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terça-feira, 17 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16099: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (37): O nosso Blogue e a sua importância (Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil da CCAV 8350)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Reis (ex-Alf Mil da CCAV 8350, (Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã e Colibuia, 1972/74), com data de hoje, 17 de Maio de 2016, subordinada ao tema, O nosso blogue como fonte de informação:


O BLOGUE E A SUA IMPORTÂNCIA

Caros Editores
Amigos e camaradas,

Há perto de um mês, um professor de História da Escola Secundária de Moncorvo, Armando Gonçalves, solicitou ao Blogue a sua colaboração para que pudesse concluir a sua pesquisa sobre as condições que envolveram a morte do Alf Mil Lourenço da CCAV 8350, falecido na Guiné em 5 de Março de 197373(1).

Este caso englobava-se num projecto mais amplo, respeitante a todos os ex-combatentes de Moncorvo, falecidos nas ex-províncias ultramarinas e nascidos no concelho de Moncorvo. Como se depreende a sua tarefa não foi fácil. O conhecimento das datas de nascimento, filiação, localização dos cemitérios onde se encontram os corpos e a localização de familiares ainda vivos exigiu muito tempo e perspicácia ao Armando. Os locais e as circunstâncias em que morreram foram talvez o trabalho mais complicado. A singela homenagem aos ex-combatentes mortos ser-lhes-à prestada com a colaboração da Câmara Municipal, em data oportuna.

Quero deixar aqui duas notas: O meu apreço e gratidão pela dedicação do Armando a ex-combatentes, nossos camaradas e amigos. Não basta dizer que houve uma guerra e como em todas as guerras há mortos, feridos e estropiados. É redutora esta visão. Há algo mais para além disso. O meu apreço pela pronta, rápida e eficaz colaboração do Blogue, que acabou por me envolver neste processo e me sensibilizou para avançar na localização da campa do Alf. Lourenço e da da sua família.

Em pouco tempo se reuniram a maior parte dos elementos que o nosso amigo Armando precisava com a ajuda preciosa do Alf. Gonçalves, outro dos Alferes da CCAV 8350, que vive em Almada e não via há imensos anos. Localizámos a campa do Alf. Lourenço e dois dos seus primos ainda vivos.

Prestar uma singela homenagem, junto da campa do Lourenço, no Monte da Caparica, conversar com o Gonçalves e conhecer uma prima do Lourenço era uma razão forte para me deslocar ao Monte da Caparica, o que fiz logo que se deparou uma oportunidade. Foi um encontro emotivo e gratificante.
Durante o almoço recordámos vários amigos, várias situações e alguns episódios. Recordámos a morte dramática do Alf. Branco, em Gadamael, que foi substituir o Alf. Lourenço e que poucas horas permaneceu entre nós.


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Vista aérea de Gadamael Porto nos finais do ano de 1971. 

Foto: © António Carlos Morais da Silva, Coronel Art Ref.

Assisti, revoltado, na vala, à sua partida para o patrulhamento, desnecessário e sem sentido. Já não o vi regressar.

Ainda hoje dói ao reviver o filme deste episódio. Não é minha intenção responsabilizar ou julgar alguém, o meu relato é factual.

No dia 31 de Maio de 1973 o Coronel Durão ordena-me para fazer um patrulhamento a Ganturé, da parte da tarde. A meio do percurso, perto das 15 horas, rebenta o ataque do PAIGC e ouvem-se as granadas a sibilar por cima das nossas cabeças. Chego ao local e constato que estou a 100 metros de uma boca de fogo do PAIGC. Solicito o regresso ao aquartelamento, conforme combinado, mas é-me negado, e só no dia seguinte de manhã regresso sem autorização superior, por não me ter sido possível estabelecer qualquer contacto, via rádio, com Gadamael. Entro no aquartelamento pelas 11 horas da manhã do dia 1 de Junho.

No aquartelamento sou informado pelo Alf. Seabra de toda a situação. Houve imensos mortos e feridos e não restavam mais de 30 homens, dispersos nas valas. Tinha havido uma fuga desordenada no dia 1 de manhã. Uns conseguiram chegar a Cacine e outros refugiaram-se nas imediações do aquartelamento, onde se sentiam mais seguros do que dentro do aquartelamento. E ainda outros que morriam na travessia do rio.

No dia 1 de Junho, da parte da tarde, o abrigo das transmissões é atingido e são feridos os dois comandantes de Companhia, que acabam por ser evacuados pelos fuzileiros estacionados em Cacine. Poucas horas depois chegam os dois novos Comandantes de Companhia e o Alf. Branco, em substituição do Alf. Lourenço. O novo Comandante da CCAV 8350 teve connosco uma breve conversa, para se inteirar da situação. No dia 2 de Junho ordena um patrulhamento ao Alf. Branco para a zona do antigo heliporto localizado nas imediações do cais. O Alf. Branco não tem homens e caso os tivesse não os conhecia e percorre, vala a vala, a perguntar quem pertencia ao 4.º grupo. Não encontrou ninguém.

Acabou por sair no dia 3, sob pressão do Comandante de Companhia, com 11 homens, voluntários e mal armados. Perante o desespero do Alf. Branco, ainda cheguei a saltar da vala para os acompanhar, mas a protecção divina e percepção da minha inutilidade, aconselhou-me a não o fazer. Mal entrou na mata o pequeno grupo foi fortemente atacado pelos militares do PAIGC, instalados em valas, em missão de protecção avançada aos camaradas estrategicamente colocados no cimo das árvores, para orientar o fogo. Isto acontece a menos de 100 metros do arame fardado. Registaram-se 5 mortos e 1 ferido grave, sendo recolhidos pela Companhia de Paraquedistas 122, recém-chegados.

No ar pairava um misto de dor e revolta. A noite era de breu, alguns comentários ecoaram e  o Comandante de Companhia acabou por exercer algumas represálias sobre mim e sobre o capitão Catarino, ex-adjunto do Major Coutinho e Lima, que também tinha presenciado a saída do reduzido grupo de combate.

Gadamael foi mau demais e só não se transformou num enorme cemitério, devido ao apoio relativamente rápido das três Companhias de Paraquedistas que a partir do dia 3 de Junho passaram a operar em rotatividade.

Recordo algumas palavras escritas na altura.

GADAMAEL-PORTO EU TE AMO, EU TE ODEIO

Na vala recordo os dias alegres da infância, 
os tempos da boémia coimbrã e a ti, Catarina.
Chove, troveja.
Não, não é um trovão, alerta o João.
Deito-me na vala, o mundo parece desabar.
Outra saída, outra e mais outra....
Ouço gemidos. 
O João calara-se para sempre.
É manhã. Ai o café quente de Bissau!....
Os rebentamentos não param. 
Abdulai, nosso guia de Guileje, 
chora os nossos mortos com palavras sentidas e comoventes.
Na vala refilo, 
protesto com palavras obscenas contra tudo e contra todos.
Abdulai, o nosso guia, o nosso amigo,
 morreu.

Um abraço amigo,
Manuel Reis
____________

Notas do editor

(1) Mensagem de Armando Gonçalves com data de 22 de Março de 2016:

Assunto: Victor Paulo Vasconcelos Lourenço

Boa noite, 
Sou professor da Escola Dr. Ramiro Salgado de Torre de Moncorvo. 
Uma das iniciativas para o 25 de Abril na nossa escola é lembrar os soldados mortos no Ultramar. 
Tenho procurado na Internet informação de todos os nossos conterrâneos caídos, pelo facto encontrei o vosso Blogue e o texto de Hélder Sousa, Fur Mil Transmissões TSF (Piche e Bissau e 1970/72) sobre o Alferes Victor Paulo Vasconcelos Lourenço que muito me sensibilizou. Naturalmente, gostaria de apresentar este texto à comunidade, pois poucos conhecerão este episódio. Além de que seria uma homenagem devida. 
Por este motivo procuro que o autor do texto Hélder Sousa possa compartilhá-lo connosco, com a devida autorização. 

Grato pela atenção que possam dar ao exposto, 
Atenciosamente, 
Armando Manuel Lopes Gonçalves.

Último poste da série de 25 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15900: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (36): quantos quilómetros terá feito, em 9 dias, o valente soldado José António Almeida Rodrigues, na sua fuga, desde o local onde era mantido em cativeiro, na região do Boé, até ao seu porto de salvação, no Saltinho?

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15671: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (35): De 11 a 30 de Junho de 1974

1. Em mensagem do dia 23 de Janeiro de 2016,  o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma Memória, a 35.ª.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

35 - De 11 a 30 de Junho de 1974

Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUN74/11 – Prosseguem a bom ritmo os trabalhos de Engenharia nas estradas de A. FORMOSA-BUBA, e A. FORMOSA-R. CORUBAL.

- Em virtude de os trabalhos na estrada A. FORMOSA-BUBA estarem quase concluídos, os Grupos de Combate das CCAV 8350 e CART 6250, que estavam de reforço à 2.ª CCAÇ/4513, recolheram às respectivas Companhias. [Só a partir desta data começámos a sentir algum desafogo em Nhala. Era demasiada tropa ali concentrada].

- (...). 2.º Comandante deslocou-se a Nhala.

- Marchou para Bissau, a fim de se apresentar no QG/CTIG, o CAP BRAGA DA CRUZ.

[O “Caso Braga da Cruz” tinha eclodido pouco tempo antes. Encerrava-se agora o último capítulo de uma história lamentável, com efeitos nefastos na Companhia. Por respeito à memória do Capitão e recato de todos os elementos da Companhia, não abordarei aqui o enredo que levou à sua saída de Nhala e ao fim prematuro da sua Comissão. Acrescentaria apenas que este desfecho nada teve a ver com euforias justiceiras ou revolucionárias por se ter dado o 25 de Abril. O “caso” só podia terminar como terminou, quer se tivesse dado antes ou depois do 25 de Abril].


