um jogador muito mais forte que eu.
Agora, costumam juntar-se a nós, dois ou três furriéis, de maneira que os serões são muito mais animados. Discute-se política, cinema, literatura e de tudo um pouco, conforme as preferências de cada um.
Quanto às minhas novas atribuições no comando da Companhia, não me preocupam muito porque são poucas ou quase nenhumas. Daqui a poucos dias deve chegar o Cardoso e então regressarei de novo a Paúnca.

Pirada, 08 Ago. 1965
Amanhã entramos no 16.º mês de comissão. Isto está a andar depressa!
Para comemorar, fui com alguns furriéis almoçar a Paúnca a convite do Castro que, está lá agora a comandar o meu pelotão, enquanto eu estiver deslocado em Pirada. Os meus homens parecem ter ficado satisfeitos por me ver. Ao almoço paguei cerveja a todos para também aumentar a minha popularidade. Sinto que de dia para dia, principalmente nestes dois últimos meses (desde que regressei de férias) se tem vindo a criar um elo de amizade e compreensão entre mim e os soldados do meu pelotão. Já não se sente tanto aquela relação crispada de patrão e escravos, mas sim uma simples camaradagem do chefe com os seus fiéis companheiros.
Agora que estou ausente aqui em Pirada, sei que até têm perguntado bastante por mim, modéstia à parte.

Hoje tivemos também a festa de despedida do Gabriel aquele alferes de Cavalaria meu companheiro em Bajocunda, de quem me tinha tornado amigo e que, foi nada mais, nada menos, nomeado ajudante do Governador!
É claro que delirámos com a notícia e fizemos mais uma grande festa em casa do amigo M. Santos que, coitado, depois do jantar, já abria a boca até às orelhas, cansado e mortinho por se ir deitar.
O nosso médico, o Rafael, continua deslocado lá longe, em Canquelifá, onde está há quase um mês. Apesar das excentricidades dele, já sentimos um pouco de saudades da sua companhia. Mas quem mais sofre são alguns dos nossos soldados que sofrem de paludismo e outras doenças mais graves que, por causa disso não têm o tratamento adequado.

Pirada, 15 Ago. 1965
Continuo a comandar a Companhia e já estou a ficar farto disto!
Os outros alferes, o Carvalho e o Castro começam a evidenciar sinais nítidos de quererem abusar da situação, cientes de que eu, alferes como eles, não lhes poderei exigir uma obediência completa. Julgam que podem fazer tudo o que lhes apetece, dando as ordens que melhor entendem, pensando talvez que eu não ousarei contrariá-los. Claro que poderia e posso mesmo, mas na verdade se o fizesse era só para criar aborrecimentos e chatices.
Quando o capitão cá estava, não eram capazes (como o Carvalho fez anteontem) de pegar num jeep e ir para Nova-Lamego, sem dizer nada a ninguém. Assim vi-me na contingência de proibir todos os condutores de saírem com as viaturas do quartel, sem a minha autorização expressa. Enfim uma série de coisas que só servem para andar quase sempre chateado na maior parte dos dias.

Mas estou a aprender a dominar-me melhor, embora, de vez em quando, surja um dia não, como hoje foi um deles. Esqueci-me de entregar um envelope, com uma grande quantia, ao 1.º sargento e, quando me lembrei de o ir procurar à minha secretária (onde sabia que o tinha deixado) ele tinha desaparecido. Fiquei um bocado intrigado e ao mesmo tempo assustado com as consequências. Felizmente tudo se compôs, pois tinha sido o próprio 1.º sargento que o vira e o guardara.
Hoje entrei várias vezes na Secretaria para assinar uns papéis. Distraía-me depois com um outro assunto qualquer e tornava a sair sem nunca mais me lembrar do que tinha vindo ali fazer. E só muito mais tarde é que me lembrava do que deveria ter feito.

Pirada, 22 Ago. 1965
Imaginem qual não foi o meu espanto, quando ao entrar na Secretaria deparei com um monte de embrulhos que me eram destinados. A vossa encomenda chegou intacta. O tabaco e os fósforos vou guardá-los como relíquias. Um maço terá de durar dois dias pelo menos!
Os livros do Vilhena (um desenhador humorístico de muito renome, naquela época) foram acolhidos com muitos aplausos, pois não se falava noutra coisa e toda a gente os queria ler.

No outro dia aconteceu um desastre. Uma viatura pesada galgou por cima de um jeep quando regressava de Paúnca. Morreu um soldado e outros quatro ficaram feridos, um dos quais com gravidade. Estava de chuva e por motivos que ainda se desconhecem o jeep travou de repente e o camião passou por cima dele, pois os travões partiram-se e a estrada ainda por cima estava escorregadia. Foi uma grande balbúrdia. Os feridos foram logo evacuados de madrugada para Bissau e parece que se safam desta.
Quanto aos nossos amigos, continuam a passar cá por perto (pelo Senegal) e a mandar cumprimentos. A zona que está a ficar mais feia é a de Canquelifá, a mais de 50 kms daqui.
Estou a deixar crescer o bigode para mais tarde tirar umas fotografias. Mas depois, rapo-o, é claro. Aliás fica-me mal.

Pirada, 29 Ago. 1965
Tudo na mesma. Continuo um bocado azedo mas a coisa passa-me.
Só peço que o capitão chegue depressa, para poder regressar a Paúnca. Não fui ensinado para ocupar lugares destes e já estou farto de, quando quero fazer qualquer coisa, ter de andar a perguntar ao 1.º sargento (que também é uma boa bisca) se o posso fazer ou não.

As chuvas ainda não começaram e há já quem diga que este ano vai ser um ano de seca. Reparei que começaram a aparecer uns insectos a que chamam cáusticos por deixarem no sítio da nossa pele onde pousam, autênticas bolhas parecidas com as que são causadas por queimaduras. Segundo dizem os velhos a chegada destes insectos é, precisamente, o prenúncio do fim das chuvas. Mas pode acontecer que sejam só dois exemplares transviados.
De resto, a vida aqui em Pirada tem-se limitado a uma ida todos os dias ao quartel, assinar umas quantas mensagens que vão chegando e dar despacho a outras.
Depois almoça-se, dorme-se a sesta e se ainda há mais alguma coisa a tratar volta-se ao quartel, senão vai-se até ao balcão da loja do M. Santos dar à língua até a hora do jantar. À noite vai-se outra vez para lá, jogar às cartas com as crianças e também com alguns graúdos que já apanharam o vício.

