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sábado, 5 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17651: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXIV Parte: Cap XIV - Revolta e dor pela morte do fur mil Humberto, já no final da comissão


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763, os "Lassas" (1965/67)  > O Mário Fitas e o Humberto Gonçalves Vaz (de óculos escuros), que morre na Op Teste, já na fase final da comissão em Cufar, em 24/2/1966. Furriel mil vagomestre, era natural de Viana do Castelo.

Foto: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Do mesmo autor já aqui publicámos, em 2008, em dez postes, o seu fascinante livro "Pami N Dondo, a guerrilheira", ed. de autor, Estoril, 2005, 112 pp.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto em baixo, à direita, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, março de 2016]


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XXIV Parte > Cap XIV (pp. 83-87)

por Mário Vicente  

 Sinopse:

(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),

(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na
Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:
(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;

(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;

(xvi) a lavadeira Miriam, fula, uma das mulheres do srgt de milícias, quer fazer "conversa giro" com o "Vagabundo" e ter um filho dele;

(xvii) depois de umas férias (... em Bissau), Mamadu regressa a Cufar e á atividade operacional: tem em Catió, um inesperado encontro com o carismático capelão Monteiro Gama...

(xviii) Op Tesoura: dezembro de 1965, tomada de assalto a tabanca de Cadique, cujas moranças são depois destruídas com granadas incendiárias.

(xix) Cecília Supico Pinto e outras senhoras do MNF visitam Cufar no início do ano de 1966 e Mamadu é internado no HM 241 (Bissau).

(xx) um mês depois, regresso a Cufar, regresso à guerra. Põe o correio em dia. Lê e relê a carta de Maria de Deus [MiMê], uma paixão escaldante dos tempos de "ranger" em Lamego e por quem estava quase para desertar, antes da data de embarque para a Guiné; a jovem morrerá prematuarmente, em França, aos 24 anos.

(xxi) revolta e dor pela morte do seu camarada e amigo, o fur mil Humberto Gonçalves Vaz (Op Teste, na região de Cabolol]


Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXIV Parte: Cap XIV: Regresso à guerra (1) (pp. 83-87)
XIV Regresso à Guerra [2]


Mas… a CCAÇ [763] soma e segue, não pode parar com as divagações do furriel Mamadu.

Temos informações concisas de que os grupos do PAIGC que actuam agora em Cabolol, estarão baseados em Cansalá, sendo rendidos mensalmente. Numa emboscada na estrada de Catió, junto ao pontão do rio Cadengar, no final da festa, ficamos sem mais um homem. Saldo final, um morto e três feridos. Começa, em algumas cabeças, a confirmação da desconfiança destes acontecimentos. Os Lassas iam a Catió para trazer uma companhia de periquitos, a quem deviam dar treino operacional. Mamadu, macaco velho com cu calejado, acha determinadas situações muito coincidentes mas é perigoso falar. Adelante, como dizem nuestros hermanos.

Temos notícias que o nosso amigo Nino recolheu a Conakri, na República da Guiné, ficando como chefe da base do Cafal e da Zona Sul, o amigo Joãozinho Guade. São coisas que vamos sabendo e analisando, para melhor entendermos como funcionam e se comportam os chefes do PAIGC. Com esta alteração de Comando, quem ganha é o pessoal da ilha do Como. A desgraçada da população era obrigada a entregar todo o arroz produzido na ilha, sendo enviado para a zona do Cantanhez, pois há dificuldades na alimentação às FARP. Pansau na Isna, homem grande do Como, com a sua sensibilidade, faz com que Guade autorize os habitantes do Como a venderem o seu arroz em Catió, e assim conseguirem pelo menos, com dinheiro ou por troca directa, alguma roupa, medicamentos e outros bens de primeira necessidade.

O chefe da tabanca de Mato Farroba, Clusse na Ufna, raptado pelo IN, foi abatido no Cafal, quando tentava a fuga. O Bia, chefe da tabanca de Impungueda, desapareceu misteriosamente. Seria o efeito da duplicidade nas informações a causa? Quatro nativas indocumentadas foram feitas prisioneiras, tendo confessado terem sido enviadas para observação das NT. Temos um sistema de informações mais precisas e concisas do que o gajo da PIDE de Catió que se preocupa mais com questões políticas do que com guerra. Estamos a trabalhar fortemente, só que as informações para cima, não surtem efeito. Aqui há gato.

Carlos desabafa:
- Valia mais que me mandassem a Companhia do Cachil para aqui, e acabassem com aquele presídio! Dávamos a volta toda até Cobumba e a Força Aérea que visitasse o Como!

Preparando a Companhia [, CCAÇ 1500,] a quem estamos a dar a fase operacional vamos, em conjugação com mais duas companhias, varrer novamente Cabolol. Pelas seis da manhã, um rebentamento e os periquitos têm os primeiros feridos, numa mina antipessoal. Pelas oito da manhã, Lassas e periquitos, depois de grande força, destroem mais um novo acampamento IN. Quando nos dirigíamos para Cantumane, a secção do Carlos Manuel que seguia em último escalão, foi fortemente emboscada, e tentaram isolá-la do resto da CCAÇ que se encontrava já fora da mata. Os outros dois grupos de combate manobraram, conseguindo repelir o IN. Dois furriéis ficaram ligeiramente feridos. Estava terminada a operação Tubarão.

E não desistimos, vamos novamente tentar a abertura do troço de estrada Cufar-Cobumba. Temos então a operação Teste em mãos. A nossa missão é instalarmo-nos na estrada que diverge para Cabolol e impedir o acesso do IN aquela região. A outros com as viaturas e respectivos guinchos, estará destinado o trabalho de desobstrução, retirando as abatises, tarefa que não vai ser nada fácil dado o numeroso e tamanho das árvores tombadas e das valas abertas na estrada.

Pelas vinte e três horas, os Lassas saem do aquartelamento e fazem a progressão pela estrada Cufar-Catió, com a companhia a quem estamos a dar treino operacional, em segundo escalão. Chegados ao cruzamento do Cabaceira, seguimos já pela estrada que se propõe limpar. Por volta das quatro da madrugada, o grupo de combate que progride em primeiro escalão atinge o caminho para Cabolol Nalu, junto à ponte do rio Caianquebam, os Lassas preparam-se para montar o dispositivo de segurança.

E aqui, meus amigos, desculpem-me, vão todos para a profundeza dos infernos. Serão poucas as asneiras que terei de dizer, e os nomes que terei de chamar a quem nos traiu. Comigo, cabrão nenhum brinca e eu não respeito ninguém neste momento. Eu mato a sangue frio, “fornico os cornos” e vou procurar aos confins do mundo o verme que nos traiu! Arranco-lhe o coração pelas costas, ou enfio-lhe pela boca abaixo uma granada descavilhada! Filhos da puta, havia fuga de informação! Os amigos do PAIGC estavam à nossa espera e sabiam perfeitamente que nós lá íamos e qual o nosso itinerário. Tinham informações precisas sobre toda a operação. Assim, não! Fomos apunhalados pelas costas, caralho. Também temos a certeza! Esse alguém, que deu à língua e passou informações ao IN, esteve em conversa na Administração de Catió. Nunca mais terei confiança nesta merda! Vão todos para a puta que os pariu!
- Quem diz que não é capaz de matar? Quem? Falem, digam!

Ninguém?

Tudo é possível fazer pelo homem, meus amigos, tudo depende das circunstâncias e ocasião em que as situações se apresentem.

Não é possível, não há palavras nem actos para suster a revolta do momento.

Foi dos maiores festivais a que assistimos!

Quando procedíamos à instalação, a CCAÇ foi emboscada de tal maneira que ficou toda na zona de morte. Os “gajos” envolveram os dois lados da estrada com duas metralhadoras pesadas 12,7, com projecteis tracejantes, atacaram o flanco direito dos Lassas com armas automáticas e metralhadoras ligeiras, e bateram todo o troço da estrada onde nos encontrávamos com morteiro 82 e RPGs, atacando a testa da coluna com granadas de mão.

Assim estivemos, debaixo de intenso fogo durante, aproximadamente, uma hora, altura em que sofreu um abrandamento. Tentamos responder da forma possível. Foi então detectado um helicóptero voando no sentido Cansalá-Cabolol Nalu, cessando por alguns minutos o tiroteio. Não nos foi possível alvejá-lo dado o seu rápido encobrimento pela mata. Pelas cinco e vinte voltou a crescer, com grande intensidade, o fogo de morteiro e RPGs. A nossa reacção só começou a dar efeitos já passava das seis e meia da manhã. Nesta altura já contávamos com dois mortos, um desaparecido e dezassete feridos. Entre os mortos estava o meu grande amigo furriel miliciano Humberto.
- Porquê tu, meu Amigo?

Havia determinadas prioridades a executar e a principal era no momento fazer as evacuações, pelo que a companhia que nos acompanhava dirigiu-se para Camaiupa a fim de procurar um local propício para efectivar essa operação, montando a segurança. Junto à mata de Camaiupa, foram evacuados os feridos e mortos, tendo sido os Lassas remuniciados, dado encontrarem-se logisticamente nas lonas em termos de munições. E voltamos, para continuar.

Mais um acerto de contas, mais uma cobrança!

Pelas oito e meia, aproximadamente, dado o número de baixas e o esgotamento do pessoal, o Comando estacionado em Cufar mandou suspender a operação. Entre os evacuados para o Hospital de Bissau conta-se o Bolinhas, capitão miliciano que vem substituir Carlos que será transferido para o Q.G. Não teve sorte o Bolinhas pois, logo na primeira experiência, uma bazucada atirou com ele contra uma árvore.
- O meu amigo Humberto, capacete furado, cabeça feita em duas! Não!
- Porra! Os amigos estão-se a ir embora!
- Ainda não! Ainda não vou chorar, só se for de raiva! Mas também não!
- Agora encontro-me completamente no fundo. Deixem-me falar mal desta merda; deixem-me dizer asneiras. Por favor, quero apanhar alguém e torcer-lhe o pescoço, até ficar com a cara para as costas, depois de três voltas. Quero... quero... ir até ao aquartelamento e embebedar-me até ficar em coma!... É dificílimo dar a volta a isto tudo!