Das minhas memórias: 

13 de Junho de 1974 (quinta-feira) – Notícia de uma ameaça terrível. Que já se esfumara... 

A nota que se segue, de tão desconcertante e extemporânea, vale pelo contributo para a compreensão daquela época de incertezas e ansiedades, e pela amostra do que poderia ter sido a reviravolta decisiva da nossa supremacia militar a nível do Sector, se é que ainda tínhamos supremacia, ou mesmo de toda a zona Sul da Guiné, se não tivesse acontecido o 25 de Abril. Recordo que o Comandante de Companhia comunicou aos alferes a informação recebida que deveria ser apenas para si – e incinerada a seguir -, por não suportar sozinho o sufoco da revelação. Só não recordo a razão desta minha nota já em Junho, quando ela se deve reportar a uma ameaça anterior ao 25 de Abril, como se verá mais à frente. Também não recordo o nome do documento militar com a informação confidencial. Como seria de esperar, a HU não faz qualquer referência à mesma, mas só agora posso constatar isso. 

************

Informações e contra-informações [hoje não percebo esta qualificação] chegadas à Companhia dão conta da eventualidade de uma acção do PAIGC de grande envergadura, talvez definitiva para esta zona, através do isolamento por terra, ar e Rio Buba, seguido de acções ofensivas no terreno. Dá-se conta da minagem da estrada Buba-Nhala-Mampatá, minagem do Rio Buba [creio que seria inédito], e da instalação de enorme quantidade de bases para mísseis terra-ar, constituindo uma barreira no espaço aéreo entre Bissau e Aldeia Formosa. O objectivo do isolamento da zona e consequente quebra nos reabastecimentos de víveres e munições, é o desencadear de emboscadas, flagelações e ataques aos aquartelamentos. A ser assim, isto revelaria uma superioridade militar que, diz-se, incluiria meios aéreos há muito badalados e nunca confirmados. A informação em causa não refere esta eventualidade. Diz-se, apenas...

Diz-se ainda que foram todas estas informações que fizeram o General Spínola antecipar o 25 de Abril para evitar uma chacina na zona. [Hoje isto parece bizarro porque, como se sabe, - mas se ignorava na altura -, o General Spínola nunca esteve na génese do MFA nem do 25 de Abril, embora estivesse informado e, até ao derradeiro momento, sempre em contacto com o Movimento dos Capitães]. Não obstante a Revolução, eles (PAIGC) ameaçaram que virariam toda a sua actual força para este Sector se as conversações sobre a descolonização falhassem. [Seria o reactivar dos planos atrás referidos ou mera chantagem? Mas bizarra é também esta ameaça, a ter existido, pelo contraste entre o que emanava da cúpula do PAIGC e o que era dito no terreno pelos seus representantes, nomeadamente os comandantes militares e os comissários políticos, defensores do cessar-fogo tácito já em vigor].

A verdade é que se falou numa operação de transporte de bombas de Bissau para Aldeia Formosa para serem aqui armazenadas, bem como o estacionamento de alguns Fiat para obstar à tal barreira do espaço aéreo. (Nunca soube se se chegou a iniciar esta operação).

Mais tarde, o Comandante do Batalhão Ten Cor Carlos Ramalheira, em conversa com o responsável militar do PAIGC no Sector Sul, teve a confirmação de que as informações de que dispúnhamos sobre o plano estavam correctas. De facto, as nossas informações militares eram, normalmente, fiáveis.

Não obstante com alguns incidentes, reina agora a paz, mesmo antes dos acordos assinados.

[A História da Unidade revela, no descritivo da Situação Geral do período de 1 a 30 de Junho: “Após a interrupção das conversações de Argel, embora se viva um clima de paz, com um cessar-fogo tácito, continua-se na expectativa, especialmente pelo desenrolar dos acontecimentos que poderão levar à independência e ao regresso à Metrópole das Unidades”].

Mas já é quase impossível o regresso da guerra, tanto porque nalguns locais as nossas tropas já abandonaram as posições, como porque o PAIGC tem agora os seus Comissários Políticos espalhados pelo país a esclarecer as populações, neste momento ainda temerosas, e a evitar conflitos entre aqueles que aplaudem o Partido e aqueles que até agora o combatiam ao nosso lado e que são nada menos que 17 mil. Muitos destes homens, ao princípio, recusaram-se a entregar as armas e a aceitar a ideia de serem integrados na nova ordem quando os portugueses regressarem à Metrópole. Diziam que nos acompanhariam ou continuariam a lutar, incapazes de compreenderem a irreversibilidade da situação. Era de calcular esta atitude, depois de tantos anos a combater pela causa que lhes impingiram como justa, combatendo, sem o saberem, contra eles próprios, exceptuando os que o fizeram por convicção e fidelidade a valores e dependências ancestrais do colonizador.

[Relembro que estou a transcrever memórias com mais de quarenta anos. Mas, naquela altura, recordo, causava-me já algum incómodo pensar na situação dos militares africanos. Como se sentisse uma parte da culpa de terem sido utilizados e no fim descartados e esquecidos, na nossa euforia do regresso a casa. Imaginava-os desamparados e ostracizados pelos sectários revanchistas. Mas longe de imaginar o que se seguiria. Hoje digo sem pejo: foram enganados. Pior, foram traídos. Da parte das autoridades portuguesas pelo abandono ignóbil, sem que fossem expressas claras garantias de integração social, (não estou certo de que não fossem), salvaguarda de represálias, solução de saída do território param os que o desejassem, etc., etc. Da parte do PAIGC, para minha decepção e revolta, a atitude revanchista foi inominável, (para não ser grosseiro), pela sumária eliminação física dos muitos que se destacaram ao lado dos portugueses. Não sou ingénuo nem completamente ignorante para desconhecer que foi assim um pouco em todas as guerras, em todas as épocas e em todas as latitudes. Mas fui ingénuo ao ponto de acreditar que, estando perante um partido revolucionário moderno, civilizado e fundamentado em princípios sérios, (a sua origem e breve história a isso levava a crer), os seus dirigentes seriam o seu reflexo no futuro pacífico da Guiné, com a melhoria das condições de vida das populações e da modernização do país em geral. Que diria Amílcar Cabral de tudo isto? E das bolandas em que vive a Guiné-Bissau desde o fim da guerra? À sua memória faço a justiça de ficar na dúvida. Mas o respeito que lhe tinha era o mesmo que tinha pelo seu homólogo em Angola e foi o que se sabe. E o que se passou e ainda passa lá, não é exemplo para nenhum país civilizado, tal como a Guiné pós independência. Não era disto que falavam os Comissários Políticos, incansáveis no terreno a amaciar desconfianças naturais e a fazer passar a mensagem civilizada de um partido reconciliador e agregador da população guineense. Continuo a admirar e a respeitar uma gesta de guerrilheiros e guerrilheiras do PAIGC, alguns mártires, que conheci em muitas leituras após o fim da guerra, e que me enterneceram com a sua coragem, firmeza de convicções e entrega abnegada à sua luta. Mas isso não diminui a minha revolta. Retomo a transcrição interrompida].

Chegou a haver casos pontuais de rebelião e, neste Sector, o conflito esteve muito sério, fazendo-nos recear o momento da nossa partida, altura em que podíamos ser atacados por aqueles que haviam combatido ao nosso lado. [Referência à recusa em entregar as armas]. Agora já estão a aceitar os acontecimentos e os Comissários e Delegados Políticos do Partido andam livremente pelas “nossas” tabancas em diálogo com as populações e com a tropa.

Há dias estive em Mampatá com um desses delegados e ele mesmo me disse que está a tentar mentalizar as populações. E que, pela nossa parte, podíamos andar desarmados porque as armas já não eram precisas. Em Aldeia Formosa estiveram dois grupos de combate do PAIGC e os alferes que os comandavam encontraram-se com o nosso Comandante do Batalhão. [Pois... Que deve ter zurzido neles, por nos dizerem a nós que podíamos andar desarmados e eles ousarem aproximar-se das nossas Unidades completamente armados. Como se pode confirmar no seguimento da História da Unidade do meu Batalhão].


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

1974JUN/15 – Realizou-se em A. FORMOSA uma reunião com a população a pedido dos Comissários Políticos do PAIGC, em que além destes comissários também estiveram presentes o Comandante e 2.º Comandante do Batalhão. Esta reunião visava o esclarecimento da população quanto ao programa do PAIGC.

- Comandante deslocou-se a COLIBUIA.

1974JUN/16 – Pelas 14h30, um Soldado do Destacamento da CHAMARRA que se deslocava entre A. FORMOSA e CHAMARRA, foi contactado em região XITOLE 7 F 3.34, por um Grupo IN estimado em 40 elementos armados que o deixaram seguir para CHAMARRA.
Posteriormente, cerca das 15h30 foi comunicado a este Comando que esse mesmo GR IN tinha sido avistado relativamente perto do arame farpado de A. FORMOSA.
Contrariamente ao que se esperava o Comandante do GR IN não procurou contactar este Comando, presumindo-se que tenha retirado.

1974JUN/17 – (...).

- Todas as Subunidades continuam conforme directiva superior a executar patrulhamentos de defesa próxima dos estacionamentos.

- (...).

1974JUN/18 – Pelas 10h10 quando Comandante e 2.º Comandante se deslocavam num Jeep isolado e desarmados a visitar trabalhos na frente da estrada A. FORMOSA-BUBA, encontraram na região de UANE a cerca de 15 metros da estrada um Bigrupo do PAIGC armado. Pararam o Jeep, tendo alguns elementos do bigrupo nomeadamente o seu Comandante, aproximado do Jeep para cumprimentos.
O Comandante do Bigrupo, chamado TIJANE informou que viera do UNAL, cujo Comandante CAMARÁ determinara uma patrulha de reconhecimento à referida região.
Despedindo-se, retiraram presumindo-se que em direcção ao UNAL.

