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sábado, 23 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7164: Meu pai, meu velho, meu camarada (24): Bijagós, memórias de menino e moço (Manuel Amante)



Guiné-Bissau > Bolama > s/d > Cais > Uma canoa nhominca, para transporte de passageiros 

 Foto: © Patrício Ribeiro (2009). Todos os direitos reservados.


1. Eis um belo texto sobre uma das mais belas regiões da Guiné, os Bijagós, que  a maior parte de nós, antigos combatentes, não conhece, não conheceu nem nunca  terá, infelizmente, oportunidade de conhecer... 

O embaixador Manuel Amante da Rosa, que foi nosso camarada de armas em 1973/74, e que tem hoje funções de responsabilidade na CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, autorizou-me em tempos a reproduzir esse texto, que ele escreveu para a sua filha, Carla,  autora do blogue Amante da Rosa, e que vive (ou vivia na altura) em Cabo Verde... É um blogue que eu visitava regularmente mas que infelizmente fechou, entretanto (embora continua a ser pesquisável na Net). Apresenta(va)-se nestes termos: "Meu Cabo Verde. História e Estórias. Minhas raízes, família e recordações. A Guiné. Pensamentos e Imagens. Sem ordem cronológica"...

Com a devida vénia, e como homenagem à Carla, ao pai Manuel Amante e ao avô paterno, em cujo barco, o Bubaque, muitos nós, malta da zona leste da Guiné, deve ter viajado entre Bissau e Bambadinca, entre 1961 e 1974, permito-me transcrever este texto de antologia, que o Manuel Amante escreveu para a sua filha Carla, em memória do seu velho... (Julgo que as ilustrações são da responsabilidade da autora do blogue).

Uma resslava: apesar de termos na nossa posse, digitalizadas, todas as cartas do arquipélago dos Bijagós - oferta do nosso camarada Humberto Reis, em 2005 - , nunca as chegámos a pôr  "on line", por razões de segurança... Ficam, no entanto, à disposição dos amigos e camaradas que precisaram delas, por razões de turismo, solidariedade, investigação ou outras razões a avaliar, caso a caso e mediante pedido pessoal ao editor Luís Graça. (LG).

Fonte: Blogue Amante da Rosa > Setembro 10, 2007 > Bijagós, memórias de um pai


2. Meu pai, meu velho, meu camarada > Bijagós, memórias de menino e moço
por Manuel Amante (**)


Após a separação dos meus pais, aí por volta dos meus dez anos, passei a fazer parte do espólio do meu velho. Ele, aos 33 anos, com o fim do casamento, reinventara-se marinheiro errante e pescador, desventurado que estava com o início da guerra que o impedia de circular pelas estradas da Guiné. Já lhe estava na matriz de ilhéu o destino de ser um deambulante incansável e, na altura, a pretexto de uma fuga imaginária, transferiu a sua sanha de aventuras para a descoberta um arquipélago desconhecido, onde poderia livremente saltar de uma ilha para outra. Um lugar onde as lágrimas que foi vertendo, certamente a olhar para lá das ilhas de Caravela e de Unhocomo, se foram diluindo na mistura baça resultante do encontro das águas do Rio Geba e do Atlântico.

O horizonte longínquo que em algumas ocasiões pairava no seu olhar perdido foi-me decifrado numa manhã solarenga, de mar prateado, com vento de través, no canal entre as ilhas de Uno e Orango, quando murmurou, agarrado à cana do leme que aquela canoa, a sua Ave do Paraíso como carinhosamente a apelidava, certamente que aguentaria ir até à ilha de Santiago,  em Cabo Verde. Mal sabíamos os dois que, quase 40 anos depois, milhares de africanos, a fugir da miséria e instabilidade, desafiariam o destino e as intempéries nessas frágeis embarcações para chegarem tanto às ilhas de Canárias como às ilhas creolas.

O desterro voluntário do velho, por longos períodos, tinha sido a encantadora ilha de Sogá,  no arquipélago dos Bijagós. E eu, orgulhosamente só,  em Bissau. Os meus outros dois irmãos mais novos, o Rui e o Djoi, tinham acabado por regressar à protecção e segurança do lar materno. Lá ia aguentando menos mal a casa da madrasta onde nunca me integrei.

Tornei-me também, junto de outros companheiros de mais idade do Bissau Velho, um aventureiro incorrigível de caça, dos banhos e pesca de bentaninhas e bagres nas bolanhas próximas da segunda ponte, lá para os lados de Bulola. Nadávamos em grande algazarra e descontraidamente junto de grandes saltões, de sapos, de lagartixas, de garças, de raras linguanas e de cobras que por vezes se entremeavam, de cabeça erguida, no nosso meio à procura de sossego ou da outra margem, sem contar com os crocodilos que, sempre que alguém gritava lagarto,  saltávamos em debandada para fora da água. Apesar de alguns terem dito que lhes viam, ali na segunda ponte, nunca os vi. Inventávamos os saltos mais arrojados para a água,  em especial o arratchacoco, que repetíamos vezes sem conta em cima dos mais incautos.

[bjg2.bmp]Outras vezes, num grupo mais pequeno embarcávamos na lancha Barreiro ou no pequeno Gouveia 16 e íamos para o ilhéu do Rei com os operários da fábrica de óleo de amendoim. Esta aventura era somente para os mais destemidos e que aguentavam fome. Ali não havia árvores de fruto ou quem se condoesse connosco. Voltávamos cedo e durante dias sentíamos o odor do óleo de mancarra para onde fossemos.

Por vezes, caminhávamos bem mais longe. Até vermos Cumeré do outro lado de um pequeno rio lodoso, o Impernal. Outras vezes ainda caminhávamos alegres, nus ou semi nus, com a roupa enrodilhada na cabeça, cana de pesca no ombro e a indispensável fisga ao pescoço, sempre em bicha de pirilau, através dos diques das bolanhas e canaviais, através de grandes extensões de terra alagada, até sairmos atrás do quartel de Santa Luzia e entrarmos na Granja do Pessubé (***). Aqui, num jogo de esconde-esconde com os guardas, surripiávamos fruta e nos banhávamos, se possível, no tanque que apelidávamos de piscina. Depois, ao anoitecer, era o regresso ao Bissau Velho sem sapatos ou algumas peças de roupa, arrependidos e com promessas repetidas de que nunca mais faríamos a pirraça de faltar às aulas. A entrada no Bissau Velho despertava em todos o receio das cintadas ou da palmatória de cinco buracos. Dividíamos no Zé da Amura para não dar nas vistas.

Pai fora e madrasta ocupada com afazeres profissionais. Vida boa. O que mais poderia almejar naquela idade? A vontade de continuar livre foi tanta que, após um bom final de exame do segundo grau,  disse orgulhoso a uma vizinha da minha Mãe, perante um olhar dela de comiseração e surpresa, que não tencionava mais voltar à escola porque o meu Pai tinha dito que para ser pescador não era preciso mais que a quarta classe. Ainda acabei, por alguns meses, como aprendiz de mecânico, nas oficinas navais.

Mas antes, num certo dia, numa das inúmeras passagens pelo porto do Pidjiguiti, após as aulas, soube que a canoa a motor de cerca de nove metros a flutuar desajeitadamente a uns metros, para além da cabeça de ponte, era do meu velho e que se prestava a sair com a vazante, de regresso aos Bijagós. Não hesitei e arranjei forma de embarcar. Ninguém mais conseguiu de lá me tirar por mais argumentos que me fossem apresentados.

[bjg4.bmp]Época das chuvas, com uma brisa irregular do Sudoeste, horizonte escuro lá para os lados de Tite e de Enxudé a avisar da aproximação de um tornado e mar algo encapelado lá fomos, meia força avante, apontando, num fim de tarde triste, para a embocadura desse largo rio de onde por vezes não se via a outra margem.

Uma hora depois, resguardado, por uma manta fortuita do arrais Nhô André, compadre do meu velho, fascinou-me ver a água fosforescente a deslizar para trás, as luzes de Bissau a desaparecerem e um farol, o Pedro Álvares, muito ao longe pela proa, por vezes, a piscar. O bater compassado do esporão da canoa nhominca a cortar as ondas altas, as inclinações laterais e a chuva miudinha pouco me amedrontaram. Sentia-me o herói de uma aventura da banda desenhada do Príncipe Perfeito e do Simbad.