Pirada, 05 Set. 1965
Agora em Setembro parece que entrámos no rigor da época das chuvas. Elas que até aqui tinham abrandado recomeçaram, não com tanta força, mas com mais persistência. Depressa ficaremos com as estradas totalmente impraticáveis com a lama que se vai formando.
E de cada vez temos menos viaturas. Está tudo a rebentar pelas costuras. Até o motor da luz já avariou e ficámos a chuchar no dedo, quando ontem apareceu por aqui uma equipa com uma magnífica máquina de projectar de 16 mm, dos Serviços de Cinema do Exército, para fazerem uma sessão para a malta e a energia eléctrica, só com o Petromax!

Pirada, 11 Set. 1965
Acabo de vir de casa do M. Santos, onde fui jantar juntamente com o capitão que, felizmente já cá está. Chegou ontem e fui eu próprio buscá-lo a Nova Lamego.
Por enquanto parece ainda um pouco abananado com a mudança da Metrópole para aqui e só me deixa voltar para Paúnca segunda-feira (hoje é sábado). Por um lado, isso até me convém, pois terei mais tempo para arrumar convenientemente todas as minhas coisas quando me mudar de vez para Paúnca. Inclusivamente, vou levar o armário guarda-fatos, feito por aquele carpinteiro daqui de que já vos falei, e que me vai ser muito útil.
Além disso ando a elaborar um auto de corpo delito contra um soldado que, num acto de ódio, bebedeira ou pura estupidez, puxou de uma arma contra o 1.º sargento e a disparou dentro da caserna, felizmente sem atingir ninguém, dos que lá se encontravam, quer deitados a descansar ou a fazer qualquer outra coisa. Imediatamente o dominaram e espancaram violentamente, deixando-o quase sem conserto. Se não fôssemos nós, eu e o 1.º sargento, termos interferido, matavam-no à pancada.
E como tudo isto sucedeu antes do regresso do capitão, ainda tive de ser eu a mandá-lo prender e proceder depois ao respectivo auto, o que certamente lhe trará uns anos de prisão em algum presídio militar. Poder-se-á dizer que vou estragar a vida do rapaz, mas nesta situação não se pode transigir com nada que se assemelhe. Se já receamos as balas do IN, só nos faltava recear também as balas dos próprios camaradas.

Quanto ao capitão continua estranho como sempre, querendo agradar a Deus e ao Diabo. Ficou aflito, quando lhe disse ter deixado de fazer a Ronda nocturna à volta da povoação com uma esquadra (meia Secção). Eu tinha simplesmente resolvido acabar com aquilo, por ter chegado à conclusão que afinal era apenas uma inútil sobrecarga de trabalho para os soldados e que, além disso, em caso de um ataque súbito, esses homens correriam o sério risco de ficarem desligados do quartel.
Mas o capitão, sempre receoso daquilo que só existe na cabeça dele, ontem à noite revogou logo a minha ordem em vez de uma Ronda mandou sair duas. Os soldados já começaram a dizer:

- Pronto, chegou o nosso capitão, começaram as guerras!

Ainda bem que segunda-feira me escapo para Paúnca.
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A filha mais nova do M. Santos fez oito anos e houve grande festa lá em casa. Ficámos todos muito alegres como não podia deixar de ser. Eu ainda fiz uma retirada a tempo mas o médico e alguns furriéis teimaram em ficar mais algum tempo. Acabaram a cantar e a gritar desalmadamente no meio da praceta. Tive de os mandar calar à força e o furriel enfermeiro tropeçou e deu um valente tombo. No dia seguinte andava de braço ao peito. Foi uma risota.

Paúnca, 19 Set. 1965
Estou em Paúnca morrendo de tédio, pois isto está cada vez mais monótono. Dois dos furriéis foram de férias e quase não tenho ninguém com quem conversar. Passo os dias metido no quarto a ler ou a ouvir os meus velhos discos de jazz.
Mas anteontem e ontem as coisas aqueceram um pouco e a vida quebrou a rotina.
Depois de ter feito um patrulhamento a pé até uma tabanca desconhecida, metida no meio do matagal mais denso que já conheci, quando regressava ao quartel, recebi pela rádio, uma ordem do capitão para que eu, no dia seguinte, passar também a comandar o pelotão do Castro que, ele me mandaria para aqui. Teríamos como missão fazer o reconhecimento de umas regiões a Sul de Paúnca. Como o combinado, logo de manhã bem cedo estava à espera deles. Fomos até à tabanca de Mansajã, mas as picadas não possibilitaram o trânsito das nossas viaturas (dois camiões pesados) e começámos a ficar atolados de tal maneira que não pudemos prosseguir mais. Ficámos imobilizados de vez.
Para maior azar recomeçou a chuva e quando digo chuva, quero mesmo dizer chuva. Chuva diluviana que transformou tudo no mais vasto, profundo e viscoso lamaçal. Para continuação da desgraça a porcaria do rádio avariou-se e só na manhã do dia seguinte, depois de ter conseguido enviar, por um portador, um bilhete escrito ao nosso capitão, é que finalmente nos foram buscar, pois os nossos carros ficaram de tal maneira enterrados na lama que só foi possível arrancá-los de lá com um guincho.
Tivemos de passar a noite na tabanca, cujo jarga, decerto amedrontado com a presença de tanta tropa, desfez-se em amabilidades connosco. Cedeu até a cama dele para eu dormir. Pôs a palhota à minha disposição e foi dormir para outra. Todos os habitantes tomaram como ponto de honra, acolher em cada uma das suas casas, um dos nossos, pelo menos. Molhados até aos ossos como estávamos, completamente estafados, não demorámos a aceitar.

Logo de manhã apareceram a oferecer laranjas e a mim chegaram a oferecer leite fervido com açúcar e ovos cozidos que, ainda reparti pelos quatro furriéis que me acompanharam. Como só tínhamos levado ração de combate para o almoço, pois contávamos estar de volta, ao princípio da noite, o facto de ficar sem comer, sem rádio, completamente exaustos com o esforço de desatolar as viaturas, completamente encharcados debaixo daquela chuva diluviana estava a deixar-nos numa situação muito precária, agravada ainda mais pela sensação de estarmos a participar numa movimentação totalmente gratuita. Ninguém conseguia descortinar qual o interesse ou o motivo de tão inusitado patrulhamento.
Quando conseguimos regressar, eu a Paúnca e os restantes, a Pirada, já eram 10H00 de hoje.
Portanto imagine-se a sofreguidão com que devorámos as laranjas e os ovos cozidos que aquele pobre, mas acolhedora gente, nos ofertou no meio de tantas vénias e sorrisos Ficámos tão sensibilizados que, na despedida resolvemos retribuir o melhor que podíamos.