[Não recordo ter feito esta viagem no Jeep do Comandante do Batalhão. A lembrança que guardo, possivelmente de outra ocasião, é que seguíamos numa coluna e que à passagem pela zona do Carreiro de Uane o Comandante que ia, como sempre, na cabeça da coluna, a fez parar, por se encontrar próximo da estrada um grupo numeroso de guerrilheiros. O local, do lado direito da estrada, era uma pequena savana de boa visibilidade. Percebia-se que era um bigrupo numa fila perpendicular à estrada, alongada e disciplinada. Só os da frente se aproximaram do Comandante do Batalhão e depois de um diálogo de alguns minutos a coluna seguiu viagem na direcção de Mampatá. Era de supor que estivessem ali à espera há longo tempo. Quando o resto da coluna passou por eles não houve acenos, não houve cumprimentos. Tudo muito sóbrio e disciplinado].

1974JUN/19Terminaram os trabalhos de Engenharia na estrada A. FORMOSA-BUBA, pelo que foi enviada uma mensagem de felicitações ao Comandante do Dest N.º 2 e seu pessoal. [Sublinhado meu]

- Estiveram em A. FORMOSA O Exmo. Major do CEM, MAIA CORREIA acompanhado por JUVENCIANO, 2.º Secretário da Assembleia Popular do PAIGC.

(...).

[Abro aqui um parênteses na transcrição da H. U. para dar o merecido destaque à referência que dá conta da conclusão da estrada Aldeia Formosa-Buba nesta data. Trata-se de um eixo viário da maior importância, mesmo em tempo de paz, pois liga todo o interior ao porto fluvial de Buba, porta privilegiada de entrada e saída para mercadorias e pessoas. E, se é verdade que sempre assim fora, não é menos verdade que entre Buba e Aldeia Formosa (ou Quebo) se podiam levar várias horas de cansaços e percalços, sobretudo na época das chuvas, para não falar das temidas acções da guerrilha. Agora, em viatura, o novo trajecto pode ser cumprido em meia hora ou pouco mais, quer faça chuva ou faça sol. Mesmo para quem o faça de bicicleta ou a pé, é uma grande evolução para as populações locais. Tanto, que ao longo da estrada se foram fixando tabancas de enfiada, como é bem visível no Google Earth. 

Se esta estrada pudesse ter um nome, bem que podia – e devia – ser um tal, que homenageasse todos aqueles que, integrando os batalhões que nos antecederam neste chão, fizeram de cada viagem pela picada temerosa uma odisseia, muitas vezes lá perdendo companheiros.

Junto duas fotografias da estrada actual com um duplo significado: em baixo, viaturas atascadas na lama, lembrando-nos os baixios das velhas picadas, tantas vezes a barrarem-nos o caminho em emergências e perigos. Não haverá ninguém a que estas situações sejam estranhas; em cima e à esquerda a estrada nova, ainda não majestosa, mas maciça e recta, desimpedida de vistas e apta a grandes acelerações. Só tinha um problemazinho na data das fotografias: não estava acabada. Parece-me que ainda lhe faltava o tapete para depois ser alcatroada. O que ainda levaria muito tempo, devido à falta recorrente de alcatrão sobretudo nos últimos meses da obra. E isso obrigava-nos a circular na pista de terra batida lateral, com as consequências que se vêem. A obra agora concluída teve início na frente de A. Formosa em 27 de Outubro de 1973 e na frente de Buba no dia 30 do mesmo mês].


Fotos 1 e 2: 1974, Berliets com pessoal da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 de Nhala, atascadas junto à estrada nova, algures entre Nhala e Mampatá, quando se dirigiam para este aquartelamento.

[Prossigo com a História da Unidade].

1974JUN/21 – (...). Pelas 12h00, um Grupo do PAIGC constituído por 48 elementos armados, após contornarem o Destacamento de PATE EMBALO, estacionaram a cerca de 100 metros do arame farpado. Ao serem contactados pelo Comandante do Destacamento e por alguns elementos da população, declararam que a população poderia cultivar onde quisesse e que a guerra já tinha acabado. Cerca das 13h00 retiraram na direcção de KANSAMBEL.

(...).

1974JUN/25 – Pelas 09h00, foi detectado numeroso grupo do PAIGC a cerca de 500 metros do arame farpado do aquartelamento de MAMPATÁ. Este grupo estimado em 120 elementos armados e comandado por um tal INCENDA, depois de contactarem com elementos das NT e população de MAMPATÁ, regressaram novamente ao UNAL, donde tinham vindo.

- Foi deslocada para BUBA metade da CCAV 8351 que, conforme determinação do Comandante-Chefe é deslocada para BISSAU. [Saíam em paz, finalmente, rumo a Bissau e à Metrópole, os Tigres de Cumbijã, do Capitão Vasco da Gama].

1974JUN/26 – Pelas 10h00, Grupo do PAIGC oriundo do UNAL estimado em 50 elementos armados, chegou junto de MAMPATÁ, estacionando a cerca de 160 metros do arame farpado. Era comandado por MIGUEL GOMES, referenciado como Comandante das FAL de CUBISSECO de CIMA. Disseram mais uma vez que a guerra já tinha acabado e que estavam satisfeitos com o procedimento das NT. Cerca das 14h00, regressaram novamente ao UNAL.

- É deslocada para BUBA, a segunda parte e última da CCAV 8351.

- Dois Grupos de Combate da CCAV 8350, sediada em COLIBUIA, foram deslocados para CUMBIJÃ, a fim de guarnecer o respectivo Destacamento.

1974JUN/27 – Pelas 14h00, A. FORMOSA foi assolada por um tufão, de que resultaram vários prejuízos, especialmente nos telhados de alguns edifícios.

 1974JUN/29 – Pelas 14h00, GR PAIGC oriundo do UNAL e estimado em 56 elementos armados, chegou junto de CUMBIJÃ, estacionando a 50 metros do arame farpado. Era comandado por MIGUEL GOMES. Contactaram com um Oficial e praças dos Grupos de Combate sediados no CUMBIJÃ, a quem afirmaram que a guerra tinha acabado e que a população poderia ir cultivar para onde quisesse. Cerca das 15h30 iniciaram o movimento de regresso ao UNAL.

(...).

1974JUN/30 – Pelas 14h00, GR PAIGC oriundo do UNAL, voltou novamente à região do CUMBIJÃ, estacionando a cerca de 200 metros do arame farpado. Este grupo trouxe consigo alguns elementos da população sob seu controle que vieram confraternizar com as suas famílias que se encontravam sob nosso controle. Pelas 16h00, o referido grupo regressou ao UNAL.

- Todas as Subunidades do Sector continuam a realizar os seus patrulhamentos de defesa próxima dos estacionamentos.

- O PAIGC levou a cabo uma manifestação de apoio ao Partido. Esta manifestação constou de um circuito em viaturas cedidas pela BECE e DEST ENG N.º 1, percorrendo todas as povoações de A. FORMOSA, MAMPATÁ, COLIBUIA e CUMBIJÃ. Os manifestantes eram portadores de bandeiras do PAIGC e alguns cartazes com “slogans” de apoio ao Partido.

[Passariam também por Nhala, como se pode ver pelas fotografias que se seguem. A estas junto outras, registando momentos de contacto e convívio com elementos do PAIGC, todas elas facultadas pelo meu amigo e ex-camarada Fur Mil TRMS José Roque que me autorizou a publicá-las e a quem fico agradecido].


Foto 3 e 4: Guerrilheiros do PAIGC deslocando-se à vontade numa picada, provavelmente nas imediações de Nhala, em data que também não posso precisar.

Foto 5: Contacto de guerrilheiros do PAIGC com elementos das nossas tropas em local e data que não posso precisar.

Foto 6: Nhala, Junho de 1974 – Guerrilheiros do PAIGC em convívio com os nossos militares. Ao centro, de bigode, o Fur Mil Trms José Roque junto de um camarada que não recordo. No canto superior esquerdo, sorridente, o Fur Mil Joaquim Carrilho.

Foto 7: Nhala, Junho de 1974 – O Fur Mil Trms José Roque com guerrilheiros do PAIGC.

Foto 8: Nhala, Junho de 1974 – Caravana com manifestantes em apoio ao PAIGC, provavelmente no dia 30, em que percorreram várias localidades em viaturas cedidas pela Engenharia.

Foto 9: Nhala, Junho de 1974 – Outra viatura da Engenharia com manifestantes em apoio ao PAIGC. Repare-se no sujeito no canto inferior esquerdo: só ao editar a fotografia reparei no gesto elucidativo da sua mão direita. Sintomático...

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15640: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (34): De 1 a 10 de Junho de 1974

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15297: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (26): De 29 de Janeiro a 26 de Fevereiro de 1974

1. Em mensagem do dia 25 de Outubro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 26.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

26 - De 29 de Janeiro a 26 de Fevereiro de 1974

Das minhas memórias: 

29 de Janeiro de 1974 – (terça-feira) - A morte do Jerónimo

Estávamos a almoçar quando nos chegou a triste mensagem: o Jerónimo sofrera um acidente em Bissau e morrera. Foi um choque para mim, porque tinha grande estima por ele e porque era soldado do meu grupo de combate. Era uma pessoa afável, sempre com um sorriso e sempre pronto para o que desse e visse. Nunca lhe ouvira uma queixa ou uma recusa, nunca protagonizou um incidente.