Um bando de homens malteses, cabisbaixos, entra ao fim da manhã no aquartelamento. Não há nada a dizer!... Olham-se os militares uns aos outros, em silêncio como desconhecidos, agora bem lá no fundo do esgoto. A dor da perda dos amigos é transmitida por mensagem secreta, do olhar daqueles que sofrem a sua ausência.

Mamadu entrou na messe e no duche. Deitou-se não dizendo palavra a ninguém. Chico Zé e António Pedro nas camas, ao lado, fizeram o mesmo. Até a vontade de beber passou. Não era a primeira, nem seria a última que alguém nos iria trair.

Miriam entrou no quarto em silêncio, com a roupa lavada para Mamadu. Vendo os três furriéis deitados, como cachorro à espera do dono, sentou-se no chão aos pés da cama de Mamadu e chorou. Este enfureceu-se e gritou:

- Fora daqui, isto não é para chorar ainda, caralho! Não é isto mesmo a guerra!? Fora, não quero ver roupa, não quero ver ninguém.

O coração do furriel Mamadu, chefe dos Vagabundos, sangrava de dor e revolta.
- Deixa-nos ficar sós! Fora, escarumba de merda!

Com rudeza expulsou a lavadeira. Pobre Miriam, estava sensibilizada também e apenas queria acompanhar a dor do furriel. Mas este apenas via as tracejantes balas e as metades da cabeça do Humberto. Aos ouvidos apenas lhe chegavam os rebentamentos das morteiradas, dos lança granadas foguetes e os gemidos dos amigos feridos. Completamente transfigurado, só sentia o desejo mórbido de vingança. Esvaziara-se de tudo o que era humano, e encontrava-se possesso de ódio, blasfemando contra tudo e contra todos.

De barriga para baixo, estendidos sobre as camas, Chico Zé e António Pedro, num silêncio sepulcral, nem pareciam respirar. Mamadu não conseguia dormir. Tânia apareceu por momentos e o furriel entrou em delírio.

Abundante fonte fizeste nascer neste peito, por onde se alimenta, em frémita dor trespassante, um fraco coração saudoso, desfeito nestas longínquas paragens e acossado por fome de justiça, entre balas e sangue, alimentos de guerra. Já não sei o que sou! Só sei que é no meu corpo que morreste, minha mulher inexistente, adormecida pelo leve sono que pesou no dia dos animais falantes. O lodo, em que me atolo, adormeceu as conhecidas boas maneiras, que pouco saber lhes cabe. São nuvens duvidosas o saber que sabemos. E sonho com a mulher que me beijasse as feridas da alma e me amasse até à raiz da minha sombra. Estou lutando e tentando fazer um poema de amor, mas a dor tira-nos o tempo todo ao nosso lado distante, em guerra sempre presente.

Esta não é a minha Gloriosa Pátria Amada. Esta é a de Miriam e outros muitos mais, que nem eles próprios sabem quem são, pois até os irmãos já se traem e matam uns aos outros. A minha fica lá bem longe, a Norte, a milhares de quilómetros. É essa pequenina aldeia da Planície que é minha, de meus pais e avós, a essa, sim, posso ter a honra de lhe chamar ditosa e amada.

Fundamentalisticamente e com muita razão, como dizia o capitão de Aleluias Alacrau, “esta Aldeia é uma Nação”. Sim, a minha Pátria é a Planície da Tânia e da Florbela, poeta e mulher a corpo inteiro. Sim, Florbela, como no seu poema, aqui bem longe neste momento, são horas mortas só que a Planície não é brasido, aqui ela é saudade e dor.

Árvores! corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!


Tenho saudades de todos os meus amigos, dos que vivem e dos que já partiram. Hoje aperta-me o coração pelo meu amigo Humberto, pois deixei o esquife dele em Catió.

Acabei de juntar as cartas da nascente que fazia brotar nele o amor e afeição por uma mulher, criança ainda. Para a mãe de Humberto, juntei as coisinhas, como se diz na planície. As merdas todas: farda, farrapos, para dela ser maior o sofrimento.

Porquê eu!? Fazer o espólio das intimidades de um amigo?

Choro!

É por acaso vergonha um homem chorar, quando lhe dói a alma e aperta o coração?

Será?

Não, para mim não! Por isso choro e não tenho vergonha. É bonito, é enfim sinal que ainda não me bestifiquei.

Chorar é correr riscos e só quem arrisca é livre!

É, pois, o chorar o risco de parecermos sentimentais, assim como expor os nossos sentimentos é correr o risco de patentear o nosso verdadeiro eu. Sendo também o amar correr o risco de não sermos amados em troca. Estes riscos, conheço-os eu como as palmas das minhas mãos. Com tudo isso, não evitei o sofrimento e a tristeza, é verdade! Mas aprendi, senti, mudei, cresci, amei e vivi!

Chego ao limite, com apenas vinte e três anos. Que interessa que Tânia me não ame, se a amo eu?

Não é sonho! Um dia acontecerá, Tânia virá, amar-me-á e beijará as feridas da minha alma.

A eternidade não é poder humano! É incomensurável!...

Desculpa, Humberto, a divagação, mas tu também sabias, não sabias?!. ..

Vou-te escrever. Sei que é uma tentação, mas esta carta é só para ti.

"Sufoca-me esta sede de libertação. Quantas vezes o dizias?...

Todos os dias, a todas as horas e a todos os minutos. Pobre de til .. De que te serviu a merda do capacete? Sim, eras um aborto da própria natureza. De que te valeu morrer? Nada!

Que fizeste? O que deixaste? Simplesmente a dor de ser eu, este teu amigo, a enviar as tuas sucatas para tua mãe e as cartas para Luísa. Dezoito anos incompletos e já a levar assim bordoada ...

Mas, pobre de ti!... O tempo, dizem que tudo cura. Talvez seja verdade, acredito! Sim, porque ninguém mais te ligou. Aquilo que tu eras, tudo naquele momento terminou. Não sabes? Vou contar-te tudo o que se passou depois: ficaste com a cabeça horrivelmente grande, feita em duas!...

Passaste ainda dois dias connosco. À noite havia muitos mosquitos, mas não te deixámos só. Não chorámos! Talvez interiormente o tivéssemos feito, porque a garganta só consentia que algo escorregasse, quando à boca se levava o velho e sebento copo de bambu. Recordas-te dele? Ali se afogavam as mágoas e tristezas passadas. Nele chafurdámos como ratas nas sarjetas. Sabia bem matar a sede por ele. Estávamos unidos, e sempre estaremos, mesmo sem ti e os outros que ao nosso lado tombaram.

Olha, está aqui o Jata que também te quer falar, mas não consegue! É natural, vocês eram irmãos de guerra! ...

O Dabó, preto manjaco, chorou como um puto sentado no teu caixão, pois a última vez que te acompanhámos foi pela maldita estrada. Deves ter dado muitos saltos dentro do caixote!

Gosto de te escrever, pois tenho feito o mesmo com os outros. Espero que quando for a minha vez, tenhas uma garrafinha de Dimple à espera que eu levo o copo de bambu.

Um abraço dos outros Lassas.

Mamadu

P.S. - Afinal encontraste a liberdade desejada?”
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domingo, 7 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17325: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXI Parte: Cap XII - Op Tesoura, Cadique, dezembro de 1965: "Meu furriel, eu sou um criminoso, um assassino! Numa das casas, quando lancei a granada, estava um bebé a chorar lá dentro!" (1º cabo Cigarra)


Guiné > Região de Tombali >  Cufar >  CCAÇ 763 (1965/67) > "Tomada de assalto a tabanca [, Cadique,] que se encontrava deserta, obviamente procede-se à sua destruição. Os Vagabundos, comandados por Mamadu, terão essa tarefa como determinado. Simples: porta aberta, granada incendiária descavilhada para dentro, porta fechada e fugir para se abrigar. Em segundos o que era uma morança, é uma cópia do inferno de Dante."

Foto (e legenda): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Do mesmo autor já aqui publicámos, em 2008, em dez postes, o seu fascinante livro "Pami N Dondo, a guerrilheira", ed. de autor, Estoril, 2005, 112 pp.


Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto em baixo, à direita, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, março de 2016]

Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVIII Parte > Cap  XII - Guerra 3 (pp. 70-76)

por Mário Vicente

Sinopse:

(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),

(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;

(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;

(xvi) a lavadeira Miriam, fula, uma das mulheres do srgt de milícias, quer fazer "conversa giro" com o "Vagabundo" e ter um filho dele;

(xvii) depois de umas férias (... em Bissau), Mamadu regressa a Cufar e á atividade operacional: tem em Catió, um inesperado encontro com o carismático capelão Monteiro Gama...

(xviii) Op Tesoura: dezembro de 1965,  tomada de assalto a tabanca de Cadique, cujas moranças  são depois destruídas com granadas incendiárias.


Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXI Parte: Cap XII:  Guerra 3 (pp. 70-76)



XII Guerra 3


Dezembro de 1965. Quinze horas do vigésimo primeiro dia. O bulício na messe de sargentos era grande, pois tinha havi­do correio e toda a gente comentava as notícias. As mais ínti­mas guardavam-se para a décima vez de leitura, mesmo depois de decoradas, por terem um sabor especial. De repente tudo se alterou. Bastaram estas simples palavras do Amadeu, cabo da secretaria:
- O nosso capitão chama ao comando os nossos sar­gentos e furriéis.