Mesmo assim, lá para as nove, já com a lua a iluminar o rastro deixado pela canoa, após ter tentado imitar os outros, mijei em equilíbrio precário para sotavento, mastiguei a custo um pão duro e bebi, por um dos orifícios, quase meia lata de leite condensado que me deram. Adormeci depois todo enrolado e a tiritar em cima de uma prancha, logo a seguir à arca de gelo.

Uma avaria inesperada no único motor, ao largo da ilhas das Galinhas, faria com que continuássemos, a custo por causa da enchente, à vela e a remos até ao nascer do sol. Lá pelas nove, já com a força da maré de vazante, desembarcamos, perante a fuga de mais de uma dezena de macacos e debandada ocasional dos habituais caqres, numa praia da lindíssima ilha de Rubane. O meu primeiro desembarque de muitas outras paragens pela maioria das mais de 60 ilhas e ilhotas. 

Achei que aquela paisagem deslumbrante seria a tradução do que deveria ser o paraíso. E nunca me arrependi desse juízo. A viagem continuou ainda para uma outra ilha (Canhabaque) algumas milhas adiante, para recolher o meu Pai, que um dia quase que se tornava um nobre desse pequeno reino dos Bijagós. Muito certamente o primeiro espaço da África negra a sofrer um bombardeamento aéreo na guerra dos Bijagós de Canhabaque contra os poderes coloniais por volta da década de 20 do século passado. Só seriam considerados completamente pacificados após sucessivas campanhas que terminaram em 1936.

[bjg1.bmp]Mas, depois contar-te-ei com mais detalhes e também do meu encontro com um pai assustado até dizer chega, por ver a loucura que eu tinha feito e naquelas condições de tempo. O meu receio de poder levar uma valente sova quando ele me visse e as ilhas que percorremos, numa breve semana, até retornar, a toque de caixa, a bordo do lento e estafado Ametite, à enfadonha turma da quarta classe da Escola Oliveira Salazar, em Bissau. Poucos dos colegas acreditaram que tinha feito tamanha proeza por ser dos mais novos, franzino e não passar de um brancucinho que, apesar de brigador e rápido, jogava desajeitadamente à bola e que até ia para a escola de tchacual. Ainda hoje, julgo que partilho da mesma praga que tombou sobre Cassandra.

Até aos meus 21 anos nunca mais lá deixei de ir sempre que podia. Aprendi com vários arrais, sem cartas e ou outros instrumentos, a não ser a bússola, a navegar no arquipélago, aproveitando as estrelas à noite e o pulsar regular das marés, por entre aquelas ilhas e canais, ao ponto de, aos 13 anos, levar o LP3 de Bissau a Bubaque e regresso, sem supervisão do arrais, sem encalhar e demorar mais tempo. Surpreendia-me sempre o Arrais Avião, cego de um olho, que me instruía assim:
- Segue paralelo à Sogá, passa o canal de Bubaque, até veres a ponta mais afastada de Rubane, aproas à ponta e deixas a popa na extremidade norte de Sogá até estares dentro do canal. Atenção ao descaimento provocado pela enchente e na vazante à malhadeira na ponta de Bubaque à entrada do canal. 

Um autêntico desafio seguir estas instruções na roda do leme. Umas vezes de canoa a remo ou à vela ou outras vezes no barco de pesca e navios de passageiros fui conhecendo o último paraíso desta costa africana que até há pouco tempo ainda detinha resquícios de uma sociedade matriarcal.

[bjgs1.bmp]
O site dar-te-á o alumbramento do que pude ver pela primeira vez. O encanto das ilhas, suas gentes, flora e fauna nunca se perderam dos meus olhos apesar de ter percorrido mais de meio mundo e visitado lugares exóticos. Vê e diz-me se não é mesmo um paraíso o que descobri ainda na infância.

Manuel Amante da Rosa

[ Revisão / adaptação / fixação de texto: L.G.] (****)
___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de Manuel Amante publicados no nosso blogue:


28 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5555: A navegação no Rio Geba e as embarcações do meu tempo: Corubal, Formosa, BOR... (Manuel Amante da Rosa)


 12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5455: Memória dos lugares (60): O Rio Geba e o navio Bubaque, do meu pai (Manuel Amante da Rosa)

27 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1787: Embaixador Manuel Amante (Cabo Verde): Por esse Rio Geba acima...


 (**) Recorde-se que o nosso camarada Manuel Amante nasceu, em 19 de Dezembro de 1952,  na Guiné, de pais caboverdianos, tendo passado pelas fileiras do Exército Português,  em 1973/74. 

Depois da independência de Cabo Verde, exerceu, entre outros cargos e funções, os seguintes (de acordo com um currículo, desactualizado, de que dispomos: conselheiro do Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo de Cabo Verde (2005), embaixador de Cabo Verde no Brasil (1992/2002) e em Angola (1995/99), observador internacional da OUA no processo de democratização da África do Sul (1993/94), diplomata em Moscovo, colocado na embaixada de Cabo Verde (1986/90) bem como na missão permanente de Cabo Verde nas Nações Unidas, em Nova Iorque... Entrou em 1980 para o Ministério dos Negócios Estrangeiros.


O Manuel Amante exerce actualmente o cargo de Secretário Geral Adjunto do Fórum para as Relações Económicas e Comerciais entre a China e os Países de Língua Portuguesa, com sede em Macau. No exercício desse cargo, passa uma larga temporada em Macau, lugar de onde acompanha o nosso blogue com assiduidade, atenção e carinho.

Como ele recorda, "também fui militar (73/74), de recrutamento local, no CIM de Bolama onde fiz a recruta e especialidade antes de ser colocado no QG (Chefia dos Serviços de Intendência) em Bissau. No momento de ser incorporado, tal como muitos da minha geração, estava relativamente familiarizado com as questões de foro castrenses. Não se podia viver na Guiné e ficar alheio ao que se passava e à inutilidade que essa guerra significava em termos de vidas humanas.

"Na minha infância e adolescência fiz muitas viagens pelo interior da Guiné-Bissau durante a luta de libertação. Mas o que mais me encantava (70/73), pelas paisagens e desafios, era subir o Rio Geba, nas férias ou mesmo nos fins de semana, num dos barcos de passageiros do meu Pai (o Bubaque, antiga traineira algarvia, adquirida pela Marinha portuguesa e transformada, nos inícios da guerra, em Lancha Patrulha nº 4, até ser comprada pelo meu Pai e transformada em navio de transporte, mais popularmente conhecido por Djanta Kú Cia)". (...)


(***) Granja de Pessubé, nos arredores de Bissau: estação agronómica onde trabalhou o Engº Amílcar Cabral entre 1952 e 1955.

(****) Último poste desta série > 20 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6874: Meu pai, meu velho, meu camarada (21): Parabéns a vocês! Luís Henriques e Armando Lopes, 90 anos, uma vida! (Luís Graça)

sábado, 21 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5312: Historiografia da presença portuguesa em África (31): José Henriques de Mello, o primeiro fotógrafo de guerra português (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos*, (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Novembro de 2009:

Malta,
Resolvi separar as fotografias da guerra das da paz. É um álbum muito expressivo, revela-nos um fotógrafo excepcional. É claro que para mim o mais tocante passa pelo Cuor, está lá tudo desde Mato de Cão, as campanhas dentro do regulado, o ataque a Madina (será, mais de 50 anos depois, um dos santuários do PAIGC), pela primeira vez vi a corte de Infali Soncó, o mais rebelde entre os rebeldes.