Foi um belo e comovente espectáculo, ali no meio de uma clareira, no meio de uma mísera e ignorada aldeia, perdida algures do interior do mato mais negro da Guiné, ver um pequeno grupo de soldados brancos, desgrenhados, enlameados e sujos, alinhar-se com todo o garbo e aprumo para, em formatura e, perante o espanto de toda a população, proceder à cerimónia de apresentar armas, enquanto eu abraçava o régulo que embaraçado agradecia também, extraordinariamente comovido, a oferta que eu lhe fazia da minha camisola interior, um bem que ele considerou como a coisa mais valiosa que já lhe tinham dado.

Após a ordem de destroçar, com um forte batimento do pé esquerdo, com toda a cagança, foi então um correr desenfreado para a única viatura operacional, após termos finalmente recebido socorros de Pirada. Com jeito, coubemos todos e foi quase com aquele alívio que sentíamos quando regressávamos a Bissau, depois de mais uma daquelas operações de triste memória que, nos fizemos de novo à estrada, de regresso a casa, aos nossos aquartelamentos.

A primeira coisa que fiz quando cheguei a Paúnca, foi despir-me, lavar-me e deitar-me a dormir. Dormi quase todo o dia e agora à noite ainda tenho o corpo dorido, efeito também dos outros 15 km a pé de anteontem.

- Que rico fim-de-semana, disseram os soldados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

sábado, 5 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4898: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (6): Os amores do Soldado Valença

1. Neste episódio de Gavetas da Memória, Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, conta-nos uma bonita história de amor.



Os amores do soldado Valença

Chamava-se Luís António Rodrigues, mas era mais conhecido por Valença, por ser natural daquela vila nortenha, onde ajudava o pai numa bomba de abastecimento de gasolina. Quando atingiu a idade do serviço militar, deram-lhe uma farda especial camuflada, uma espingarda metralhadora e enfiaram-no num navio que mais lembrava um barco de negreiros navegando agora em sentido contrário. Em vez de sair de África era para lá que se dirigia.

Primeiro foram os patrulhamentos, depois as emboscadas, as operações de vários dias, debaixo de um sol inclemente, chafurdando em pântanos tenebrosos, comido por hordas de mosquitos insaciáveis que suportava com uma incrível paciência. A tudo resistia, taciturno e a tudo ia sobrevivendo.
Nos poucos momentos livres, sentado à porta da caserna, distraía-se brincando com uma pequena cadelita de pêlo amarelo que um dia lhe apareceu por ali e logo correu a lamber-lhe as mãos.
Sempre tinha tido jeito para lidar com os animais. Por onde passava encaminhavam-se logo para ele como se atendessem ao chamado do dono. Era uma atracção que ele tinha, diziam os colegas, que até se serviam disso para fazerem chacota.

- Eh, pá, contenta-te com a cadela, pois com as mulheres és capaz de não teres tanta sorte!

O Valença não dizia nada, mas entre dentes lá ia murmurando:

- Cambada de burros! Não têm respeito por nada!

Até que um belo dia, as canseiras pelos arredores de Bissau terminaram e a Companhia foi enviada para o interior da Guiné encarregada de outras missões.
Sem abandonar a pequenina cadela, a Dourada, o nosso Valença lá chegou às novas paragens, feliz como quem vai emigrando para o Paraíso.
Quando se achou por fim livre entre o céu e as sombras profundas dos grandes mangueiros, corria pela pequena pista de aviação, perseguido pela cadela, dando largas à sua ânsia de liberdade.
Brincavam como duas crianças.

Os dias foram passando, veio a monotonia dos largos meses sempre iguais e um certo dia a Dourada desapareceu.
Logo ao alvorecer, o soldado Valença estranhou ela não estar debaixo da cama, onde sempre ficava. Veio cá fora, deu uma olhadela pela parada, pela cozinha, inspeccionou até os abrigos das sentinelas um por um, e nem rasto da Dourada. Assobiou várias vezes por ela, mas nada.
Ninguém a tinha visto e apesar de todos se disponibilizarem para a procurar, indo mesmo com o Unimog até à bolanha, onde as raparigas da aldeia lavavam a roupa, nada, nem sombras da cadela.

Durante vários dias, mas cada vez mais desanimado, o Valença não descansou. Todos os dias vagueava pelos arredores do aquartelamento sempre com a esperança que, de um momento para o outro, se ouvissem os latidos alegres da sua amiga. Mas nada.
E os dias iam passando, sempre cada vez mais iguais, e nada de novidades da Dourada. Alguém, ou alguma coisa, a tinha feito desaparecer de vez, com certeza.

Veio a época das chuvas e os soldados passavam o tempo abrigados debaixo do telheiro da caserna, no pequeno bar da cantina a jogar as cartas ou num pequeno casebre mesmo em frente do arame farpado que rodeava o quartel. Aí, um mestiço, tinha um estabelecimento tipo super mercado do mato, onde havia sempre tudo o que se precisava para uma emergência ou para o mais trivial, um arame, uma corda, uma lata de petróleo ou um Petromax, arroz, pneus de bicicleta, uma aspirina, mas principalmente, e também, a aguardente de cana, sofregamente bebericada pelos bêbados do costume, determinados em esquecer ali aquela pasmaceira, aquela opressão de um sol que desde que nascia até que se deitava, pesava como chumbo derretido.

Atrás do balcão, duas adolescentes, lindas e misteriosas como só as cabo-verdianas sabem ser, a Ermelinda e a Argentina, que com o tio vieram para aquele fim do mundo, quando ficaram sós, após a morte da mãe em Bissau, vítima de tuberculose. Restou-lhes então aquele tio, irmão da mãe, que logo as tinha ido visitar assim que soubera do óbito. No regresso, não hesitou e trouxe-as também com ele, pois até estava a precisar de uma ajuda lá na venda.

As meninas, habituadas já a todo o tipo de trabalho duro nem estranharam, mas conservaram aquele ar de desenvoltura da cidade grande, do falar bonito, sem espantos nem gritos, como gente mais instruída.
Eram, sem dúvida, o principal e o mais interessante atractivo da venda do velho Passarinhas que desde logo soube tirar rendoso proveito dessa novidade, mantendo-as sempre em bom recato, como um valioso tesouro.

O pobre do Valença, inevitavelmente, não tardou a que lá fosse cair. Quando o serviço no quartel terminava, era ali que o podiam encontrar, sentado cá fora, debaixo do alpendre, bebericando uma cerveja, com os olhos postos na estrada, sempre na esperança de ver surgir a Dourada, a companhia que tinha lhe sido roubada, por algum malandro, dizia ele.

Aos poucos e poucos a Ermelinda, a mais velha das duas irmãs, habituou-se à sua presença e quando ele não aparecia, era ela que vinha cá fora, olhar para os barracões do aquartelamento. E ajeitando o cabelo, soltava de vez em quando um profundo suspiro.
Mas nos dias em que ele aparecia, corria logo a servir-lhe uma cerveja bem gelada. O Valença de inicio, não lhe ligava grande importância, mas aos poucos e poucos, foi começando a reparar e a demorar mais o olhar naquela negrinha que lhe sorria sempre. Passados tempos também ele lhe correspondia, agradecido. E de repente começaram a trocar confidências, perguntas sobre a família, a terra natal, o futuro. Como quase um namoro, sem que ambos dessem por isso.

