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segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18137: O meu Natal no mato (45): Um Natal antecipado: 23 de dezembro de 1967 em Gadamael Porto (Mário Gaspar), ex-fur mil art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CART  1659 (Gadamael  e Ganturé, 1967/68) > O Natal antecipado de 1967. Eu a fumar, à esquerda o furriel enfermeiro Durães, atrás o furriel mecânico Justo.

Fotos (e legendas): © Mário Vitorino Gaspar (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Mário Gaspar [foto atual à esquerda; ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associação APOIAR; tem tem c. 100 referências no nosso blogue]

Caros Camaradas

Só hoje me lembrei do Natal passado na Guiné, passaram 50 Anos. Um dia que não esqueço.
Bebi 7 garrafas de Vermute Cinzano, ainda hoje não sei como consegui sobreviver. Depois fui fazer uma Patrulha. O PAIGC não apareceu.

Gostaria de saber o que cada um pensava no momento.

Um Bom Natal e um Ano Novo de 2018 com Saúde para toda a Tabanca.
Mário Vitorino Gaspar

PS - Ando de bengala.


Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1967 > CART 1613 (1967/68) > Ao centro, o Francesinho, alcunha do sold at António de Sousa Oliveira, transbordando de energia e de alegria, uns meses antes de morrer, no "corredor da morte", em 28/12/1967, no decurso da Op Relance. Era natural de Celorico de Basto (, tal como o seu infortunado camarada, o António Lopes) e emigrante em França. É a única foto que temos dele.

Foto: © José Neto (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné ]


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613  (1967/68) > O Nuno Tavares da Costa Machado, alf mil art (aqui ainda aspirante miliciano, ainda na metrópole), morto no decurso da Op Relance, em 28/12/1967, no corredor de Guileje. Foi a  agraciado a título póstumo com a Cruz de Guerra de 3.ª classe. 

.Foto: © Aníbal Teixeira (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


[Op Relance: Em 27/12/1967:

Missão – Emboscada no “corredor” de Guileje.
Forca executante: CART 1613 (incompleta);  1 Gr Comp da CART 1659;  1 Gr Comb da CCAÇ 1622; Pel Caç Nat 51;  Pelotão de Milícias 138

Resultados obtidos: Causados ao IN 4 mortos prováveis e feridos vários não controlados; as NT sofreram 3 mortos, 4 feridos graves (3 milícias) e 3 feridos ligeiros (2 milícias). Os mortos foram o alf mil art Nuno da Costa Tavares Machado, o sold at António Lopes e António de Sousa Oliveira, todos da CART 1613]


2. O meu Natal no mato (45): 23 de Dezembro de 1967 em Gadamael Porto, um Natal antecipado

por Mário Gaspar


Passaram 50 Anos!

Fomos informados pelo Comandante da Companhia (CART 1659) que se festejaria o Natal no dia 23 de Dezembro. O intermediário deste “serviço informativo” era o régulo Abibo Injasso. Razão: visto ter recebido a informação que seríamos atacados na noite de Natal. Acostumados a tudo, não deixámos de considerar esta situação inacreditável. Era a guerra e naquela guerra inclusive o Natal fora antecipado.

Desloquei-me ao abrigo onde estavam quase todos os militares da minha Secção para lhes dar a novidade. Verdade! Estávamos 24 horas de Serviço sem licenças de fins-de-semana e dispensas de recolher. Não foi publicado nem numa Ordem de Serviço e muito menos no Diário do Governo. De tronco nu, chinelos e calção mudei de vestimenta e vesti-me à civil.
– Ó pessoal! – disse em voz alta – O Natal este ano é a 24 de dezem­bro.
– O quê? Meu furriel está a brincar, não está? – disse em voz alta um soldado.
– A brincar eu? Já receberam as prendas da família e das senhoras do Movimento Nacional Feminino. Não sabem o que é o movimento femi­nino? – disse rindo, calando-me de imediato.
– Diga nacional... Tão bom que é montar e cobrir. Já nem sei o que isso é. A última vez foi na minha aldeia, com uma puta, quando estivemos de licença. Foi uma foda tão boa. – disse o soldado deitando-se no chão de terra do abrigo, fazendo flexões. – Foi assim!

O soldado não parava de fazer flexões, num sobe e desce e ria-se.
– Tu és virgem, meu cabrão, ainda tens os três... – respondeu um camarada.
– Tenho é as tuas três primas quando formos embora daqui! – res­pondeu levantando-se, batendo com a cabeça na G3 pendurada na cama.
– Foi castigo porra! – riu.
– É verdade que dizem que o Natal é todos os dias. Dizem, mas é uma grande treta. O Natal deveria ser todos os dias, o que é totalmente diferente. 

Os soldados entretanto lá continuaram o diálogo.
– Já me disseram, o Natal aqui é diferente. Lá na minha parvónia e, eu só vi o mar quando assentei praça, o Natal é a 25 de Dezembro, aqui é a 24. Não há mulheres brancas estamos longe dos nossos pais, namoradas, noivas, dos familiares e amigos. O correio vem quando vem, não temos dinheiro, comemos mal.

Estou farto e ainda não chegámos ao fim do ano. Prometeram-nos ano e meio de comissão. Bastava que construíssemos o cais. O ano terá também 365 dias?

Sei que o nosso capitão não tem culpa. Faz tudo isto para nós termos o nosso Natal. Possivelmente os tipos vão atacar a malta. O furriel Pestana e o Costa lá morreram naquela trampa da armadilha.

A tristeza apossou-se daqueles homens que em janeiro haviam desembarcado na caixa de uma GMC, enterrada no lodo em Gadamael, no sul da Guiné. Chegados no Uíge a Bissau, nem colocámos o pé em terra. Destino uma LDM e Batelão BM-1 e mato. Ao largo de Bissau os carregadores indígenas, falando dialetos que não compreendíamos, vestindo roupas rotas e sujas pediam-nos dinheiro, patacas ou patacões. Era a instrução que não havíamos recebido. A ambien­tação ao clima e os costumes daquelas gentes não constava da instrução.
– Pois é... Referi com a dor no corpo e na alma. Tocara-se na ferida: o Pestana e o Costa não chegaram a este Natal. Haja o que houver, não podemos permitir que outros Pestanas e outros Costas, não passem o próximo Natal com a família.
– Logo vamos ter rancho melhorado?

Era a hora do jantar da noite de Natal antecipada. Todos seguiram. Chegou outro soldado. Trazia uma cerveja nas mãos.
– Vocês nunca mais apareciam e tive que beber qualquer coisa antes do jantar.
– Hoje é melhorado. – ouviu-se.
– Bacalhau com batatas!
– É daquele com cal, mas também não há outro. É melhor que comer o peixe da bolanha.
– Vamos a ver se os cabrões não nos estragam o nosso Natal.

Afastei-me do abrigo. Noite bonita e sem nuvens, não se vislum­brando sequer uma. O sol lá se acomodava, austero.

O pôr-do-sol daquelas paragens era um espetáculo. O Furriel Vagomestre, Casimiro, veio ao meu encontro e caminhámos juntos até à messe de Sargentos. O que denominávamos com messe era um acrescento do casarão onde funcionava a secre­taria da Companhia, feita com cobertura de chapa zincada. Estavam os três Sargentos e uns dez Furriéis Milicianos. A ceia daquele Natal prematuro, era bacalhau com batatas.

Havia luz. Do local onde me sentara, já avistava o cais que prometia o regresso antecipado. Isso porque tinha sido prometido pelo Comandante de Sector. Seria verdade? A verdade por vezes é mentira. Mas que o havia prometido, era verdade. Na hora das refeições sucediam os ataques do PAIGC.

O que pensaria naquele momento a família do Pestana e do Costa? O que estariam a dizer, naquele momento, os familiares de mais de cento e sessenta militares, que ali se encontravam desterrados? Como seria o Natal com a mesa incompleta? Deveríamos estar todos juntos, e não era verdade.

Não havia razões absolutamente algumas para a existência de duas messes e o rancho. Não só naquele dia mas sempre, deveríamos comer todos juntos já que a comida é sempre a mesma. Não era a Companhia uma família? As pausas eram todas elas de meditação.

O bacalhau fora servido. Todos se calaram. Coloquei o azeite sobre o bacalhau e as batatas. Pensava, talvez na morte da bezerra. Descuidei-me com o azeite. O bacalhau nadava.
– É Natal, é Natal... – quebrou a monotonia o furriel Nicolau,  de São Miguel, dos Açores.
– Bacalhau? Não quero bacalhau, que raio de merda.
– Não és português, meu sacana... – disseram dois, o  furriel enfermeiro, Durães e o furriel mecânico, Justo, algarvio.
– Olha quem fala... – respondeu o enfermeiro, de garfo e faca, des­toando da grande maioria, retirando habilmente as espinhas para a ponta do prato com a faca.
– És algarvio, e na História de Portugal lá consta, sempre após refe­rir-se ao rei: “Rei de Portugal e dos Algarves”. Se um é açoriano, outro é algarvio... – disse o furriel enfermeiro.
– Fala o rei de Lisboa, o senhor todo-poderoso do nosso império. Vai mas é às urtigas. – respondeu o algarvio.
– Ouvi dizer que comeste um sonho de Natal feito de algodão. Os teus homens já te conhecem tão bem, sabem que és um grande guloso e arranjaram um tão grande sonho de Natal, foi logo esse que agarraste. Era a esticar a esticar o algodão... – disse o 1.º Sargento Barreira enquanto se ria.
– Comi mais, eram tão bons. Mas a malta também lá foi. Não sei muito bem como fizeram os sonhos, e de onde vieram os ovos.
– Se calhar os pretos ficaram a arder.

Não se falou sobre o Natal antecipado. Uma cafeteira de café é colo­cada sobre aquilo a que chamavam mesa.
– Não se bebe nada? – perguntei com ar zangado.
– O meu irmão enviou-me uma caixa de bolos sortidos... – diz o furriel de transmissões, o Campos – Vamos comer uns bolinhos e compra-se uma garrafa qualquer.
– Ó cozinheiro, vai buscar duas garrafas à cantina, de uma trampa qualquer...

Rapidamente duas garrafas de cinzano, chegaram à mesa. O cozinheiro começou a retirar os pratos da comida.
– Um bolinho à saúde do dono dos bolos –  ouviu-se, numa só voz
– Vai uma saúde a todos.

Estendemos os copos e bebemos. Todo o líquido daqueles copos de dois decilitros mergulhou pelas goelas – como se o tivéssemos combinado anteriormente. Só de uma golada.

Instalou-se o silêncio. Mordia-me o cérebro não se ouvir ninguém. Não seria eu a quebrar o silêncio.
– O meu irmão é um tipo porreiro. – referiu o Campos:
– Lembrou-se e enviou-me uma caixa de bolos. Eu sou uma merda de homem, não valho nada. Ele é um bom tipo. Não presto, nem nunca prestei. A minha família é boa, mas eu sou, mau filho e mau irmão, uma autêntica merda...
– Ena, pá, deixa-te disso – confortou-o alguém, notando-lhe as lágrimas a escorrer pela cara.
– Não presto nem nunca prestei. Vocês são uns gajos porreiros, mas eu não valho nada. Natal? Que Natal é este?
– Nós cá todos bem!...
– Cambada de mentirosos, dizer às famílias tremenda mentira.

Ele não estava habituado a beber, e já eram quase duas dúzias de garrafas de vermute de litro. O que se estava a passar era uma paragem no tempo e na guerra para reflexão. Todos parámos. Só queríamos que o PAIGC fizesse a mesma paragem.

Surdos e mudos. Seres humanos. Pensei na minha mãe, no meu pai, nos meus irmãos, nos sobrinhos, tios, primos, namoradas, amigos e madrinhas de guerra e bebi mais um copo. Dois, três copos.

O 1.º sargento que era 2.º sargento (fazendo na Companhia o serviço de 1.º sargento) cantava o fado. Ele era o mais velho. Subia na vida, cantava sobre um banco, feito de um barril de vinho.