Um abraço do
Mário


O PRIMEIRO FOTÓGRAFO DE GUERRA PORTUGUÊS:José Henriques de Mello

Retratos da Guiné antes dos conflitos de 1907 – 1908

Por Beja Santos



Numa edição da imprensa da Universidade de Coimbra (Novembro de 2008, 500 exemplares), fomos surpreendidos pela notícia de que o primeiro fotógrafo de guerra português operou na Guiné entre 1907 e 1908 tendo deixado um álbum com cerca de uma centena de imagens, provavelmente obtidas em 1907 e que deveriam estar destinadas a comercialização. Os organizadores não escondem a sua surpresa pelo tesouro cultural, histórico e etnográfico que representam estas fotografias, agora digitalizadas. O que nos enternece é a proximidade da câmara, fornecendo-nos admiráveis registos estáticos que desvelam usos e costumes dos colonos, a natureza das habitações indígenas, a vida clânica de diferentes etnias, com as suas hierarquias, a europeização e cristianização, as danças, a azáfama nas casas comerciais, as digressões do poder (como sua excelência o Governador a embarcar), as práticas católicas em Bolama, a vida do mercado na capital da colónia, por exemplo.

Muito pouco se sabe sobre José Henriques de Mello, que partiu da ilha de Santiago, onde trabalhava em fotografia na cidade da Praia e de onde partiu para a Guiné para acompanhar a expedição militar. Certo e seguro é que a sua ida à Guiné o transformou no primeiro fotógrafo de guerra português, o primeiro a estar presente numa frente de combate e a enviar para os jornais os seus instantâneos. Há provas de que ele se encontrava na Guiné em pelo menos fins de 1907, daí o apaziguamento das imagens, os momentos de doce convivência que antecedem os conflitos que irão abrasar o Leste e a região de Bissau. Mello é nome que não consta no nome da fotografia em Portugal e historiadores como António Pedro Vicente ficaram surpreendidos com a elevada qualidade destes disparos fotográficos. Sabe-se que Mello emigrou para os Estados Unidos mas perdeu-se-lhe o rasto.

Neste livro surpreendente, Mário Matos e Lemos descreve a actividade do Governador Muzanty, as fricções que teve com os comerciantes da Guiné, dá-nos um quadro da situação política e económica da colónia depois da desafectação de Cabo Verde refere os massacres conhecidos por o “desastre de Bolor” em que foram massacrados mais de 100 soldados e grumetes ao serviço da bandeira portuguesa por guerreiros Felupes, em 29 de Dezembro de 1878. Dois historiadores acidentais irão depor sobre a natureza dos conflitos que irão por em confronto as tropas portuguesas e os seus aliados contra os régulos sublevados: Nunes da Ponte e Pinheiro Chagas. Observa ainda Mário Matos e Lemos que no final do século XIX os dirigentes monárquicos encaravam a possibilidade de entregar a exploração da colónia a companhias soberanas ou majestáticas, como forma de travar a presença do comércio internacional na região (sobretudo belgas, alemães, franceses e ingleses) as instalações militares ou eram muito fracas ou estavam degradadas. A Conferência de Berlim (1884 – 1885) reclamara como princípio essencial da legitimidade da soberania a ocupação efectiva do território, o que vai desencadear campanhas de pacificação na Guiné, em Angola e Moçambique. As campanhas anteriores às do Governador Muzanty foram, regra geral, mas sucedidas, perpetuando-se os problemas com os Papéis de Bissau, os levantamentos na região do Oio, os resultados eram sempre provisórios, ninguém queria pagar o imposto de palhota. E assim chegámos às campanhas de 1907 e 1908, iremos ver as fotografias de José de Mello no Cuor e na região de Bissau.

Quem pretender obter este álbum que é uma verdadeira preciosidade, pode contactar a Livraria Ferin, a obra custa 25 euros (Livraria Ferin, telefones 213424422 / 213469033 ou e-mail livraria.ferin@ferin.pt).


Régulo de Fulas e seus Ministros

Teatro de Bolama

Costume de europeus estrangeiros. Aperitivo (antes do jantar)
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5287: Notas de leitura (34): As Lágrimas de Aquiles, de José Manuel Saraiva (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 14 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5269: Historiografia da presença portuguesa (30): O primeiro fotógrafo de guerra português andou no Cuor, Guiné, em 1908! (Beja Santos)

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2861: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (32): Operação Pavão Real

Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério Municipal > Talhão Militar Central > Abril de 2006 > Obelisco de homenagem aos soldados portugueses, mortos nas diversas campanhas de pacificação da Guiné. Nesta face, encimada por um medalhão com o busto da República, pode ler-se: Campanha do Cuhor (1907-1908), Campanha de Samocé (1908), Campanhas de Oio e Bissoram (1913), Campanha de Manjacos (1914).

Foto: © Hugo Costa (2006). Direitos reservados.


"No tempo em que o Geba estreito era navegável até Bafatá... Encontrei esta preciosidade no Anuário da Guiné de 1946, p. 544(houve ainda uma edição em 1948), uma iniciativa do Governador Sarmento Rodrigues, quando Teixeira da Mota era seu ajudante. Quando vi a fotografia fiquei a imaginar a beleza de um passeio de Bambadinca a Bafatá,acenando aos agricultores a fainar em ambas as margens...não vivemos esse mundo de paz"...

Na mesma página, há uma referência à Paróquia Missionária de Bafatá, de que eram Párocos os Padres Septimio Munno e Artur Biasuti,sendo Coadjuvtor o Padre Espartaco Marmugi e Auxiliar (leigo ?) Vicente Menasi...Italianíssimos, como se vê. Também há uma referência à Missão de Geba, de que era Superior o Padre Efrem Estevanin e Coadjudores os Padres Felipe Croci e Luiz Andreoleti.

Já agora, e não menos curiosa, é a composição da Direcção do Sporting Clube de Bafatá: Presidente - Carlos Caetano Costa; Vice-presidente - Dr. Fernando Luís Leite de Sousa Noronha; 1º Secretário - Carlos Elbling; 2º Secretário - Armando Avilez de Basto; Tesoureiro - Francisco Malheiros; Vogais - Arif Elawar e Carlos Menezes Ferreira; Suplentes - Adriano Augusto e Francisco Paulo... Tentand advinhar, o Arif deveria ser sírio-libanês, comerciante ou filho de comerciantes; os suplentes poderiam ser guineenses, assimilados, ou cabo-verdianos, emptregados do comércio local ou pessoal menor da administração local... (LG)


Foto (e legenda): ©
Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 25 de Fevereiro de 2008:

Luís, as propostas de ilustração já seguiram. Ainda esta semana, assim o espero, te enviarei o episódio n.º 33, se tudo correr bem o segundo livro está concluído no final de Julho. Terei alguns exemplares do primeiro livro na próxima sexta-feira. Não sei exactamente quando partes, vê lá se me esclareces. Gostaria muito que levasses um livro contigo, para mostrar à comunidade luso-guineense e outros participantes. Um abraço do Mário

Operação Macaréu à vista - Parte II > Episódio XXXII > OPERAÇÃO PAVÃO REAL
por Beja Santos (1)



(i) No rescaldo da operação Tigre Vadio

De 2 a 6 de Abril [de 1970] iremos permanecer em vigilância frente ao Xime, na ponte de Udunduma. Esta é a nossa principal tarefa, mas não deixámos de ir numa coluna ao Xitole e continuámos a apoiar o recenseamento das armas nas tabancas na órbita de Bambadinca.

A 7 escrevo à Cristina:

“Capitulei com o paludismo, é daqueles que não dá tremores nem vómitos, põe só a pele a gotejar, teve dias a fio com arrepios, continuo a beber litradas de água para não desidratar, tapo-me com dois cobertores nestes dias e noites quentíssimos. Mas agora já me sinto melhor, quase convalescente, roubo na enfermaria frascos de vitamina C e complexos multivitamínicos que tomo às grosas, como cereais, e agora os arrepios estão finalmente a passar. Não sei se apanhei este paludismo no Poidom ou em Belel.

"Quando regressámos em 1 de Abril, depois da 'Tigre Vadio', recebemos felicitações de todos pelos resultados operacionais alcançados, se bem que com um grande sofrimento das tropas. Foi meia hora de fogo, houve surpresa total, na nossa aproximação do acampamento dos guerrilheiros, um dos meus soldados que é caçador, Cibo Indjai, tinha descoberto um trilho, depois a avioneta indicou-nos o caminho certo. Este acampamento de Belel estava no meio de uma horta de mandioca e fundo, as habitações em colmo e adobe estavam perfeitamente dissimuladas pela vegetação.