O Tio Passarinhas, de princípio não gostou nada da brincadeira. Dizia que a sobrinha se estava a enredar de mais com aquele branco portuga, que isso só poderia trazer manga de chatice. Mas com o passar do tempo e perante a mansidão do Valença e da sua conversa mole, até ele começou a ficar enredado na situação. Apesar de, lá no fundo, não acreditar muito no futuro daquele romance.

Agora era o Valença que lhe dava sugestões para melhorar o negócio, ajudando em tudo que era preciso, e a coisa até resultava!
E não foi ele também que, num belo dia, começou a dizer que havia de se juntar com a Ermelinda, casar mesmo com ela, abandonar a tropa, não voltar para a terra e ficar por ali a viver com eles?
Não era mesmo uma coisa de maluco? Só podia ser!

Mas o Valença insistia, contando como é que iria pedir autorização ao Capitão para no fim da comissão não regressar a Portugal e ficar a viver na Guiné para sempre. Que não tinha para onde ir (o pai, entretanto, tinha falecido de repente), agora era aqui a sua nova terra. Que aqui é que ele se sentia bem. E não arredava pé, convencendo-se cada vez mais a si, e aos que o ouviam.

O Alferes, do Pelotão do Valença, nem queria acreditar quando lhe foram contar o que ele andava a tramar. Ainda tentou ter uma conversa de homem para homem, à porta da taberna, mas perante o olhar apaixonado dos futuros noivos, nem teve palavras.

Finalmente como sempre acontece, chegou o momento fatal. Enquanto os colegas davam saltos de alegria e cantavam abraçados, bêbados de felicidade pelo bendito dia do regresso ter enfim aparecido, o nosso Valença, no escuro do casebre do Tio Passarinhas, estreitava contra si a chorosa Ermelinda, prometendo-lhe que logo que tivesse tratado de todos os papéis para deixar a tropa, voltaria a correr para os braços da sua amada.

No alvorecer do dia fantástico, uma desconjuntada coluna de camiões carregados como se fossem carroças de mudanças, abandonou a aldeia, deixando para trás tantos sonhos tantos medos, tantas bebedeiras e tantas promessas deitadas ao vento, tudo condenado a ficar coberto pela poeira vermelha daquela terra de que agora já se iam esquecendo. A pouco e pouco foram-se deixando de ouvir os gritos doidos dos soldados que nem para trás quiseram olhar quando desapareceram na curva da bolanha.

E quando a coluna de camiões chegou finalmente a Bissau, foi um lufa-lufa para descarregar as bagagens para à velha caserna que já os tinha acolhido no primeiro dia. Ali ficaram alojados até ao embarque, de novo no mesmo navio negreiro, transformado agora pela mirífica imaginação de todos, em paquete de luxo. Ao fim da tarde desse mesmo dia passearam pela Baixa, com um sorriso estampado no rosto, maior que o mundo, exibindo a fitinha verde e rubra que o Coronel do Batalhão numa arremedo de homenagem para heróicos combatentes (?), lhes tinha espetado no peito. Era a medalha dos feitos cometidos na guerra, o reconhecimento pela dádiva de dois anos da sua juventude, do passado que passou, que nem era bom lembrar. Agora ninguém mais os segurava!

Mas inesperadamente, o nosso soldado Valença debatia-se num dilema. Largar tudo e todos, fugir e voltar para trás, ou deixar-se levar com a carneirada, até ao lúgubre quartel que os aguardava lá na Metrópole, onde iriam depositar tudo o que traziam, os farrapos das fardas, as velhas armas, as botas rotas, as mantas, os colchões, os tachos e as panelas ainda com restos da picante gordura africana?

Todos lhe diziam que era isso mesmo que deveria fazer. Que esquecesse a companhia da pretinha que, por muito apetitosa que fosse, não era modo de vida para ele. Era à terra natal, à velha Metrópole que pertencia e estava tudo dito.
Mas o soldado Valença revolvia-se na cama, incapaz de se esquecer do sorriso de Ermelinda, daquele jeito tímido de lhe afagar o ombro quando trazia a cerveja gelada.
Os longos fins de tarde, contemplando juntos a silenciosa agonia do sol, que caía lá para trás dos grandes mangueiros da velha aldeia.

E tanto batalhou, tanto procurou e tanto massacrou a cabeça do Primeiro-Sargento da Secretaria que este, só para se ver livre dele, tratou de lhe fazer a vontade.
Ali mesmo se procedeu à entrega do material que o estado lhe tinha emprestado, quando o mandara para a guerra, e num abrir e fechar de olhos ficou livre como um passarinho.

Vestido com a pouca roupa civil que ainda possuía, com resto das suas coisas metida numa decrépita mala de cartão e acariciando no bolso uma meia dúzia de notas em dinheiro guineense, correu, ligeiro como um gamo, fugindo pela porta de armas em direcção à cidade, para procurar um transporte qualquer que o levasse de volta ao Paraíso, ao regaço da sua Ermelinda que nunca deveria ter abandonado.

Lá longe, no interior desconhecido de uma África ignorada, num mundo perdido, era aí que morava o destino que desejava e que, se calhar, lhe fora por isso traçado.

Foi o culminar da uma existência, desaparecendo como um rio que, sinuosamente, percorre as terras rasas em busca de um final feliz, numa reunião de amor com o mar oceano das nossas lágrimas.

Nunca mais se soube dele.

Viana, 23 Junho de 2009
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4879: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (5): A CART 676 chega a Pirada

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4892: Cartas (Carlos Geraldes) (5): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1965

1. Mais um poste da série Cartas, 2.ª Fase - Mato, de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


2.ª Fase: O Mato

Pirada, 03 Jan. 1965
As festas de Natal e Ano Novo passaram sem quase darmos por isso, mas no entanto fizemos manga de festa que foi mais um pretexto para dar vazão à raiva de estarmos aqui contra a nossa vontade.
Todas as noites organizávamos batuques e rara foi a noite em que me deitei antes das 3 da madrugada. De manhã, a convite do Castro, íamos até Paúnca almoçar, eu, o doutor e alguns dos meus furriéis. Quase sempre acabávamos por ficar para o jantar. Em Paúnca come-se muito bem!
Só regressávamos depois da meia-noite, cantando ao luar durante todo o caminho. Entrávamos em Pirada aos tiros, fazendo grande algazarra, acordando toda a gente.
Depois íamos beber café para a nossa Messe e comer algum resto de frango de churrasco com batatas fritas que tivesse sobrado do almoço.