Torcásio teve uma cólica de tal maneira que correu ime­diatamente direito à latrina. Alguns dar-lhes-ia, mais tarde, a revolta aos intestinos, enquanto outros, pensando para onde seria, iam sentindo o estômago apertando-se… apertando-se, de forma que só nele caberia um trago de whisky, já que ajudava um pouco a controlar o nervoso miudinho que sempre aparecia nes­tas ocasiões. Interessante a reacção dos homens a estas situa­ções. A ansiedade, a incerteza do momento de contacto, princi­palmente quando se progredia na mata, punha os nervos em franja. Era medo? Sim! Mas esse controlava-se. A dúvida de onde, como e quando o IN se manifestava, é que tornava a guer­ra difícil e asfixiante. Após o contacto se efectuar, parecia to­mar-se um tónico,  aí, então, a cabeça raciocinava logicamente e a máquina de guerra começava a funcionar. 


Mamadu, apesar de menino dos Rangers de Lamego, teve bastantes dificuldades de adaptação nos primeiros tempos de Guiné pois, quando começava o tiroteio, não conseguia deitar-se. O seu corpo saltava impelido por um "mola", uma  estranha força a uma altura de meio metro. Tinha de estar de pé para tudo observar. Teve sorte porque se tornava num alvo facílimo. Com o tempo foi-se adaptando, e pôde por fim utilizar as teorias e práticas de contra-guerrilha insufladas nas serras do Marão, Meadas e rios Douro e Balsemão.

Verificando as presenças, Paolo informou Carlos de estarem todos os (des)interessados na excursão.

Carlos, com a sua fluidez e síntese, explanou então aos alferes e sargentos, a excursão a efectuar. Coisa simples, ir ao outro lado do Cumbijã onde, como já sabíamos, punha e dispunha o nosso amigo João Bernardo Vieira, ('Nino'). Objectivo: varrer a região de Cadique e destruir as instalações dos nossos amigos na região. Esta simpática visita seria intitulada operação Tesoura e teria a colaboração de mais uma companhia do batalhão, bem como a habitual ajuda de duas secções, do João Bacar Jaló, comandadas pelo Quêba. O embarque seria no cais de Impungueda e a LDM desembarcar-nos-ia no tarrafo junto à bolanha, próximo de Cadique Iála.

Vinte horas do mesmo dia. Os três grupos de combate estão formados em frente ao comando. Cinco minutos depois, é dada ordem de progressão até ao local de embarque. Em coluna, "fila de pirilau" pela ordem determinada, segue à cabeça, uma secção da milícia comandada por Gibi, seguida pela secção dos Vagabundos do furriel Mamadu; depois as secções de Chico Zé e Tambinha do 2°. grupo de combate; seguidamente viria o comando com uma secção de milícia e o 3°. grupo; fe­chando a coluna o 1°. grupo de combate.

O embarque efectua-se pelas 02h30 no máximo silêncio. O desembarque no local determinado também sem problemas, a lancha regres­sa e a companhia começa a progressão para o objectivo. Pelas 3hOO somos flagelados pelo IN. Nada de resposta, nada de denunciar posições, mas em certa parte o alerta estava dado. Tinha-se perdido a surpresa.

4hOO, aguarda-se um pouco mais o clarear do dia para se começar o assalto e a destruição das instalações inimigas. Próximo das 5hOO, tomam-se as posições de assalto. Quêba e seus homens, que passam a noite a mascar cola, formam a primeira linha; o 2° grupo de combate faz a cobertura; o 3° e o 1 ° . grupos fazem o envolvimento lateral.

5h10. Carlos dá ordem de assalto. Por momentos, vivemos um verdadeiro holocausto. Mamadu ordena:
- Olindo, já!

Sai a primeira dose da bazuca, depois grita para o homem da MG42:
- Ferreira, varre os poilões à direita.

O matraquear das G3 é ensurdecedor, a penumbra e neblina matinal não definem correctamente ainda a forma das coisas. Com o fumegar e saída dos projécteis das espingardas, parece que a terra se abriu para dar saída a um enxame de pirilampos.

Parecem cobras deslizan­do por entre o capim, Mamadu, já na operação Saturno, tinha tido oportunidade de acompanhar estas máquinas de guerra: cor­rida em zigue-zague, quinze a vinte metros, paragem imediata, joelho em terra, olhos de águia rompendo a frente, três segundos para perscrutar o horizonte, rajada varrendo a frente, nova corrida e assim sucessivamente, até se consumar o assalto.

Sabe-se que a guerra é um meio de destruição do próprio homem, mas quando o sangue ferve e temos de matar para não morrer, tudo se transforma nesse momento.

Tomada de assalto a tabanca que se encontrava deserta, obviamente procede-se à sua destruição. Os Vagabundos, comandados por Mamadu, terão essa tarefa como determinado. Simples: porta aberta, granada incendiária descavilhada para dentro, porta fechada e fugir para se abrigar. Em segundos o que era uma morança, é uma cópia do inferno de Dante.

E se está alguém lá dentro? Não seria a primeira nem a última!

Após a destruição efectuada, Mamadu reagrupa a secção, mas algo estranho acontecia, o cabo Cigarra chorava. Preocu­pado.  o furriel pergunta:
- O que é que foi, pá? Estás ferido?

Há sempre um estilhaço que nos pode apanhar. Mas o cabo diz não ser nada, talvez do fumo possivelmente.

Sem problemas esta fase da operação. Pior a batida à mata de Cadique Iála onde as coisas se baralharam um pouco com forte resistência do IN. Com o apoio aéreo resolveu-se a questão e, milagrosamente, desta vez sem um ferido sequer. Há horas felizes!

Batida que foi a mata, a companhia deslocou-se para a estrada de Cadique, onde se garantiria a protecção a um grupo de combate dos páras que iria entrar em acção.

Concluída a operação, havia que reembarcar, no cais de Cadique Nalu. Embarque um pouco atribulado pois, para além do cais estar destruído, a maré ainda a encher, a lancha tinha problemas para encostar, houve que entrar no lodo até aos joelhos. Coisa da guerra que,  como já se viu,  a preparação era feita como no jogo do pau. Aprendia-se a levar pancada. 

Finalmente lá se embarcou, descurando um pouco a segurança, é verdade, mas hoje é o nosso dia e a sorte também conta nesta vida de antiguerrilha. Não se pode levar sempre porrada,  carago, como costumava dizer, na sua típica linguagem tripeira, esse grande amigo que é António Pedro. Tivemos bas­tante sucesso na operação, conforme informações posteriores que confirmaram termos causado baixas significativas ao IN, já por nós calculadas dados os rastos de sangue que verificáramos na mata.

Camuflados cheios de lama e todos molhados, já na lancha, ainda alguém se lembrava de ter envolvido cigarros e isqueiro (nessa altura já não era obrigatória a licença) em saquinho milagroso de plástico. Geralmente almas caridosas, pelo que Mamadu come­çou a deliciar-se com umas gostosas fumaças, enquanto a lancha fazia marcha à ré até alinhar pelo meio do rio. Hora de sabor e de sonho. Mas o cabo Cigarra, continuava estranho! Mamadu estava preocupado.

Aproveitando a maré enchente, a LDM desliza suave­mente rio Cumbijã acima rumo a Cufar, num ronronar silencioso.

Em sentido contrário, o meu pensamento aproveita a deslizante maré para se transformar, e desgovernado rodopia e avança em louca navegação sem instrumentos de bordo, num abandono fantasmagórico de barco sem timoneiro.

Qual o ganho desta revolta sem ânimo, se o desalento que me assalta não leva a lado nenhum, nesta trama trágico-marítima? Fora do tempo e do modo, galopante,  a tua lembrança de mulher aparece! Descubro-te agora figura não apagada nos teus olhos negros vivos e cintilantes.

Corrói-me a inexistente coragem - forte motivação - para existir para ti e contigo. Sinto-me possuído e consumido por febrão de paludismo incurável, na existência da tua imagem. Num décimo de segundo tenho de abandonar-te, figura presente. O matraquear das PPSH, as 'costureirinhas', e o sibilante assobiar das metralhadoras Degtyarev passam uns metros acima da blindagem. O cabo marinheiro põe o motor da lancha numa po­tência louca, os dois fuzos agarram-se à metralhadora cobertos pela blindagem, ordem imediata para ninguém levantar cabe­ça. Apesar de mais de cem homens a bordo, a lancha levanta a proa e o doce deslizar transforma-se em louca hidroplanagem rio acima.

Não resisto. É mais forte do que eu. Pé sobre a rampa da lancha, espreito. O rio neste local alarga um pouco, mas é nítido o fumegar das Preciosas no tarrafo. A experiência do marujo é importante. Aproxima-se mais da margem contrária. Ouvi neste momento nitidamente o estampido cavo, da saída de granadas das RPG2. A coisa está preta. O motor continua no seu louco ronco forçado.

Mais uma vez volto a ti. Sinto-te perto de mim. Rodopiamos ao som da banda, junto ao Pelourinho. A minha mão esquerda aperta com sensibilidade extrema a tua mão direita, enquanto o meu braço, com enlevo, envolve o teu frágil corpo. Um balanço mais forte, um estrondo fortíssimo e escorrego pela blindagem da LDM. Aperto contra o peito a minha companheira G3, imagem há pouco transformada em ti. Um braço amigo segura-me. Uma granada de RPG tinha rebentado por cima da blindagem do abrigo da metralhadora. Cigarra, meu cabo amigo continuava para além da sua defesa, junto a mim. Espero, meu amigo, que a sorte nos sorria, assim como tu não me abandonas. 

Um ferido ligeiro, não é nada mau. Um pequeno esti­lhaço no ombro do fuzo impecavelmente tratado pelo Juvelino que tinha tanto de bom enfermeiro, como de tarado sexual. A zona de emboscada passou. A LDM voltou ao suave deslizar sobre as águas do Cumbijã. No cais de Impungueda, as viaturas esperavam o desembarque dos grupos de combate. O fuzo seguia na lancha até ao navio patrulha, o qual já entrara no rio para fazer a cobertura.