Não recordo o que o levou a Bissau mas tenho uma vaga ideia de que fora para obter a carta de condução. Morreu de acidente de viação. Tanto quanto recordo, foi por ter caído de uma viatura militar que transportava uma equipa que ia levar lixo para algures. Era um problema recorrente: ia-se a Bissau tratar de assuntos mais demorados e entrava-se logo numa escala de serviço qualquer.

O Jerónimo foi o único morto da nossa Companhia (a 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513). Era natural de Cruz-Atães, localidade do concelho de Guimarães, onde está sepultado.

Foto 1: Jerónimo de Freitas Martins, Soldado do 4.º GCOMB da 2.ª CCAÇ do BCAÇ 4513 
(Faleceu em 29-01-1974) 

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Fevereiro de 1974 iniciou-se com nova dança dos pelotões. Era necessário adequar as bases das tropas ao evoluir das obras da estrada Aldeia Formosa-Buba, que prosseguia a bom ritmo e cujas frentes de trabalho se encaminhavam ao encontro uma da outra.

A actividade da guerrilha deixava vestígios um pouco por todo o lado, mas apenas concretizou dois ataques às nossas tropas logo no início do mês, nos dias 2 e 6. Das minhas escassas notas desse período, ressalta uma referência ao ataque que sofreu o pessoal da CART 6250 de Mampatá. É uma nota breve de 09-02-74: “Há umas noites, pessoal de Mampatá foi atacado no mato por grupo inimigo. E Nhala aqui tão perto”. Numa nota de 24-02-1974 (domingo), refiro uma notícia que me deixou os pêlos eriçados: “De Bissau, o Comandante-Chefe pede relação de todos os elementos do Batalhão com o curso de Minas e Armadilhas. Mais um sobressalto quanto ao futuro”.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

FEV74/01 – A fim de reajustar o dispositivo da protecção aos trabalhos de Engenharia na frente de BUBA, foram transferidos de BUBA para NHALA, os GR COMB da 2.ª CCAÇ/4513 e 3.ª CCAÇ/4513. (...).

FEV74/02 – (...) Pelas 17h45 o GEMIL 405, emboscado próximo do MISSIRÃ, foi flagelado por GR IN não estimado, com 40 granadas de CanhSRC 82, com base de fogos provável na região de BOLOLA. NT sem consequências. (...).

FEV74/04 – (...) Para reforçar as forças de segurança dos trabalhos de Engenharia, foi deslocado do CUMBIJÃ para NHALA 1 GR COMB da CCAV 8350. Pela mesma razão, foi deslocado de NHALA para A. FORMOSA o GR COMB da 3.ª CCAÇ/4513. (...).

FEV74/06 – Pelas 21h00 quando 1 GR COMB da CART 6250 se deslocava de MAMPATÁ para a zona dos pontões (XITOLE 4 H 1-27), para evacuar um elemento doente do GR COMB da mesma CART, em contra-penetração na referida região, foi emboscada por GR IN estimado em 30/40 elementos em região (XITOLE 4 I 0-42) com RPG, MORT 60, MORT 82 e armas ligeiras. As NT reagiram à emboscada com armas ligeiras apoiadas pelo fogo de MORT 81 cm e ART. NT sofreram 3 feridos ligeiros e o IN feridos prováveis. Em reconhecimento posterior, ao local da emboscada, foram capturadas 5 granadas de MORT 82, 8 granadas de RPG-7, 3 granadas RPG-2, várias cargas de RPG-2 e 7, 4 carregadores de Kalashnikov, 1 cantil, 2 sacholas e uma pá. O IN retirou na direcção de SAMBA SEIDI-MISSIRÁ. No local de emboscada foram detectados 26 ninhos de atiradores deitados. (...).


Histórias marginais (5): A vingança das abelhas e a máquina despeitada

Foi numa manhã esplendorosa e fresca, ainda sem pó e sem o braseiro que havia de vir, que se iniciaram, em mais uma etapa, os trabalhos da estrada na frente de Buba. Davam-me sempre imenso prazer estas primeiras horas na frente de trabalhos, onde terminava a recta longa e já desmatada e começava a mata fechada, sempre cheia de surpresas e espaços virgens. Também gostava de apreciar de perto a perícia dos operadores das máquinas brutas da Engenharia, e sentir o avanço da estrada pela mata dentro, lento e difícil mas definitivo.

Desta vez não fomos para a “pedreira” fazer a protecção do troço de estrada já a funcionar. Levava a indicação de emboscar mesmo ali, onde começava a desmatação. Instalado o grupo em redor, alguns elementos à vista, eu fiquei em campo aberto não muito longe de um dos Caterpillar que, resfolgando, derrubava árvores de grande porte em três penadas. Primeiro levantava a pá, a dois ou três metros do chão, contra a árvore a abater e, com as lagartas bem fincadas no chão, em esforço, dava várias sacudidelas violentas e a árvore vibrava até à copa, ao mesmo tempo que soltava as raízes da terra. Depois recuava para enfiar a pá no solo contra as raízes, subia-a um pouco, e fazia tombar a árvore com fragor sobre as outras. Restava empurrá-la pela raiz, ao comprido, e ela entrava na mata fechada como se fosse um palito.

Estava a uns trinta metros do Caterpillar, no momento em que o operador fazia vibrar uma árvore de grande porte quando, inesperadamente, desce sobre ele uma nuvem de abelhas que o envolvem de imediato. Ele, por certo calejado no ofício, saltou da máquina como uma mola e mergulhou no pó, embrulhando-se nele, rolando e berrando, enquanto uma parte dispersa do enxame zumbia em toda a área, à caça de corajosos em que pudesse descarregar a ira vingativa. Berrei ao meu pessoal para que todos se mantivessem quietos onde estavam. Dando o exemplo, mantive-me imóvel no mesmo sítio e assisti, impotente, ao suplício do maquinista. Nem uma me picou. Só quando me pareceu que as abelhas já se afastavam do pó e o homem se levantava a sacudir-se e a praguejar, corri para ele para ver se precisava de ajuda. Enquanto ia arrancando umas cabeças de abelha das partes mais expostas, foi-me dizendo que já estava habituado e que era sempre assim. E seria sempre assim.

Insólito foi que, quando olhou para o lado não viu a sua máquina. E eu, tanto quanto recordo, também não me apercebi que ela se tivesse ido embora. Talvez pelo despeito de ter sido abandonada pelo seu dono, ela continuou a andar e penetrou na mata profunda. Por solidariedade (e também por curiosidade), acompanhei o inconsolável operador, mata dentro, à procura da máquina mas percebendo logo que esta surpresa não fazia parte dos ossos do ofício dele. Fomos seguindo o rasto das lagartas da máquina e das árvores derrubadas, não tinha nada que saber, ela devia estar logo ali. Mas não estava e, à medida que avançávamos, íamos ficando um pouco atónitos, porque nem mesmo lá no fundo da mata a máquina se via. Ficámos um pouco sem jeito para gracejos mas, por fim, lá estava ela silenciosa e amuada, embicada numa árvore de grande porte. Como fora possível que, desde a entrada na mata, tivesse passado sempre ao lado de árvores imponentes, passando por cima das mais fracas, até onde estava? Calhou. A verdade é que parecia uma manhã tão fresca e rotineira...

Foto 2: Caterpillar: máquina escondida com chaminé de fora. Ao fundo, a base da estrada Aldeia Formosa-Buba, lado de Buba. 


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

FEV74/12 – Esteve de visita a A. FORMOSA o CHERNO YUSSUF SY da REP SENEGAL, que tendo vindo visitar a família do CHERNO RACHID, veio a este Comando apresentar cumprimentos salientando que desde que se encontra em Território Nacional, estava encantado com o apoio e as deferências de que fora alvo. Referiu ainda, que o clima em que as populações vivem aqui, é muito diferente do que se diz por lá, vendo-se em todos a determinação de continuarem Portugueses. Acompanhado do Comandante, visitou MAMPATÁ, e o reordenamento de ÁFIA, assim como a frente dos trabalhos da estrada.

FEV74/13 – (...) – Com vista à substituição do GC COMB da 1.ª CCAÇ/4513, empenhados na protecção dos trabalhos de Engenharia, e para que os mesmos fossem desviados para a acção (OURIÇO) com início em 14FEV74, deslocaram-se para BUBA, 1 GR COMB da 2.ª CCAÇ/4513 e 1 GC COMB da CCAV 8351.

FEV74/15 – Acompanhado pelo Exmo. Major CARVALHO FIGUEIRA visitou este Sector o jornalista finlandês MARTTI VALKONEN.
- Os contactos com a população, as várias deslocações feitas de Jeep, sem escolta, os reordenamentos em curso e fundamentalmente as obras de construção da estrada A. FORMOSA-BUBA, foram argumentos altamente positivos a nosso favor.

FEV74/16 – (...) – Prosseguem os trabalhos de Engenharia nas duas frentes da estrada A. FORMOSA-BUBA, embora não se estejam a asfaltar por falta de asfalto. [A falta de alcatrão voltaria ainda a ser referida nos dias 20 e 28 do corrente mês. Nota minha].

FEV74/26 – Continuam os trabalhos de Engenharia na estrada A. FORMOSA-BUBA. Na frente de BUBA já atingiram a região de NHALA e na frente de A. FORMOSA, atingiram a região da antiga tabanca de UANE.


Das minhas memórias: O FORNILHO

Como refere a História da Unidade, a frente de Buba dos trabalhos da estrada nova, em 26 de Fevereiro de 1974, estava na região de Nhala. Mas a estrada passaria a, aproximadamente, 500 metros do aquartelamento e da tabanca, sendo necessário rasgar a mata para realizar um troço de ligação. Caso único em todo o percurso da estrada, desde A. Formosa a Buba.