Todos o acompanhávamos, excluindo aqueles que mais bêbedos tinham ido para a cama. Foi nesse momento que fui atingido como – se fosse um rebentamento – por uma voz num tom que me rebentaram os tímpanos. Era o enfermeiro:
– Cozinheiro mais umas garrafas. O cantineiro tem mais.
– É chato, é chato, é sambinha chato..., É muito chato... – cantava o amigo açoriano, que não gostava de bacalhau – uma das canções dos Rangers em Lamego, curso que ele fez e que eu tão bem conhecia, pela curta estadia no mesmo. Não fiquei lá.
– Chatos tens mas é na cabeça... – disse-lhe rindo, enquanto bebia mais um copo. Não eram goles, mas um copo cheio de cada vez.
 Cantemos a outra...
– Et maintenant, que vais je faire…
– … É chato, é muito chato, é sambinha chato... – Continuava o açoriano muito sério batendo com a ponta dos dedos sobre as tábuas acom­panhando um ritmo que eu não percebia muito bem qual a canção que se tratava. A letra era a famosa dos “ranger’s”.
– Ó maestro vai outra música.
– A Guarda Republicana, Republicana, republicana!
 – Vamos a esta  – gritou o sargento.

Assim íamos festejando o Natal antecipado de 1967. A festa ainda não parara, e já não havia tempo para meditações. Todos se foram deitar, uns pelos seus próprios pés, outros com ajuda. Todo o mundo embriagado. Fiquei eu e o Furriel Jorge, que vendia banha da cobra. Acabara a bebida.
– Vamos à cantina? – perguntei-lhe.
– O cantineiro já fechou aquela merda. Vamos acordá-lo... – respon­deu-me levantando-se.
– Vamos embora, toca a acordá-lo, hoje é Natal.

Caminhámos juntos, passando pela tabanca. Muitos negros estavam ainda acordados. O abrigo do cantineiro era do lado de cima do aquartela­mento de Gadamael. Aproximámo-nos do abrigo, esse de terra batida e bidão repleto de terra, com palmeiras a cobrir e, junto do cantineiro, em voz baixa, murmu­rou o meu amigo:
– Cantineiro! Estamos com sede... – disse tocando-lhe nos braços – Este tipo está mesmo a dormir:
– Cantineiro vão umas garrafinhas?
– Porra nem se pode dormir. Vá lá, mas só há duas garrafas. Levan­tou‑se, enfiando os chinelos nos pés, vestindo os calções de banho. – res­pondeu o cantineiro.

Não passámos pela tabanca e fomos diretamente à cantina. Não se via ninguém. Só os que se encontravam de serviço. Avistei no abrigo da minha secção, estava o soldado de serviço.

Tínhamos cada um a sua garrafa. Duas de litro. Estavam quentes.
– Cantineiro, então esta merda está quente? Parece mijo...
– Furriéis! Acabaram‑­se, são as últimas. Até amanhã…

Segurando cada um a sua garrafa, descemos na direção da messe de sargentos. Messe improvisada, como tudo o que existia naquelas paragens. Bebia em tragos grandes, como se o mundo acabasse e sentámo‑­nos debaixo da chapa ondulada de zinco.
 – Bebe, e cala-te ... – disse o meu amigo, com os olhos já muito peque­nos.

Só se ouvia o motor da turbina do posto elétrico.

Já tínhamos ingerido o líquido das garrafas. Pela primeira vez, naque­las paragens, estava mais que embriagado. Pelo álcool, era a primeira vez que tal sucedia. Ficara bêbedo desde que chegara ao largo de Bissau, na noite de dezassete de janeiro, se é que não me anestesiara antes, sim porque todos nós estávamos completamente anestesiados.
– Podias muito bem, estar na tua casa com a família, e eu na minha. A verdade é que não nos teríamos conhecido. Gostava de ir ao cinema, ir ao teatro. Ao Parque Mayer, ao Monumental. Ir às putas. Tanto que adorava ir ao Café Lisboa, na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Entrava por uma porta e saía por outra. Nem que fosse para ver as já caducas das putas, sentadas, bebendo o seu café, olhando para a porta na esperança de ganharem uns cobres. O Café Martinho? Império? Paladium? Vává? Para inte­lectuais e pseudointelectuais. De Sartre debaixo do braço, que embora não o lessem. Mas era fino. Também era moda andar de botins calçados, e sujos de lama, para imitar os estudantes da Escola Agrícola de Santarém, o que não deixava de ter a sua graça. Um dia fui ver um filme com Alberto Sordi. O filme era “Uma vida difícil”, do realizador italiano Dino Risi. Há uma cena, que nem sequer é traduzida, que o personagem que o ator encarna, diz mais ou menos o seguinte:
– Vão‑­se embora daqui que isto é uma merda.

É mais ou menos isto que diz para os tipos, os turistas junto à estrada.
– Por que carga de água estamos aqui desterrados?
– Sou soldador e aqui o que faço? Ando com a G3 nas unhas. Parecemos todos nós, uns burros de carga quando vamos para o mato.
– No mato já nós estamos.
– Os mortos que já houve. É matar e morrer. Foram as mulheres e crianças em Ganturé no batuque. Foi o Vítor e o Costa.

O meu amigo quando falava em Vítor referia‑­se ao nosso grande amigo o Pestana.
– Nós estávamos de licença, lembras‑­te?

Levantou‑­se e sentou‑­se de imediato.
– E o “corredor da morte”. Foi o chavalo que se perdeu. Faço ideia o que ele não sofreu.
– Andou onze dias perdido, e nós sem termos hipóteses de o ajudar.
– É andar, é andar, sempre a andar. Vai mais uma voltinha para aquela menina de amarelo. É como na Feira de Outubro em Vila Franca de Xira, onde nós estivemos.
– E quando aquela merda dos estalinhos rebentavam e nós deitados no chão. O que aquela gente ria.

Falávamos da nossa visita à feira quando estivemos de férias, e mal sabíamos que os nossos camaradas haviam morrido, e ao mais pequeno barulho, era como se estivéssemos no mato.

Roquetadas, morteiradas, tiros, canhoada, minas a estoirar. Era o que tínhamos naquela terra.
– Fornilhos que lindos que são...
– As tripas de fora, sempre a andar. Porrada para cima. Sempre a andar.
– É picar, é picar.
– Ataques quando um tipo come, quando dorme, mas sempre a andar. Mais uma voltinha para aquela menina de amarelo. Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda. Não paga cinquenta escudos, nem vinte tão pouco. Por dez escudos leva esta caneta com aparo de ouro flexível, esta esferográfica e este pincel para a barba.

O meu amigo estava mesmo embriagado. Não parava. Já nos habituara àquelas cenas de vendedor de “banha da cobra”.
– Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda. Não paga cinquenta escudos, nem vinte tão pouco. Por quinze escudos leva esta caneta com aparo de ouro flexível, esta esfe­rográfica e este pincel para a barba.
– Um bom pincel, és tu... – respondi‑­lhe
– Não estamos aqui para enganar ninguém. Nós somos os únicos que saímos daqui enganados.
– Era a grande casa do Salazar, mas triste casa que mandava. Mandava, éramos carne para canhão. Somos uns imbecis, uns autênticos imbecis
– Eh, pá! Estou com sede. Já falei demais e tenho a garganta seca.

Em Gadamael, naquele momento, para além de nós, estariam acor­dados o pessoal de serviço, e um ou outro negro. O vendedor da banha da cobra olhava‑­me nitidamente, como se fosse um autómato.
– Vamos pedir de beber ao Capitão. – disse o meu amigo.

Quando falo no “meu amigo”, não é menosprezo para todos os outros, mas é que nos ligava uma forte amizade.
– Não estou aqui para enganar ninguém...

Logo à entrada daquele arruamento de tabancas, um negro da popu­lação civil sentado num pequeno banco, olhou‑­nos.
– Eh, pessoal, corpo?

Vestia uma túnica branca, de orar a Alá. A cabeça estava coberta com um gorro de lã, com desenhos ligeiros.
– Manga de chatice, pessoal... – respondeu o meu amigo.
– Pessoal... – continuou... Empresta aqui ao pessoal duas coisas dessas (apontava, referindo‑­se à túnica) e dois gorros?

O negro dirige‑­se para o interior da habitação, fazendo com a mão direita um sinal indicativo para esperarmos. Dá‑­nos aquilo que havíamos pedido, entregando‑­nos. Nós respondemos com um sorriso.

O Jorge vestiu uma das túnicas muçulmanas, dando‑­me a outra. Vestia‑­a e, não sei se me ficava bem. Colocámos ambos os gorros. O negro ria. Muito sérios, abandonámos o negro muçulmano, não sabendo bem se havíamos interrompido a sua oração. Deixámos para trás a tabanca, seguindo para o “comando”. Fomos em direção à cama do comandante da Companhia, Capitão de Infantaria Mansilha. O meu amigo faz‑­me um sinal com as mãos, para ter calma, não escondendo um sorriso.
– Alá, Alá, vinho para cá..., Alá, Alá, vinho para cá...

Repetimos a operação por duas ou três vezes, enquanto o capitão na cama nos olhava sorrindo. Parecia quase mentira mas sorria.
– Naquele caixote está a bebida.

Estávamos ajoelhados, batendo com a cabeça no chão.
– Alá, Alá, vinho para cá...

Levantámo‑­nos. No caixote existiam só copos vazios e água Perrier, água francesa, tipo água castelo.
– Só cá tem água? – disse‑­lhe com ar chateado.
– Bebam que faz bem... – respondeu o capitão.

Eram talvez quatro horas. No dia seguinte fomos ambos chamados ao comando para entrarmos numa patrulha. Eu quase morri, tal foi a bebedeira. Senti‑­me tão mal, e só na hipótese maior, a do PAIGC apare­cer. Fomos castigados, mas que castigo.

Em 27 e 28 de dezembro, a nossa CART participa na operação Relance, montar emboscada no “corredor da morte”, Famora, tendo sido utilizadas as seguintes forças: 1 Grupo de Combate da CART 1659, 1 Grupo de Combate da CCAÇ 1622 e 2 Grupos de Combate da CART 1613.

Fomos emboscados por duas vezes tendo a nossa tropa reagido bem ao fogo e à manobra do PAIGC, que sofreu 4 mortos prováveis e vários feridos não controlados.
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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de dezembro de 2017 >  Guiné 61/74 - P18133: O meu Natal no mato (44): Naquele Natal de 1972, aprendi que os homens não são iguais, apenas porque uma toalha e um guardanapo os separam... (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16241: Nota de leitura (852): Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Naqueles anos de 1980, a obra do José Brás teria que surpreender pela riquíssima associação criada entre as vindimas que ele conheceu a ponto das suas descrições serem páginas de antologia e as vindimas no capim, como ele relata no final do seu soberbo romance, vindimas de mil cansaços, dos estrondos, das rajadas, nas febres, na água podre, nas centenas de quilómetros de picada, de trilhos, de selva virgem, nas horas e horas a rastejar sobre capim, na lentidão do tempo para o regresso, no frio das tripas nos cercos da estrada de Guileje, de Buba-Tomboli e de Gadembel.
Um acaso feliz permitiu uma nova e naturalmente refrescada leitura de um livro de um confrade nosso que marcou presença, por direito próprio, no que há de melhor na literatura da guerra da Guiné.

Um abraço do
Mário


Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (2)

Beja Santos

Chama-se Filipe Bento, veio do meio rural (concelho de Alenquer), depois o mancebo percorreu vários quartéis, está agora no Sul da Guiné, foi colocado em Cutima, uma localidade Fula. Descreve o pesadelo das colunas, neste caso a primeira que lhe coube na rifa:
“Eram quinze ou dezasseis carros. Velhas GMC’s, Mercedes, Unimogs, duas autometralhadoras Fox, duas Daimlers da grande guerra. Isto tudo fazia mais de um quilómetro de coluna. O pessoal sobre a carga, camuflados novos, caras pálidas, do Inverno de Santa Margarida e do enjoo do porão do Niassa…
E aquele calor sufocante das três da tarde. Os pulmões à rasquinha para separar o oxigénio da humidade.
A caravana pôs-se em marcha lentamente. Nas caras dos meninos podíamos ver o quê?
Sei lá! Como é que eu posso dizer o que é que ia naquelas caras se eu nem sei o que é que ia na minha! O que lhes ia nas caras era de certeza o que lhes ia nas almas. Havia ali muita cagufa!
Até eu, armado agora em cronista, até eu, repito, até eu não tinha muita certeza se a conversa dos outros gajos era a sério ou… Simples gozo, a acagaçar quem acagaçado estava já…”.