No cais, o furriel Mamadu, comandante dos Vagabundos, saltou para o unimog e sentou-se na capota por cima do moto­rista, como era habitual. Cara encovada, cheia apenas por uma barba mal arranjada, olhos fundos, ar de poucos amigos, gritou para o cabo Cigarra:
- Esta merda está pronta?
- Sim, meu furriel!

Respondeu o cabo no seu modo sereno e simples. Mamadu fez sinal ao alferes do grupo de combate, levantando o polegar da mão direita, que por sua vez informou Carlos. Após dez minu­tos de espera por causa das Amélias se acomodarem, que em to­dos os lados as há, a coluna arrancou direito, ao aquartelamento.

À chegada, como de costume, o pessoal que tinha ficado em Cufar aproximava-se e queria saber como tinha decorrido a Operação. Os valentes do arame farpado queriam saber se havia algum prisioneiro, para molharem a sopa. Necessidade psíquica para estes heróis ultrapassarem a cobardia fora do arame, e assim limpar o cu, borrado ainda da última saída ou flagelação às instalações!

Mandados destroçar os grupos de combate, cada qual foi tomar o seu magnífico duche, sob os bidões de gasolina ou petróleo, não importava, desde que tivessem água. Quem não tivesse bidões que a puxasse a pulso com baldes do poço. 

Nesta época já Mamadu, Francisco José e António Pedro dividiam entre si o quarto de adobe, reconstrução de armazém da antiga quinta do sr. Camacho. Mamadu pediu a Amadu, soldado nativo impedido dos três furriéis, para lhe limpar a G3 e os carregadores, bem como o cinturão e cartucheiras, e dirigiu-se para os chuveiros. Jata cantarolava debaixo da água.
-Amadu! Quero roupa lavada, calças e camisa civil - gri­tou Mamadu.

Depois de atirar com o camuflado cheio de lama para um canto, meteu-se debaixo do chuveiro e sentiu a água morna como que saída do esquentador. Que merda de terra esta, até a água fria é quente!... Se os americanos tivessem estas condições, não paravam um dia no Vietname! Só mesmo o portuguesinho aguenta esta porra, cogitou enquanto se ensa­boava.
-Amadu! - voltou a gritar-Diz ao Lopêz que quero o copo de bambu cheio e gelado!
-Furiel, bó cá cume nada? Bó cá tem cabeça,  furiel!
-Amadu, cala a boca e faz o que furriel manda, meu saco de carvão!
-Chi, minino, lassa picou mesmo furiel Mamadu! Mim bai chama Miriam, mim cá entende furiel, hoje!
-Bó suma burro de Bafatá!- gritou Mamadu enfure­cido.
-Vem buscar o camuflado que está cheio de lama e faz tu conversa giro com Miriam. Gosse gosse, tira esta merda daqui.

Jata tinha saído do chuveiro, calçou as sabrinas e enrolou a toalha à cintura, sem se limpar. Olhando para Vagabundo que tirava a espuma do corpo, deu um assobio de piropo e disse:
-Manga de ronco. Conforme estás hoje, há festa da grossa!
-Não me chateis, também tu! Zarpa! Fora! Vai levar onde levam as galinhas.

De facto não se encontrava bem... Sentia-se neurótico. Queria estar só, não queria ver, ouvir, sen­tir, ninguém por perto. O ego exige-nos muitas vezes o isolamen­to. Há momentos que são só nossos. Deixem-no só, por favor!...

Vagabundo estava mesmo no fundo. Vestiu-se lentamente, da mesma forma, descalço aproximou-se do bar e sen­tou-se num canto sozinho. O Lopêz conhecia já as tempestades e os tornados perfeitamente, pelo que, com a sua sensibilidade, evitava-os. Devagar, mais parecendo deslizar sobre gelo, levou o velho copo com dose dupla, colocou-o sobre a mesa, e mais uma vez adivinhando tudo, junto colocou um maço de Português Suave e uma caixa de fósforos. De idêntica forma deslizou para detrás do balcão, e a sua boca continuou um túmulo. Tão bem que nos conhecias, Lopêz, e quão mal nós te tratávamos!

Ao primeiro gole, o velho copo ficou meio. Um pouco nervoso, Vagabundo abriu o maço de cigarros, acendeu um e também este ficou pelo meio na primeira passa. Ao lado, mas silencioso, Chico Zé observava e adivinhava que Mamadu esta­va voando em direcção ao Alentejo. Verdade! Mas já não voava, tinha aterrado numa praça onde existia um pelourinho.

Conheci-te menina e moça. És um ano mais velha que eu. Eu ainda adolescente, com borbulhas na cara a despontar uma rara barba, sorrindo introvertido, envergonhado, olhos no chão. Por vezes, num arranque de dignidade, tentava procurar os teus olhos, com o rubor na face de te querer namo­rar.

Ninguém nos ajudou, ninguém nos desculpou, antes pelo contrário, tentaram conspurcar. As nossas mãos límpidas e cora­ção puro para uma simples paixão jovem. Hoje, tão longe tão per­to desse tempo, recordo com angústia que ninguém quis deixar­-nos provar a límpida água da ébria nascente dos nossos sonhos.

Espreitámo-nos por entre janelas de cortinados arren­dados, tendo o pelourinho como sentinela, arvorado em cúmplice guardião, em dias cálidos de verão, ou sorrir de sol em tardes de festa do Santo Mártir. Na sombra das acácias, teceram-se teias de segredos e ternura contida.

Nos meus olhos, a doce tentação do emanar da mensa­gem possível. A vastidão do forte sentir, a envolvente aventura da alma, na ânsia da emoção mal disfarçada. O encoberto e silenciado crime do meu (nosso?) amor, era a certeza de coisa sofrida no amplificar dos sentidos, tentando perscrutar o inaudível me­lódico som de guitarra chorando.

Uma mão tocou-lhe o ombro, e acordou. O Chico Zé tinha-se aproximado, a mão fez mais pressão e falou baixinho:
- Que é isso,  pá? Escreve pelo menos!
- Nunca! Dói-me muito.

Gargalhada.

-Nunca digas nunca. A malta não pode ficar assim. Vamos comer qualquer coisa, depois vão uns fadinhos de Coimbra, O.K.? Anda lá. Espera, vamos primeiro provocar o Jata.

Mamadu reagiu, limpou a garganta com o resto do Dim­ple e, conjuntamente com o Zé, atacaram:

"Diziam que era a mais bela de Andaluzia
Mais bela quando cantava à luz do luar,
Manuela .... Manuela ... "



Jata deu um salto no outro lado da sala e gritou:

- Cabrões! Lopêz dá-me uma 'bazuca'! (A 'bazuca' era um acerveja de 6,6 dcl.)

Não podia ouvir esta canção, tinha de recorrer à cerveja para apagar, ou pelo menos diluir, a lembrança sentida da mulher amada. Quase enlouquecia. Por vezes a dor era tão forte que as lágrimas rolavam-lhe pelo rosto em pérolas de saudade.

Carlos Manuel e António Pedro aproximavam-se, depois outros. Estava o coro formado. Olhos nos olhos, a guerra pre­sente morria naqueles momentos.

"Ao longe sulcando o espaço
Vai um bando de andorinhas”


O pensamento daqueles jovens, tornados homens de guerra, voava também com as andorinhas. Uma, de certeza, pousaria docemente no campanário da Matriz de N. S. do Paço, e chilreante, tentaria transmitir uma mensagem ao pelourinho.

Era nestas alturas que Lopêz se tornava Chefe man­dante, como ele o sabia fazer tão bem.

-Como é que é, hoje não se come? Vá.  meninos, para a mesa! Depois dizem que a comida não presta.

Abeirava-se mais junto do grupo e sussurrava baixinho, na sua voz gaguejante:

- Olhem que o G3 (, alcunha do primeiro sargento da companhia, ) já está a resmungar.

Aceitavam-se, por vezes, as ordens do Lopêz e o pessoal lá se ia sentando para a opípara refeição, tendo ainda o trabalhão de consultar a lista para escolher o menu:

Esparguete guisada com carne de vaca,

Carne de vaca guisada com esparguete,

Carne de vaca acompanhada de esparguete,

Esparguete para acompanhamento de carne de vaca. 

Difícil!

- Quem me escolhe a ementa hoje que eu estou indeciso? - pedia Tambinha, solícito.
- Come e cala, senão vais pró rancho geral comer baca­lhau amarelo com ciclistas ou batatas podres.

Era verdade. Por vezes não havia facilidades de abaste­cimento, várias vezes se tinha recorrido ao arroz pilado nas tabancas. E que mais queria a malta?

Não havia de vez em quando perdiz, pato, pombo verde e outras aves caçadas pelos doentes da caça?! E gazela com feijão frade?!...


Cada mês havia um gerente de messe. Quando calhava o Mamadu ou o Chico Zé, o G3 entrava em pânico pois não sobra­va um peso, e se as contas davam alguma coisa a favor, havia. bebidas de borla para toda a malta.

Vacas, isso não havia problemas. Quando o stock estava a acabar, fazia-se a operação Vacas. Só de voluntários, pois não se queria muita gente. Poucos, mas dos bons. Parecendo fácil, era muito difícil e extremamente perigosa. Vamos a uma:

Zona: Bolanha da tabanca de Boche Mende entre a mata de Cufar e Cabolol, só a pronúncia deste último nome, dava logo para fazer uma selecção.

Armamento: G3, um lança granadas foguete, uma MG42, granadas de mão ofensivas e defensivas.

Munições: à descrição.

Operação: o grupo de combate não poderia ter menos de trinta homens nem mais de trinta e cinco. O grupo seria dividido em três subgrupos: dois de segurança e um de "campinos".