Num dia de finais de Fevereiro, manhã cedo ainda, dormia eu descansado quando o Capitão Braga da Cruz me veio acordar com uma notícia que me deixou sobressaltado. “Oh Murta, tem que se levantar porque tem aí um trabalhinho especial. Os homens da Engenharia querem vir por aí a baixo com as máquinas e vieram perguntar se há obstáculos nossos nas imediações. Você tem aquele monstro ali fora do arame farpado, virado para a mata por onde eles vêm e, se calhar, já não vai ter tempo de o desmontar”. Por instantes não percebi a que é que ele se referia, mas ele continuou: “Como calculei que você quererá rebentar aquilo, já mandei evacuar a população daquele lado da tabanca e o nosso pessoal está todo avisado”. Era o fornilho, porra!... Não imaginei que tivesse de o accionar tão depressa. Como andam céleres os homens da Engenharia... “Vou já tratar disso, Capitão”. Acho que nem tomei o pequeno-almoço.

Mas o fornilho tinha uma história: Não fora montado naquele sítio, com uma carga brutal, ao acaso ou por mero cálculo estratégico.

Numa noite que mal começara, muito tempo atrás, a sentinela do posto de vigia da parte de trás da tabanca, (se se entender que a parte da frente era a do campo da bola e da picada para Buba), dá o alarme (com tiros?) de que vira vultos a moverem-se quase na orla da mata em frente, que, naquele ponto, era muito próxima. Alerta geral. Imaginámos um ataque ao arame e não seria de estranhar, já que o aquartelamento de Nhala era dos poucos que continuava poupado a ataques e flagelações. Recordo que estava uma noite de breu. Imagine-se a situação logo que desligou toda a iluminação. Enquanto se preparava o morteiro 81 no espaldão, aquela zona da mata foi passada a rajadas de metralhadora e batida com o morteiro 60. Depois bateu-se a zona mais afastada com o morteiro 81, mas sem grande insistência, tenho ideia, de modo a aguardar qualquer reacção. Mas tudo ficou por ali. Admitimos que fossem elementos a estudar um possível ataque, aqueles que a sentinela viu ou julgou ter visto, mas isso deixou-nos alerta daí para a frente e, no seguimento, o Capitão Braga da Cruz teve uma conversa comigo sobre o estudo de pontos ainda vulneráveis à volta da tabanca e do aquartelamento, mormente aquele em que ocorrera o anterior sobressalto, pela proximidade da orla da mata e porque, nessa zona, a mata era muito “aberta”. Podia, com facilidade, ser usada como porta para um assalto. Para aí, concretamente, o capitão sugeriu-me a instalação de fornilhos.

Só que o terreno era completamente plano e, para instalar vários fornilhos que disparassem os projécteis para a frente – excluí outras hipóteses -, exigia um empreendimento desmesurado. Optei por instalar um apenas, mas de grande potência e com uma “carga de efeito dirigido”, inspirando-me no princípio das granadas de bazuca anticarro e de certos mísseis perfurantes. A ideia era que todo o efeito da explosão e projecção de material se desse apenas para a frente já que, por trás, ficavam muito próximas alguma palhotas da tabanca. Isso exigia um bom apoio para a base do fornilho, de modo a suportar o “coice” da explosão. Como no local, mesmo defronte da zona vulnerável, havia as ruínas do que fora um bagabaga imponente – uma massa sólida de grande resistência -, idealizei instalar ali o fornilho, de maneira que a sua base ficasse soterrada em 2/3 (aproximadamente) no solo e 1/3 apoiada no bagabaga.

Para um fornilho assim grande, o primeiro invólucro que me ocorreu, e que foi adoptado, foi um bidão de 200 litros desses que abundavam por lá. Era penoso fazer um buraco para albergar um bidão inteiro. Para facilitar, depois de se cortar a tampa a maçarico, mandei cortar-lhe cerca de 20 centímetros na boca, reduzindo-lhe o comprimento. Mesmo assim, ainda foi penoso abrir o buraco no chão, tal como o meu trabalho de montagem dos materiais no seu interior, já com ele no sítio. Dada a proximidade, já referida, do fornilho às palhotas da população ali junto ao arame farpado, confesso que, até ao seu rebentamento, vivi possuído por incertezas – logo, ansiedade -, quanto à segurança dessas palhotas. Se algo não corresse como calculei, dada a carga explosiva que decidi usar, elas simplesmente voariam.

Para conseguir dispor a carga explosiva de forma a obter o efeito dirigido, precisava de algo no fundo do bidão que mantivesse os explosivos sempre com o mesmo ângulo até à frente. Para tanto, mandei fazer um cone com ripas, obedecendo a determinado ângulo. Mal-empregado... Ficou tão bem feito que parecia um chapéu de palha vietnamita.

No paiol enchi um carro-de-mão com todo o material velho disponível: granadas não rebentadas de todo o tipo e objectos metálicos inúteis que se foram acumulando. Como explosivo escolhi o TNT a granel em pequenos sacos (de 1 Kg?), por ser mais adaptável à configuração cónica e ao aproveitamento do espaço no bidão. Não recordo o total de quilos usados nem encontro os apontamentos feitos na altura, mas creio que eram mais de quinze e menos de vinte. Foi tudo montado como mostro a seguir, num croquis sem preocupações de escala. No espaço sobrante entre o material e a “boca” do bidão, ainda coloquei uma “cortina” de garrafas de cerveja. Só então se recolocou a tampa do bidão, atando-a com arames. Cobriu-se de terra a frente da tampa, mantendo-se o aspecto que tinha anteriormente o bagabaga. À cautela, no interior do explosivo, coloquei três detonadores eléctricos ligados em paralelo. Abriu-se uma vala estreita mas profunda, por onde passaram os fios eléctricos desde o bidão até a um ponto estratégico nos limites do aquartelamento onde, numa caixa a que só eu tinha acesso, cravada na parede de uma vala, ficaram os terminais desses fios. De passagem, refiro que no lado oposto do aquartelamento, tinha uma caixa semelhante para accionamento de uma série de minas de superfície Claymore, que enfileiravam ao longo do arame farpado.

Nos primeiros tempos passava pelo bagabaga a certificar-me de que tudo se mantinha oculto e inalterável mas, aos poucos, deixei de passar e quase me esqueci daquilo. Até essa manhã de Fevereiro quando fui confrontado com a necessidade de accionar o fornilho. Não havia tempo para desmontar. De qualquer modo, ainda que tivesse, eu preferia accioná-lo apesar dos riscos, para não ficar eternamente com dúvidas sobre o bom desempenho do dispositivo e, logo, do meu trabalho.

Tudo a postos, vou para vala com uma pilha eléctrica na mão. Antes de fazer a ignição, soergui-me de modo a ficar a ver de longe o bagabaga. Fosse das circunstâncias ou da sugestão, tudo em redor parecia mergulhado no vácuo, tal era o silêncio e a quietude. Esperava, confesso, uma explosão de ensurdecer, ver as árvores da mata vergadas pelo sopro, enfim..., não aconteceu nada disso. O que aconteceu foi um “buuuum” prolongado, seco e profundo, telúrico, como se tudo se tivesse passado na pirosfera. Em simultâneo o ar encheu-se de terra e pó. Deixei de ver a tabanca e a mata, tudo em redor era pó amarelo. O Capitão Braga da Cruz chegou perto de mim com uma expressão de grande preocupação e não disse nada. Aguardámos o desanuviamento atmosférico para irmos ver. Foram-se juntando outros curiosos.

No local, apenas grandes torrões circundavam a base do bagabaga, nada tendo passado para o lado da tabanca. Respirámos de alívio e fomos aos pormenores. Do que restava do bidão, o fundo, estava lá no sítio mas, das suas paredes apenas restavam tiras retorcidas, com as pontas em caracol. Na mata, tudo o que pertencera ao bidão estava reduzido a tiras longas, de igual modo retorcidas, e espalhadas com o conteúdo por uma área tão vasta que não a vimos toda. Muitas das árvores tinham cravados estilhaços das granadas e de muitos metais já não identificáveis. Vidros, não encontrámos. Podia-se concluir que fora um sucesso, e como seria eficaz em termos defensivos. Ainda bem que nunca precisámos dele. Agora havia que dar sinal aos homens da Engenharia para que avançassem em segurança e em paz...

Este foi o único fornilho que montei. O dispositivo mais pequeno que havia montado, fora uma armadilha, (trabalho de casa), como prova final do Curso de Minas e Armadilhas de Tancos: era uma caixa de fósforos que explodiria nas mãos de quem a tentasse abrir, quer para um lado, quer para o outro. O interior continha estearina a fazer de explosivo, e nela mergulhava uma lâmpada minúscula a representar o detonador e a comprovar o funcionamento, bem como uma pilha pequena (de tipo AAA?), para a alimentar. Nas paredes interiores da caixa estava o segredo dos contactos, feitos com cabeças de alfinete e tiras de ouro-mouro. Tudo bastante óbvio, agora...

Croquis do fornilho em corte. 
Legenda: Aspecto da localização do fornilho: A – Fornilho; B – Fiada do arame-farpado. 
Fornilho em corte: 1 – “Cortina” de garrafas de cerveja na boca do bidon; 2 – Material para funcionar como projéctil; 3 – Carga explosiva: TNT a granel em sacos; 4 – Cone de madeira para assentar o explosivo; 5 – Ruínas de um bagabaga.

Foto 3: Nhala, finais de Fevereiro de 1974. Eliminado o fornilho, a Engenharia rasgou este trecho da mata para a construção do troço de ligação da estrada A. Formosa-Buba (nas costas do fotógrafo) à tabanca e ao aquartelamento de Nhala, lá ao fundo.

(Continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Poste anterior da série de 20 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15271: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (25): De 6 a 26 de Janeiro de 1974

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15271: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (25): De 6 a 26 de Janeiro de 1974

1. Em mensagem do dia 17 de Outubro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 25.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

25 - De 6 a 26 de Janeiro de 1974


Janeiro de 1974

Inicia-se um novo ano. O tipo de actividade operacional não sofreu grandes alterações, mas intensifica-se bastante com o avançar da época seca, que facilita a incursão em regiões até há pouco inacessíveis. Mas essas facilidades no terreno também estão em linha com o incremento da actividade da guerrilha, que já começou a dar sinais com a montagem de uma emboscada, implante de minas e um ataque a Cumbijã.

Os esforços do Batalhão continuaram a ser dirigidos para a protecção às duas frentes de trabalho da Engenharia na estrada A. Formosa-Buba, nos patrulhamentos e contra-penetrações para as regiões da fronteira, Rio Corubal, Rio Buba, Nhacobá e nos corredores de passagem da guerrilha de todo o Sector e, ainda, para acções extraordinárias desencadeadas pelas informações que iam chegando sobre as movimentações da guerrilha.

Novidade são as detecções em radar (presumo que localizado em A. Formosa) de “alvos aéreos não identificados”. Pelo que teve de inédito, transcreverei seguidamente da História da minha Unidade os registos dessas detecções, (como valor documental, e não para reabrir o polémico “dossier” ou, menos ainda, para entrar em polémica). Transcrevo também outros registos relevantes.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

(...)

JAN74/06
- (...) – Comandante, Califa, Cherno Secuna, os Chefes de Tabanca e muitos elementos da população inauguraram o troço de estrada alcatroada A. FORMOSA-MAMPATÁ.

JAN74/08
- Realizou-se uma coluna inopinada a BUBA para transporte de víveres e material para o reordenamento de COLIBUIA. (...).


Das minhas memórias: 

 8 de Janeiro de 1974 – (terça-feira): Dia do meu aniversário

A coluna inopinada referida atrás, tinha mesmo de se realizar... Estava com o meu grupo em Buba e o Cap. Braga da Cruz mandou-me uma mensagem de Nhala para que regressasse nessa coluna, a fim de comemorar o meu aniversário. 

Foi uma grande gentileza da sua parte e eu devo ter ficado muito sensibilizado e reconhecido. Sei-o por um aerograma com data de 13-01-74 enviado para a Metrópole dando conta do meu contentamento e agradecendo o telegrama de felicitações que recebera no dia 8. Esse telegrama foi a surpresa que me havia reservado o capitão à minha chegada a Nhala nesse dia. Fazia 23 anos.

Talvez porque o meu grupo estivesse com o regresso para breve, eu já não saí de Nhala. Nos primeiros dias parece que foi bom, mas logo me comecei a aborrecer e a fechar-me no mutismo. Faltava-me a excitação da actividade operacional e a adrenalina que tantas vezes isso trazia. Coisa que não havia em frasquinhos. Comecei a deixar de dormir embora tomasse comprimidos, mas o efeito começou a ser de placebo: efeito zero. 

Hoje levanto o sobrolho interrogando-me: como é que um tipo com vinte e três anos acabados de fazer, se vai assim a baixo sem reagir às contrariedades? Como é que noutras ocasiões me queixava dos excessos da actividade? E como seria quando tudo acabasse? Como regressaria a casa? Claro que obtive algumas respostas na altura certa e talvez volte ao tema. 

Em carta de 15-01-74 queixo-me: “ (...). Ando aborrecido e não me apetece ver nem falar com ninguém. Talvez por não ter nada para fazer nestes dias. Todas as tardes saio sozinho para caçar e me distrair um pouco, apesar de estar um calor imenso. À noite tomo comprimidos para dormir, mas isso já não me faz nada”.

No dia seguinte a esta carta sairia de Nhala para gozo de férias o Cap. Braga da Cruz e, em termos de ambiente, tudo se tornaria mais fastidioso. Então porque não terei regressado a Buba, onde se encontrava o meu grupo para fazer protecção às obras da estrada? 

Talvez porque se avizinhasse o regresso do grupo, pois em carta de 21-01-74, já é referida actividade normal. “ (...). À noite continua a fazer bastante frio. E de manhã cedo sou obrigado a sair de luvas para o mato, como tem acontecido ultimamente. Mas é horrível a sensação de vestir a roupa fria e começar a caminhar debaixo de grande humidade, sempre contraído. Pelo que vejo nas caras dos outros, é a mesma coisa”.

Julgo ser daquele período de ócio forçado que tive em mãos um Auto de Averiguações relativo a um soldado guineense que tinha sido “desterrado” para Nhala, para aguardar as conclusões de um processo que já vinha de Bissau. Era indiciado de ter provocado desacatos e perturbação da ordem pública em Bissau. Para mim, podia ter sido uma boa ocupação, não fora o carácter ad aeternum da empreitada... É que o referido soldado não levava a sério as averiguações em curso nem estava preocupado com as consequências. Tanto que, numa ida autorizada a Bissau para tratar de assuntos, voltou a prevaricar na modalidade da sua preferência: desacatos e perturbação da ordem. 

Antes do seu regresso a Nhala, já eu tinha recebido mais uma nota de quesitos para lhe serem colocados logo que chegasse. No final, que sanção disciplinar poderia eu propor para um indivíduo que era tão maluco mas, ao mesmo tempo, um “gajo porreiro”? Não recordo se cheguei a concluir o Auto de Averiguações mas ele, aos costumes disse nada...


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: Alvos aéreos não identificados:

(...)

JAN74/10
- Como já vem sucedendo há três dias, são detectados pelo radar, entre as 18,30 horas e 22,00 horas, alvos não identificados. Tem-se tentado entrar em contacto com os meios aéreos sem resposta. Hoje o DAKOTA, neste período sobrevoou A. FORMOSA, verificando-se que os meios aéreos, até agora detectados começaram a operar mais longe e com menos frequência. (...).

JAN74/11
- Continuam-se a detectar alvos não identificados no radar e durante o mesmo período do dia anterior. Estiveram em A. FORMOSA o Exmo. TEN-COR PIL AV VASQUEZ e o Sr. CAP ROLA PATA, Cmdt da BAA/7040, a fim de se reunirem com este Comando, para tratar do assunto relacionado com o aparecimento dos alvos não identificados. (...).

JAN74/13
- Pelas 18,40 foram avistados sobre A. FORMOSA alvos aéreos suspeitos, pelo foi executado fogo contra-aeronaves, sem resultado. (...).

JAN74/15
- Esteve em A. FORMOSA um DO com técnico de radar da Aeronáutica, a fim de verificar o aparecimento dos alvos que ultimamente o radar tem acusado. Depois de várias verificações, ainda não se chegou a nenhuma conclusão. (...).

JAN74/16
- Ao fim da tarde A. FORMOSA foi sobrevoada por dois FIAT’s, com a finalidade de pesquisar os alvos indicados pelo radar. Apesar dos aviões terem sido dirigidos sobre os mesmos, nada encontraram. [No dia 27 estiveram de novo em A. Formosa os senhores Ten-Cor PILAV Vasquez e Cap de Artª Rola Pata, para tratarem destes assuntos].

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[O PAIGC recomeçou a actividade no Sector. Por reflexo, a nossa actividade operacional recrudesce]

JAN74/20
- Pelas 18,00 horas GR IN não estimado flagelou Destacamento do CUMBIJÃ com 30 granadas de Canhão S/R, durante 20 minutos, com bases de fogos na direcção de BRICAMA, sem consequências. As NT reagiram com fogo de Artª.
- Pelas 19,30 foram avistados do Destacamento de CUMBIJÃ na direcção de CHIN-CHIN DARI vários VERY-LIGHTS.

JAN74/21
- Realizou-se coluna de reabastecimentos a BUBA. Esta coluna transportou 2 GR COMB das CCAV 8350 e 8351, que substituiriam na protecção dos trabalhos de Engenharia os GR COMB da 1ª CCAÇ/4513, que iriam ser empenhados na acção "OBSTRUÇÃO" a Sul do R. BUBA. (...).

JAN74/26
- Pelas 06h40, quando forças da 1.ª CCAÇ/4513 se deslocavam [em coluna auto, acrescento eu] para a protecção dos trabalhos de Engenharia, foram emboscados por GR IN estimado em 50 elementos com RPG, PPSH, KALASHNIKOV durante cinco minutos, na região de XITOLE 2 F 4-39 [no troço da estrada nova entre Buba e Nhala, acrescento eu], causando 1 morto, 1 ferido grave, 4 feridos ligeiros às NT, e 3 feridos ao pessoal de Brigada de Estradas. O IN sofreu 3 mortos confirmados e vários feridos prováveis. Executou-se fogo de artilharia para o itinerário de retirada do IN em direcção ao INJASSANE. Em reconhecimento posterior encontraram-se vestígios de terem sido causados ao IN mais feridos e mortos prováveis. Foram capturados 6 granadas de RPG, 2 carregadores de KALASHNIKOV e 2 Pás-picaretas.


Das minhas memórias:

26 de Janeiro de 1974 – (sábado) – Emboscada na estrada nova: um fiasco da guerrilha

Recordo muito bem esta emboscada. Em Nhala ouviu-se o ataque e rapidamente se aprontaram viaturas para irmos em socorro dos camaradas de Buba. Quando chegámos ao local já tudo tinha terminado porque fora um ataque relâmpago, mas reinava ainda alguma confusão entre a nossa tropa, natural nestas situações. Depois de observar a situação na estrada enquanto o pessoal se recompunha, e de me inteirar do modo como fora desencadeado o ataque e como decorrera, fui à vala de onde ele partira, – melhor diria, fui à “trincheira”. Fiquei incrédulo. Se não tivessem havido mortos de parte a parte, tudo ali parecia indicar que se tratara de uma brincadeira ou de que estariam a gozar com as nossas tropas. Abriram uma vala enorme e deram-se ao luxo de talhar nas paredes, em vários pontos, bases para assentar metralhadoras (não referidas na HU) e, defronte, o assento do atirador. Aquilo não se fazia num dia nem em dois.