O capitão está de férias na Metrópole, o Cardoso vai cedo para a cama, ou anda por aí entretido a tentar seduzir alguma bajuda (com ofertas de pó-de-talco), de maneira que quem manda agora aqui, sou eu, o alferes mais graduado que se lhes segue.
Além do mais, com estas comezainas todas estou a ficar mais gordo. Da última vez que me pesei, a balança marcou 81 kg. Vejam lá que brutalidade!
Mas já comecei a fazer dieta. Isto é, a tentar comer menos. Praticamente deixei de beber whisky e só de vez em quando é que lá vai um, como refresco.

No dia de Ano Novo, tivemos cá a visita de uma delegação de mulheres senegalesas. Uma autêntica apoteose de cor, pois todas exibiam exuberantes vestidos, cheios de tules e rendas de nylon esvoaçando ao vento. Parece que é uma antiga tradição que, mesmo com esta ameaça de terrorismo, não deixam de festejar. São esposas de funcionários e polícias aduaneiros aqui da fronteira e têm uma maneira de vestir muito mais elegante que as mulheres do lado de cá, que parecem umas autênticas parolas diante delas. Foi um dia inteiro de muita festa com muita luz, muita cor, muita batucada e principalmente muita alegria.
No dia seguinte tudo voltou à normalidade.

O capitão parece que se está a dar muito bem lá por Coimbra, donde é natural e onde foi passar as férias. Parece que não tem vontade de voltar pois já vai com mais de quarenta dias de licença!
Mas, ah! É verdade! Também tivemos cinema por cá!
Foi no dia antes da véspera de Natal.
De repente, precedido por uma multidão de miúdos em grande chinfrineira, apareceu na entrada da aldeia, uma grande carripana, um daqueles Ford-T, quase pré-histórico que, ostentava um pomposo dístico, pintado nas portas: “Cine-Guiné”.
Ao volante, um velhote de chapéu à colonial na cabeça acompanhado por um negro.
Num abrir e fechar de olhos juntou-se uma pequena multidão que o saudava entusiasticamente enquanto ele estacionava aquela estranha traquitana mesmo no centro da aldeia. Imperturbável saiu e logo se dirigiu para uma das lojas comerciais onde parecia já ser esperado.
Era o Manel Jaquim, o famoso homem do cinema ambulante, de quem o M. Santos e o Chefe de Posto, já tanto nos tinham falado que quase o considerávamos como uma personagem lendária. Convidado a instalar-se em nossa casa, não se fez rogado, erguendo um leito de campanha, com o respectivo mosquiteiro, mesmo no meio do nosso quintal. Ao jantar, revelou-se um indivíduo muito patusco, conversador e filósofo. Apesar de já ter uma idade avançada parecia irradiar uma impressionante força anímica.
Fiel ao velho estilo colonial, de largos calções de caqui azul-escuro, chapéu de cortiça, olhar felino, revelando uma sabedoria de velha raposa, o Manel Jaquim é um sobrevivente de outras eras e aventuras, ao estilo dos filmes de Tarzan e da macaca Cheeta, da nossa meninice.
Conhecia todos os trilhos da Guiné e tratava quase toda a gente por tu completamente à vontade e com a maior franqueza. Numa época de guerra como esta que, estamos agora a travar, cheia de emboscadas, minas e selvajaria, nada parece deter este velho descendente dos conquistadores de antanho. Não há recanto nenhum da Guiné que ele não conheça e vai a sítios onde a tropa até tem medo de passar ao lado.

Rápida e metodicamente montou a velha máquina de projectar de 16 mm, completamente portátil, relíquia que afirmou ter comprado aos americanos, como salvado da guerra do Pacífico e à qual dedica toda a atenção e carinho. Aproveitando a largueza do nosso quintal, montou ali mesmo a sala de espectáculo, com um enorme lençol branco a fazer de ecrã (que chega para o formato Cinemascópio). A toda a volta do recinto colocou uma série de fios com lâmpadas eléctricas. A energia para tudo aquilo é fornecida por um pequeno, mas potente gerador a gasóleo que também trazia com ele. Na entrada, pendurou meia dúzia de cartazes a anunciar a sessão de cinema para hoje, do Cine-Guiné. À noite o nosso quintal até parecia a Feira Popular.
Empoleirado em cima de uma enorme caixa que, também lhe servia de cofre, mestre Manel Jaquim, com uma impressionante carabina de caçar elefantes, pousada nos joelhos, começou a cobrar os bilhetes aos clientes que acorriam em massa.
Preços: 4$00 para os pretos; 10$00 para os soldados; 25$00 para os comerciantes e oficiais, mesmo para aqueles que, como nós, tinham emprestado o recinto. Cada qual providenciava o assento que lhe fosse mais cómodo ou sentavam-se mesmo no chão. Era engraçado observar a fila de clientes que se ia formando à porta do cinema, todos com os mais variados bancos e cadeiras à cabeça.

O filme, “Hércules e a Rainha”, era mais um daqueles pastelões italianos sobre temas mitológicos mas que, curiosamente faz sempre as delícias destas plateias, a quem o astuto Manel Jaquim procura contentar.
Apesar de a maioria dos espectadores ser analfabeta e também não perceber nada do que os actores diziam, inacreditavelmente todos pareciam entender a trama, não desviando os olhos ecrã, vibrando entusiasticamente com as proezas do grande herói da mitologia grega.
Quando veio o final, aplaudiram maravilhados.

Bajocunda, 08 Fev. 1965
De repente fui deslocado, às pressas, para esta localidade a 10 km de Pirada e que também pertence ao nosso Comando, por haver boatos de que qualquer coisa estaria eminente.
Estamos cá ao todo, perto de 80 homens, pois também veio outro pelotão pertencente a uma Companhia de Cavalaria que futuramente será quem virá em peso para cá, reforçando esta zona tão perto da fronteira com o Senegal.
Assim somos 2 alferes e 7 furriéis a comer numa messe improvisada numa casa mesmo ao lado de um barracão que faz de caserna para os soldados, tudo encravado no meio de uma minúscula povoação de palhotas e só duas ou três casas de pedra e cal, antigos entrepostos comerciais que em toda a Guiné fazem o escoamento da produção agrícola e pecuária, fornecendo ao mesmo tempo, à população local, os mais variados artigos de consumo.

Tivemos um bocado de sorte pois encontrámos um frigorífico grande a petróleo que ainda trabalha bem. Todo o resto que precisamos é que não há meio de aparecer, tais como: cal, cimento, uma bomba de água, madeira, ferramentas de carpinteiro e pelo menos 15 camas para os soldados que ainda dormem no chão. E isto contando só com os meus, porque os do alferes Gabriel, o oficial de Cavalaria que se veio juntar a nós, esses dormem todos no cimento. É a guerra mais desorganizada que já vi.