O grupo saía direito ao cais de Cufar e seguia pelo tarrafo acima até junto à mata de Cufar Nalu. Assim que encon­trasse local apropriado, cambava o rio Manterunga, para o lado da bolanha de Boche Mende. Nesta zona de ninguém, tabancas que se encontravam abandonadas, existiam várias manadas de vacas. Localizada a manada que estaria em melhores condições de manobrar, era montado o dispositivo de segurança pelos dois grupos para esse efeito. Depois seria o trabalho dos "campinos" que tentariam reunir e conduzir o maior número possível de ca­beças para o local onde se cambaria o rio. Não era fácil, pelo contrário, exigia perícia, sangue frio e valentia. A primeira dificuldade, consistia em separar o touro dominante, chefe da manada, dos restantes animais.

Havia duas opções que só no terreno, e no momento se podiam determinar, resultando daí o sucesso ou insucesso da operação. Ou se abatia o touro e corríamos o risco de sermos detectados por algum grupo do PAIGC que andasse próximo, ou até espantar a manada. Tentava-se ir calmamente isolando o macho, de forma a manada ser conduzida facilmente. Tudo muito bem no papel, mas no terreno, só com gente com sangue mais frio do que rãs.

Nem sempre sucedeu bem e uma vez tivemos de pedir o auxilio da artilharia e dos morteiros 81. Com o rabinho entre as pernas e sem vacas, voltámos ao aquartelamento. Outros dias de sucesso compensavam generosamente esse desaire.

Após o jantar, o furriel, como de costume, passou pelo abrigo da secção para verificar o moral da malta. O pessoal estava contente, as coisas tinham corrido bem, havia uma mesa de lerpa, que terminou imediatamente à entrada do chefe dos Vagabundos. Alguns escreviam à luz do candeeiro, feito das garrafas de cerveja com mechas e petróleo lá dentro. O cabo não estava. Há problema!, pensou Mamadu. Perguntou então onde é que ele se encontrava ao que o Ferreira, o homem da MG42, respondeu, dizendo tê-lo visto jun­to ao cajueiro, em frente ao abrigo. Dirigindo-se para lá, dá com o mesmo quadro, o cabo a chorar.
-Que se passa pá, há problemas com a família?!. .. São saudades?!. ..

O cabo engasgou, um soluço abafado e triste saiu-lhe da garganta, virou a cara e disse, soluçando:
-Meu furriel, eu sou um criminoso, um assassino! Numa das casas, quando lancei a granada, estava um bebé a chorar lá dentro!

Mamadu apertou-lhe o braço com força, olhou para o céu e blasfemou, gritando!

-Oh, Deus! Oh, Tu que em tudo mandas, acaba depressa com esta merda de guerra suja, ou então Tu próprio tens de nos perdoar.

Grandes problemas existem nesta guerra, mas aparecem como acto natural, em natureza perversa e suja. Não há impos­síveis. Tudo hoje nos aparece como normal, nesta sujeira envol­vente de lama.

Na parte nova do aquartelamento, ainda no abrigo da secção, estava Vagabundo uma noite a dormir a sono solto, quando pelas vinte e quatro horas, mais ou menos, foi acordado pelo Orlando que estava de sentinela.
- Meu furriel! Meu furriel!
- O que foi?

Perguntou Vagabundo levantando-se e pegando imediatamente na G3.
- Não é nada, não faça barulho, deixe a arma venha ver, por aqui!

Saíram contornando as bananeiras, junto ao cajueiro, Orlando disse baixinho:
- Olhe ali para o curral das vacas, junto ao poilão!

Mamadu ficou pasmado, embora o luar não fosse o natural de África, pois a noite apresentava-se um pouco escura. A cena não era só visível, mas perfeitamente audível. O Fumaça, empoleirado nas raízes do poilão, calções em baixo, possuía a vaca preta, a Pretinha,  como se lhe chamava derivado da sua man­suetude. A mão direita afagava o bicho, enquanto se ouvia uma voz rouca e trémula de excitação:
-Está quieta, pretinha ... está quieta ...

Vagabundo
ia dar um berro. Dominou-se, pegou no braço de Orlando e sussurrou:
-Anda, vamos embora, os outros não utilizam a cabra? Deixa os animais,  coitados,pois é deles a noite como dos lobiso­mens. É o que esta maldita guerra faz de todos nós! Não somos animais, rapaz, somos bestas.

Fumaça ficou satisfazendo os seus instintos animalescos, e Vagabundo, num turbilhão mental de dor, de revolta, de dó e de confusão, pensou num ser Superior. Pensou, pensou, até entrar no escuro, e não conseguiu resposta nenhuma. Mas sentiu uma certeza: Deus deve estar completamente desfeito e desi­ludido, ao verificar a merda em que se transformou o homem que criou.

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Nota do editor:

19 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17258: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XX Parte: Cap XI - Como se Constrói uma Capela... ou o insólito encontro com o carismático capelão Monteiro Gama, do BCAV 490 (Binta e Farim, 1963/65)

quarta-feira, 22 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17169: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVIII Parte: Cap IX - Guerra 2: O primeiro Lassa a morrer em combate, o sold at inf Marinho


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCç 763 (1965/67) >  T6 com motor gripado, a aterrar na pista de Cufar, depois de alvejado  em Caboxanque.


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCç 763 (1965/67) > 1965 > Dakota afocinhando, na pista de Cufar, quando transportava motor do T6 alvejado em Caboxamque. O Mário Fitas é o 1º da direita-

Fotos ( e legendas): © Mário Fitas (2016). Todo os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto  em baixo, à direita, março de 2016, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais.]

Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVIII Parte > Cap IX - Guerra 2 (pp. 58-61)

por Mário Vicente


Sinopse:

(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o periquito fur mil Reis, que é devidamente praxado;

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;

(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965.

Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVII Parte: Cap IX: Guerra 2 (pp. 58-61)

E voltamos ao Cantanhez agora para fazer a {Op] Retorno a 17 de Setembro [de 1965]

Flaque Injã é o objectivo e o novo acampamento IN. Os Lassas a três grupos de combate embarcam em duas LDM, no cais de Impungueda pelas 24h00,  desembarcando na bolanha a oeste de Caboxanque, progredindo rapidamente,  ultrapassando esta tabanca e a de Flaque Injã, internando-se na mata a leste desta última.

Como primeiro objectivo teríamos a visita ao antigo acampamento, destruído na operação Satan, no entanto foram emboscados cinco elementos tendo sido aprisionados dois, que conduziram a CCAÇ ao novo acampamento existente. A recepção foi forte por parte do pessoal do PAIGC, utilizando armas ligeiras e pesadas, com balas tracejantes. Apesar dessa forte resistência, os Lassas assaltaram o acampamento desalojando o IN a quem causaram seis baixas confirmadas, apreendendo diverso material. 

Dirigem-se depois para Caboxanque em cujo cais deveriam reembarcar. Na frente da coluna em primeiro escalão, vai a secção do Chico Zé,  comandada pelo Carlos Manuel,  da secção de cães, levando como guias, Alfa Nan Cabo, Gibi Baldé e  Carlos Queba. Seguem-se as secções de Tambinha e Vagabundo. Há que atravessar um túnel arbustivo, onde se encontra uma cobra verde enroscada. A malta vai passando a palavra para trás, para as precauções necessárias pois uma picada desta bonita e simpática coisinha, de vinte e cinco centímetros no máximo é morte certa entre três, quatro minutos. 

Quando a cabeça da coluna atinge as proximidades da mata, de acesso ao cais de Caboxanque, há umas rajadas e uns tiros de G3 isolados. Malta para o chão, seguindo-se uns segundos sepulcrais. Que terá acontecido? Carlos Manuel e os seus homens lá na frente tinham desfeito dois indivíduos, capturado uma metralhadora ligeira, uma pistola e vários cunhetes de munições É aqui que Alfa torce o nariz, vem atrás e fala com Carlos.
– Ali na frente, manga de chatice! Pessoal não pode passa lá!

Inquieto, nariz no ar como que animal adivinhando catástrofe da natureza, rinoceronte perscrutando o perigo, não deixando de fazer o seu vocal som característico de “tchee… tchee…”.. Manga de chatice são as únicas palavras que sabe dizer. Almeida e Vagabundo chegam à frente, Alfa e Gibi apontam o chão. A experiência de escuteiro leva o furriel a verificar a erva levemente inclinada e a concluir também que por ali passaram dezenas de indivíduos.

Almeida leva os três guias e conferenciam com Carlos e Paolo. Carlos manda os Lassas abandonarem a mata em ziguezague e entrarem na bolanha, afastando o máximo possível.

É impressionante! O festim estava preparado com toda a ciência, uma emboscada com uma técnica fora do vulgar.

Quando os comandos do PAIGC se aperceberam que lhes tínhamos morto a detecção à retaguarda, fazer a diversão para terreno aberto, escamoteando a entrada na zona de morte, papando-lhe as migas na cabeça, ficaram fulos. Desvairado, o pessoal do PAIGC veio também para terreno aberto. Então começou o lindo espectáculo das bazucas e dos RPG a digladiarem-se. Estamos um pouco em vantagem porque as granadas dos RPG ao caírem na bolanha enterrando-se na lama, grande parte não rebentava. O céu mantinha-se encoberto e não tínhamos apoio aéreo. Verifica-se que são mais do que nós e que sem medo avançam em terreno descoberto.

Dá-se um milagre!... O sol desponta e ouve-se o roncar dos velhos T6. Damos a nossa posição no terreno com granadas de fumo. O “Mais Audaz” localiza tudo e faz duas picagens. Vagabundo, rádio sintonizado com o ar,  ouve nitidamente o tenente piloto dizer:
– Só vejo malta a rebolar… estou a atingir em cheio… vou picar novamente e gastar os últimos roquetes!