Estamos a falar de um livro soberbo, “Vindimas no Capim”, José Brás, 2.ª Edição, Publicações Europa América, 1987.

E Filipe Bento deambula, deriva para outras histórias, um Benedito que queria matar o capitão e feriu gravemente outros; o padeiro em Camba-Jate, que nunca tirava os pés do quartel, e que um dia lhe deu na bolha e acompanhou uma patrulha, achou um engenho, artesanal, já ferrugento. Fechou-se em copas, trouxe-o para o quartel. Segue-se a brutalidade da descrição:
“Depois do banho e da cerveja fresca, lembrou-se daquilo. Foi buscá-lo para o mostrar ao cabo do bar e para explicar ao outro, um pouco assustado e a olhar de lado para a lata velha, que não havia perigo nenhum, aquilo havia passado Invernos à chuva e já tinha pólvora que prestasse.
Tentou desmanchá-la. Começou a batê-la contra o cimento da cantaria. Uma, duas, três, quatro, pum!
O padeiro ficou todo arranhado no peito nu e na barriga. E a mão lá se foi!
No lugar dela havia uma pasta de sangue cheirando a trotil que tresandava. A mão válida agarrou-se ao pulso mutilado e o padeiro iniciou uma corrida doida, aos berros, em direção ao posto de socorros. O cabo do bar observou que tivera sorte em ser canhoto".

É uma escrita pontuada pelo pícaro, pela intensa coloquialidade, pela ênfase no horrível, na sensualidade, na muita insensatez no uso do mando, na vida insípida e num tempo aparentemente parado arame farpado adentro, de igual modo quando passa a limpo as tragédias das emboscadas.

Mas voltemos a Cutima, um hectare cercado de paliçada de cibos e lata de bidão. Um dito aparentemente vulgar introduz um novo ritmo na atmosfera: comia-se bem em Cutima-Fula, mas havia a ganância do vagomestre, as roubalheiras do despenseiro, ali a vida simulava o ritmo velho, com comerciantes a usar caminhos estranhos para vender a mancarra em Bafatá, as máquinas Singer continuavam o velho costume de juntar o tecido ao destino da linha, e depois chegou o Spínola e a guerra mudou de feição, se no passado em Cutima-Fula a guerra só chegava nos estrondos dos ataques a Nhala, a Colibuia e ao Xitole, agora batia à porta de Cutima-Fula, as colunas tornavam-se duríssimas, o sangrento da guerra espalhava-se pelas picadas. E há discursos que fazem avivar a perda da lógica, o contrassenso de todas as guerras, um exemplo:
“A mina antipessoal estava colocada do outro lado do tronco da árvore caída na picada. Era uma velha prática do PAIGC, toda a gente sabia, mas não havia maneira de evitá-las. De resto, não era esta a única forma de semear minas e armadilhas num trilho qualquer. E vocês estão a ver! Como é que se podia perder tempo a procurar minas num percurso de vinte quilómetros de carril feito de capim podre e milhões de folhas secas? A bem dizer, de que cada vez que se assentava um pé era uma angústia, a cada passo a sensação de que era o último”.

Temos agora nova deriva, vamos até Gatoeira, não será muito longe de S. Jerónimo, terra da criança Filipe Bento, mas onde onde ele nasceu foi mesmo nesta Gatoeira, veio ao mundo numa das casas do avô materno, ao lado da adega, só aos oito anos é que mudaram para S. Jerónimo. De novo uma descrição antológica, voltemos às vindimas:
“Fiz toda a limpeza da poda da vinha do meu avô paterno e quando chegaram as curas lá fui eu de novo para o patrão da vindima, agora a carregar o canequinho cheio de sulfato entre a barrica e o pulverizador.
Dias inteiros sem parar.
No princípio, as vinhas ainda têm as golas, as parras pequenas, levam pouco líquido, as boquilhas dos pulverizadores têm os orifícios estreitos, cada carrego do caneco leva um tempo razoável a esgotar-se no pulverizador. Se a barrica da cauda não ficar muito longe do local onde opera o sulfatador, o servente folga um pouco. Depois, começam as cepas a encorpar, as parras a crescer, os buracos de saída das boquilhas a alargar… É um vê-se-te-avias”.

E temos uma confissão, ainda a propósito destas sulfatadas:
“Nos sulfates, não imaginam vocês, o cobre da solução aquosa cola-se à pele, introduz-se nas unhas, penetra nos poros todos… Se passarmos as mãos apenas por água do poço, ou se as deixarmos até sem uma boa lavagem… Ou até ao fim da semana… Ou havia quem fizesse assim até ao fim da temporada toda das curas, três meses, mais ou menos, no final aquilo não são mãos, mas uma porcaria qualquer, nojenta, um polvo negro a agitar os tentáculos.
Eu cá, ao fim do dia, lavava as mãos com mijo! Acabava o trabalho, se tinha vontade de mijar afastava-me um pouco, virava-me a esconder o pirilau numa cepa mais ramalhuda, e vá de escorrer o freguês para as mãos. Aquilo era remédio santo. O cobre desaparecia e as mãos ficavam macias”.

Fala-se de bruxedos, de bebedeiras e navalhadas, de como se soube que havia uma guerra lá para as Áfricas, há queixas na GNR por maus tratos dos patrões, está aqui um retrato finíssimo de um mundo rural que se apagou, décadas atrás. Mas o autor justifica que há amarras entre os escravos brancos e pretos e que essas amarras rebentaram, a um preço sem igual carregámos aos ombros moribundos, conhecemos todas as cores da fome e da sede, do calor e do frio. Mas que o leitor não se iluda, aqui também fomos escravos, embora muitos “Não se sentiram nunca abusados, esmagados, nas madrugadas da praça de homens, valorados em lanços de coroa ou dez tostões, um quarto de pão escuro na mesa da ceia".

Para que conste, há muitas maneiras de falarmos das vindimas no capim. E José Brás foi magistral nas associações que criou entre o mundo rural de Alenquer e aquele devastador Sul da Guiné, onde ele também vindimou.
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Nota do editor

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sexta-feira, 24 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16233: Nota de leitura (851): Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Quis o feliz acaso ou a fortuna que descobrisse em Vila Facaia, concelho de Pedrógão Grande, na manhã de domingo, 12 de Junho, num mercado onde se vendem roupas usadas, cds, mil imensos bibelôs, agrícolas biológicos, pão feito por alternativos alemães, o prodigioso "Vindimas no Capim", que em tempos aqui exaltei e pela mesmo ordem de razão aqui volto a ovacionar.
Na verdade, naquele década de 1980, os combatentes, chegados aos 40 e 50 anos, deram para falar de si com uma estonteante sinceridade. Assim aconteceu, no caso da Guiné, com Álamo de Oliveira, Cristóvão de Aguiar e José Brás.
A brutalidade do romance de José Brás é por vezes arrepiante, uma brutalidade que lembra "Nó Cego", de Carlos Vale Ferraz ou "Olhos de Caçador", de António Brito. O testemunho violentíssimo de "Estranha Noiva de Guerra" de Armor Pires Mota tem outras vertentes, há também muita brutalidade (recorde-se a descrição inultrapassável do ataque a Mansabá) mas perpassa pelo seu livro um doloroso lirismo de um herói a quem se lhe nega aquela estranha noiva de guerra.
José Brás pode orgulhar-nos por este seu livro soberbo, exclamativo, nunca escamoteando o jargão da caserna.
Abençoada a hora em que me decidi em ir aquele mercado de velharias e reencontrei o nosso admirável José Brás.

Um abraço do
Mário


Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (1)

Beja Santos

Um acaso feliz permitiu-me adquirir um exemplar de “Vindimas no Capim”, estava a fazer uns dias de férias em Pedrógão Pequeno e foi um bálsamo reencontrar-me com a prosa, encontrada num mercado de velharias que funciona todos os domingos em Vila Facaia. O que é muito bom lê-se com imenso prazer, o que é muitíssimo bom, numa segunda ou terceira leitura, e distante que estamos da descoberta de uma gema preciosa, permite ver a originalidade, cerca de três décadas depois da sua publicação.

O que há de verdadeiramente distinto neste romance avassalador do nosso confrade José Augusto dos Santos Brás? Em seu nome irá falar Filipe Bento, oriundo de um meio rural, onde pontificava o machismo, a rudeza, a praga. Tempos não muito distantes, mas Filipe é solene a desvelar o teatro de origem:
“Vocês talvez não saibam, mas quem já teve a profissão de cavador, digo a profissão, não o passatempo de horas livres em pequena horta de brincar, o ofício mesmo, de levantar às cinco, cinco e meia da matina, ir à porta do patrão, caminhar os quilómetros necessários para estar no rego ao nascer do Sol, almoçar às dez, recomeçar às onze, quando não às dez e três quartos, jantar da uma às duas e largar com o pôr-do-sol, caminhar outra vez para casa, para, no dia seguinte e nos milhares de dias seguintes, repetir o gesto e isto dito assim, num repente, pode até enganar quem lê e da vida de cavador não teve notícia nunca, ou se teve foi só de raspão”.
Adrede a esta apresentação, vem um texto antológico, não é a primeira vez que o reproduzo e com muita ufania, admiração por quem o escreveu:
“Uma enxada não é só aquele pedaço de ferro retangular, moldado em meia-lua de bicos afiados num dos lados menores e encimada de um pequeno anel chamado ‘olho’, no outro lado. A enxada compra-se completa com mais dois ferros: o pescaz e a cunha.
E o que é isso do pescaz e da cunha?
Um pescaz é um pedaço de ferro alongado, com sete ou oito centímetros de comprimento por um e meio de largura, mais ou menos, com uma cabeça ligeiramente desbordada onde assentará a porrada do martelo quando se for aplicar na enxada, pontiagudo para entrar melhor no olho, entre o cabo e o ferro, atrás. A sua função é graduar o ângulo formado pela pá da enxada e pelo cabo. E esse ângulo deve ser mais aberto ou mais fechado, consoante o trabalho que se for realizar: cava, descava, sachola, abrir rego para feijão, covacho de batata, semear ou enterrar ceseirão, enterrar esterco, semear fava, tremoço ou tremocilha, ou grão preto ou branco, ou milho, ou trigo”.
Tudo começou para Filipe Bento em S. Jerónimo do Ermo, neste preciso mundo rural, não se pode falar da tropa e sobre a guerra sem ter de se falar de outras coisas.

E depois vem a parada, a ordem unida, a disciplina, andar de quartel em quartel antes de embarcar no Niassa, o destino é o Sul da Guiné. Não há artifícios para a linguagem, o nosso furriel vai para Cutima-Fula e passado um mês tudo se revirara na sua vida mas que o leitor não se acanhe para além da sua preparação naquele mundo áspero, onde pontifica a virilidade, aprendeu muito com o professor Leiria, e o seu filho militar, mais a mais major, aprendeu que existia a Legião Portuguesa, que havia maroscas, pequenos e grandes poderes entre oficiais, sargentos e praças, vagomestres ladrões. Este o pano de fundo, a superfície preparatória de uma viagem que começou em Bissau até Buba e que se espraiou por vários locais do Sul da Guiné. É uma linguagem coloquial, um tu cá tu lá com o leitor, ele que se aguente cada vez que é necessário discorrer sobre uma expressão pertinente, caso de “no cu de Judas” que ele tinha lido num livro celebérrimo de Lobo Antunes. E o discurso que se segue é frenético entre consonâncias e dissonâncias das diferentes guerras que cada um viveu, como segue:
“A porra toda é que se para o Lobo Antunes os cus de judas eram os casinos e os dancings da Ilha de Luanda, onde kamanguistas, comerciantes do planalto, roceiros, cauteleiros da Baixa, gente se ocupação definida, se babava nas mamas de velhas putas lisboetas e cariocas, vociferando contra os cabrões que não lhes deixavam “tratar da saúde aos pretos”; se para ele os cus de Judas eram Malange e a baixa do Cassanje, o algodão que os agricultores não podiam vender se não à empresa que lhes fornecia os fatores de produção e a que estão presos por dívidas eternas, aumentadas ano a ano, colheita após colheita, e por leis do governo de Lisboa, pela vigilância de sobas e cipaios, da O.P.V.C.D.A. e da PIDE; se para ele os cus de Judas eram o Leste de Angola, Gago Coutinho, Luso, Chiúme, Marimba, Cambo; se para ele os cus de Judas eram o deserto de areia e a chana, onde soldados Ferreiras e cabos Pereiras deixavam as pernas e as tripas e militarzinhos quase crianças se enfastiavam daquela merda de morte em vida e disparavam em si próprios; se para o Lobo Antunes os cus de Judas são os percursos entre Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo, o servilismo de sobas e de gentes gingas, a explosão da carne da lavadeira Sofia, a cama da hospedeira da TAP no Bairro Prenda, para mim cumpriu-se os cus de Judas naquela confusão de selva e água, de batelões e LDGs, de CUF e libaneses, e comércio de mancarra com agricultores igualmente esfarrapados, igualmente ligados a dívidas e a leis e a vigilâncias de cipaios e de traidores e de milícias e pides; o meu cu de Judas foram Buba e Cutima-Fula, e Nhala e Colibuia e Cumbijã e Cajamba e Mampatá e Saltinho e Madina e Gandembel e Gadamael-Porto e Cacine, tudo terras de morte de raivas contidas no calor das tardes vazias, nas garrafas de uísque e de gin, e de conhaque e do caralho, nos ataques aos quartéis, nas emboscadas, na humidade linfática daquele ar irrespirável entre as dez e as quatro da tarde; na descarga do intestino revoltado; para mim, os cus de Judas eram das idas a Buba ou a Gadamael, trinta quilómetros para cada lado, a caçar minas, a chupar emboscadas, atascados na lama das bolanhas, todo o caminho a inventar pontes, camiões cavalgando troncos de árvores num prodígio de circo para repor o stock do vagomestre e do bar com comes-e-bebes que depois se vomitavam na caganeira, quando o estômago aguentava a corrida, ou logo ali à saída da porta se a golfada saltava sem aviso”.