Ontem, domingo, fui até Pirada, resolver alguns assuntos pendentes e aproveitei para rever os amigos que lá deixei, o M. Santos e a família; a Ti Clara a velha lavadeira negra que trata da minha roupa que, como gosta muito de agua di Lisboa (vinho) anda sempre a cair de bêbeda e não dá conta do serviço, entregando-o a outra rapariga, a Olívia muito mais competente; o Adulai e o Sambaro, os dois moços que foram os meus primeiros guias e que no outro dia até se deslocaram, de bicicleta, de Pirada para Bajocunda, só para me visitarem e me trazerem uma galinha. Desconfio que, ingenuamente, ambicionam pertencer ao meu grupo de guerreiros e fazem isto para me agradar.

Há ainda a Joaninha, uma criança linda, neta da Ti Clara e a Rita, uma mulata instruída, que sabe fazer renda, ganhando bom dinheiro com isso. Tudo gente com quem confraternizo, sentado num pequeno tamborete à porta da casa de Ti Clara, na berma da estrada, à entrada de Pirada, saboreando amendoim acabado de torrar, enquanto o sol acaba o seu giro diário e se esconde atrás das palmeiras que rodeiam a bolanha lá em baixo.
Quando me viram, vieram logo saudar-me todas sorridentes, perguntando pela minha saúde, pelas minhas coisas, pelos meus parentes, por tudo aquilo que acham ser os meus bens mais preciosos, tal como é costume por estas bandas, apertando-me demoradamente as mãos, especialmente a Ti Clara a quem providencio sempre algumas sobras da água di Lisboa da nossa Messe.
À saída não me deixou partir sem trazer a habitual galinha churrascada na brasa, à cafreal, temperada com muito Piri-Piri e limão como só ela sabe fazer. Abracei-a comovido. Apesar de ser uma velha horrenda com um aspecto quase repelente, coxa, meio louca desbocada até, quando está sob os efeitos do álcool mas quando sorri, o rosto todo se ilumina e transfigura-se revelando a alma pura que aquele corpo alberga. Quando morrer irá decerto direitinha para o céu, como recompensa do inferno que passou cá em baixo nesta terra esquecida dos deuses e dos homens.

O M. Santos, como sempre, faz questão em receber-me para jantar, o que eu nem me atrevo a recusar, tão maravilhosos são os jantares em casa dele.
Quando finalmente regressei a Bajocunda já passavam das 23H00, hora propícia para eles andarem por aí a preparar alguma emboscada… mas felizmente, por enquanto ainda não se resolveram.

Na noite anterior tinha também visitado, de jeep, algumas tabancas por aqui perto, para dar uma impressão de que estamos sempre vigilantes a qualquer hora do dia e que podem confiar na tropa para os proteger, caso venham a ser atacados por algum grupo armado que, vindo do Senegal, resolva fazer política de terra queimada para assustar as populações e levá-las a abandonar este território, que é o que esta gente mais teme.
Quem me sugeriu a ideia para esse passeio nocturno, e até me serviu de guia, foi um comerciante de Bajocunda, o Sr. António Costa. Muito alto e muito gordo, este indivíduo de raça negra é também um grande bonacheirão que gosta imenso de beber e de receber visitas mas que no entanto não chega aos calcanhares do M. Santos, lisboeta de gema, recém incluído nestas guerras por ter tido dificuldades financeiras na Metrópole, segundo se consta.

Bajocunda, 15 Fev. 1965
Estou aqui a vigiar uma área de mais de 300 km2, com dois Pelotões para comandar, o meu e um outro de Cavalaria, situação inédita mas que não me tem acarretado problemas de maior pois eu e o outro alferes rapidamente fizemos amizade.
Cá na terra, para já, sou o chefe máximo, depois do régulo que me pareceu ter muita autoridade entre a população, um déspota quase.
E por isso tenho muito que fazer e não parece. Estão sempre a aparecer à porta do aquartelamento (duas antigas casas comerciais, cercadas de arame farpado, encravadas no minúsculo centro da povoação) indígenas que me querem cumprimentar… e pedir algum favor. Há sempre problemas com o rancho, com as camionetas, com a falta de gasolina, com as patrulhas, com as informações, com os rádios, eu sei lá, uma infinidade de coisas que me está quase a deixar louco.
Depois ainda dizem que vim para aqui para me divertir. Pois, mas o pior é que para além de tudo, os terroristas não são para brincadeiras. Ainda no outro dia mataram dois alferes, um furriel e três soldados, numa emboscada em que usaram metralhadoras e bazookas. Andam organizados em secções de 120 homens, com 2 morteiros, 4 bazookas, 4 minas anti-carro, doze espingardas automáticas, pistolas-metralhadoras e vários revólveres e espingardas de repetição. Por enquanto aqui ainda vou tendo a sorte de a população estar do meu lado e bem armada, senão eles já teriam entrado por esta zona.

Bajocunda, 22 Fev. 1965
Vamos lá ver se consigo escrever algumas linhas como deve ser. Desde a última carta, os acontecimentos têm vindo a multiplicar-se de uma maneira assombrosa. As coisas não estão muito más, mas estão o suficiente para me encher de problemas e não me deixar dormir descansado.
Tudo começou com um ataque a uma aldeia que fica longe daqui. Queimaram as casas, mas não fizeram mortos nem feridos. No entanto toda a população da área já quer fugir, com medo que lhe aconteça o mesmo.
Assim temos de deslocar, todas as noites, duas ou três Secções para proteger as aldeias mais importantes. O IN não voltou, mas andamos todos estourados. Eu, dia sim, dia não tenho de dormir no campo com a tropa. Como se pode calcular, a minha actividade mais que triplicou, preocupado com mil e um problemas.
O M. Santos, por várias vezes já me mandou recado para ir lá comer uns camarões ou umas sardinhas assadas mas, obviamente, nem tenho podido.

Bajocunda, 01 Mar. 1965
Então que tal o Carnaval? Aqui fizemos uma batucada e improvisámos uma orquestra que esteve a chatear a paciência de todos até altas horas da noite!
Numa tabanca abandonada, na parte Sul deste território, tinha encontrado uns tambores de diferentes tamanhos e eu e alguns furriéis resolvemos improvisar uma pequena orquestra de percussão. Passámos o dia na melhor das disposições, apenas ensombrada pelos constantes intervenções do nosso capitão que parece meio histérico com a situação que está a acontecer agora nesta área.

Com a vinda da Companhia de Cavalaria para aqui, naturalmente regressarei a Pirada. Embora seja melhor para mim, acho que estas trocas e baldrocas acabam sempre por dar mau resultado. Vão ser as piores condições de alojamento, o reacender de velhos problemas, etc., etc.