E assim faz, aparecendo sobre o tarrafo do lado do cais de Caboxanque, faz nova picagem. Ficamos suspensos por momentos, o piloto informa que a aeronave foi atingida e que ia tentar aterrar na pista de Cufar. Corações pequeninos, ouvimos que tinha conseguido. Quando regressados a Cufar soubemos, o T6 tinha sofrido bastantes impactes que lhe causaram dezassete furos,  um dos quais no depósito do óleo que esvaziara por completo, o avião a tocar na pista de terra batida e o motor a gripar.

Entretanto o festival em Caboxanque continuava. Alertadas, as lanchas e a vedeta da Marinha tinham subido o Cumbijã. Com a sua ajuda e mais uma parelha de T6, as forças do PAIGC foram reduzidas ao silêncio e os Lassas embarcaram,  regressando a Cufar.

Passados dias soube-se e ficará gravada na história da CCAÇ 763, tínhamos tido à nossa espera uma Companhia do Exército Popular, comandada, nada menos nada mais, do que pelo comandante 'Nino', a qual sofreu das mais avultadas perdas em termos humanos averbadas pelo PAIGC.

Obrigado Alfa, FAP e Marinha,  pois estaríamos metidos numa enorme e indefinida encrenca se não fosseis vós. A sorte também conta, sendo de uma importância extraordinária nesta guerra.

Nunca será pouco enaltecer os amigos fuzos e marinheiros, e aquilo que por nós fizeram com as suas lanchas e vedetas. Aos pilotos, e às enfermeiras páras, bastará o conhecimento e forma como são recebidos em Cufar para saberem como lhes estamos gratos por tudo.

É claro que nem tudo foram rosas.

Havendo uma grande operação dos fuzos na zona de Cabedu, foi montado o posto de comando e evacuação em Cufar,  derivado da sua bela pista e segurança. Hospital de campanha montado do lado esquerdo junto à entrada do aquartelamento. Por escala os Vagabundos de piquete. O seu chefe furriel já alcunhado de Mamadu, vestido ou despido à maneira do mato, calção e camisa de caqui, bota de lona e boina preta, pistola caindo do cinturão à “pistoleiro” em vez de carregar com a G3. Malta almoçada, segurança montada às aeronaves na pista, um calor de rachar, toca de espreguiçar numa maca, instalada no improvisado Hospital de Campanha.

Foram-se juntando alguns soldados em redor do furriel, começando as anedotas e histórias da vida de cada um. Mamadu delirando contar e ouvir uma anedotazinha, contava aquela do dramático caso do patrício que se queria suicidar por infidelidade de sua companheira e que, subindo ao quinto andar do prédio, de lá gritava estar farto da vida e que se iria mandar dali abaixo. O povoléu juntava-se todo à espera do desfecho do drama, quando apareceu a mulher do infeliz e que em desespero gritou:
– Oh!, a  homem, não faças isso,  porque eu só te pus os cornos, não te pus asas!

Encontrava-se Mamadu e aquela malta toda nesta bagunçada, quando de repente aparece a alferes pára enfermeira. Ao ver a malta por ali sentada, correu com a soldadesca toda. O furriel continuou agora sentado na maca, mas também ele teve ordem para se pôr a andar. Verificando o protagonismo que a sra. alferes estava a tomar, o chefe dos Vagabundos resolveu manter o seu. Deu-se então um diálogo interessante. Mamadu levantou-se e informou:
– Saiba Vossa Senhoria, meu alferes, que eu não vou abandonar esta posição, se há alguém que tenha de solicitar autorização para permanecer neste local, não serei eu, pois quem é aqui o responsável neste momento é este maltrapilho do mato que se apresenta a vossa senhoria!...

Perfilando-se, na posição de sentido, o furriel pronunciou:
– Apresenta-se o furriel miliciano Mamadu, comandante do piquete com a responsabilidade total pela segurança desta tenda, bem como de todas as aeronaves que se encontram na pista. Não tenho as divisas nos ombros, porque no mato é adorno que não usamos e a boina preta está superiormente autorizada.

Grande discurso!... A alferes enfermeira [, Maria Ivone Reis, foto à esquerda,]  sorriu e repostou:
– São todos iguais!... Têm todos a escola do vosso capitão! Mas pelo menos deveria estar com roupa em condições!
–  Saiba sra. meu alferes, que a minha lavadeira Miriam está em Catió com montes de roupa à espera de portador, pelo que não tenho o prazer e a honra de lhe satisfazer esse desejo. Mas como sabe e muito melhor do que eu, para morrer tanto faz estar de smoking como de camisa rota, o importante é estar lavada!
– Machistas de merda!

Foi a resposta que o furriel recebeu. Tinha razão a alferes enfermeira!?... Sim! Tinha razão, mas a CCAÇ não pode parar com estas ninharias pois o caminho a percorrer é longo. Reentramos nos cercos e limpeza e bate-se toda a tabanca de Cubaque,  dando forma à operação Rissol. Voltamos a Camaiupa e Cantumane para efectuar a [op] Rastilho, reconhecendo toda a mata. Uns tiros sem importância para comunicação e reunião, nós sabemos que eles continuam lá, é vital para dar seguimento ao corredor de Guilege. 

Quando entrávamos em Cantumane aconteceu precisamente o mesmo que na operação Trovão. No mesmo local e da mesma forma, fomos emboscados e atacados com o sistema de abelhas. O grupo de combate que seguia em primeiro escalão é obrigado a recuar. Só depois do envolvimento dos outros dois grupos e após uma hora de fogo intenso, a CCAÇ consegue repelir o IN causando-lhe nove mortos e pelo menos um ferido. Pela nossa parte um morto e vários feridos com picadas de abelhas. O soldado Marinho regressou à sua terra para nela repousar eternamente. Alguém irá ao Terreiro do Paço, receber a medalha postumamente atribuída. Os feridos no total de oito tiveram de ser evacuados alguns para Bissau,  resultante das picadas das abelhas, pelo que nos tivemos de deslocar para a bolanha para serem levados pelos helicópteros.

Com a morte do primeiro militar da CCAÇ 763, houve que definir coisas muito importantes. Tendo em atenção, a construção da nossa identidade, com o direito à identificação e localização, de um ente que faz intrinsecamente parte do nosso génese, ou agregação espírito-matéria. Sendo um direito adquirido, fazendo parte da nossa complexa estrutura cultural, o cultivar o culto dos mortos, e fazermos o nosso luto. Nunca um combatente poderá ficar no campo de batalha, local da sua morte, mas sim onde as suas cinzas façam parte de um todo, de uma vontade una daqueles a quem estão ligados.

É Cultura Portuguesa, caso contrário não teríamos ninguém nos Jerónimos.Todos devem ter direito aos seus sentimentos!

É importante que as nossas famílias saibam o que lhes é entregue. Quem não dignificou o valente soldado português, vindo dos mais recônditos lugares deste país? Não são considerados e respeitados por quem devia.

Carlos manda formar a Companhia e é assumido o compromisso:
–  Qualquer elemento da CCAÇ 763 que tenha a infelicidade de aqui falecer, a família receberá o seu corpo. Todos contribuirão para o efeito, em função do seu vencimento. Assim acontecerá!

Não abrandamos o controlo a sul. Num golpe de mão a Cantone, Quepul Na Cuenha,  chefe de partido de Mato Farroba, e Go Na Ialá,  enfermeiro do PAIGC, são feitos prisioneiros. Go Na Ialá é abatido por uma sentinela ao tentar a evasão, saltando o arame farpado. Mas também não temos meios para fazer tudo na noite de 26 para 27 de Novembro, elementos do PAIGC aparecem nas tabancas a sul tentando aliciar a população, raptando alguns blufos que conseguiram fugir e se apresentaram no aquartelamento informando do acontecido.

Confirmamos as dificuldades do PAIGC com a população, e no recrutamento interno, mas chegam-nos informações de que o Exército Popular está a ser reforçado por pessoal estrangeiro que não se limita a dar instrução, entrando também em combate. Verificamos que a guerra começa a internacionalizar-se. Não é novidade, já haviamos abatido uma ave estranha.

Continua a cobrança!... Hoje pagas tu, amanhã pago eu!

Primeiro de Dezembro, uma data que ainda diz qualquer coisa a este povo português. Inauguramos uma escola para as crianças nativas. A sua actividade é iniciada com a frequência de uma centena de alunos das povoações a sul e por nós controladas. É-lhes igualmente distribuída diariamente a primeira refeição, tendo-lhe sido fornecidos livros e outro material, tudo a expensas da CCAÇ 763. Desempenha as funções de professora Dª. Glória, tendo como assistente na parte de desporto Jata, o nosso amigo Micaelense, sargento Luís Tavares de Melo.

Não param os Lassas, apesar dos mortos e dos feridos que já sofreram, é necessário aproveitar a maré alta e por isso já fomos para o outro lado do Cumbijã, estamos cá para quê?... Fazer a guerra? Faça-se!
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segunda-feira, 13 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17130: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVII Parte: Cap IX - Guerra 2: Em pleno Cantanhez, relembrando o meu companheiro, o meu avô materno, que dizia, quando o almoço se atrasava: "Doze horas é meio dia, / Quem não almoça enfraquece! / Já a água não me mata a sede, / Já o meu amor não me esquece!"


Guiné > Região de Tombali > Cufar >  CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67 > Golpe de mão em que aprisionaram o Calaboço (p. 42)  > Mário Fitas, Gibi Baldé e srgt Jata.

Foto: © Mário Fitas (2016). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto abaixo à esquerda, março de 2016, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais.]

 
Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVII Parte > Cap IX  - Guerra 2 (pp. 53-58)

por Mário Vicente 

Sinopse:

(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante  militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o periquito fur mil Reis, que é devidamente praxado.

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno... 


Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVII Parte: Cap IX: Guerra 2 (pp. 53-58)

Havia apenas oito dias sobre a varredela em Cabolol, e eis que o 2º Grupo de combate tem de partir para Catió e levar o pelotão de Artilharia. Nessa noite, o grupo da milícia do João Bacar Jaló, estacionado em Priame, detecta que a estrada foi minada, pelo que temos de voltar ao sistema de picagem da mesma. Sorte!...

Mesmo ao cimo da leve subida, quando a estrada entra no túnel da mata, após o vale de capim que separa aquela do cruzamento do Cabaceira, foram detectadas duas “meninas simpáticas, blenorrágicas prostitutas anti-carro” que por nós esperavam, para nos fornicarem o corpo. Que grande porra!... As viaturas e os obuses no vale, se somos emboscados, estamos com as calças na mão. Há que deitar mãos à obra rapidamente e rebentar as minas, coisa que ainda dá problemas, pois  o maluco do Chico Zé as quer levantar em vez de rebentar. Não pode ser!... E se estão armadilhadas? Felizmente que ele é o único com essa ideia, e o Almeida não autoriza. Vagabundo brinca com Chico Zé:
– Oh pá, Zé, porra!... estás farto da malta? Queres-te ir embora já?...

E era verdade, porque estavam armadilhadas.

Depois de rebentadas, deixaram uma cratera que cabia lá um unimog! Toca a tapar o buraco para as viaturas avançarem. Trabalho efectuado, viaturas passadas, pessoal em segurança, vai um minutinho para fumar um cigarrito. Em todos os trabalhos se fuma, como se diz na minha terra, costumava Vagabundo dizer.

Vamos então verificar como funciona a guerrilha, altamente organizada e eficiente contra a nossa ainda ingenuidade. Fumando o cigarro, juntaram-se em amena cavaqueira de guerra nada menos nada mais que: três alferes, três furriéis milicianos e um milícia, Zé de nome e libanês de nacionalidade, sendo de alcunha portanto, o Zé Libanês e que também ninguém sabia porque é que aquela espécie aparecia fazendo a guerra.

Conversa animada no grupo quando, num repente, um clarão chama aflorou da terra, secundado de um grande estrondo e o grupo foi atirado cada um para seu lado. A meio da picada, Chico Zé de gatas em frente de Vagabundo, dizia para este:
– Estou ferido!… Estou ferido!...

Vagabundo vergado, apalpando-se todo dos pés à cabeça, sem olhar para o seu companheiro e tendo em atenção apenas a confirmação da apalpação que a si próprio fazia, e só com o sentido em si, respondia ao companheiro:
– Não, não estás!

Por momentos a mente de todos entrou no vazio. Um gemido levou-os a voltarem à realidade. Olharam na direcção do gemer agora mais forte, e todos viram o alferes de Artilharia estendido na berma. Perna direita levantada, onde apenas uma óssea forca tíbio-perónia aparecia por entre a chamuscada calça camuflada, pois o pé direito tinha desaparecido. Porra!... uma mina anti-pessoal.
– O enfermeiro depressa!–  gritou Almeida.

O artilheiro, que em princípio não ia p’ró mato nem andava no duro e na dança, ali estava agora a receber os primeiros socorros, com esfacelamento total do pé direito, fractura do terço inferior na mesma perna, queimaduras na coxa esquerda e nos braços. Mais um inválido com vinte e quatro anos!

O cabo de transmissões entra em contacto com o aquartelamento que, de imediato, pede evacuação a Bissau que será depois feita de avião. Mas agora como vai ser? Há que levar o camarada para Cufar. Mais outra loucura. Mas a guerra é isto!... Chico Zé, cara toda chamuscada, camuflado cheio de terra, oferece-se:
– Eu levo o Évora para Cufar!

Todos conhecemos a perícia do Zé, autêntico condutor de ralis, mas é perigoso voltar só. Almeida decide rapidamente, acede e manda subir para o unimog o enfermeiro entregando-lhe uma G3 e nomeia outro soldado, que também salta para a viatura. Chico Zé dá a G3 ao condutor que cede o lugar. Com o ferido esticado na caixa, o enfermeiro e soldado segurando o infeliz, Chico Zé, conduzindo o unimog, arranca direito a Cufar. É assim a guerra, ou ficamos todos ou salvamos um!...

Almeida manda o cabo transmitir para Cufar, de onde saem uma auto-metralhadora e o piquete para vir ao reencontro.

O enfermeiro depois contou que nunca tinha andado assim de carro.
–  Aquela “merda” até andava só sobre duas rodas!

Quando a auto-metralhadora e o unimog do piquete faziam a aproximação para entrar na estrada Cufar-Catió, o Chico Zé entrava no fundo da pista a alta velocidade deixando os outros para trás, fazendo a inversão de marcha.

Primeira vítima da estrada maldita! Eles não perdoam!...

Cufar informa e continuamos para Catió. Chegados a Catió não dá para mais nada, é largar os obuses e correr para o cais, aproveitando a maré, pois há que embarcar para o Cachil, na ilha do Como. Temos de fazer a segurança àquele desterro, enquanto os sacrificados vão efectuar uma operação ao Tombali. É chegarmos nós e saírem eles.

Ficam o primeiro sargento e os cozinheiros, para nos darem as explicações sobre a defesa deste forte Apache. Também não tem explicação plausível pois, é já lugar comum que só quem passou por terras da Guiné e pelos diversos aquartelamentos pode aquilatar do poder de adaptação do valoroso soldado português. Desfalcados, com cozinheiros e outros pobres de Deus, defender um aquartelamento daqueles?!... E se o IN soubesse, e fosse lá? Escaqueirava aquela merda toda e os que não morressem seriam apanhados à mão. Vagabundo confirma “in loco” as descrições do Cachil feitas pelo Fernando, homem dos morteiros. Já não vale a pena comentar pois, por vezes, sente-se mesmo a tristeza e a impotência de uma tropa tipo pé descalço.

Quero antes Cufar onde há ar e espaço, quero ir para a estrada, prefiro morrer nas matas de Cabolol do que aqui entoupeirado neste pequenino murado quintal.

A CCAÇ  continua imparável, há que aproveitar o desempenho e moral desta gente. As operações sucedem-se, é a hora certa para dar um salto ao outro lado do Cumbijã, à quinta do Nino, e verificar como estão as coisas por lá. A 8 de Julho de 1965, a Companhia embarca em Impungueda a fim de levar a efeito a operação Satan. Pelas quatro horas da madrugada as três LDM que transportam a CCAÇ encontram-se frente a Caboxanque. Detectados, as forças do PAIGC abrem fogo contra as NT, as lanchas conseguem acostar e o primeiro grupo de combate a desembarcar contra-ataca, desalojando os guerrilheiros.

Conseguindo progredir através de Caboxanque e depois Flaque Injã, pelas 7h00 consegue-se detectar e assaltar um acampamento, o  qual foi destruído bem como várias instalações e uma grande escola do PAIGC, onde é apreendido bastante material e documentação. Entre a documentação são encontradas várias fotografias, uma das quais do nosso amigo Nino em Pequim.

Na descida de Flaque Injã para Caboxanque somos emboscados. Reagindo bem, a Companhia consegue abater seis guerrilheiros, capturar uma espingarda automática e diverso equipamento. No cais de Caboxanque onde se nos juntara a 4.ª CCAÇ  de Bedanda, enquanto se aguardava o embarque, fomos de novo fortemente atacados, mas o IN foi repelido. Sofremos um ferido grave que foi evacuado de helicóptero para Bissau. Já desflorámos o Cantanhez, dizia Jata, e era verdade…Caboxanque e Flaque Injã ficaram a conhecer os “Lassas” na operação Satan.

Há um caso que nos preocupa. Capturar o Alfa Nan Cabo. Já fizemos três golpes de mão para o apanhar e nada. O gajo parece uma enguia. De etnia balanta, cuja religião reside no respeito e obediência ao espírito dos antepassados, já que têm a experiência vivida em dois mundos, vivos e mortos, por consequência com dupla experiência da vida vivida nessa dualidade, estão em melhores condições de orientarem os que andam por cá. A vida é movimento, movimento é vida.

O soprar do vento, o ondular das águas, as chuvas fustigando, o enfurecimento do mar, os rios de maré na sua maravilhosa dualidade, de corrida para a foz ou para montante, o relâmpago rasgando o céu, todas as forças que se manifestam animando os corpos são espíritos que tudo controlam do além.

Voltamos a Cabolol. O guia vindo do Batalhão garante-nos haver um novo acampamento, mas não encontramos nada. Leva-nos ao antigo acampamento que verificamos continua destruído. Divergimos para a tabanca de Cantumane que verificamos encontrar-se deserta. Procedimento normal em termos de anti-guerrilha, proceder à revista de todas as moranças e depósitos de arroz.

Quando o grupo destinado executava essa tarefa, a CCAÇ  foi violentamente atacada por um numeroso grupo IN que se encontrava emboscado na mata a norte. Três ataques sucessivos com armas ligeiras e RPG,  verifica-se a impossibilidade de utilização de morteiros, resultante da proximidade em que as forças se encontram. No entanto é-nos dada a oportunidade de contactarmos com um novo, para nós, método de emboscada, a utilização de abelhas. Os cortiços são postos em pontos estratégicos e, ao desencadearem a emboscada, fazem fogo sobre os referidos cortiços.

As abelhas “lassas” saem lançando-se enfurecidas sobre os nossos homens, desarticulando completamente o dispositivo dos grupos de combate, ficando muita gente incapacitada para combate, e para responder à emboscada. Com algum esforço, consegue-se fazer o envolvimento do IN provocando-lhe várias baixas confirmadas. Pela nossa parte sofremos mais um ferido grave que não viria a resistir, o nosso Madeira, sargento Leandro Vieira Barcelos, é atingido no fígado por uma bala depois de lhe ter perfurado o rádio. O Barcelos não se aguentou e fina-se no dia seguinte, no HM de Bissau. A CCAÇ sofre mais três feridos graves por picadelas de abelhas, que foram também evacuados para o Hospital. Limpeza feita, Cantumane mais uma vez destruída, assim termina a denominada operação Trovão.