"Infelizmente, no regresso vim buscar água a Bambadinca, na soalheira das três da tarde, o helicóptero foi atingido por tiros que estilhaçaram vidros, julguei ao princípio que se tratava de uma emboscada, agora estou convencido que foi nervosismo e precipitação das nossas tropas que alvejaram a aeronave.

"O regresso teve de tudo: ataque de abelhas, insolações, um corta-mato infernal à procura de Enxalé. Regressei com os pés muito feridos, agora já estou melhor. Chegou entretanto o Pires de férias, deu-me as tuas notícias, e trouxe os livros e discos, quando eu partir para Bissau deixo o pelotão entregue ao Cascalheira, ao Pires e ao Ocante.

"Imagina tu que na noite de 2, já estávamos na ponte de Udunduma, houve um ataque brutal ao Xime, donde partimos na véspera, durou cerca de uma hora, trouxeram canhões sem recuo e morteiros 82, provocaram destruição, elevados danos materiais, felizmente só houve feridos ligeiros.

"Na coluna entre Bambadinca e Xitole tudo nos correu bem, mas as tropas de Mansambo, durante o reconhecimento à estrada, detectaram e levantaram minas anti-pessoais, altamente reforçadas.

"Tenho agora informações a dar-te sobre o nosso casamento. O David Payne escreveu, casaremos em 16 de Abril, pelas seis e meia da tarde. Ficaremos em casa da Elzira e do Emílio Rosa, durante esse tempo eles serão hóspedes dos Payne. A seguir ficaremos no Grande Hotel. O jantar de casamento será num restaurante de nome 'Pelicano', frente à baía de Bissau. Estou a preparar a lista dos convidados, alguns dos meus soldados estarão lá. Escrevi hoje ao meu primo José Augusto Gândara de Oliveira, para Luanda, para o Eduardo Canto e Castro e para o Paulo Simões da Costa, sei que eles vão ficar muito contentes com a participação no nosso casamento. Combinei com a D. Leontina procurar telefonar-te amanhã, a partir de Bambadinca. Se eu falhar à hora aprazada, ela tem uma mensagem para ti. Recebe toda a minha devoção”.

À hora aprazada não se conseguiu a ligação e eu tinha de ir a Samba Juli. No dia seguinte, D. Leontina informou-me com o seu sorriso escancarado:
-Falei à sua prometida logo que os telefones começaram a funcionar, e disse para ela não se esquecer da camisa com as mangas acrescentadas ao tamanho dos seus braços e para trazer as meias de algodão fino. E em seu nome dei-lhe um beijinho e no meu desejei-lhe as maiores felicidades. É tão bonito casarem na Guiné!

(ii) Notícia dos documentos preciosos que me emprestou D. Violete

É na ponte de Udunduma que começo a ler os livros e revistas que foram emprestados à D. Violete pela neta do régulo Mamadu Sissé, um aliado muito leal de Teixeira Pinto. Encontro um comentário de Ramos da Silva, datado de 1915, nos Subsídios para a História Militar e da Ocupação da Guiné, que transcrevo para o meu caderninho:

”Descrever a desgraçada situação política em 1878, definir o que é a Guiné, o seu território: presídio de Zeguichor, praça de Cacheu, presídio de Farim, vila de Bissua, ilhéu do Rei, presídio de Geba, ilha de Bolama e Rio Grande. E nada mais”. O autor fala na criação recente de Sambel-Chior, na margem direita do Geba, onde não há bandeira nem autoridade portuguesa.

Leitura empolgante é a que permite Frederico Pinheiro Chagas em A Guerra da Guiné, vejo que são textos muito sumidos dos Anais do Club Militar Naval, um relato publicado em 1909. Anoto o seguinte:

“Houve há pouco tempo uma guerra entre os biafadas do Cuor, região da margem direita do Geba, e os balantas seus vizinhos, causada, como sempre, pelas incursões destes últimos no território dos primeiros, a fim de roubar mulheres e gado, constante origem das discórdias”.

Confirma-se, pois, o que já lera algures. As ofensas às autoridades começam quando o 2ª tenente da armada José Proença Fortes fora de Geba a Sambel Nhantá, tabanca de Infali Soncó e aqui humilhado. No entretanto, Infali intrigava, arranjara uma inventona sobre a cessão de Badora. Pinheiro Chagas observa que Infali fora imposto pelas autoridades portuguesas aos biafadas. Ele tinha-se revelado um precioso auxiliar na primeira guerra do Oio, mas depois bandeara-se para o inimigo, apoiando os oincas contra os portugueses. Os homens de Infali deram luta.

Quando a lancha-canhoneira Cacheu subia o Geba depois do Xime, para trazer os cristãos de Geba, “mal entrou na parte do rio onde começa a região do Cuor, foi atacada violentissimamente de entre o mato que esconde a margem direita... O fogo do inimigo era constante e a ele respondia a Cacheu com a fuzilaria dos seus marujos e com os tiros de duas metralhadoras Nordenfeld e de uma peça Hotchkiss...

Durava o combate havia horas, a canhoneira seguia devagar, serenamente, para serem os tiros eficazes. Numa volta apertadíssima, junto de Sambel Nhantá, de repente, apareceu um cabo muito grosso de arame farpado. Infali Soncó, que esperava assim impedir completamente a passagem à canhoneira, concentrara aí toda a gente que dispunha, e na ocasião em que a Cacheu aparecia na volta do rio, rebentou da margem direita uma fuzilaria medonha que fez numerosos feridos”.

Eu leio tudo febrilmente, tenho que contar tudo isto ao régulo Malã, vou aproveitar as horas vazias da noite, aqui no Udunduma, para contar estas histórias aos soldados. Durante a leitura, vou anotando dúvidas: fala-se aqui da Ponta Joaquim da Costa, a seguir ao Xime, na margem direita do Geba. Para mim é forçosamente Mato de Cão. Mas será?

Mais adiante escrevo: “Nesta época o régulo mais rico da Guiné era o do Gabu, o regulado tem uma população muito densa e só em imposto de palhota rende anualmente ao governo dezoito contos de reis”. Sambel Nhantá não devia ser uma povoação muito pacifica, em 11 de Outubro de 1885 tinha havido um ataque a esta tabanca comandado pelo capitão Caetano Alberto da Costa Pessoa, também por motivos de desobediência.

Continuo a ler a campanha do Cuor, tenho que devolver amanhã estes documentos à D. Violete, ela vai visitar Fatumana e promete trazer mais papéis. A campanha do Cuor envolveu soldados de Infantaria 13, que vieram de Vila Real. Tudo decorreu em Abril de 1908, sem artilharia, sem cavalaria, sem engenharia, sem material rolante. O governador Muzanty decidiu cambar em Bambadinca numa grande lala (pensei para mim que ele estava a falar de Finete), daqui as tropas marcharam para Ganturé (certamente a Canturé actual) e incendiaram Sambel Nhantá.

Em Gã-Sapateiro (mais tarde chamada Caranquecunda, por onde eu passava praticamente todos os dias) construiu-se um posto militar. Entretanto, Infali Soncó fugiu para Madina, a quinze quilómetros de Caranquecunda, as tropas foram no seu encalço e incendiaram a tabanca. O narrador escreve que então se ergueu no Cuor a bandeira portuguesa ao som de vinte e um tiros de peças de artilharia, os régulos revoltados pediram perdão, que lhes foi concedido.

O posto de Caranquecunda ficou guarnecido por 60 macuas (soldados moçambicanos) comandados por um tenente e por um alferes. E o relato termina assim: “O imposto que os habitantes destas paragens estavam com relutância em pagar começou a entrar rapidamente nos cofres da Província, cobrando-se logo em pouco tempo nas residências de Geba quarenta e seis contos de réis”.

Procuro adormecer, imagino o que foi aquela campanha do Cuor, os soldados de Vila Real a caminhar pelas matas, os macuas em Caranquecunda. O meu caderninho vai-se enchendo com coisas que me entusiasmam. Quando encontrar Gibrilo Embaló vou dizer-lhe que o seu nome Djibril tem a ver com o anjo Gabriel que revelou a Maomé a vontade de Alá. Que uma jibóia na Guiné é conhecida por irã-cego. Que no registos das espécies aladas me esqueci do maçarico, da andorinha do mar, do frango de água, da viuvinha, do noitibó balanceiro e do papa-figos dourado. Que tinha em falta, na minha relação de mamíferos, o rato da bolanha, o macaco do tarrafe e a cabra cinzenta.