Ontem à noite, antes de jantar, estivemos em Pirada, eu o Gabriel e o Inácio (outro alferes da mesmo Companhia de Cavalaria, que gradualmente se está a juntar a nós em Bajocunda). O M. Santos recebeu-nos com a habitual cortesia mas não conseguimos ficar lá muito tempo, pois o capitão começou a resmungar pelo facto de terem vindo todos os oficiais de Bajocunda, de maneira que, a contragosto, tivemos de vir embora.
Aliás, desde que apanhou aquele susto na estrada Bajocunda-Canquelifá, o capitão nunca mais foi o mesmo.
Mas a culpa foi só dele e eu passo já a contar como foi.

Nesse dia, como de costume, saí do aquartelamento para levar duas Secções até uma aldeia distante, a tabanca de Orébodé situada mesmo na beira da estrada conhecida pela estrada da mancarra (pois é a única por onde circulam os grandes camiões civis que vão até à zona Nordeste da Guiné para procederem à recolha da tal mancarra, o amendoim, o maior produto agrícola daqui).
No caminho fiz um desvio pela tabanca de Amedalai, a tabanca do régulo, onde fui investigar a veracidade de alguns boatos que corriam sobre um grupo IN, que estaria por perto, do outro lado da fronteira com o Senegal. Juntando alguns elementos da guarda pessoal do régulo para me servirem de guia, fui então até a tabanca de Cuntim, outra tabanca na berma da estrada da mancarra mas bastante mais à frente, onde teriam sido detectados sinais da presença do IN, tabanca essa que ficava a meio do caminho para Orébodé onde teria de deixar as já citadas duas secções.
Como de facto só vi vestígios que me levaram a supor tratar-se de um grupo pouco numeroso, que por qualquer motivo se teria desviado do seu percurso normal e como todos os rastros indicavam claramente que teriam regressado ao Senegal resolvi prosseguir viagem para então instalar os meus homens no local que estava estabelecido, em Orébodé, onde ficariam a pernoitar.
Sem ter dado por mais nada, regressei pela mesma estrada, fazendo novamente o desvio para a tabanca do régulo onde fui deixar os elementos da escolta pessoal dele que, ainda estavam comigo.

Quando cheguei ao aquartelamento soube que o capitão, vindo de Pirada esbaforido, tinha estado lá à minha procura, pois soubera por uns camionistas civis que, entretanto por lá teriam passado vindos de Canquelifá que, um grupo fortemente armado tinha sido visto na estrada da mancarra, tendo até feito parar um deles, embora o mandassem seguir depois. Alarmado com essas notícias ameaçadoras o capitão tentou imediatamente entrar em contacto comigo via rádio, mas eu entretanto já tinha saído com as duas secções. Assim tinha resolvido meter-se num Unimog com mais dois soldados e um furriel e vir ao meu encontro.
Ao chegar a Bajocunda, vendo que eu não estava, temerariamente resolveu, mesmo assim, ir ao meu encontro para me prevenir da situação. Por azar e devido ao tal desvio que eu tinha feito, para a tabanca do régulo, desencontrámo-nos totalmente.

Quando me inteirei do que tinha acontecido, achei que, para não haver mais desencontros, o melhor seria esperar que o capitão resolvesse voltar para trás.
Mas o tempo foi passando e nada de notícias do capitão. Quando anoiteceu e veio a hora do jantar começámos a ficar inquietos e mais inquietos ficámos, quando nos pareceu ouvir o som de uma enorme fuzilaria que parecia vir de Leste, do lado da estrada da mancarra.

Ainda tentámos uma aproximação, avançando para lá com mais uma secção, procurando certificarmo-nos de onde vinha o som do tiroteio mas, como a noite estava demasiado cerrada e como de repente tudo se tivesse silenciado, resolvemos aguardar pela chegada do dia. Quando regresso ao quartel, qual não é o meu espanto, venho encontrar o capitão e os outros homens do seu grupo, num estado lastimoso, de olhar desvairado, falando e gesticulando sem parar, rodeados pelos restantes soldados do nosso quartel.
Tinham sido repentinamente atacados por uma nutrida fuzilaria de toda a espécie, quando chegaram perto da tabanca de Cuntim, (onde eu tinha estado antes, sem que nada me tivesse acontecido). Surpreendidos, apenas tiveram tempo de abandonar a toda a pressa a viatura e as próprias armas, para fugir pelo mato fora, tentando chegar ao quartel. O que conseguiram, por autêntico milagre.
A muito custo lá fomos reconstituindo o filme dos acontecimentos.

De facto um grupo numeroso de guerrilheiros, tinha entrado na zona da tabanca de Cuntim, chegando até junto da estrada, onde teria feito parar os camiões da mancarra, deixando-os, no entanto, prosseguir sem lhes causar qualquer dano. A comprovar isso lá estavam as pegadas que eu e a milícia nativa encontrámos nos arredores daquela tabanca e que, no entanto, pareciam indicar também que esse grupo, posteriormente, teria voltado para o Senegal.
Mas o que deve ter acontecido foi que, quando eu já tinha abandonado o local, o mesmo grupo de guerrilheiros, resolveu voltar atrás, ao mesmo local, à mesma tabanca. E foi então que deram de caras com o grupo do capitão que chegava nesse momento no Unimog.
Surpreendidos por encontrarem ali elementos das nossas tropas, e como eles também não são menos medrosos que nós, julgando estar na presença de um grande contingente, abriram um tão nutrido fogo com todas as armas de que dispunham, espingardas, metralhadoras, bazookas, etc., que o capitão e os homens que seguiam com ele, nem tiveram tempo para mais nada senão, saltar da viatura e fugir, o mais rápido possível, pelo meio do mato. O que lhes valeu foi um pouco de sangue frio e um bom sentido de orientação, pois de outro modo não teriam conseguido regressar ao quartel, sãos e salvos. Mas não ganharam para o susto.
Só quase de madrugada é que consegui apaziguar um pouco o nosso capitão e convencê-lo de que tudo tinha sido causado por um daqueles desencontros acidentais que acontecem sempre quando menos se espera.
Felizmente não havia a registar problemas mais graves. Apenas a lamentar a perda de uma viatura e algumas armas ligeiras. Não se poderiam atribuir culpas, tudo tinha sido um caso fortuito. Mas que de facto, o capitão, não deveria ter tomado aquela decisão temerária de ir à minha procura, isso era uma evidência em que todos nós acabámos por concordar.