O célebre e avidamente tão procurado Alfa Nan Cabo,  de etnia balanta, apresenta-se no aquartelamento de Cufar, entregando-se às nossas forças, passando a colaborar connosco. Irá ser um elemento extraordinário com grande influência na prestação dos Lassas, os quais lhe ficarão a dever o safanço de um morticínio, no outro lado do Cumbijã, que mais tarde contaremos.

Alfa Nan Cabo, balanta, desertor do PAIGC
Alfa Nan Cabo, meu irmão, tens por de trás de ti toda uma história que não vale a pena entrar aqui.

Quero só descrever-te agora, correndo uma cortina sobre a tua vida de menino, blufo e homem. Basta recordar aquele lagarto parecido com uma iguana. Ali nas brasas e a malta toda enojada, verificando aquele manjar, cobiçando apenas a pele do lagarto para curtir. Belo petisco! Apenas uma pequena homenagem, meu irmão, à tua compleição física: muito próximo do metro e noventa de altura, com noventa quilos de peso, anda descalço saltando aos pés juntos para cima de um unimog, levanta o dedo grande do pé direito, dá um chuto na bola de futebol a dez metros do varandim do Comando, e esta rebenta contra o muro.

Cheira o IN à distância. Calcula-se que aqui no sul, o exército popular do PAIGC com maioria de guerrilheiros balantas, cinquenta por cento será formado por indivíduos cuja compleição física será como a do Alfa. Já verificámos isso nos que abatemos e fizemos prisioneiros. Estamos feitos!

Voltamos a caminhos de Cabolol mas seguindo a estrada, passamos nas bordinhas da mata e vamos até à tabanca de Cobumba, numa acção punitiva, por a sua população dar guarida a um grupo de guerrilheiros, que teria causado várias baixas à 4.ª CCAÇ  estacionada em Bedanda, entre as quais se contava um sargento.

Entramos no turbilhão da mata de Cufar com o Torcásio a borrar-se todo e a vomitar, não sabemos se foi qualquer estragada que se lhe deu, ou se o medo que ingeriu, pois quem tem mulher e filhos sempre o “cu” lhe traz a recordação. Já parámos três vezes e com o barulho das descargas e ânsias dos vómitos, de certeza não tardará a nossa posição a ser detectada. Noite de breu… não chove… assim será melhor.

Pára novamente a coluna.
– Que porra!...

Passamos a noite nisto e não tardará que estejamos a levar nos cornos em vez de atingirmos o objectivo, o furriel liga o rádio banana, mas desliga imediatamente, o Fumaça que seguia na sua frente vira-se e sussurra:
– Furriel,  formigas das grandes numa abatis!
– Porra!... Só faltava esta!...

Toca a despir, se estas gajas se pegam à roupa estamos fodidos. Bonito!... O furriel sorri perante o imaginável espectáculo, se fosse noite desse maravilhoso luar africano. Uma centena e tal de cus em movimentação pela picada fora. Trampa de guerra!

Mesmo com todos os contratempos, o objectivo é atingido sem problemas. Cobumba é cercada e a população é apanhada de surpresa. Começa a limpeza com um certo alarido entremeando algumas rajadas sobre alguns fugitivos. Como habitualmente é dirigida à população uma prelecção sobre a guerrilha. É feito prisioneiro o guerrilheiro Malan Cassamá que irá para Cufar com mais uns elementos da população, para averiguações. Assim a operação Vindima termina.

Época de chuvas. Vagabundo deveria estar a caminho de férias, para na sua Planície apadrinhar o casamento de sua irmã Adelaide mas… sai tudo furado. A morte do pobre sargento Madeira, alterou a escala das férias. Faça-se o casamento sem o padrinho, haverá sempre alguém que honrosamente faça a substituição. O furriel Vagabundo tem outras festas a realizar.

E temos mais uma surpresa: Tui Na Defa, ex-guerrilheiro do PAIGC, apresenta-se em Cufar, e passa a fazer parte da Companhia de Milícia 13. Meu bom Tui, como eras simpático e que grandes amizades tinhas com todos os Lassas. Soubemos já em Lisboa que também tinhas ficado na estrada maldita. Que o teu iran te dê o respectivo valor, porque para as pátrias a quem serviste, apenas foste um objecto. Apenas os amigos que criaste, se lembraram de ti.

É-nos dada uma rara oportunidade para observar as maravilhas da natureza e seus elementos nas suas mais extraordinárias facetas incluindo as mais violentas e destruidoras. Saída nocturna na mata de Cufar Nalu, para em patrulhamento visitar o velho Acampamento do PAIGC, não vá ter inquilinos novos!

O céu pode considerar-se como uma tela da Natureza, sendo a base de todos os fenómenos atmosféricos correntes que nele se reflectem. Seguindo na célebre bicha de pirilau, somos surpreendidos ainda escura madrugada, no labiríntico carreiro dentro da mata por selvagens sons esquisitos. Babuínos, aves, toda a espécie animal ali vivente se ouve num estranho ruído de aflição, que nos transmite também uma sensação algo estranha. Que se passará? Eis que em segundos a selva é violada por um clarão de deflagração cósmica e imediatamente, o ribombar de enorme trovão ressoa até aos confins das mais ignotas matas. Aí está! Produzindo um dos fenómenos meteorológicos mais espectaculares e violentos resultantes de apenas três ingredientes: ar, água e calor.

Uma trovoada tropical! Quase diárias nesta época, não tínhamos apanhado nenhuma assim nocturna isolados na mata, sendo envolvidos no seu turbilhão de água, caindo em cascata. A sua mais perigosa manifestação, os raios, colossais descargas eléctricas podendo atingir potências inacreditáveis de volts, aquecendo a milhares de graus centígrados, próximo da velocidade da luz, provocando uma explosão sob a forma estrondosa ecoante, o trovão. A energia é tal que ilumina toda a mata e que nos deixa mais cegos por momentos, na escuridão já existente. Depois da cegueira resta-nos a sorte divina de não sermos alvejados, porque o esgaçar das monstruosas árvores, parece som de papel rasgado por nervosas mãos, elevado a milhões de decibéis. Ficamos completamente desnorteados, como formigas saídas do carreiro por entre manada de elefantes. Encharcados até aos ossos, mãos dadas para não nos perdermos, vamos andando devagar com o pensamento não se sabe onde (nem querendo saber de momento). Assim vamos ao encontro do nosso destino…

Vagabundo confirma que o homem se descobre, quando se mede com o obstáculo. Como chega rapidamente sem nos apercebermos, assim se dissipa o tornado deixando apenas o seu rasto devastador.

Passamos pelo destruído acampamento que continua na mesma como coisa assombrada. Ali, com certeza o espírito dos mortos vagueará e imporá o temor e a impossibilidade de reconstrução.

Rompeu a manhã e descendo pelo lado contrário, direito à picada da antiga tabanca de Cufar Nalu, vão-se os camuflados enxugando pelo calor corporal emanado, enquanto o pensamento mais tranquilizado se desprende e procura outras paragens.

Vagabundo
ligando os fenómenos da natureza, sorri interiormente e relembra os seus tempos de escuteiro, a trovoada no acampamento no eucaliptal da Fonte da Eira e os resistentes ao (bronquítico ataque). Também a chuva caía como Deus a mandava, trovejando fortemente, mas foram fortes, resistentes, verdadeiros rapazes de Baden Powell. Levantando o pano da tenda para comunicarem com os da frente, a panela de arroz com carne no meio, à vez por ordem não comandada, a colher ia entrando e enchendo aquelas bocas sem temor da trovoada.

Por onde andais vós,  meus grandes amigos? Peta, Carmélia, Casado, Pitórrela, Mochila e outros? Quem sabe não vireis aqui bater com os costados para conhecer esta bonita terra? Olhem, eu vou enxugando esta merda de roupa camuflada no corpo, só que já caminho de perna um pouco aberta pois já sinto os tomates assados. Um dia iremo-nos encontrar, se tudo correr bem e tiver a sorte de não levar um tiro nos cornos,  havemos de beber uns copos à nossa saúde. O sorriso apareceu novamente ao relembrar outras aventuras dos tempos de puto e gandulo.

Vagabundo caminhando agora, já de regresso, na leve subida de acesso ao fundo da pista de aviação na estrada Cufar /Catió, a porra do camuflado mal enxuto de água mas agora molhado pelo suor, foi atingido o fundo da pista, com o pensamento já em qualquer coisa para comer, pois o esgalgado estômago já se encontrava em vazia badalação de horas de almoço. Voltando mais uma vez à sua Planície e ao familiar convívio dos seus mais queridos, o furriel relembrou seu avô, quando a hora de almoço por vezes se atrasava, o simpático e amigo velhote recitava:

Doze horas é meio dia,
Quem não almoça,  enfraquece!
Já a água não me mata a sede,
Já o meu amor não me esquece!

Como vês,  Tânia, até o velhote traz a recordação. Adorável este sabedor avô. Parece que está aqui, nos seus segredos, fugindo ao controlo das filhas, minha mãe e de minha madrinha.
– Pst! Pst! Tens bagalhuça?

E sorrateiramente fazia o gesto,  esfregando o indicador e polegar.
–  E ela é bonita? Respeita sempre!

Simplesmente maravilhosa, esta criatura, com quem tanto convivi desde que enviuvou, eu apenas com quatro anos fiquei a ser o seu “companheiro”, pois sempre assim me tratou.
–  Por onde andará aquela alminha, meu doce companheiro?

Nunca imaginaste bom avô! Nem terás conhecimento do abutre em que se tornou o teu companheiro. Ainda bem que ignoras a guerra.

Chegados! Vamos ao duche e ao almoço que a fome é negra.
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