Agora estou mesmo exausto, o Lion Brand já está aceso, vou procurar adormecer, mesmo com o zumbido permanente dos mosquitos.


Capa de A Fronteira de Deus, de Martìn Descalz

A Colecção Atlântida, da Editora Ulisseia,incluíu títulos importantes de Vergílio Ferreira,Manuel da Fonseca,Graciliano Ramos,Dinah Silveira de Queroz e Miguel Delibes, entre outros.O capista foi um grande artista do seu tempo, Marcelino Vespeira, como aqui se pode verificar.Não indica tradutor nem ano da edição.

Martín Descalzo recebeu com este livro o Prémio Nadal 1956. Temos a história de fazedor de milagres que vai suscitar anticorpos sociais,políticos e religiosos, a tal ponto que o liquidam.Ele,um simplório guarda de passagem de nível que fora chamado pela população para fazer chover,ao ser assassinado vai convocar a misericórdia de Deus:o seu sacrifício é assinalado com a chegada da chuva.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



(iii) Os preparativos da Pavão Real

Em 8 de Abril, um pouco antes do almoço no gabinete do major Herberto Sampaio, tem lugar a última reunião com os oficiais que vão participar na batida à foz do Corubal: CCaç 12, Companhia do Xime [CART 2520]e o Pel Caç Nat 52.

O oficial de operações começou por recordar os resultados das duas últimas operações, não deixando de referir as canoas que foram avistadas na outra margem do rio Corubal, as flagelações que sofremos, a tremenda dificuldade em surpreender as populações que trabalham e vivem cercadas por bolanhas e lalas extensíssimas. Pelas informações disponíveis, o inimigo dispõe de um bigupo a actuar entre a foz do Corubal e a Ponta do inglês. O incêndio das habitações na bolanha do Poidom, durante a operação Rinoceronte Temível, de modo algum intimidou os guerrilheiros (2).

Nesta batida, com a duração prevista de dois dias, um dos destacamentos sairia do Xime e iria buscar entre Madina Colhido e Gundaguê Beafada, o outro iria progredir de Ponta Varela flanqueando o Geba, em direcção à foz do Corubal. Com o apoio aéreo, ao amanhecer do dia 10, e de acordo com os itinerários previamente acordados, os dois destacamentos iriam convergir para a Ponta do Inglês, regressando em colunas separadas pelo rio de Buruntoni e passado por Gundaguê Beafada até chegar ao Xime. Acertaram-se pormenores quanto ao apoio de artilharia, transporte de morteiros e apoio de carregadores. Dada a pressão que o inimigo estava a exercer sobre o Xime, era importante partir imediatamente a seguir ao almoço, no dia seguinte, para a operação.


O apartamento fatídico, por A.A.Fair.

Está danificado,pois apanhou as chuvas e humidades das idas ao Xime e os maus tratos da ponte de Udunduma. Nº119 da Colecção Vampiro,uma bela capa de Lima de Freitas , tradução de L.de Almeida Campos.

A parelha Bertha Cool-Donald Lam em todo o seu fulgor: ela, pronta a cortar nas despesas supérfluas,sempre comilona,ele imaginativo,mentalmente ágil,uma outra abordagem de Perry Mason( A.A.Fair era o pseudónimo de Erle Stanley Gardner).Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.




(iv) Os ensinamentos da Pavão Real

Os dois destacamentos envolvidos abandonaram o quartel do Xime ao princípio da tarde de 9, os grupos de combate da CCaç 12 dirigiram-se para Gundaguê Beafada, nós e os grupos de combate da companhia do Xime partimos para Ponta Varela. Confirmámos a passagem recente de forças do inimigo, talvez as que tiveram a atacar o Xime no passado dia 2, talvez gente que andasse à procura de flagelar embarcações à entrada do Geba. Mais uma vez, beneficiando de uma noite enluarada, progredimos por um ponto alto da bolanha do Poindom e quando amanheceu avistámos repentinamente à distância dois cultivadores desarmados que vinham na nossa direcção, o que não constituía surpresa já que a bolanha estava cultivada. Fugiram e devem ter-nos denunciado junto dos outros cultivadores.

Saímos do trilho e a corta-mato entrámos nos palmeirais e depois dentro de uma mata densa onde descobrimos onze casas sobre estacaria com indícios de presença recente, e dois depósitos cheios de arroz, mais adiante um outro conjunto de casas. Nada de armas, nada de munições, eram certamente habitações de quem andava a lavrar a bolanha. Com toda a discrição possível, destruíram-se os víveres e prosseguiu-se a batida.

Pela uma da tarde, com auxílio do PCV, deu-se a convergência das forças e continuou a batida a toda a região até à Ponta do Inglês. O que já tínhamos assinalado na Jaqueta Lisa voltava a confirmar-se: uma ampla rede de trilhos, muito provavelmente utilizados pelos agricultores e seguramente as forças do bigrupo que lhes montava segurança.

Entrámos no aquartelamento da Ponta do Inglês, em completo estado de ruína e, mais adiante passámos pelas tabancas que tinham sido destruídas durante a operação Safira Única, pelas forças da CCaç 12 (3). Sem nenhum contacto e, estranhamente, sem termos sido sujeitos a qualquer fogo de reconhecimento, entrámos no Xime ao fim do dia.

Regressámos a Bambadinca a 11 de manhã, informei o comando que o Poindom estava para dar e durar, impunha-se procurar outros tipos de contacto, desde operações de pára-quedistas até a deslocação de tropas a partir de Moricanhe para pressionar os grupos à volta do Buruntoni. Ainda voltarei uma vez mais à região e para descobrir que o inimigo estava reforçado e possuidor de uma economia própria.

A Toca do Lobo, de Tomaz de Figueredo

2ª Edição, 1964. A capa denota a influência do maior designer gráfico do seu tempo, Sebastião Rodrigues. Impressionou-se a riqueza deste português castiço,ímpar e sincero,nada alquímico.

Diogo Coutinho não tem paralelo naquela literatura fabulosa de Aquilino ou Ruben A. Refugiado na Toca, cercado de memórias, é um morgado de estilo, incapaz de conviver com as burguesias petulantes. Por amor da terra, por amor da tradição, apaga-se na sua inteireza,fidalgo que não capitula nos princípios. Comovem as conversas com os familiares, os criados,os amigos de infância. O arranque do romance tem a magestade rural que permanece até ao fim: «Acima do portão,na verga quase vestida pela hereira que já amortalhara a pedra heráldica, a valer de baetão que a amantasse de lutos,ainda lá se lia uma data,1654, avivada pelo caseiro,por mimo,no tempo da poda a riscos de caco.» É um dos meus livros obrigatórios, quando ponho em dúvida que possuímos uma língua sublime.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.(
)


(v) A Fronteira de Deus e A Toca do Lobo

É um tempo de boas e suculentas leituras, ler é indispensável para quem tem os pés muito feridos, preenche as pausas entre as cansativas operações a Belel e à Ponta do Inglês. Li sobretudo dois livros inesquecíveis: A Fronteira de Deus, de Martín Descalzo, e A Toca do Lobo, de Tomaz de Figueiredo.

O primeiro tem a ver com um milagre que surpreende as poucas centenas de habitantes de Torre de Muza. Um milagre que desencadeia outros milagres, operados por um guarda de passagem de nível, a pedido de uma população que suplica chuva quando todas as colheitas parecem perdidas. O guarda, Renato, é um homem simples que vai sentindo as mudanças operadas na Torre como um pesadelo. Os milagres alteram os comportamentos das pessoas, vai chegar o turismo religioso, Renato torna-se incómodo e será assassinado.

O que há assim de tão poderoso neste livro? A simplicidade que roça a sinceridade. As descrições e os diálogos são plausíveis, o entramado de diálogos é vital para entendermos o estado de espírito do cacique, dos inocentes, dos desesperados, dos que têm sede de justiça. Depois, Martín Descalzo burila vigorosamente o pesadelo de fazer milagres e o incómodo político, religioso e social que eles acarretam. Não chove, os milagres sucedem-se, só se fala do guarda da passagem de nível, os ódios sobem em espiral. Ele será assassinado e Deus parece ter misericórdia do povo da Torre, sobre a aldeia começou a chover quando uma criança fechou os olhos do mártir.