Acho que, no entanto, ele nunca mais me olhou da mesma maneira e passou a considerar-me um cruel espinho cravado na honra militar dele, que a todo o custo pretendia manter impoluta. Nunca mais foi o mesmo capitão, jovial, descontraído e até paternal para com os oficiais sob o seu comando. Ficou com o sistema nervoso definitivamente abalado e dia a dia, isso torna-se cada vez mais notório.
Como todo este acidente irá ser apagado, com certeza, dos relatórios oficiais e como não convém ser mais lembrado, o assunto passou a ser tabu. A perda da viatura, reduzida a cinzas pelo fogo IN, vai ser explicada como um incidente de emboscada inesperada e à qual foi impossível resistir sem pôr em causa as vidas das nossas tropas. Mas a imprevidência de um comandante será escamoteada, para que a fragilidade com que se joga esta guerra, não fique mais uma vez à mostra.
(Nem de propósito: na história oficial da CART 676, escrita por um oficial adjunto do capitão, pouco antes do nosso regresso à Metrópole, pode ler-se a seguinte referência a este episódio, nestes termos: “- Em 16 de Fevereiro de 1965 o IN atacou de surpresa a tabanca de Orébodé (Bajocunda) onde se encontrava uma viatura Unimog guardada por 4 soldados. O grande potencial de fogo do IN obrigou os referidos soldados a abandonar a viatura e a irem juntar-se à Secção que se encontrava perto, ficando a viatura completamente destruída e apoderar-se, o IN, de um rádio AN/GRC-9 que estava montado na referida viatura.”- sem mais nada, apenas isto!)

Pirada, 15 Mar. 1965
Estou de novo em Pirada, onde me sinto como em casa. Foi um verdadeiro alívio deixar Bajocunda pois não consegui afeiçoar-me aquilo de maneira nenhuma. Isto aqui, em Pirada, é muito mais airoso, há muito mais população, a Messe é fora do quartel e tenho o meu amigo M. Santos que continua a ser uma excelente pessoa.
Bajocunda ficou entregue a uma Companhia de Cavalaria e nós ficámos apenas com Pirada e Paúnca. É muito menos trabalhoso.
No entanto trouxe de lá algumas lembranças curiosas: um canhangulo, oferta do régulo, um conjunto de tambores saracolés, uma lança e um jogo muito interessante que, pelos vistos todos os fulas sabem jogar na perfeição, chamado Ôri. Só vos digo que tem causado tanta sensação entre os oficiais e sargentos que em menos de 15 dias todos aprenderam a jogar. Posso-me orgulhar de até me terem vindo pedir para os ensinar. É um jogo bastante simples mas que requer muita atenção e alguns cálculos matemáticos. Além disso é uma boa maneira de promover a aproximação com os nativos que gostam imenso de o jogar. Sempre que posso, desafio qualquer um para jogar comigo, quase sempre o régulo de Pirada, Solo Só que, a rir, dá-me cada nó cego em menos de um fósforo que até fico vesgo. Deve haver uma mnemónica própria para os cálculos necessários em cada tipo de jogada, mas que eu ainda não consegui descobrir qual é.
Tinha encontrado o tabuleiro à entrada de uma tabanca e até pensei que se tratava de uma escultura curiosa feita num pedaço de madeira escura, talvez a representação de uma canoa, ou até algum brinquedo infantil, embora estivesse danificado num dos extremos (pela passagem inadvertida do rodado do jeep). De facto parecia mais com uma canoa, com duas fiadas paralelas de seis cavidades cada e mais duas maiores nas pontas.
Quando, mais tarde, um indígena o viu no aquartelamento, junto com as minhas coisas é que fiquei a saber que se tratava do tabuleiro de um jogo muito popular e conhecido em toda a Guiné, o Ôri, palavra que em dialecto fula significa o algarismo um, a unidade. No próximo aerograma explicarei como se joga.
(Cerca de dez anos depois, pude constatar que este jogo é, nem mais nem menos, o jogo mais disseminado por toda a África, com inúmeras versões e nomes diferentes, Awele, Mancala, Solo, Wari etc. De origens muito remotas, estende-se até à Ásia, e é considerado um dos jogos mais importantes de toda a humanidade.)

Está cá mais um capitão que, veio comandar um grupo de sapadores. Estão a colocar uma cerca de arame farpado à volta das tabancas para as defender (?) mas, que na verdade, apenas serve para restringir a livre circulação dos indígenas e melhor os controlar.

Pirada, 21 Mar. 1965
Mais uma vez aqui estou a colocar, à pressa, a escrita em dia, à luz do Petromax, pois desta vez adiantaram o dia do Correio. Tenho de fazer serão para poder chegar a tempo. Mas não faz mal, amanhã só me levantarei lá para as dez da manhã.
Aqui dorme-se muito. Depois do almoço, dorme-se a sesta, quase sempre até às 4 da tarde. Depois quando há serviço para fazer, vamos até ao quartel. Quando não há, toma-se banho, jogamos o Ôri ou vamos a casa do M. Santos beber uns whiskies.
Autêntica vida de malandro! Quero dizer… de guerreiro! Porque de vez em quando também se vai para o mato a qualquer hora do dia ou da noite e fica-se por lá não importa quanto tempo, a dormir em que cama houver, ou mesmo até sem dormir!
E quando o Manel Jaquim por cá aparece, lá tenho de pagar os bilhetes a uma data de gente muito simpática que me enche de mimos, interesseiros, claro!
-“Alfero Gérardis, bonito, boniiito… dimais!!!” – são os elogios que estou sempre a ouvir, por esta acção psico-social, actividade a que agora me dedico no intervalo das guerras.

Ainda ontem eu e o Cardoso (regressado de Paúnca, por o Castro ter acabado as férias) fomos a um baile crioulo.
O enfermeiro civil que é mestiço e o ajudante do Chefe de Posto que também é da mesma cor, andam sempre a organizar bailes e outras comemorações, pois aparece sempre um pretexto qualquer nem que seja para provar a toda a gente que até não gostam nada de vinho…, só de cerveja bem gelada!
Um velho gira-discos a pilhas, meio roufenho, lá conseguia debitar umas mornas e coladeras bem dengosas, na semi obscuridade de um Petromax que há muito ultrapassara a garantia e com um vidro mais preto que a cara deles que não deixava sequer identificar as pessoas e os corpos dançantes, só por apalpação. Quando dei por ela, o Cardoso já se tinha raspado deixando-me ali só no meio daquela escuridão mal cheirosa, onde até podia correr o risco de ser degolado por um qualquer assassino escondido nas trevas. A Ti Clara que aparece sempre nestas ocasiões propícias estava lá, sentada a um canto completamente bêbada. Tão bêbada que quando se quis levantar estatelou-se a todo o comprido armando um reboliço que o baile teve mesmo que acabar por ali e eu aproveitei para me escapar à sorrelfa.
Mas fora tudo isso, até foi um baile bastante decente…
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964