E prossegue a sua toada a estabelecer diferenças, que também as havia, por exemplo a proveniência da mina, seja anticarro ou antipessoal, até houve um caso em que a mina lhe estava destinada, quis a roda da fortuna que lerpasse o cabo Júlio, e por hoje aqui ficamos com tal pungente descrição:  
"Os olhos do Peniche abriam-se espantados. Ali aos pés tinha o volume do resto daquilo que fora o corpo do Júlio, meio aterrado, com os cotos dos braços e das pernas a fumegarem estorricados, apontados ao alto. A pele da barriga esticara, rebentando, e mostrava um amontoado de carvão. Toda a cabeça encolhera e as feições haviam desaparecido. O crânio estava repuxado e aberto também”.

E agora vamos vê-lo a viver em Cutima-Fula.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos; o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005)- Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14302: Recordando a Operação Revistar (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 11 de Fevereiro de 2015:

Caros Camaradas:

Envio-lhes a “Operação Revistar”, quando da sua preparação, mereceu decerto a atenção devida, até pela ambição do projecto. Destruição de acampamentos; capturar o chefe Nino Vieira e apanhar armamento e documentação do PAIGC. Era obra…

Enquanto a NT, principalmente os nossos Comandantes Militares, planeavam a Acção mortífera, o “nosso deles” Serviço de Informação, funcionou ao contrário. O informador “jogava com um pau de dois bicos”, toda a Guiné sabia, e mais que eu… talvez até o nome da Operação.

Grande fracasso! E como existe medo de se contar a verdade, surge a mentira. Vivi tudo isto.
Estive dias beliscando papéis no Arquivo Histórico-Militar. Encontrava um, faltava-me outro, mas reuni estes elementos. Tenho fotocópias de tudo, poderia ter escrito mais. Gostava de saber por que razão camaradas da CCAÇ 1620 não respondem aos meus mails, e um até foi mal educado, porque nem sequer lhe tinha dito quem era já me tinha respondido que “não queria comprar nada”.

Por que razão na História da Unidade da CCAÇ 1620 não falam desta Operação?

Um abraço
Mário Vitorino Gaspar




OPERAÇÃO REVISTAR

Acabado de gozar Licença na Metrópole, em Bissau só se falava de uma Operação a efectuar no Sector 2, onde a CART 1659 estava agregado em termos operacionais por ser no caso uma Companhia Independente.

Escrevi uma carta à minha mulher que “estava já farto de Bissau, porque aqui só se fala em guerra”. Sou chamado ao Quartel-General, encontrava-me hospedado no Hotel Portugal, e lá me foi dito que tinha de partir com urgência para Gadamael. Respondi que não tinha transporte nos barcos tão depressa, e disseram para ir ao aeroporto que partiria de avioneta para Gadamael Porto. 

Pouco descansei, seguimos com um Grupo para Mejo a 30 de Novembro. A CCAÇ 1591 partiu para a Operação. O ambiente, passado pouco tempo era escaldante, tínhamos conhecimento do que se ia passando. Surgiam muitos evacuados por insolações. Analisei militarmente a situação e concluí que iríamos todos os que fazíamos a segurança a Mejo, chamados a intervir na Operação. 

Comecei por escrever cartas de despedida para os familiares, namoradas e amigos. Entreguei-as em mão a um camarada Furriel Miliciano de Mejo, pedindo-lhe que as guardasse, e no caso de não regressar que as colocasse no Correio. Conhecia bem Mejo, Quartel onde estava destacada a CCAÇ 1591, comandada pelo Capitão de Infantaria Luís Carlos Loureiro Cadete. O então Capitão Cadete já era meu conhecido do CISMI, em Tavira. Tinha sido o meu Comandante do Pelotão da Especialidade de Armas Pesadas, Especialidade que iniciara a Agosto de 1965. Ele na altura era Alferes, a famosíssimo Alferes Cadete, tão conhecido por todos os Sargentos Milicianos.

Mas a “Operação Revistar”, e segundo o que se pode ler na História da Unidade da CART 1613, destacada em Guileje, não se desenrolou de 1 a 3 e de 6 a 7 de Dezembro de 1967, já teriam sido efectuadas outras Operações Secundárias da “Operação “Revistar”, por parte da CART 1612, com Montagem de uma base de fogos em Nhacobá (com Pelotão de Morteiros 1086, Pelotão de Milícias 137 e CCAÇ Nativos). Causaram ao IN 5 feridos confirmados. As NT sofreram 1 morto, 3 feridos graves e 6 ligeiros. 

Também existem sinais da intervenção da CCAÇ 1622, Patrulhamento e Emboscada no “Corredor de Guileje” onde as NT foram flageladas à distância. Isto no dia 27 de Novembro de 1967.

A CCAÇ 1622 viria a ser a maior vítima da “Operação Revistar”, que tinha por objectivo a Acção ofensiva em diversos acampamentos do PAIGC e o aprisionamento do chefe Nino Vieira. Participaram na “Operação Revistar”, a CCAÇ 1622; CCAÇ 1591; CCAÇ 1624 e CART 1613.

No dia 3 (de dezembro de 1967), teve a Companhia, 3 feridos (um Oficial, um Sargento e um Soldado; 18 evacuados por esgotamento físico e dois por doença).

No dia 6, repete-se a Operação, e para além das Companhias que tinham estado na 1.ª Acção no terreno, foram reforçados com a minha CART 1659 e CCAÇ 1620.

Na História da Unidade da CCAÇ 1620, nem uma linha sobre a “Operação Revistar”, entretanto esteve lá.

Na História da Unidade da CART 1659 consta:

“De 1 a 3 e de 6 e 7 de Dezembro de 1967, feita a Operação Revistar, uma Acção ofensiva na Península de Salancaur, tendo as forças da CART 1659 colaborado numa primeira fase, montando segurança ao aquartelamento de Mejo. Numa segunda fase, participaram da operação juntamente com as forças da CART 1613 e CCAÇ 1591, 1622 e 1624. Os objectivos previstos não foram atingidos devido ao esgotamento físico das nossas tropas”.

Na História da Unidade da CCAÇ 1591, repetem-se as dificuldades que a NT teve ao percorrer matas fechadas, calor intenso o que provocou o agravamento do estado físico das NT. Termina dizendo que a Companhia acusou, notoriamente, as 5 noites ao relento, dormindo no chão e a falta de alimentação capaz, antes de iniciar a Operação.

Na História da Unidade da CCAÇ 1624, repete-se o mesmo, só com mais 15 evacuações (1 Oficial e 1 Sargento), não existindo condições para se concluir a Operação.

No dia 7 de Dezembro encontrei-me com o Comandante da “Operação Revistar”, o Capitão Luís Carlos Loureiro Cadete. Estranho,  por nunca nos termos encontrado, quando ia tantas vezes a Mejo e a sua CCAÇ 1591 as visitas que fazia a Gadamael Porto. Olhou-me, e reconheceu-me. Mesmo junto da bolanha, com a zona a atingir escondida, faziam-se evacuações. O helicóptero ali perto, e foi ele que iniciou a conversa. Perguntou-me o que pensava da Operação.

- Quem está a sobrevoar sobre nós a todo o momento, e que ao mesmo tempo nos localiza? -  perguntei eu.

Respondeu que era o Comandante da Operação. Falei-lhe que toda a Guiné, de certeza sabia daquela Operação, e qual a razão do Comandante da Operação não pisar terra e ver o estado de espírito das NT.. Com certeza que o PAIGC se juntara todo na Península de Salancaur. Respondeu-me que, segundo informações recolhidas,  o PAIGC tinha 20 Canhões S/R, apontados para a bolanha, bolanha essa por onde entraríamos.

Segundo o que se dizia, Paraquedistas, Fuzileiros e Comandos actuariam do lado oposto da bolanha, depois de nós iniciarmos o avanço. Logo após os primeiros passos cairiam sobre nós e poucas possibilidades de sobreviver. O Capitão chamou o Comandante a terra, saiu de um helicóptero com um camuflado acabado de sair do Casão, muito gordo.

Passado pouco tempo dão-nos ordens para irmos para Mejo. Caminhada rápida. Lembro-me que nem um gole de água bebera do cantil. Perguntei a todos se tinham sede. Ninguém quis. A dentadinha na palha verde do capim era eficaz, molhava os lábios. Rindo, depois de ouvir de todos que não queriam água, despejei o cantil sobre a cabeça. Chegado a Mejo, pedi as cartas ao Furriel Miliciano, meu camarada e rasguei- as. Bebi a minha dose de cerveja. Seguimos de imediato para Gadamael.

Não se entende a razão de logo no dia seguinte o Capitão de Infantaria Luís Carlos Loureiro Cadete foi em coluna auto para Cacine, e no dia 10 embarcou com destino a Buba, via Bolama. Buba (curiosamente era a Sede do Sector 2 em termos operacionais). Foi afastado devido ao fracasso da Operação Revistar? Não sou capaz de encontrar uma outra resposta. Não conheço nenhuma rendição nestes termos.

Sobre a actividade da Força Aérea nada é focado, mas que a aviação esteve lá não me podem negar. Dias antes já actuava, e em força, bombardeando constantemente a Península de Salancaur.

Em relação aos motivos que levaram que a Operação não fosse concluída, todos falam em desgastes nas NT.

Estavam Paraquedistas, Fuzileiros e Comandos do lado contrário da Bolanha? E a aviação?

Uma Grande Operação falhada. Quem foram os culpados?

Estes também foram para mim dias horríveis, 7 dias consecutivos que não esqueço.

Nota: - Pena que o Blogue não tenha camaradas destas Companhias. Ou tem? Colaborem para tentarmos encontrar uma resposta. Assim se pode colocar a verdade na história da Guerra Colonial.

Mário Vitorino Gaspar

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14174: Humor de caserna (39): A minha primeira viagem no Batelão Anita (José Brás)

1. Em mensagem datada de 20 de Janeiro de 2015, o nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68) enviou-nos esta humorada história passada a bordo do Batelão Anita, aquando da sua ida para Meja após o regresso de férias da metrópole.

Uma pequena nota para saudar o nosso camarada José Brás que nos presenteia sempre com textos de elevada qualidade.


A MINHA PRIMEIRA VIAGEM NO ANITA

Bem!
E se teve uma primeira, terá de ter tido, pelo menos, uma segunda, dirão amigos que lerem isto.
E eu direi que talvez... que talvez tenha lógica o pensamento que os levará a reagir assim, ainda que também possam ser levados a erro de conclusão precipitada.

