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terça-feira, 29 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2800: Em bom português nos entendemos (1): Guidaje e não Guidage (Luís Graça / Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa)

Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Guidaje > Novembro de 2008 > O regresso do Albano Costa, acompanhado do seu filho Hugo Costa e de outros camaradas, a Guidaje, o antigo aquartelamento da CCAÇ 4150 (1973/74), junto à fronteira do Senegal.

Tal como Guileje e outros aquartelamentos no sul, Guidaje, no norte, é um ponto no mapa da Guiné-Bissau que faz parte da nossa história comum, e que dificilmente cairá no esquecimento, de ambos os povos. Em Novembro de 2000, o Albano Costa foi lá encontrar o último soldado (guineense) da martirizada CCAÇ 19. Guidaje nunca será esquecida, mas os falantes da língua portuguesa têm dúvidas sobre a sua grafia correcta: Guidaje ou Guidage ? Entretanto, os jilas (e não gilas) continuam, como dantes, a atravessar a fronteira e a falar melhor o francês do que o português...

Segundo o Observatório da Língua Portuguesa, em 7 de Julho de 2007, o cálculo de Falantes de Português como Língua Materna nos países da CPLP era de 204.654.678, num universo de menos de 236 milhões de habitantes. A Guiné-Bissau com um total de 1.565.000 habitantes era o país da CPLP, com a menor percentagem de Falantes de Português como Língua Materna: 5% (em números absolutos, 78.250), atrás de Timor Leste (6%) e de Moçambique (6,5%), longe de São Tomé e Príncipe (20%), Cabo Verde (40%), Angola (40%), Portugal (96%) e Brasil (99,7%).

Foto: © Albano Costa (2008). Direitos reservados.


1. Pergunta a (e resposta de) o Ciberdúvidas da Língua Portiuguesa:

A grafia de Guidage/Guidaje (Guiné-Bissau)

[Pergunta]

A toponomia da Guiné-Bissau é fonte de grande confusão para os falantes da língua portuguesa. Já aqui em tempos levantámos a questão da grafia de Guileje/Guilege/Guiledje... Ainda recentemente participei num Simpósio Internacional de Guiledje (e não Guileje), em Bissau (1 a 7 de Março de 2008).

Há dias passou na televisão (SIC) e foi publicado num semanário (Visão) uma reportagem sobre Guidage, e a exumação e a identicação de restos mortais de militares portugueses, que lá morreram e ficaram sepultados, em Maio de 1973...

Eu costumo seguir a fixação dos topónimos feita, na antiga Guiné portuguesa, pelos nossos magníficos cartógrafos militares. Mas também eles erra(va)m. Consagraram duas grafias para esta obscura povoação no Norte, na zona fronteiriça, junto ao Senegal, povoação onde havia um aquartelamento português no tempo da guerra colonial/guerra do ultramar.

Guileje e Guidaje são hoje dois topónimos que fazem parte da história de ambos os países, a Guiné-Bissau e Portugal... Seria bom que nos entendêssemos sobre a sua grafia correcta...
Ver as cartas sobre Guidage/Guidaje, disponíveis em linha, a partir do meu blogue:

Luís Graça & Camaradas da Guiné
Carta da Província da Guiné, 1961
Carta de Guidaje, 1953

Parabéns pelo vosso magnífico trabalho em prol da língua portuguesa e dos falantes da língua portuguesa (tão pouco falada, infelizmente, na Guiné-Bissau).

Luís Graça,
Professor do ensino superior universitário,
Lisboa, Portugal

[Resposta]

Na transcrição de nomes africanos de origem banta, que pertencem ao grupo Benue-Congo do ramo Níger-Congo da família níger-cordofânia (1) , a tendência é usar o grafema j antes das letras e e i para representar uma série de sons vozeados (sonoros), realizados como fricativa pré-palatal [j] ( o j de janela), africada pré-palatal [dj](como em italiano, Giovanni) ou qualquer outro som que soe semelhante ao ouvido português. Assim, em nomes de lugar de países onde se falam tais línguas, dever-se-ia usar o j para representar tais sons: Malanje e Uíje (em Angola; cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966).

No caso da Guiné-Bissau, não temos línguas bantas, mas línguas da mesma família e do mesmo ramo, mas de grupos diferentes: o mandinga e o soninqué são membros do grupo mande, e as restantes, do grupo atlântico (2). Também neste caso me parece de aconselhar o j para transcrever os sons que, nestas línguas da Guiné-Bissau, soarem como fricativa, africada ou som semelhante. Recomendo, portanto, que se escreva Guidaje e Guileje, pelo menos, em português europeu.