A toca do lobo, de Tomaz de Figueiredo, é assombroso no seu português castiço, na sua incursão pela ruralidade minhota, pela criação de um morgado exilado na sua quinta, incompatibilizado com as vaidades dos políticos e burgueses da vila. Diogo Coutinho vive rodeado de sombras do passado e dos últimos criados fiéis, volta à Toca e aviva todas as suas lembranças: dos pais, das tias, da malta com quem brincou, da prima Aninhas, das caçadas, dos animais, dos livros, das músicas.

É um grandioso português castiço, é um ensaio antropológico ímpar, são recordações forçosamente afectivas, um ajuste de contas com a incompreensão das novas classes face aos morgados de cepa. Leio e releio, reparo que Tomaz de Figueiredo tem mais livros, vou já pedir á Cristina que me traga Uma noite na toca do lobo. Mal sabia eu que iria ficar enfeitiçado para sempre por tão grande escritor.

E li também O apartamento fatídico de A.A. Fair, pseudónimo de Erle Stanley Gardner. Apresenta uma dupla de detectives, Bertha Cool e Donald Lam, ela ávida de dinheiro e comilona, ele imaginativo e tão ágil e cerebral com Perry Mason. São contratados para descobrir uma rapariga desaparecida, o pretexto dado é de que o marido abandonado quer o divórcio. Tudo se passa em Nova Orleães. Afinal não há uma rapariga há duas, a teia torna-se complexa com um assassinato em casa de uma delas. Uma menina de cabaré sabe mais do que diz, e o mesmo se pode dizer do marido que procura a sua esposa desaparecida. Por detrás de tudo isto, está muito dinheiro e um crime praticado há alguns anos atrás. No final, tudo se desembrulha e Donald Lam parte para a guerra. É uma dupla divertida, uma ambiciosa e um observador exímio.

Escrevo e procuro deixar meticulosamente organizada a vida do Pel Caç Nat 52 para as próximas semanas. Vou partir a 14, a Cristina chegará a 15. Cheio de ufania, como se fosse o primeiro homem a deslumbrar-se por uma mulher, confidencio a minha alegria aos outros. De repente, descubro que falo da Cristina, de Lisboa, dos meus estudos, nos serões às escuras na ponte de Udunduma. É uma sensação inexplicável, estou a misturar dois mundos, aquele em que vivi e em que sonho para depois da guerra, tudo dentro deste teatro de operações. Mal sabia eu que ia viver esse paradoxo nas semanas seguintes, ao lado da mulher amada, em Bissau.

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste anterior, desta série > 10 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2831: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (31): Tigre Vadio: Um banho de sangue no corredor do Oio

(2) Vd. poste de 18 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2771: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (28): A euforia de comandar cem homens na Op Rinoceronte Temível

(3) Vd. poste de 19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado (Luís Graça)

(...) "Seguindo um dos trilhos, avistou-se um homem desarmado que seguia em direcção contrárias às NT. Capturado, informou que ia recolher vinho de palma, que a tabanca ficava próxima, que não havia elementos armados e que a maior parte da população estava àquela hora a trabalhar na bolanha.

"Feita a aproximação com envolvimento, capturaram-se mais 2 homens, 5 mulheres e 6 crianças. Um dos homens capturados disse chamar-se Festa Na Lona, de etnia Balanta, estar alí a passar férias e pertencer a uma unidade combatente do Gabu. Foi-lhe apreendido uma pistola Tokarev (7,62, m/ 1933) e vários documentos" (...).

sexta-feira, 7 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P944: Historiografia da presença portuguesa em África (2): Colaboradores, precisam-se (Nuno Rubim)


Guiné > A diversidade e a riqueza dos grupos étnicos que compunham o antigo território português da Guiné no início da década de 1950. Legenda (por colunas, de cima para baixo): 1ª coluna > Banhuns, Manjacos / Papéis do Norte, Mandingas, Mancanhas / Brames, Papéis, Balantas; 2ª coluna > Biafadas, Baiotes, Felupes, Nalus, Bijagós, Grupo Fula e assimilados, Diversos.

Na imagem mais pequena, mostra-se a situação aproximada dos Balantas, Biafadas e Mandingas no princípio do Séc XIX (manchas vermelha, amarela e azul, respectivamente), bem como os eixos das invasões fulas (setas), a apartir do noroeste e do norte (actual Senegal), do leste, do do sudeste e do sul (actual Guiné-Conacri). Compare-se as manchas (veremelha, amarela e azul) habitadas por Balantas, Biafadas e Mandingas, no início do Séc. XIX, com a situação que resultou do domínio dos fulas (mancha a verde, no mapa de maiores dimensões).

Infogravura: Adapt. de René Pélissier: © Nuno Rubim (2006)



Texto do Nuno Rubim, coronel de artilharia, reformado, que comandou em 1966, durante vários meses, a CCAÇ 726, aquartelada em Guileje; especialista em história militar.

Tenho estado a estudar, entre outras coisas, as operações militares portuguesas no Sul de Angola, 1871-1915, na sequência da leitura da obra de René Pélissier, História das Campanhas de Angola (que cobre o período 1845-1941), 2 volumes.

Foi com grande surpresa que constatei dois fenómenos:

- Que se trata da melhor obra sobre o assunto, quer publicada em Portugal, quer no estrangeiro, tanto em publicações oficiais como privadas, e... de longe !

- Que, ao contrário do que sucede com a documentação oficial da guerra de 1961-1974, de que a grande maioria desapareceu por manifesta incúria, o material que perdurou até aos nossos dias, quer no Arquivo Histórico-Militar, quer no Ultramarino, é muitíssimo completo e está longe de ter sido estudado na sua totalidade.

E isto acontece relativamente a todas as ex-colónias, Guiné, Angola, Moçambique, Índia, Macau e Timor.

Naturalmente que Pélissier (estou em contacto com ele ) não é um especialista em questões estritamente militares, daí eu ter avançado na minha pesquisa para assuntos tais como o dispositivo faseado (unidades), pessoal, equipamento e armamento, fortificação, alimentação, serviço de saúde, comunicações e outra questões, terminando pela análise da acção de comando e conduta e desenrolar das operações, com numerosos mapas, fotografias da época, quadros
e desenhos.

Só ainda não sei o que vou fazer de todo esse estudo, que ocupa já 13,2 GB no meu computador !
Ora eu espero vir a fazer o mesmo trabalho para a Guiné. Pélissier também publicou uma obra excelente, em 2 volumes, intitulada História da Guiné - Portugueses e Africanos na Senegâmbia (1841-1936) (1).

Será que algum dos camaradas estaria interessado em colaborar comigo na pesquisa da documentação e noutros possíveis domínios ?


Um abraço

Nuno Rubim

PS - Junto um mapa etnográfico da Guiné.

__________

Nota de L.G.

(1) Editado em Portugal, pela Editorial Estampa, em dois volumes. René Pélissier é um reputado especialista, francês, na história recente da colonização portuguesa, especialmente em África, a cuja investigação dedicou mais de 40 anos da sua vida.


René Pélissier - História da Guiné: Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936. Lisboa: Editorial Estampa. 2 volumes, c. 600 pp. Preço de capa de cada volume: 14,27 € (mais IVA) .