Imaginem que, fazendo uso do poder que tem sempre quem conta um conto, avance eu na conversa e esclareça que… “na minha primeira e última viagem no Anita”… e tal, uma espécie de xico-espertice despropositada, é certo, mas possível, e lá se vai a lógica da vossa conclusão borda-fora.
Mas não. Não será assim e estarão vocês certos, porque foram duas as viagens que fiz no batelão Anita, uma de Bissau a Gadamael-Porto, em Agosto de 67, e outra de Catió a Bissau, aí por fim de Abril ou início de Maio de 68.

Essa fotografia, aliás, foi tirada na primeira das viagens, no Rio Cacine, muito perto da localidade que dá o nome ao rio e antes de entrar no Rio Sapo um dos braços em que se multiplica e nos levava a Gadamael.

O Batelão Anita subindo o Rio Cacine
Foto: © José Brás

E tem uma história, esta foto, como de histórias estão cheias as duas viagens de que vos falo, picaresca esta, fonte de gargalhada, então, do pessoal que se vê esparramado nas tábuas do barco como se andasse ali por andar e sem pensar no Gadamael, nas emboscadas e nos fornilhos da estrada até Guiledje e Medjo, nas flagelações aos quartéis de cada um, nas bernardas no Corredor da Morte, no prato escasso à hora do almoço e do jantar… e mais picaresca ainda, uma outra história vivida em Catió, como se constatará se eu vier a contá-la aqui e vocês a lê-la… mais duras as outras histórias, sérias e bem sofridas mas sem fotos que as comprovem para além das que me restam na película da memória e juro serem tão verdadeiras e objectivas como eu próprio que aqui estou, ainda, não afiançando, contudo, que coincidissem tim-tim por tim-tim, se as ouvissem contadas por outros que também as viveram.

Mas peguemos nesta porque tem foto e que por tê-la e me ter chegado às mãos nas voltas que de vez em quando dou à caixa onde a guardo com outras, me reclamou o contar-vos.

Seguia eu de Bissau para Medjo na última etapa do meu mês de férias no puto, embarcado ao cair de uma noite no batelão Anita com companheiros de desditas, militares brancos de Gadamael, de Guiledje e de Medjo, talvez até de Cabedu, soldados locais de alguns desses lugares desse tempo como se vê na foto, não me lembro se algum civil também de regresso do Bissau.

Depois da partida, furando a noite já funda, desaba sobre o barquinho uma dessas bátegas habituais por ali em tal tempo. O barco tem apenas aquela espécie de barraca como protecção do piloto e o resto é campo aberto às grossas e intensas cordas da água que cai. O poço do porão vem carregado de farinha para os quartéis, tapada por um estrado de ripas e um encerado numa cobertura em duas águas.
No meio daquele quadro e já bem encharcados, chegou-nos à imaginação, a mim e ao Serra, de nos esgueirarmos para debaixo da cobertura e passar ali o tempo da bátega. Choveu noite dentro e quando saímos para a luz da manhã, toda a gente ria da figura que fazíamos. A farda, a cara e as mãos eram a imagem de um padeiro desajeitado depois de uma noite de amassar e tender. Sobre os sacos de farinha, com roupa molhada e secando no corpo, ganháramos farda nova na imaculada brancura marinheira, na pasta branca e já seca do calor do interior da protecção.

Tirámos a roupa, lavámo-la debruçados na amurada, estendemo-la a secar, mergulhámos para lavar, pele, cabelo, ouvidos, olhos… cueca e meias, e fizemos a última parte do trajecto para Gadamael no estado que se vê na foto, como lagartos esparramados ao Sol, beneficiando da benesse de um PAIGC ausente naquela vez nas curvas da água.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11875: Humor de caserna (38): Estou a fazer voar o meu pensamento (Tony Borié) (11): As ovelhas e a cabra do senhor Aniceto

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13826: Consultório militar, do José Martins (7): Sobre a morte do alf mil Nuno da Costa Tavares Machado, em Guileje, em 28/12/1967: Parte I - Dúvidas que, escritas na areia, desaparecem, mas acompanham sempre os entes queridos (Aníbal Teixeira, cunhado, Avanca, Estarreja)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Núcleo Museológico Memória de Guiledje >  A placa com o nome do alf Nuno da Costa Tavares Machado que estava na parada do aquartelamento (*)... Ou melhor: afixada na parede da messe de sargentos (**), e que foi descoberta por ocasião dos trabalhos de escavação de arqueologia militar que deram origem ao Núcleo Museológico Memória de Guiledje.  Não temos nenhuma foto, individual ou em grupo,  do nosso malogrado camarada.

Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2013) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]



Guiné  > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > Caserna das praças a que foi atribuído o nome dos sold António de Sousa Oliveira (o "Francesinho") e o António Lopes (o "Sargento"), mortos em 28/12/1967 na sequência da Op Relance, juntamente com o alf mil Tavares Machado, todos eles pertencentes ao grupo "Os Lordes" [... designação dum Grupo de Combate formado por voluntários da companhia que recebera instrução especial em Bissau com o fim de constituir o primeiro escalão de progressão e assalto, dado que a CART 1613 foi, inicialmente, companhia de intervenção à ordem do Comando Chefe e actuou em vários pontos do território, segundo explicação dada pelo nosso saudoso cap José Neto (1927-2007)].





Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1967 > CART 1613 (1967/68) > Ao centro, o Francesinho, alcunha do sold at António de Sousa Oliveira, transbordando de energia e de alegria, uns meses antes de morrer, no "corredor da morte", em 28/12/1967. Era natural de Celorico de Basto (, tal como o seu infortunado camarada, o António Lopes) e emigrante em França. É a única foto que temos dele.





Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> Alguns dos quadros da companhia, vestidos com trajes fulas... Dois militares parodiam a PM- Polícia Militar... O Cap Corvalho pode ser o terceiro a contar da esquerda, pelo menos é alguém que ostenta as divisas de capitão. "Aqui de certeza é o Corvacho, um bom amigo", garante-me o Nuno Rubim ...

Não, não se trata de nenhuma "festa de Carnaval", mas da tão desejada "receção dos piras"... Neste caso, a foto deve datar de maio de 1968, quando a CART 1613 (cuja comissão em Guileje vai de junho de 1967 a maio de 1968) é rendida pela CCAÇ 2316 (mai 1968/jun 1969)...Nessa altura, o alf mil Machado Tavares já tinha morrido, pelo que nunca poderia fazer parte deste "grupo de praxistas", ou no mínimo, encarregue de "dar as boas vindas" à periquitagem...
Fotos: © José Neto  (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]


1. Mensagem de 20 do corrente, do nosso leitor Aníbal Teixeira, 

Assunto: Guiné- Alferes Tavares Machado
Data: 2014-10-20 03:01


Caro Sr. Luis Graça,  bom dia.

Sou cunhado do Alferes Nuno Tavares Machado, falecido em combate na Guiné em 28/12/1967 (***).

Ao ler o vosso site e ao comunicar à minha esposa, única irmã do Nuno, os sentidos de novo despertaram para a situação vivida há 47 anos...

Muitas interrogações e curiosidades reacenderam...

(i)  Como morreu o Nuno ?? Sofreu ?? 

(ii)  Foi condecorado a titulo póstumo porquê ?? 

(iii)  Porque fizeram a placa com o nome dele e a colocaram na parada da messe de sargentos ?? 

(iv)  Se diversos tombaram, porquê o Nuno ?? 

(v)  Porque aparece agora ?? 

(vi)  Há alguém vivo que me possa descrever ?? 

(vii)  Um dia, como alferes, no Quartel General do Porto, interroguei o Comandante da Região Corvacho. Lamentou, mas não me comentou o sucedido. Porquê ?? 

Sempre fiquei com duvidas...

São dúvidas que,  escritas em areia,  desaparecem, mas acompanham sempre os familiares..!....

Se algo possível pretenderem sobre o Nuno, para enriquecerem o excelente e digno trabalho que estão a fazer, estamos à vossa disposição.

Da família directa do Nuno resta a irmã, minha mulher,  e a mãe, com 97 anos. A mãe vive no Porto e nós em Avanca (Estarreja).

Ao vosso dispor, com um forte abraço

Aníbal Teixeira

Tlm (...) | Email (...)

2. Resposta do nosso colaborador, camarada e amigo José Martins [ex-fur mil trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70, TOC reformado, residente em Odivelas] (****):

Caro Aníbal Teixeira

Sobre o e-mail que escreveu ao Luís Graça, na qualidade de administrador do blogue “Luís Graça e Camaradas da Guiné”, cabe-me a mim, como colaborador permanente do blogue, tentar dar resposta às questões que colocou.

Para poder dar uma resposta sobre os factos, baseado em documentos oficiais, foram consultadas as seguintes fontes:

a) História da Unidade do Batalhão de Artilharia nº 1896 que tinha como subunidades orgânicas, além da CCS, as Companhias de Artilharia nºs 1612, 1613 e 1614, à guarda do Arquivo Histórico Militar, donde foi extraído o resumo que juntamos, e que consta no 7º Volume – Unidades, da CECA.

b) 8º Volume, Livro 1, Mortos em Campanha, na Guiné, de que juntamos página onde constam os nomes dos três militares que tombaram em 28 de Dezembro de 1967.

§ Na História da Unidade e à guarda do Arquivo Histórico Militar, que fomos consultar, consta na página número 127, a seguinte nota, relativa ao período de 1 a 31 de Dezembro de 1967:

«Em 27 – Executado a Operação “Relance”

Missão – Emboscada no “corredor” de Guileje.

Força executante:

- Companhia de Artilharia  [CART] 1613 (incompleta)

- 1 Grupo Combate da Companhia de Artilharia [CART] 1659

- 1 Grupo Combate da Companhia [de Caçadores] [CCAÇ] 1622

- Pelotão de Caçadores Nativos  [Pel Caç Nat] 51

- Pelotão de Milícias 138

Resultados obtidos:

- Causados ao IN 4 mortos prováveis e feridos vários não controlados

- As NT sofreram 3 mortos, 4 feridos graves (3 milícias) e 3 feridos ligeiros (2 milícias).»

c) 5º Volume, Tomo VI, página 363 de Condecorações atribuídas, onde consta a Portaria de atribuição da Condecoração, assim como o Louvor que deu origem à mesma.

Tentemos, então, dar respostas às questões colocadas, mas que se devem considerar como “opinião pessoal”. Dúvidas não esclarecidas, que se avolumam a cada dia, marcam, às vezes, mais do que a “chegada da notícia do acontecido”.

Como morreu o Nuno? Sofreu?

Pela leitura do Louvor, ainda que feito em termos muito normalizados, o Nuno foi um dos 1711 militares que Tombaram em Combate na Guiné. Quanto a sofrimento, sem querermos ser cruéis, pelo menos o Nuno deve ter sofrido, caso a morte não tenha sido imediata. Pelo menos deve ter pensado na mãe e na família, que era um dos pensamentos sempre presentes. 

Foi condecorado a titulo póstumo porquê?

A resposta está no teor dos louvores que lhe foram conferidos. Apesar de ser o “terceiro oficial” da subunidade, era bastante voluntarioso e admirado pelos “seus homens”, tendo criado e comandado um “grupo de elite” [, os Lordes,} que o seguia sempre. 

Porque fizeram a placa com o nome dele e a colocaram na parada da messe de sargentos?

Para mim, não é mais que camaradagem. Foi, provavelmente, uma forma de “fazer o luto” por um camarada de armas que, apesar de estar “vocacionado para mandar”, não hesitava em dar o exemplo.

Se diversos tombaram, porquê o Nuno?

Se quisesse dar uma resposta “fria”, diria que estava no local errado à hora errada. Se quisesse dar uma resposta “piedosa”, diria que estava na hora de partir para “outras paragens”. Mas, prefiro, dar uma resposta objectiva, baseada no texto do segundo louvor: Morreu porque foi socorrer um camarada ferido, e por isso ficou mais exposto ao perigo. 

Porque aparece agora?

Não sei o que pretende sobre o “agora”. Guilege [ou Guileje] é um marco muito negativo na história das nossas tropas na Guiné. Ficava situado no Sul junto à fronteira, num “corredor” muito utilizado pelo PAICG, para introduzir no território homens, armamento e outros bens. Muitas são as referências àquele destacamento que, em 1973 [, em 22 de maio], acabou por ser abandonado pelas tropas que o guarneciam, após longos dias de bombardeamentos tendo, inclusivamente, ficado sem transmissões, por terem atingido a antena.