As notas que tenho sobre esta emboscada não coincidem totalmente com os dados que agora leio na História da Unidade. É referido que tivemos 1 morto e um ferido grave mas, é possível que esse ferido tivesse morrido pouco depois porque eu tenho anotado 2 mortos. Eram os picadores que vinham apeados à frente da coluna (?), alvejados por um único atirador que saiu da vala e ficou de pé a disparar. Tenho anotado 11 feridos ligeiros, a maioria ocupantes de uma Berliet que, por precipitação do condutor que saltou da viatura sem premir o botão que a faria parar, fez com que ela batesse com violência contra uma árvore fora da estrada. Quando lá cheguei ainda assim estava. Houve um outro ferido que foi vítima da “explosão” da própria G-3: tinha disparado todos os seus carregadores e depois sacou os carregadores de um soldado que tinha ficado “bloqueado” e em pânico ao seu lado. Como a G-3 não era preparada para tantos disparos, começou por ficar quase ao rubro e depois, simplesmente, torceu a extremidade do cano e bloqueou a saída das munições.

O que mais me espantou no cenário que encontrei, foi que, numa vala que calculámos na altura seria para mais de 100 homens, (a História da Unidade refere apenas 50), e estando a cerca de 150 metros da estrada, não terem feito mais vítimas numa coluna em marcha lenta (?) e com apenas algumas árvores a interporem-se. 

Comentei na altura e posso reafirmar: o meu grupo naquela vala, devidamente organizado para a função de cada um, e poucos sobreviventes deixaria na coluna. Eles, ao contrário, deixaram muitos rastos de sangue entre a vala e a mata, a 50 metros, por onde retiraram. Passados 5 dias, em 31-01-74, foram lá colocar na estrada e no mesmo sítio, duas minas anticarro (que o nosso pessoal levantou), tentando compensar o autêntico malogro que fora aquela emboscada. (A História da Unidade refere o dia 30 como sendo a data da detecção e levantamento das duas minas TMD-44). Alguns dias depois, de passagem, fotografei o local da emboscada.


Foto 1: Janeiro de 1974, estrada Buba-Nhala. Fotografia tirada da berma da estrada no sítio onde ocorreu a emboscada. À esquerda e à direita da imagem, não visíveis, existiam árvores espaçadas mas de grande porte, numa das quais embateu com violência, uma das Berliet carregada de pessoal. Assinalei a tracejado a localização aproximada da vala de onde partiu o ataque. No chão podem ver-se em primeiro plano algumas das embalagens das nossas munições.



As frentes de trabalho da estrada nova

No final de Janeiro de 1974, as frentes de trabalho da Engenharia avançavam a um ritmo impressionante, com a frente de Buba quase às portas de Nhala (8 km de desmatação e 7 km de alcatroamento) e com a frente de A. Formosa (9 km de desmatação e 7,7 km de alcatroamento), já com o troço A. Formosa-Mampatá inaugurado. Nesta fase, a minha Companhia estava empenhada na protecção às obras na frente de trabalhos de Buba por razões lógicas. São desse período as fotografias que mostrarei a seguir.


Foto 2: O meu grupo de combate numa manhã magnífica a caminho da frente de trabalhos da estrada A. Formosa-Buba, na frente de Buba.



Foto 3: Chegada dos capinadores. Acabados de apear das viaturas, irão começar uma jornada dura sob o sol escaldante que não tardaria.



Foto 4: Quase em simultâneo chegam as máquinas da Engenharia. À direita reconheço o Manuel Esteves do meu grupo com a G-3 ao ombro e à frente da viatura o Custódio, maqueiro (ou ajudante de enfermeiro).



Foto 5: Ainda não nos instalámos, mas a confusão já começou. A atravessar vê-se um GC que deve ser da 1ª CCAÇ de Buba. O meu grupo está a aguardar à direita.



Foto 6: Uma viatura da Engenharia corre levantando pó no troço já pronto. Pronto, mas não concluído, porque durante um longo período faltou o alcatrão.



Foto 7: Descarga de terra para a sub-base da estrada.


Foto 8: O meu grupo na “pedreira” e, ao fundo, a estrada nova. É na mata ao cimo da “pedreira” que iremos passar todo o dia emboscados.



Foto 9: À frente dos soldados o “PIFAS”. Era um cão criado por mim e que depois passou para a propriedade do grupo, acompanhando-nos sempre com muita disciplina. Até ao dia em passou a ser inconveniente pondo-nos em risco. Doente, esquelético e provocador dos macacos-cães, foi sujeito à “solução final”.



Foto 10: Furriel Domingos Oliveira, envolto num enxame daquela mosquinha chata que nos entrava no nariz e nos ouvidos. Na imagem, a maioria ficou fora de foco.



Foto 11: Furriel José Maria Pastor.


Foto 12: Um abrigo de circunstância junto ao morteiro 60. De costas, o 1.º Cabo Maqueiro lê, para passar o tempo.



Foto 13: O morteiro de 60mm e o respectivo arsenal, num local que era suposto ser seguro.


Foto 14: Elementos assalariados da desmatação.


Das minhas memórias: Um incidente quase perfeito

O grupo civil de capinadores e da desmatação, largas dezenas e, muitos deles, quase crianças, chegavam todos os dias à frente de trabalho sorumbáticos mas muito disciplinados. Nunca soube nada a respeito deles: quantos eram, de onde vinham, de que etnias eram, quanto ganhavam, enfim. Sempre me pareceu que nos ignoravam ostensivamente ou, até, com hostilidade. Esses que mostro na fotografia 14, deixaram-se fotografar sem nunca se virarem ou darem um sinal de que me pressentiram. 

Pouco depois, com outros que ficaram fora do enquadramento, protagonizaram um incidente, em que eu tive também responsabilidades, e que podia ter originado consequências graves. Estava todo o grupo em grande sossego quando fomos surpreendidos por um fogo que caminhava rápido para o local onde tínhamos empilhadas as granadas do morteiro e, próximo, também as da bazuca. Saio a correr e percebo logo que aquilo tinha sido incendiado muito próximo de nós. Só podia ser intencional. 

Depois de fazer retirar todo o equipamento do alcance das labaredas, gritei para o grupo que trabalhava com a moto-serra, relativamente próximo, e que fingia não se aperceber de nada, assim como fingiram não me ouvir. Furioso e num impulso, disparei uma rajada longa por cima das suas cabeças para que reagissem, virando-se para mim. Fizeram de conta que não ouviram nada. Decidi ir lá ao pé deles enfrentá-los mas, antes, tive que ajudar a mudar o grupo para um sítio seguro com todo o material. 

Entretanto começo a ouvir uma viatura da Engenharia lá em baixo na estrada, que se aproximava a buzinar continuamente. Ao aproximar-me da borda da “pedreira”, vejo o condutor saltar para o chão e correr para mim aos berros, de braços abertos, a dizer “Parem, parem!...” Sem entender, vou ao seu encontro e diz-me ele, então, que íamos provocando uma catástrofe, pois o grupo de combate de Buba, que estava ali na mata a menos de um quilómetro, ouviu as rajadas e já estava a preparar o morteiro quando ele, que passava com viatura, se apercebeu da intenção e do equívoco, já que também tinha ouvido a rajada mas reconhecendo-a como sendo de G-3. Parou a viatura e alertou-os para o disparate que se preparavam para cometer. Eles acederam mas pareceu-lhe que estavam muito excitados. Pouco depois liguei por rádio para o alferes desse grupo para lhe pedir desculpa, mas ele estava furioso e não me recebeu bem. Desligámos a comunicação com maus modos de parte a parte. Até disto a guerra era feita...

(continua)

Texto, fotos e legendas: © António Murta
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Nota do editor

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terça-feira, 13 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15244: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (24): De 14 de Novembro a 22 de Dezembro de 1973

1. Em mensagem do dia 9 de Outubro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 24.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

24 - De 14 de Novembro a 22 de Dezembro de 1973

Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

(...)

NOV73/14 – (...) Pelas 20,30 horas deste dia foi comunicado a este Comando pelo Comandante do Pelotão de Milícias 231 que o Soldado Milícia MAMADÚ JALÓ, que se tinha deslocado na madrugada desse dia ao R. GUNOBA, para apanhar peixe, não tinha regressado.

NOV73/15 – Em face do desaparecimento do Soldado Milícia, foi destacado para um patrulhamento à região do R. GUNOBA, um grupo de combate, que encontrou vestígios de presença de um GR IN estimado em 30/40 elementos, que deviam ter retido o referido milícia. (...)

NOV73/20 – Pelas 08,30 horas chega a A. FORMOSA para uma visita a A. FORMOSA, MAMPATÁ E BUBA, Sua Excelência o Governador e Comandante-Chefe. (...).

(...)

NOV73/22 – Conforme notícias processadas, admite-se a passagem de coluna IN de INJASSANE-UNAL-INJASSANE, nos dias 22, 23 e 24. Com forças da 1.ª CCAÇ/4513, CCAV 8350, CCAV 8351, 2.ª CCAÇ/4513 e CART 6250 monta-se um dispositivo de contra-penetração nos corredores de passagem IN.

- Forças da 1.ª CCAÇ/4513, detectaram vestígios da passagem de grupo IN estimado em 20 elementos, no corredor de BUBA, no sentido SUL/NORTE, provavelmente na noite de 21 para 22 de NOV73.

(...)