Foto das capas: Editorial Estampa (2006) (com a devida vénia)
Comentário de L.G.: É fantástico como um militar de carreira, na reforma, que fez a sua carreira militar numa época conturbada e cheia de contradições (guerra colonial, 25 de Abril de 1974, 25 de Novembro de 1975, modernização e reestruturação das forças armadas portuguesas num contexto pós-colonial, europeu e global), um homem que conhece bem e ama profundamente a Guiné, se torna um especialista em história militar e arranja tempo, disposição, motivação, meios para se dedicar ao estudo, profundo, minucioso, sério, profissional, metodologicamente rigoroso, dum vasto leque de questões ligadas à organização e funcionamento do nosso exército nas campanhas de África, nos Séc. XIX e XX...
O Nuno Rubim é um exemplo para todos nós, é um tuga que merece as nossas palmas!!!

domingo, 18 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P882: Historiografia da presença portuguesa em África (1): Infali Soncó e a lenda do Alferes Hermínio (Beja Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Ao fundo, a escola primária (no telhado, ainda vísiveis as letras pintadas a branco com o nome da localidade...), frente à parada, o pau da bandeira e os memoriais das unidades que por lá passaram; à direita, a árvore de maior porte que lá existia no nosso tempo, a casa do chefe de posto (se não me engano) e, por detrás, o depósito de água... Ao tempo, era professora a Dona Violette da Silva Aires, de origem caboverdiana, aqui tão justamente evocada pelo Beja Santos... (LG)
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 1997 : Vinte e sete anos depois, a escola, já em completa ruína... "Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida" (...) (Beja Santos).
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor local). Direitos reservados.


Por gentileza do autor, o nosso camarada Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do
Pel Caç Nat 52 (Bambadinca e Missirá, 1968/70) (1)

A LENDA DO ALFERES HERMÍNIO DE JESUS
por Beja Santos

Para Bacari Soncó, Régulo do Cúor

A noite passada, sonhei que tinha voltado a Missirá, envolto pelo piar lúgubre dos jagudis e o restolhar dos porcos do mato. Meti-me à estrada a partir de Canturé, rápido alcancei Finete, de onde se avista o bruxulear de Bambadinca. Abudu Cassamá, de costas retalhadas por uma granada de fósforo, acompanhou-me pela bolanha enluarada. Como num sonho tudo é consentido, retiro de uma carta que trago no meu camuflado a fotografia do túmulo de Infali Soncó, reduzido a duas paredes de adobe carcomido por chuvas diluvianas e estios tórridos. Infali Soncó, Régulo do Cúor, derrotou Teixeira Pinto em 1917. É um herói mandinga, mas não foi ainda herói para a Guiné Bissau. No meu sonho ele está sepultado em Bambadinca, mas, de facto, ele jaz em Missirá.

Para procurar conhecer o sopro anímico que movia o guerreiro Infali, a noite passada percorri, em relâmpago os seus territórios, o seu império: a sul, definia-se pelas sinuosidades do Rio Geba ou Xaianga; a oeste, por Porto Gole; a norte, pelo Ôio e Mansomini; a oeste, pelo Jolado e Badora. Abro uma carta de um para cinquenta mil, dos Serviços Cartográficos do Exército, para ver o que cabe dentro do território do Cúor: nomes exóticos como Darsalame, Gã Joaquim, Paté Gidé, Flaque Dulo.
Lembro estes nomes e estremeço com a recordação de ter percorrido muitas destas ruínas do império destruído, naqueles anos da guerra, quando comandei em Missirá. Na guerra patrulhei, minei, queimei, vi gritar de dor nos rios Biassa, Gambiel e na orla do Geba, embusquei em Chicri, em São Belchior, sobretudo em Mato do Cão, onde me apavorei quando ouvi e vi as águas revoltas pelo macaréu.
Os guerrilheiros tinham os seus acampamentos em Madina, em Mansomini, em Quebá Jilã. As famílias Soncó e Mané, os descendentes de Infali, estão em Missirá e também em Finete (é aqui que conheci Bacari, hoje Régulo do Cúor). Porque o Cúor de Infali já não existe. O meu sonho prossegue. Vejo-me sentado numa raíz de poilão, junto do túmulo de Infali a perguntar ao vento: no fim desta guerra medonha, será que este Cúor se levantará, ainda terra de grumetes e ponteiros? O vento permanece impenetrável.

Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida. Súbito, Dona Violete ganha energia e, sem pausas, segue-se a narrativa histórica dos Rios da Guiné, de Cabo Verde, uma espiral de violência, tráfego de escravos e conquista que se derrama dentro do meu sonho. Inevitavelmente, o Cúor entra no palco. Nele, o Geba é a região dos entrepostos; a estrada de Porto Gole-Enxalé avança para Geba e Bafatá, sulcando o terreno firme do Cúor, a serpentear o rio das mercadorias; e o Cúor é rico em madeiras perfumadas, tem um pau sangue único no mundo.

Sinto que o meu sonho está a terminar. A voz sumida da Dona Violete adverte: "Lembre-se, Sr. Alferes, estamos numa das regiões mais palustres da terra. Antes do combate à doença do sono e do tracoma, as grandes mortandades da malária, da lepra e do béribéri, situavam-se aqui. No fundo dos mangais, a vida só é possível à volta dos riachos e palmares. Já ouviu falar de um alferes português que no tempo de Infali morreu de amor? “.

Acordo, hoje é o segundo domingo de Janeiro de 1990, 20 anos depois regresso a Missirá na companhia de Maria Leal Monteiro e Francisco Médicis. De Bissau seguimos para Nhacra, onde as crianças acompanham a missa com batuque. A caminho de Porto Gole, o Geba é mercúrio ígneo. Paramos em Mato do Cão, que percorri todos os dias, entre Agosto de 1968 e Novembro de 1969. A ponta do cabo-verdiano está completamente destruída. Restam umas madeiras do ancoradouro e vou ver o Geba e o seu tarrafe. Subimos depois para Missirá, onde vou entrar e sair lavado em lágrimas. Após a recepção, Abudu Soncó, o filho mais novo do Régulo Malâ, apresenta-me Alage Soaré Soncó, o último filho sobrevivente de Infali. Será através dele que vou finalmente conhecer a lenda do Alferes Hermínio de Jesus.

Sentado à porta de uma tabanca, depois de termos bebido chá e comido papaia, Alage, de olhos brumosos, falou-me de Infali. Vou tomando nota do que ele diz, a partir de agora nada é ficção. A lenda do alferes português é o momento mais alto do génio militar e, simultaneamente, prenuncia o ocaso de Infali. A luta encarniçada entre Infali Soncó e as tropas portuguesas, na segunda campanha de Teixeira Pinto, em 1917, revela a sua bravura e igualmente a sua fina percepção política.

Infali terá nascido por volta de 1870, em Berrocolom no sector do Gabu, leste da Guiné. Com 19 anos, à frente de cem cavaleiros, conquista Cumpone, na região de Boké, Guiné Conakri. Tal feito grangeia-lhe a admiração dos mandingas e é convidado para Régulo de Cumpone. Infali encontrou forte rivalidade dos fulas, sobretudo do guerreiro Alfa Iaia, de Conakri, e logo fica à espreita de uma oportunidade para sair de Cumpone.
Essa oportunidade veio a acontecer em 1894, quando o seu tio Calonandim Mané, Régulo do Cossé, em Bafatá, e aliado dos portugueses, lhe pede para invadir o chão do Cúor, repito um imenso território entre a Porta do Cúor (hoje Porto Gole) e a região do Geba. O objectivo era depor o Régulo Sambel, Nhatam, que tinha a sua fortaleza em Sam-Sam (perto de Gã Gémios, totalmente desaparecida, como eu próprio confirmei). E daí partiam as hostilidades contra as embarcações portuguesas e cabo-verdianas que ele atacava com ferocidade no Rio Geba, entre Mato do Cão e Bambadinca.
Infali aceitou combater ao lado de Calonandim Mané, ambos cercaram Sam-Sam com mais de duzentos guerreiros armados de longas (canhangulos) e azagaias e Sambel Nhatam bateu em retirada. As autoridades portuguesas apercebem-se das vantagens de uma aliança com estes fogosos guerrilheiros mandingas. Logo o Governador Lito de Magalhães parte de Bolama (então a capital da Guiné) e convida Calonandim a aceitar o regulado do Cúor.

Alage Soncó contou-me que as festas deste novo régulo foram faustosas e compareceram os régulos de Mansoa e Mansabá. Calonandim reinou cerca de vinte anos e foi morto numa batalha perto de Enxalé, terra de balantas. Com a aprovação das autoridades de Bolama, Infali ascende ao trono e vinga exemplarmente Calonandim - correram rios de sangue entre Enxalé e a Porta do Cúor.

As autoridades portuguesas mostraram-se entusiasmadas com o perfil do castigador e as provas de fidelidade do aliado: Infali foi condecorado em Geba, em 1914.