Depois da independência, e já no século presente, a AD – Acção para o Desenvolvimento, uma ONG da Guiné-Bissau, recuperou a destacamento, com a colaboração de militares portugueses [, com destaque para o nosso blogue], e organizou um simpósio [, em março de 2008,], pelo que pode ser uma das razões de agora “ter sido colocado em cima da mesa”. 

Há alguém vivo que me possa descrever?

Infelizmente já não se encontram entre nós, o então Capitão [Eurico] Corvacho [e o então 2º Sargento José Neto [, que morreu em 2007, como cap refomado,], um como comandante e outro como responsável pela formação da companhia.

Há várias entradas sobre o tema no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. (Marcadores: Guileje, José Neto, CART 1613, referências no fim dos postes, etc; vd. coluna do lado esquerdo do blogue). 

Um dia, como alferes, no Quartel-General do Porto, interroguei o Comandante da Região Corvacho. Lamentou, mas não me comentou o sucedido. Porquê?

Quem comanda, em qualquer situação, tem apreço pelos que comanda. É natural que o Capitão Corvacho tenha interiorizado esta “baixa”.

Espero que estas notas, se não vão “apaziguar” as vossas dúvidas e saudades, possam ser uma maneira de “amenizar” tudo aquilo que levantou tantas dúvidas sobre um acontecimento de há 47 anos.

Seguem-se os textos referidos anteriormente [, a publicar, oportunamente, no seguimento deste poste].

José Marcelino Martins

josesmmartins@sapo.pt

21 de Outubro de 2014

_________________

(**) Vd. poste de 8 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12127: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (23): A placa toponímica "Parada Alf Tavares Machado" estava afixada na parede da messe de sargentos (Luís Guerreiro, Montreal, Canadá, ex-fur mil, CART 2410, 1968/70)


 (***) Vd. poste de 29 de junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6658: Lista alfabética dos 75 alferes mortos no CTIG, 54 (72%) dos quais em combate (Artur Conceição)

sexta-feira, 21 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12865: Blogpoesia (373): O Dia Mundial da Poesia, 21 de março de 2014, na nossa Tabanca Grande (IV): Revolta (José Brás)

José Brás [, ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosae Mejo, 1966/68; escritor]

No Portugal que temos 
só me apetece esta, caro Luís.
Abraço. José Brás

Revolta

Por dentro de mim circulam revoltas
circula um vento agreste
feito de revoltas
que me fecham tantas vezes o sorriso
a vontade de ouvir
e de dizer
que fui
que sou
só porque digo que serei o que nem sei…

Chegam-me ainda
o seco som dos tiros
cheiros de enxofre
e de carne morta
tantos sons de nomes que perdi
porque de mim se perderam
na viscosidade quente das matas…

Chegam sons de pragas
e de choros
a visão de olhos vazios
no apelo da desistência
o bafo quente
húmido e podre do tarrafo
as febres da malária e da cólera…

A trovoada tropical
racha-me por dentro
queima-me tronco e folhas
de onde haviam de brotar risos

José Brás

_____________

Nota do editor:

Último poste da série >  21 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12863: Blogpoesia (372): O Dia Mundial da Poesia, 21 de março de 2014, na nossa Tabanca Grande (III): Dois poemas do último livro, "Entre margens", Lua de Marfim Editora, 2013 (Regina Gouveia)

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11993: Notas de leitura (515): "As Ausências de Deus", por António Loja; Âncora Editora, 2013 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
Esta reedição era de elementar justiça, não me canso de dizer que António Loja reservou para a literatura da guerra da Guiné parágrafos belíssimos, intensos, vigorosos. Foi comandante de companhia nalguns dos teatros de operações mais duros. Mejo, por exemplo. Passadas décadas desses eventos que nunca se apagam da memória, a pretexto de uma operação em ambiente hospitalar, associou ruídos a lembranças do que viveu.
O resultado é exaltante.
Os confrades têm agora à sua disposição um relato incontornável sobre as recordações irreprimíveis que transportaremos até ao fim das nossas existências.
Desejo-vos boa leitura.

Um abraço do
Mário


As ausências de Deus, por António Loja

Beja Santos

Trata-se de uma reedição há muito esperada, “As ausências de Deus” (por António Loja, Âncora Editora, 2013) faz parte do rol das obras fundamentais da literatura da guerra da Guiné. Tem parágrafos belíssimos, são trechos indispensáveis em qualquer antologia que doravante se venha a escrever sobre a guerra da Guiné em particular ou mesmo num contexto mais amplo. O autor explica o que o motivou, inesperadamente, a voltar à guerra: “Trinta anos passados sobre o fim da minha participação na guerra colonial na Guiné tinha a ilusão de que esta pertencia apenas ao meu passado. E, de repente, no pós-operatório de uma cirurgia num hospital de Coimbra, ela regressou. E de um modo obsessivo. No dia-a-dia do ambiente hospitalar o sono fez ressuscitar, nas pessoas que encontrei nos corredores, os meus companheiros de combate, os soldados europeus e africanos que lutarem ao meu lado ou contra nós, os homens, mulheres e crianças que passaram por mim na selva africana, que regressaram ligados a episódios ocasionais da vida presente e ganharam corpo na minha vivência de paciente em recuperação (…) São essas recordações que, naquele ambiente hospitalar, decidi passar para o papel”.

Em 1966, António Loja foi chamado pela terceira vez a prestar serviço militar obrigatório, rumou para a Guiné, no comando de uma companhia de infantaria, deram-lhe um teatro de operações entre os mais ásperos. O dever de memória surgiu assim, inusitadamente: “O ruído do motor de um frigorífico, numa sala vizinha do corredor onde, no hospital, faço a minha caminhada diária, levou-me de repente a recordar o motor da LDG (lancha de desembarque grande) que, diretamente do Uíge, nos transportou de Bissau para Buba. Fomos transferidos para a lancha de desembarque e, através do que nos parecia um impenetrável e complicado labirinto de rios e canais naturais, depois de algumas horas de navegação, com o sol alto, cerca de uma hora da tarde, chegámos a Buba”. Assim, a frio, logo atirado para a guerra, picar a estrada, fazer a conferência de material, visitar o chefe religioso do Forreá, Cherno Rachide.

A prosa de António Loja pauta-se pela intensidade com que transmite as emoções, em vez de brunir aquelas expressões que ornam a brutalidade dos acontecimentos, é seco e remete para os seus sentimentos toda a explosão de dor, é como se o leitor se condoesse da sua reação ao invés do sofrimento alheio, assim: “Não teve tempo de dizer-me que havia uma mina na picada porque, na certeza enganosa de que o terreno que antes calcara estava livre, colocou o pé sobre outra, que já tinha passado sem notar e que explodiu com violência. Mamadú ficou desfeito, literalmente, em pedaços espalhados pela picada e escorrendo de ramos das árvores; e Abdulai, que vinha logo atrás, foi apanhado por um estilhaço que o atingiu na parte superior do tórax. Deu dois passos na minha direção, dizendo: 
- Ai, meu capitão! Meu capitão!

De um buraco abaixo da clavícula jorrava, a cada batida do coração, um repuxo de sangue que me atingiu a cara, os óculos e me escorreu para o nariz e para a boca. Sustentei-o debaixo dos braços e pousei-o devagar sobre as folhas das árvores, no meio da picada, enquanto toda a companhia assumia posições de defesa. Nunca consegui esquecer o sabor do sangue ainda quente e o cheiro adocicado e logo nauseabundo que me invadiu as narinas. Disse-lhe uma mentira piedosa: 
- Vem aí o enfermeiro. Vais ficar bem! Já mandei vir o helicóptero…

Espero que ele tenha acreditado, nos breves segundos que levou a morrer. Só que na morte não há breves segundos. É um tempo sem relógio. É toda a eternidade de um fim que parece nunca chegar. Morreu a esvair-se em sangue que ninguém poderia estancar. O que recordo com horror é a minha reação seguinte: ainda ajoelhado junto dele, inclinei-me para o lado e vomitei, de um modo incontornável, ali a dois passos do cadáver do meu camarada”.

Para quem está no pós-operatório, aquela volta à guerra é irreprimível: comunicar a um pai africano que aquele estrondo que ele ouviu há pouco foi a explosão que lhe matou o filho; ver os africanos a não aceitar as fronteiras traçadas por portugueses e franceses, quem foi atacado do lado de cá sente-se no direito de atacar a sua gente do lado de lá, matar, matar até que aprendam com a lição, não compreende essa linguagem dos incidentes diplomáticos; recordar uma menina cheia de vida a quem dera um brinquedo e que ele, depois de uma flagelação, foi encontrar esvaído em sangue, apertando na mão o brinquedo que ele lhe oferecera…

O medonho da guerra é por vezes um relato entre a incredulidade, o bizarro e a extrema inocência, como o autor recorda: aqueles dois amigos que andaram juntos na escola, que foram recrutados no mesmo ano, destacados para a mesma unidade, quase dois gémeos típicos que caíram juntos e que depois foram enviados às suas famílias em dois caixões que viajaram no porão do mesmo navio e que depois foram enterrados no mesmo cemitério, nos arredores de Barcelos; as confidências do Francisco, o condutor do rebenta-minas, que vai casar dentro de dois meses e que deixou de sentir tesão, houve urgência em tomar medidas para combater o stresse; o Roncolho, um herói improvisado que um dia gritou “ai minha mãe!” lá numa emboscada e a quem o capitão teve de dar uma estalada e que estupidamente morreu na véspera da partida, atropelado para os lados do aeroporto de Bissau. A tudo isto juntam-se as queixas da dobrada liofilizada, dos coronéis incapazes, daquele aviador que durante uma operação achou que não devia almoçar em Mejo e o alferes disse ao cabo Chico para pegar numa metralhadora e caso o helicóptero levantasse lhe desse uma rajada das grossas.

Recordações em noites sem sono, naquele doente a insónia ou os medicamentos fizeram-no regressar ao passado: “Carregamo-lo connosco e basta uma pequena faísca para provocar a grande explosão. Depois, é como um filme antes da montagem. Por vezes as cenas desenrolam-se numa sequência lógica, outras de modo caótico ou pelo menos disperso, sem nexo aparente ou com um nexo difícil de discernir”.

É este o prodígio da trama de “As ausências de Deus”, que vitoriam os que conseguem dar um pontapé na morte, estão para além de qualquer convalescença, há memórias da guerra colonial que não se apagam, de Mejo a Guileje a vida era um desassossego, entre minas e emboscadas, e depois aos poucos o convalescente sente a memória suavizar, porque a recuperação foi dura: “Pago uma prestação cada vez que me dirijo ao hospital para mais uma sessão de radioterapia” é um pagamento duro, o paciente lembra um grande escritor, Thornton Wilder, que escreveu: “Será que para Deus nem a pena de um pássaro cai sem que Ele o permita; ou, pelo contrário, Deus dispõe das nossas vidas com a indiferença com que uma criança mata moscas num dia de Verão?”.

O autor, tal como estivesse em Mejo, reclama desabridamente: ou será que Deus não existe, ou, numa versão menos radical, se ausentou, deixando-nos entregues a nós mesmos?

Livro inesquecível, qualquer que seja a guerra que levamos em nossos dias.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11980: Notas de leitura (514): "Misiones en Conflicto, La Habana, Washington y África, 1959-1976", por Piero Gleijeses (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11635: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (14): Memórias de Guileje ao tempo da CART 1613 (1967/68), por José Neto (1929-2007) - Partes I/II: Formação e mobilização da companhia, que foi render a CCAÇ 1477




 Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > 1967 > Estandarte da companhia. A CART 1613 foi mobilizada pelo RAP 2. Partiu oara o TO da Guiné em 12/11/1966 e regressou a 18/8/1968. Esteve em São João, Teixeria Pinto, Buba, Guileje, Buba, Bissau. Comandantes: cap mil grad art Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz (, morto por um dos seus soldados na véspera do Natal de 1966; e cap art Eurico de Deus Corvacho).



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > 1967 > Fotografia de grupo, com parte do pessoal e elementos civis (crianças) da tabanca.