Histórias marginais (4): Uma iguana de muitas vidas

Estávamos no regresso de mais um patrulhamento para protecção a uma coluna, na picada Nhala-Mampatá. Vejo lá à frente um soldado sair à direita para a mata, possivelmente para urinar e, quando regressa, diz qualquer coisa aos outros e eles entram também na mata. Parou todo o grupo. Quando me acerco estão a sair da mata muitos excitados e dizem-me: “Está ali um grande lagarto com uma lata enfiada na cabeça”. Eles sabiam bem que eu não perdia uma coisa destas, a menos que as circunstâncias não permitissem. Entrei na mata e vi o lagarto logo ali, separado da picada apenas por uma barreira densa de arbustos. Parecia um crocodilo pequeno mas com cabeça de sardanisca que, ainda por cima, não se via. Estava imóvel mas percebia-se bem que respirava e, sentindo a nossa presença, bufava dentro de uma lata ferrugenta de sumos ou chocolate das nossas rações, onde enfiara a cabeça sem remédio. Claro que ninguém reconheceu o lagarto. Até àquela data, o maior que vira na Guiné, era aquele que fazia flexões ao sol, indiferente à nossa presença. Calculei que tivesse um metro e meio da cabeça à ponta da cauda. A nossa primeira admiração: como é que um lagarto tão grande tem uma cabeça tão pequena? E mais: há quanto tempo estará sem comer e a respirar pelos poros da lata ferrugenta? Será perigoso? A minha primeira reacção foi abandoná-lo e seguir viagem, mas a curiosidade foi mais forte. Pensei: é simples, dou-lhe uma cacetada na cabeça enlatada e levámo-lo para ver se alguém nos ajuda a identificá-lo. Vai ser manga de ronco!

Ali a mata era de chão quase limpo e árvores ralas e pouco grossas. Não foi difícil arranjar um cajado. Dei-lhe uma cacetada tão forte na zona da cabeça, que a lata quase se espalmou. Para minha surpresa – e susto -, o réptil deu um salto descrevendo um arco, quase me batendo, e desata numa correria por entre as árvores até “atracar” de frente numa de maior porte. Ofegante, parecia uma bomba prestes a explodir, dando sacudidelas violentas com a cauda na árvore mais próxima, que vibrava até ao extremo da copa. Eu, incrédulo, mantive-me afastado, certo de que, se me atingisse uma perna, a partiria. De onde vinha tamanha energia? Que órgão comandaria os seus estertores? À distância, todos olhávamos perplexos aquela força da natureza que mais parecia algo de sobrenatural.

Quando o bicho parou de bater, aproximei-me e encostei-lhe o tapa-chamas da G-3 a meio da lata e disparei. Esperei então um momento e, vendo-o inanimado, fiz um laço de correr com uma ligadura que pedi ao enfermeiro. De longe, com a ajuda de um pau comprido, passei-lhe o laço pelo pescoço e dei um puxão. Não reagiu. Arrastei-o para a picada e um dos soldados levou-o de rojo até Nhala.

Arrancámos-lhe a lata da cabeça (uma massa) e, exposto à curiosidade de todos, ninguém, arriscou um nome para aquela espécie. Só no dia seguinte, através de um homem grande, indicado como a pessoa certa para o caso, ficámos a saber, por gestos e monossílabos, que se tratava de um, (ou uma) iguana africana. Isto na interpretação de um camarada que acompanhava a mímica do homem.

Ao fim da tarde, quase noite, vem-me dizer que a iguana, esticada frente à caserna do meu grupo, estava cheia de formigas. Deu-me vontade de a atirar logo para o bidon do lixo, mas tinham-me dito que o tal homem grande era especialista em curtir as peles dos répteis e que, a da iguana, era muito mais valiosa que a das grandes serpentes. Agarrei-a pela corda improvisada que tinha ainda ao pescoço e suspendi-a num barrote alto do abrigo da HK-21 ali mesmo ao lado. Pendurada e inerte, sacudimos-lhe as formigas. Já a noite ia alta quando se desencadeou uma tremenda trovoada acompanhada por chuva torrencial, como se os céus se quisessem livrar das últimas águas do ano. A seguir a um relâmpago potente, da minha cama ouvi, para os lados da caserna, pancadas violentas e repetidas em qualquer coisa de zinco. Pensei logo: é a iguana. Peguei na faca de mato e, debaixo do temporal, fui até ao abrigo da HK-21, que ia ficando sem telhado, e dei um golpe na corda aproveitando uma pausa na fúria louca do lagarto. Caiu-me aos pés e ficou estendido, quieto, na sua outra morte.

No dia seguinte foi-lhe retirada a pele (impressionou-me o volume da sua musculatura sobretudo nas patas) e, ao longo do tempo, o homem grande, vaidoso, chamava-me por vezes para me mostrar aquela preciosidade esticada com pregos numa tábua larga para secar. Até que um dia me veio entregar um rolo largo de pele e eu paguei-lhe o combinado. Era bonita a pele, embora um pouco escura. Pensava vendê-la em Bissau quando estivesse de passagem. Eu, que tenho um jeito danado para o negócio...


FOTOS 1 e 2: Nhala, 1973 – O homem grande exibe a iguana. Depois vai extrair-lhe a pele e curti-la.

Um dia, quando fazia preparativos para vir de férias, lembrei-me da pele e fui encontrá-la no fundo de um caixote, com as camadas interiores cheias de larvas: brancas e gordas. Peguei naquilo e atirei-o para o bidon do lixo com repugnância, muito alívio e a certeza de que, se não reagira às larvas, era porque a pele estava mesmo morta.

Foto 3: Iguana africana (Imagem extraída da Net)


22 de Dezembro de 1973 – (sábado) – Nhala: o regresso de férias.

Chegado no dia anterior de Bissau, ainda dormiria uma noite em Aldeia Formosa. Para meu contentamento e contra as expectativas mais pessimistas que trazia, soube que a actividade da guerrilha no Sector era quase inexistente, permitindo um bom avanço nas duas frentes de trabalho da estrada nova. Isto era bom porque todos nós tínhamos que lá estar, quer nas frentes de trabalho, quer ao longo do percurso já construído. Mas o que mais exigia de nós, paralelamente, eram as contra penetrações indispensáveis à segurança afastada e, também, para interceptar os grupos inimigos nos carreiros. Isso implicava a deslocação de muita tropa, normalmente para locais afastados. Verifico agora, pela História da Unidade que, só ao longo do mês de Dezembro, ocorreram cinco situações de movimentos desses, motivadas por informações recolhidas pelo Comando, dando conta da possível passagem de colunas de guerrilha nos carreiros. Em nenhum dos casos ocorreu intercepção, todavia, sendo a ameaça permanente, havia que repor o campo de minas no carreiro de Uane, lá para os lados do Corubal, que eu levantara antes de ir de férias. Eram as normas: levantar as minas antes de uma ausência prolongada e implantá-las de novo após o regresso.

A ida ao carreiro de Uane, ocorrida entre o Natal e o fim do ano, implicou que o meu grupo ficasse à responsabilidade dos dois furriéis em Buba, tendo em vista a protecção às obras de Engenharia nessa frente, aliás, já tinha sido assim durante o meu período de férias. Só após a instalação do campo de minas me juntaria ao grupo.


Natal de 1973

Foi o meu primeiro Natal passado longe da família. Para a maioria também. Mas o constrangimento que isso causasse, dependia em maior ou menor grau, da importância que cada um atribuía a essas festividades, - o Sr. de La Palice, não diria melhor... Daí que, a mim, afectasse pouco, quer por ter regressado recentemente, quer pelo hábito familiar de natais austeros e de pouca religiosidade. Em criança sim, os natais eram épocas de grande alegria e excitação e, todos os anos o meu pai fazia grandes presépios, pouco comuns, cheios de luz e cor e onde não faltavam os moinhos que giravam sem vento e nem as azenhas que rodavam com água a sério. E onde até o Menino Jesus tinha sempre aos pés um pires com moedinhas, antecipando as ofertas dos Reis Magos. Éramos muitos irmãos e precisávamos do imaginário efervescente. E o nosso presépio padrão colocava num nível muito alto as expectativas e as exigências de qualidade: era o presépio monumental da Igreja de Miranda do Corvo, cujas figuras tradicionais eram mais ou menos do nosso tamanho. Mas, antes da adolescência, já tinha acabado a tradição sem que isso nos traumatizasse. Não sonhava, nesses tempos, que voltaria a ver presépios animados (e trabalhosos), agora feitos por mim para extasiar as minhas duas netas.

Para a noite da consoada em Nhala, esmerou-se o Capitão Braga da Cruz, conseguindo atempadamente todos os ingredientes e produtos da tradição, para que nada faltasse na mesa. Ninguém ficou excluído da ceia condigna e do ambiente que atenuasse a dor da saudade. Mau grado o estado de alerta, orelhas no ar, porque, dizia-se, os turras aproveitam sempre estas ocasiões. Sempre, não, porque não aconteceu nada e tudo correu bem. Nessa noite todos se deitaram em paz (menos as sentinelas), cada um sonhando com Menino Jesus da sua preferência.

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Estava no fim o ano de 1973 sem grandes novidades operacionais neste derradeiro mês, para além das notícias de possíveis infiltrações da guerrilha através dos corredores de passagem; iniciou-se o reordenamento de Colibuia que bem precisava, pois aquilo que lá existia era uma nulidade; a estrada avança a bom ritmo (estando a frente de Buba a 6000 metros de Buba e a frente de A. Formosa a 5100 metros de A. Formosa). É sobretudo para esta obra que convergem as atenções e o entusiasmo de todos. Não é para menos: esta estrada vem revolucionar o modo, o tempo e a segurança (?) na ligação entre Aldeia Formosa, Mampatá, Nhala e Buba.

Foto 4: 1974, estrada Buba-Aldeia Formosa no troço Buba-Nhala, ainda antes de se completar todo o trajecto.

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 6 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15207: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (23): De 27 de Outubro a 12 de Novembro de 1973