Pergunto então a Alage Soncó porque se revoltou Infali contra os portugueses. Aqui ficam as explicações de Alage.
Em 1915, o Governador Fortes veio de Bolama (2) em visita de cortesia pelos regulados do leste da Guiné, fez-se acompanhar de comitiva militar , e entre os oficiais vinha o Alferes Hermínio de Jesus, um quase mancebo. Infali sai de Sam-Sam acompanhado pelos seus músicos para apresentar saudações de boas vindas. O Governador Fortes fica desorientado com o avanço da mole humana e a algazarra dos músicos. O Alferes Hermínio, desconhecedor do carácter hospitaleiro da fanfarra, manda disparar. Infali não se atemoriza com os tiros, interpretou-os como um acto de pura hostilidade e manda cercar os portugueses.
Protegido pela resistência do Alferes Hermínio, Fortes retira para Malandim e daqui para Samba Silate, perto do Xime. Infali captura o Alferes Hermínio, dois sargentos e catorze praças. Bolama interpreta estes reféns como sinal de rebelião contra Portugal. Infali não se deixa intimidar e actuou em duas direcções: cortou a navegação no Geba, paralisando toda a actividade económica entre Bambadinca e Bafatá; e, tendo comprado armas a comerciantes franceses do Casamansa, desafiou o Capitão Teixeira Pinto para as matas do Ôio. O Alferes Hermínio, entretanto, ficou a viver numa morança em Gâ Gémeos, perto da Aldeia do Cúor.
Um amigo de Infali Soncó, de nome Pedro Moreira, dono de uma destilaria entre Gâ Gémeos e Aldeia do Cúor, negociou com Infali a liberdade do oficial português. Veio, entretanto, um barco do Bolama para recuperar todos reféns, e um segundo tenente trouxe, em nome de Fortes, uma proposta de paz. Tinham-se passado cerca de vinte meses após o incidente com os músicos e a fuga do Governador Fortes.
Alage Soncó confessa então que as opiniões dos mandingas se dividiram quanto às razões da morte de Hermínio. Uns disseram que se apaixonara loucamente por Cumba Mané, filha de Inderissa Mané, comerciante de tabaco, panos e álcool em Canquelifá (3) e no rio Cheche. Havia mesmo quem dissesse que o casal era feliz e que Hermínio se dedicava à agricultura, aprendia crioulo, ourivesaria e as artes equestres. Outros, foram premptórios quanto à progressiva insanidade mental e isolamento do oficial, que se passeava sozinho pelo mato como um sonâmbulo. Ao gosto da época, o alferes suicida-se num palmar entre Caranquecunda e Missirá, deixando uma carta de despedida aos pais, pedindo-lhes perdão por não querer regressar, tal a paixão que sentia pelas terras da Guiné.
Nessa carta, reza a lenda, Hermínio referia-se ao Geba, aos pôr–do- sol em fogo que caiam repentinamente sobre a terra, à vida da tabanca, ao filho que ia nascer. Certo e seguro, o segundo tenente regressou a Bolama com um cadáver que era incómodo para todos. Aqui, Alage Soncó observa a fatalidade: a desdita do Alferes Hermínio marcava o início da queda política da Infali Soncó.

De facto, no fim da segunda campanha de Teixeira Pinto, Infali, que negociara a sua manutenção no poder após a derrota do contigente português nas matas do Ôio, desavençou-se com os régulos do Jolado e Cossé - os fulas abandonaram-no e Infali só dispunha do apoio dos mandingas e dos beafares. Bolama não perdeu a oportunidade para se desembaraçar do aliado instável. Infali é desterrado para Fulacunda (região de Quínara) onde morrerá em 1926. Um dos filhos de Infali, Bacari, é designado para régulo. É Bacari Soncó quem transfere a sede do regulado de Sam-Sam para Missirá, onde eu estou a recolher o depoimento de Alage Soaré Soncó.

Terei eu retido o essencial sobre a história do Alferes Hermínio? Alage pergunta-me de sopetão: “A família de Hermínio respeita a terra onde ele viveu e morreu?”. Digo que sim, como se Missirá não estivesse no meu sonho, e esta história tivesse alguma importância a não ser a de eu voltar a Missirá no segundo domingo de Janeiro de 1990, vinte anos após dela ter partido, a Missirá, que vi três vezes queimada e reconstruída, onde os meus mortos estão sepultados no cajueiro virado para Gambiel (4).

Está na hora de regressar. É difícil sair de Missirá, e, repito, tal como entrei saio lavado em lágrimas. Abudu Soncó entrega-me um livro que eu deixei em Missirá. Tem uma dedicatória e tem também um pensamento escrito numa máquina dactilográfica. O pensamento diz: “Se capturares o momento antes de maduro/As lágrimas de arrependimento certamente te fustigarão/Mas, uma vez que deixas escapar o maduro momento,/tu nunca poderás limpar as lágrimas de desespero”. William Blake. Acordo do meu sonho. Amanhã vou perguntar ao Abudu se Alage Soncó ainda é vivo. Tenho para ele uma resposta acerca dos familiares do Alferes Hermínio. Também eles gostavam de ir às terras do Cúor. A carta chegara a Lisboa. Hermínio morrera de amor por uma mulher e por um território. Muito ao gosto da época, afinal. (5)

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Notas de L.G.

(1) Vd . post anterior

(2) Bolama foi a primeira capital da província portuguesa da Guiné desde 1879 até 1941.

(3) Canquelifá: a nordeste de Nova Lamego

(4) Rio Gambiel, afluente do Rio Geba
(5) Em relação aos factos recolhidos oralmente pelo Beja Santos, parece haver algumas notórias discrepâncias, quando confrontrada a versão local com a historiografia portuguesa. Por exemplo, na Nova História Militar de Portugal (ed. lit. Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira), vol. 3 (Lisboa: Círculo de Leitores, 2003), pode-se ler a seguinte nota (p. 449):
"1908 - O governador Oliveira Muzanty, obtendo reforços da metrópole, organiza a maior expedição efectuada na Guiné até 1963, vencendo a resistência biafada, encabeçada por Unfali Soncó em Cuor e Canturé e restabelece as comunicações entre Bissau e Bafatá (5 a 24 de Abril)".
Carlos Bessa , autor do capítulo "Guiné. Das deitorias isoladasa ao 'enclave' unificado" (pp. 257-270), escreve o seguinte sobre o régulo Soncó:
"(,...) O régulo Unfali Soncó, aliado do régulo de Badora, Bonco Sanhá, com o assentimento de outros régulos fulas, pretendeu impedir a navegação no Geba, criando o risco de sufocar Bissau extinguindo-lhe o comércio. Contando com a aliança do régulo do Xime, Abdulai Kassalá, violento e impopular, e de Monjour, célebre régulo do Gabu, Muzanty fez frente a Soncó (...).
"Em 18 de Março [de 1908] desembarcou a expedição prometida pelo governo, com um efectivo de 358 oficiais e soldados portuguese. A resistência de Unfali Soncó ainda durava, e Muzanty organizou e assumiu o comando da maior expedição do exército regular ao interor da Guiné até 1963. Unfali Soncó, vencido em Cuor e Ganturé, entre 5 e 24 de Abril, viu-se abandonado. A resistência das tabancas biafadas foi pequena, e a navegação comercial entre Bissau e Bafatá restabelecida. Abdul Injai, aventureiro senegalês, distinguiu-se no apoio dado. Foi nomeado réglo do Cuor, efectuou avultadíssima cobrança do imposto e ele próprio enriqueceu" (pp. 266-267).
Na referência de Carlos Bessa ao "pacificador" da Guiné, Teixeira Pinto, e à sua "segunda campanha" (1913-1915), não surge o nome de Unfali (ou Infali) Soncó.
João Augusto de Oliveira Muzanty foi governador da Guiné entre 1906 e 1909. Não encontro nenhum Fortes nem nenhum Lito de Magalhães na lista dos governadores da Guiné. Muzanty é, juntamente com Teixeira Pinto, um dos grandes protaganistas da "pacificação" da Guiné, tendo em sua honra sido erigida uma estátua em Bafatá.