Fotos: © José Neto (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. A retirada de Guileje foi há 40 anos, mais precisamente em 22 de maio de 1973, ao tempo da CCAV 8350, e sendo comandante do COP 5 o então major art Coutinho e Lima. A pretexto desta efeméride e do 9º aniversário do nosso blogue, achámos oportuno republicar as memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613, que passou por Guileje em 1967 e 1968. Essa função, de 1º sargento,  foi desempenhada pelo então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (1927-2007), ou simplesmente Zé Neto, como a gente carinhosamente o tratava. Reformou-se como capitão. Era membro da nossa Tabanca Grande, desde a primeira hora e foi o primeiro de nós a inaugurar a galeria dos que da lei da morte se vão libertando. A Júlia Neto, viúva do Zé Neto, continua a representá-lo e a avivar-nos a sua memória. Ela é também irmã de um outro tabanqueiro nosso, o Carlos Carvalho.

A republicação das memórias do Zé Neto pretende ser uma homenagem a este saudoso camarada, que era na altura,  em que morreu, o decano da nossa Tabanca Grande, mas também é uma homenagem a todos os nossos camaradas que, de 1964 a 1973, passaram por Guileje... Publicam-se também muitas das suas fotos (uma parte delas, sobretudo as a preto e branco, inéditas).

Foi, entretanto,  nestes termos que ele se apresentou à "porta de armas" da nossa Tabanca Grande, em 5/12/2005:

"Sou actualmente Capitão Reformado, vivo em Queluz de Baixo, Oeiras, e fui, com o posto de 2º sargento, o primeiro sargento da CART 1613 que guarneceu Guiledje nos anos de 1967/68.

"Por interposta pessoa conheci o Engenheiro Carlos Silva, impulsionador da reconstrução do nosso "quartel" , a quem mostrei o meu album fotográfico e um extrato das minhas 'Memórias para os meus netos'. Parece que gostou e, no próximo dia 9 de Dezembro, vou encontrar-me com o Dr. Filipe Santos na ESEL [Escola Superior de Educação de Leiria], em Leiria , por sinal a minha terra natal, para tratarmos da digitalização de cerca de 150 slides que fiz, só daquela povoação.

"Também estive, antes, em Cabinda e, depois em Calunda (Leste, mais ao leste de Angola), mas Guiledje, talvez por ser o lugar onde 'levei mais porrada', ficou-me no coração.

"Mas não foi só no meu, porque no passado dia 3 de Junho [de 2005], em Braga, ainda reunimos setenta e tal elementos da Companhia [, a CART 1613,] e a 'velhada' continua a nutrir um carinho muito especial por aquele cantinho de África.

"Bom. Mas o que me traz aqui é repor um pormenor. A foto aérea de Guiledje é minha... e, se quiser, do 1º sargento piloto do Dornier da FAP (cujo nome esqueci) a quem pedi para me colocar num ângulo favorável para o efeito.

"Por agora, resta-me felicitá-lo pelo excelente blogue e confessar que nestas coisas de informática ainda vou na pré-primária. Aceite um abraço do José Afonso da Silva Neto".




Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > 1967 > Duas vistas aéreas do quartel e tabanca.

Fotos: © José Neto (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.



Ainda me recordo da maneira carinhosa e sempre bem humorada como ele me confiou uma parte das suas memórias, justamente as relativas à Guiné. Estávamos em 5 de dezembro de 2005 e a nossa "tertúlia" tinha então 50 membros...

Meu caro Luis:

Depois de muito meditar cheguei à conclusão de que, pelo menos tu, mereces a minha confiança para partillhar contigo uma parte 'muito significativa' das memórias da minha vida militar. São trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só 'a matar pretos' enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de família...

Já cedi este modesto trabalho à AD do Pepito e conto não o fazer mais, por enquanto. É, como já te disse, uma perspectiva um tanto diferente dos relatos do blogue, mas é assim que sei contar as minhas angústias e sucessos.

Diz qualquer coisa. Até breve.
Um abraço do 'patriarca' Zé Neto


2. Memórias de Guileje, ao tempo da CART 1613, por José Neto (1929-2007)

I Parte - Formação e mobilização da CART 1613/BART 1896 (1966/68)

Nas páginas que deixo para trás, respeitantes à Guiné, descrevo a maneira atribulada, para não dizer trapalhona, como o meu Batalhão, e por arrasto a minha Companhia, CART 1613, foi parar àquela Província Ultramarina e os remendos que se seguiram.

Resumindo:

O Batalhão de Artilharia nº 1896 (BART 1896) foi formado no RAP 2, Vila Nova de Gaia, com destino a Angola.

Depois da instrução dos recrutas foi confirmado esse destino, em 29 de Julho de 1966, e, como havia de se fazer a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO) em Viana do Castelo, tal não foi possível porque tinha sido adiado o embarque ao batalhão que ocupava as instalações militares daquela cidade minhota.

Ao mesmo tempo o RAP 2 deu início à formação de mais um batalhão, pelo que o pessoal da Unidade foi distribuído por quartéis velhos, alguns já desactivados, na área do grande Porto. A minha Companhia foi aquartelar nas antigas e quase desmanteladas instalações do GACA 3, em Espinho.

No fim de Agosto solucionou-se o “engarrafamento de batalhões” e seguimos para Viana do Castelo. Já a IAO ia a meio quando, em 24 de Setembro de 1966, foi alterado o destino do Batalhão para Moçambique.

Depois de introduzidas algumas alterações no planeamento da IAO (derivado à diferença da morfologia do terreno…?) continuou a referida instrução. Estava a IAO terminada e o Batalhão pronto para seguir quando, em 6 de Outubro de 1966, chegou a ordem para demandarmos a Guiné.

Iniciou-se nova IAO, com temas mais virados para terrenos alagadiços, mas, em fim de Verão,  as nossas "bolanhas" estavam secas. Fez-se o que foi possível… Embarcámos em Lisboa no dia 12 de Novembro e desembarcamos em Bissau em 18 do mesmo mês.

Como batalhão de reforço seguiu em "ordem de marcha" o que significa que, desde a esferográfica, passando pelos lençóis, até à mais pesada viatura auto, tudo foi connosco.

Aquartelamos no campo militar de Brá e… a trapalhada continuou. As três companhias operacionais (CART 1612, 1613 e 1614) foram desligadas do comando do Batalhão e as primeira e terceira seguiram para reforço doutros batalhões enquanto que a segunda (CART 1613) foi destinada a Unidade de Intervenção à ordem do Comando-chefe, continuando aquartelada em Brá.

Mais treino operacional para a 1613, desta vez na área de Tite, mais propriamente em São João e treino de saltos de helicóptero para um grupo de combate de voluntários de entre o efectivo da companhia. De Janeiro a Maio de 1967 a CART 1613 andou de colchão pneumático às costas e tendo por caserna a copa das árvores, a “biscatar” pelo território da Província, com maior incidência nas zonas de Pelundo e Jolmete.

Com a atribuição da responsabilidade do Sector S 2, com sede em Buba, ao BART 1896, este reagrupou-se e a CART 1613 foi instalar-se nas povoações de Colibuia e Cumbijã, onde nunca tinha estado qualquer unidade militar. Por ali andou em trabalhos de construção de cobertos e abrigos para a imensa tralha de materiais que levara da Metrópole.

Menos de dois meses depois, em 17 de Junho de 1967, um Gr Comb deslocou-se para o futuro destino de quadrícula, ou seja, área de ocupação definida, e duas semanas depois seguiu-se a transferência para Guileje.







Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > 1967 > Aspeto geral do quartel. Messe e quartos dos sargentos com cozinha ao fundo.


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > 1967 >  Em primeiro plano, o Zé neto; ao fundo a parada do quartel.


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > 1967 >  Construção de abrigos (ainda com troncos de palmeira...).


Fotos: © José Neto (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


Parte II  - Transferência para Guileje [, em rendição da CCAÇ 1477]

Nos primeiros dias de Julho de 1967 recebemos ordem para marchar para Guileje, a fim de rendermos a CCAÇ 1477. Nas conversas do Café Bento, em Bissau, apelidado de 5ª repartição por ser ali que se sabiam todos os acontecimentos ocorridos na Província, o nome de Guileje era citado frequentemente como uma região onde havia porrada da grossa.

As contingências da sorte ditaram que a CART 1613 fosse verificar in loco a veracidade das informações veiculadas na dita repartição. Carregando apenas o armamento individual e o meu caixote da papelada,  deslocámo-nos para Buba onde embarcámos numa das barcaças civis Correias com destino a Gadamael Porto. Dali fizemos, em coluna auto, os dezassete quilómetros mais compridos do planeta até à tabanca fortificada que ia ser o nosso lar durante cerca de um ano.

No dia 19 de Agosto, ao fim da tarde, fomos delirantemente recebidos pelo pessoal da companhia que íamos render. A tradição de pregar uns sustos aos maçaricos (o que não era bem o caso) foi terrível, de muito mau gosto e até propício a qualquer acidente. Quando se fechou a noite o gerador eléctrico não funcionou porque, dizia o velhinho, estava avariado. Desde tomar a 3ª refeição à luz de archotes e fogueiras até andar pela tabanca aos tropeções e escorregadelas nas valas e entradas de abrigos, de tudo sucedeu.

Perante a nossa insistência em ir verificar o estado do gerador, o cabo que lidava com ele lá condescendeu em deixar-nos dar uma olhadela no trambolho instalado numa cabine de alvenaria semi-enterrada. Não foi preciso muito tempo para o Furriel Baroeth, o nosso mecânico, descobrir que o tirante de descompressão do motor Diesel estava bloqueado propositadamente. Por mais que dessem à manivela, nos cilindros não havia compressão, pois as válvulas de escape mantinham-se abertas. Era assim que se parava o motor. Depois de retirado o taco de madeira sabotador, com prenúncios de agressões ao engraçadinho, duas maniveladas chegaram para as luzes se acenderem, mas isto já perto da meia-noite.

Como não havia sobreposição, a CCAÇ 1477 ia embarcar na barcaça que nos trouxera, pelo que no dia seguinte foi a lufa-lufa das entregas e recepções de materiais, não sem alguns barretes a que já estávamos habituados e que contávamos vir a enfiar um ano depois a quem nos substituísse… A lei da vida obrigava-nos a estes truques. O barrete maior era que, como não apareceu ninguém em Colibuia e Cumbijã (1) para receber os nossos materiais, a minha companhia passou a ter a responsabilidade de duas cargas completas.

Em Colibuia ficou uma secção com o 2º Sargento S... a tomar conta dos tarecos amontoados nas arrecadações improvisadas. O mais problemático era o depósito de géneros alimentícios, cujos produtos estavam sujeitos a deterioração, como é compreensível.

Por mais notas que mandássemos para a sede do Batalhão, e até para a delegação da Manutenção Militar de Bissau, ninguém tomava uma atitude. Irrisoriamente, o comandante do batalhão sugeriu, via rádio, que vendêssemos os géneros às populações. Está-se mesmo a ver os nativos, muçulmanos, a comprar-nos latas de chouriço, barricas de carne de porco em salmoura, barris de vinho tinto e outras delícias da nossa da nossa bárbara dieta!!!

O S... lá foi vendendo uns quilos de farinha, de arroz, umas latas de fruta e coisas assim, mas a sua gerência da mercearia foi desastrosa. Quando, uns meses depois, entregou a tralha a outra companhia que lá apareceu, veio para Guileje, trazendo uma resma de papéis com apontamentos que nem ele era capaz de destrinçar. As guias de entrega de materiais, padronizadas, vinham repletas de observações de deficiências, faltas ao completo e outras incapacidades.

Levei semanas, com o meu competentíssimo cabo escriturário, o Ramiro, a fazer autos de ruína prematura e de extravio, sempre com a justificação de “exposição às intempéries por falta de recinto adequado à sua conservação” ou “efectivo exíguo para a vigilância e evitar a subtracção, por parte dos nativos, de componentes de ferro com que improvisavam alfaias agrícolas” e outras patranhas que, em Bissau, eram engolidas a contra-gosto, mas… entre os autos aprovados e os que exigiam mais esclarecimentos para apreciação superior, tive um petisco que durou até ao meu último dia na Guiné.

Quanto aos géneros alimentícios a coisa foi mais radical porque o S... não encontrava, ou não tinha feito, a relação dos produtos que mandou enterrar por se terem estragado e que deveriam ser objecto de pedido de abate, e respectivo crédito, a que a MM [, Manutenção Militar,] não punha objecções de maior.

Ainda por cima disto vim a saber que ele tinha mandado vir a esposa para Bissau, aonde se deslocava com alguma frequência, em consultas externas sabe-se lá de quê e em boleias da Força Aérea, a partir de Aldeia Formosa.

Olhos nos olhos, confrontei-o com o montante do depósito de géneros deixado em Colibuía, pois constava dos documentos de prestação de contas, com a pequena parcela deixada aos substitutos, com o dinheiro que me entregava proveniente das vendas aos nativos e faltavam cerca de dez mil escudos.

Isto a juntar ao prejuízo trazido de S. João já rondava os trinta contos e era preciso fazer muita ginástica para recuperar tanto dinheiro. E, meu amigo:
—   O senhor foi negligente e comodista. Vai entregar na companhia cinco mil escudos, metade do prejuízo, ou apresento o caso ao nosso Capitão.

Nem pestanejou. Só pediu para lhe descontar em cinco prestações. Concordei e, se não perdi um amigo, ganhei um inimigo. Metade dos sargentos de Artilharia daquele tempo ouviu do S... uma história retorcida em que eu o ludibriei em cinco contos.

A tabanca de Guileje, habitada por cerca de trezentos nativos de etnia fula (marcados a fogo, à nascença, com dois traços verticais no prolongamento exterior das pálpebras) situava-se a pouco mais de quatro quilómetros da fronteira com a Guiné Conacri e servia de tampão e base de lançamento de operações no celebérrimo Corredor de Guileje. Este corredor era a via natural de penetração dos turras para o interior sul do território, a partir do seu santuário do outro lado da fronteira.

De traçado rectangular, cerca de 250 x 200 metros, era fortificada com taludes e abrigos semi-enterrados, estes cobertos por cibos (troncos de palmeira) de quase impossível penetração por projécteis de tiro curvo. As palhotas cónicas onde vivia a população civil espalhavam-se em quatro fileiras irregulares, separadas por três avenidas onde até parecia que havia o Metro, mas em boa verdade eram as entradas para os abrigos subterrâneos. Ao fundo, do lado oeste, erguia-se a residência do Régulo, de traçado rectangular com varandim, a mesquita e a escola (árabe), construídas em madeira.

Por detrás destas últimas construções e do alto talude que as protegia, fora da área fortificada, situavam-se os espigueiros, engenhosamente feitos de bambu e barro sobre estacas. Ainda mais para oeste, na orla da picada do Mejo, havia um aldeamento fantasma, muito bem feito e alinhado, mas, compreensivelmente, desabitado. Tinha sido construído pelo Governo pouco antes do conflito.



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) > 1967 >   Fotps do álbum do Zé Neto: 3.1. Instalações e atividade militar: fotos nºs 20 (Vacas da tabanca e arame farpado) e 5 (Horta do quartel).

Fotos: © José Neto (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.



Era ainda cercada por duas filas de arame farpado, com garrafas de cerveja vazias penduradas aos pares, para retinirem se os arames mexessem e, no terreno desmatado circundante,  estavam implantadas cerca de setecentas minas, fornilhos e armadilhas devidamente fichadas e verificadas periodicamente. Enquanto lá estivemos estes últimos artefactos só serviram para matar gazelas.

Havia ainda uma pista que permitia a aterragem e descolagem de aviões ligeiros. Estes aviões, na sua maioria Dornier da Força Aérea, eram chamados de Biela, não sei porquê.
Mal se ouvia o som do motor dum avião, até os pretitos gritavam:
— Olha a biela!!!
Os dois pontos fracos daquela fortaleza eram cruciais e, agora é fácil dizê-lo, nunca foram bem explorados pelo nosso inimigo. O primeiro era obtenção de água. O riacho onde a íamos colher ficava a oitocentos metros do aquartelamento, para o lado da fronteira, o que nos obrigava a empenhar, diariamente, dois Grupos de Combate para montar segurança na zona e três ou quatro viaturas, com bidões de 200 litros, para o transporte. A única emboscada ali montada pelo IN foi feita às tropas da companhia anterior que tiveram vários feridos e um morto.

O segundo fraco era o reabastecimento de víveres, combustíveis, munições e outros materiais pesados que eram transportados por via marítima até Gadamael Porto e dali trazidos pelas nossas colunas auto.
Nos já referidos dezassete quilómetros rara era a coluna que não era emboscada pelo IN e, como era minha função contabilizar para efeitos de prémios, lembro-me que foram levantadas vinte e duas minas anti-carro na picada.

Graças à notável equipa de picadores, elementos das milícias nativas que usavam varas pontiagudas para detectar os engenhos e aos nossos furriéis especializados na montagem e neutralização dessas armas traiçoeiras, nunca sofremos os seus efeitos. Não faço favor nenhum em prestar homenagem a esses heróis esquecidos cujos nomes saliento:

(i) Cá Missá (Camisa, para a malta), cabo milícia que chefiava os picadores e diziam que tinha na cabeça a configuração, os pequenos relevos e a vegetação de cada centímetro da picada;

(ii) Furriéis António Martins, Amílcar Almeida, Arclides Mateus e Manuel Pernes a quem a Pátria pagou mil escudos por cada uma das vinte e duas vezes que se despediram dos colegas para irem à sua função de desmontar as minas.

Na modesta epopeia que estas colunas auto representaram saliento uma emboscada em que os turras usaram abelhas dentro de caixas de sapatos, penduradas nas árvores, as quais eram soltas, à distância, por intermédio dum cordel quando abriam fogo. Na primeira vez o estrago foi notório e deu muito trabalho aos enfermeiros, mas depois tiveram de desistir porque a nossa tropa passou a transportar dezenas de potes de fumo que eram accionados ao grito de abelhas!. Os insectos afastavam-se e iam ferrar os seus amigos.

Outro pormenor foi a adopção da camuflagem sonora. A saída das colunas era sempre de madrugada e o Capitão Corvacho (2) desconfiou que a barulheira das viaturas a aquecer os motores para iniciar a marcha era audível no outro lado da fronteira e um bom aviso para o IN vir, nas calmas, chatear o pessoal na picada. Então pôs em prática o sistema de, a espaços de tempo desencontrados, os condutores se levantarem mais cedo, irem dar as aceleradelas do costume e voltarem para a cama.
É óbvio que a intenção era criar a confusão nas hostes contrárias e o certo é que as visitas diminuíram.

Cabe aqui também o reconhecimento, que não passa pela cabeça de muitos estrategas de pacotilha, aos abnegados Condutores Auto. Eram os mais expostos ao fogo inimigo, como é evidente.

A guarnição era composta por:

(i) minha companhia, a CART 1613;

(ii) o Pelotão de Reconhecimento Fox nº 1165 (Pel Rec Fox 1165) sob o comando do Alferes Miliciano de Cavalaria Michael;

(iii) o Pelotão de Caçadores Nativos nº 51 (Pel Caç Nat 51) (3) , comandado pelo Alf Mil de Infantaria Perneco; e

(IV) o Pelotão nº 138 da Companhia de Milícias nº 12 (o Pel Mil  139 da mesma companhia estava no Mejo), comandado pelo 2º Sargento Milícia Ussumane Sila.

Estas duas últimas subunidades, irregulares, tinham efectivos variáveis, pois eram compostas por naturais ou residentes nas respectivas tabancas, que se alistavam ou demitiam a seu bel prazer. Não necessitavam de instrução militar porque, desgraçadamente, qualquer garoto de 9, 10 anos desmontava e montava uma espingarda automática G-3 com os olhos fechados. Eram eles que, por avença, limpavam as armas do nosso pessoal quando isso era requerido, facto que sempre me causou alguma preocupação, porque não me agradava o vício da guerra que tal ganha-pão inculcava nessas crianças.

Portanto, não contando com o armamento pesado, Guileje tinha muito perto de trezentas armas prontas a disparar. A minha era única e a mais pequena: uma pistola-metralhadora FBP. Mas fartei-me de disparar… a máquina fotográfica.

Constituía assim um bastião avançado de que o IN raras vezes de aproximava. Apesar das contingências do estado de guerra, a população convivia alegremente connosco e havia uma apertada vigilância para que os nossos militares respeitassem, não só os usos e costumes, mas também as pessoas em si. Um ou outro desaguisado foi prontamente saneado pelo nosso Capitão em consonância com o Régulo.

O Régulo Suleimane era um homem razoavelmente inteligente e compenetrado da sua posição algo majestática. Falava muito bem português e o seu porte altivo infundia uma distância no relacionamento que os soldados depressa aprenderam com os nativos a respeitar. A certa altura eu passei a ser o intercultor preferido dele porque chegamos à conclusão de que tínhamos um ponto em comum. Ambos estivemos em Macau. Ele tinha feito parte duma companhia de tropas da Guiné, como soldado do nosso Exército, que foi destacada para Macau no fim da II Guerra Mundial. A única maneira de lhe ver um sorriso era a falarmos de Macau. Ele contava as suas lembranças dos bons tempos que lá passou e eu retocava os pormenores com a descrição dos progressos daquele torrão português.

A população era agradável no trato, muito trabalhadora e, sobretudo, bastante asseada, não obstante o facto de que obtinham a preciosa água nos charcos junto das lavras que cultivavam na área contígua ao fundo da pista de aterragem. Foi nessas lavras que se deu o maior mistério da nossa estadia nessas paragens. A CAÇ 1622, de Gadamael, foi fazer uma operação ao Corredor, a partir do nosso aquartelamento. Quando regressou foi dado como desaparecido, numa emboscada que sofreram, um soldado que só me lembro de ser de Carregal do Sal, ou dali perto.

Durante três dias foram lançadas patrulhas de busca formadas nas unidades da área que bateram todo o terreno onde se dera a emboscada, reforçadas por apoio e observação aérea e não foi encontrado o mais leve indício da presença do desaparecido. Passados onze dias, um nativo de Guileje foi encontrá-lo,  nas terras encharcadas das lavras,  vivo mas extremamente depauperado, transportando a sua G-3. Trouxe-o para o aquartelamento onde foi imediatamente socorrido e feita a comunicação do seu aparecimento à CCAÇ 1622.

Pelo menos a nós não conseguiu explicar como tinha sobrevivido e, o mais incrível, porque razão não se encaminhou para um dos aquartelamentos, Guileje ou Mejo, que, pelo menos de noite, eram fáceis de localizar devido à iluminação eléctrica. Ou tentasse dar sinal de si aos aviões que sobrevoaram a zona. Soubemos que o CTIG teve de o mandar à Metrópole para convencer os familiares de que estava realmente vivo e de boa saúde, pois já lhes tinha sido comunicado o seu desaparecimento em combate.

Lembro-me que o Furriel Figueiredo, do Pelotão Fox, conhecia o rapaz. Para adensar o mistério não consigo encontrar as quatro ou cinco fotografias que fiz na altura em que estava a ser assistido no posto de socorros.
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Notas do autor:

(1) Duas povoações na zona de Aldeia Formosa (Quebo) sem quaisquer instalações militares para onde mandaram a minha companhia “para encher chouriços” enquanto faziam os reajustamentos ao dispositivo do subsector à responsabilidade do meu batalhão (BART 1896);

(2) Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho;

(3) Este Pelotão, [, o  Pel Caç Nat 51,] era composto por praças do recrutamento guineense e enquadrados por furriéis e um subalterno metropolitanos, todos milicianos. As praças pertenciam a várias etnias, com uma pequena predominância de balantas. A disciplina militar não era suficiente para estabelecer uma coesão aceitável entre eles. O aspecto diversificado das suas culturas chocava amiúde entre eles e mormente com os fulas, sem dúvida mais civilizados.

Era-lhes abonada a alimentação em numerário (a dinheiro) por impossibilidade de lhes satisfazer as suas dietas tradicionais. Mais do que uma ajuda ao esforço da campanha, eram um caldeirão de problemas. O Capitão Corvacho evitava atribuir-lhes missões que implicassem saídas com algum risco porque a sua eficiência não era famosa.

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11545: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (13): Estórias cabralianas nº 7: Alfero põe catota nova... (Jorge Cabral)