Dito isto, sabemos que a norma brasileira aceita o dígrafo dj em variação com j (ver Dicionário Houaiss); por exemplo: djila/jila («mascate que circula entre a Guiné-Bissau (África) e os países vizinhos»). Surge aqui uma alternativa à disposição dos países africanos em que o português é língua oficial: sabendo que estamos numa fase de mudança, é possível que a adopção do novo Acordo Ortográfico dê azo a que em África se redefinam os critérios a aplicar na grafia e na forma portuguesas de topónimos com origem em línguas pré-coloniais.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas palavras finais.

(1) Ver Ernesto d´Andrade, Línguas Africanas: Breve Introdução à Fonologia e à Morfologia, Lisboa, A. Santos, págs. 19-45.


(2) Idem, pág. 64.


Carlos Rocha. 24/04/2008

Textos Relacionados

Guileje (e não "Guiledje")

2. Outros sítios na Net a pôr na lista dos favoritos:

CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

Idiomático - Revista Digital de Didáctica de Português > A Língua Portuguesa na Guiné-Bissau

Dicionário Caboverdiano Português On-Line

Instituto Camões Portugal

Língua Portuguesa - Gramática, Ortografia, Literatura

Museu da Língua Portuguesa

Observatório da Língua Portuguesa

Por Detrás das Letras

Portal da Língua Portuguesa

Priberam Informática - Língua Portuguesa On-Line

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2571: Campanha 1 Peça para o Museu de Guiledje (3): A Lusofonia e... a Arqueologia de Uma Guerra (Luís Graça / Pepito)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 2005 > Restos do monumento mandado erigir, em 1972, pela CCAÇ 3477 , os Gringos de Guileje (Nov 1971/Dez 72), em honra da Nossa Senhora de Fátima e do Senhor Santo Cristo.

Foto do Xico Allen, tirada na sua viagem de 2005. Ele é o mais andarilho de todos nós, e na Guiné movimenta-se como peixe dentro de água. Desde que lá voltou em 1998, tem lá ido com frequência. Partiu de novo, ontem, numa caravana automóvel com mais duas dezenas e meia de camaradas e amigos da Guiné, do Porto e de Coimbra. A segunda vez, só este ano.

Na foto pode ler-se a oração em verso: "Santo Cristo dos Milagres / Nesta capelinha oramos / Para sempre sorte dares / Aos Gringos Açorianos".

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 2005 > Restos de granadas de artilharia que foram andonadas pelas NT em 22 de Maio de 1973, aquando da saíde de Guileje...

Foto: © Xico Allen (2005). Direitos reservados.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 2006 > O brasão da CCAV 8350 (Os Piratas de Guileje), restaurado como se fosse novinho em folha... Foi a última unidade de quadrícula de Guileje, tendo abandonado esta posição em 22 de Maio de 1973, na sequência da ofensiva do PAIGC (Operação Amílcar Cabral, 18-22 de Maio de 1973).

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 2006 > "Laranjada Convento / Mafra / Marca registada"... Restos arqueológicos de uma guerra... e que hoje figuram no Museu de Guiledje. Na iamgem pode lers-se: "Composição: Sumo - Popa e óleo de laranja - Açúcar granulado - Água esterelizada / Corado artificialmente / Fabricado por Francisco Alves & Filho Lda / Venda do Pinheiro"... Houve muita gente, na Metrópole, a ganhar dinheiro com a guerra, a começar pelos industriais do sector agroalimentar... Ainda conheci o Sr. Francisco Alves e um dos seus filhos, quando trabalhei na administração fiscal em Mafra, em 1973... Constava que o seu sucesso, nos negócios, tinha começado no tempo da guerra de Espanha (1936-1939)...

Na Guiné (como de treso nos outros Teatros Operacionais), o "ventre da guerra" obrigava, por seu teu turno, a uma tremenda logística... Quantos camaradas nossos não terão morrido ou sofrido para que esta garrafa de laranjada Convento chegasse a Guileje ?

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 2006 > O que resta do orgulhoso aquartelamento de Guileje, que tinha a fama de ter os melhores abrigos da Guiné, feitos pela Engenharia Militar...

Fotos: © Pepito/ AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) (2006). Direitos reservados (Editadas por L.G.).

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 2005 > Foi a nossa foto de Natal de 2005 (1) > "Apropriações"... Escreveu o fotógrafo, o Pepito: "Depois de vir ontem de Guiledje, onde tirei esta fotografia, posso-te falar de apropriação pela natureza: uma carcaça de camião com mais de 30 anos, envolvida por uma árvore que entretanto por lá nasceu. Nem que se queira, não se pode tirar o esqueleto de lá"...

Em resposta, o editor do blogue escrevia isto: "Amigos & Camaradas: É simplesmente fabuloso!... Vejam só!... Já agradeci, mais uma vez, ao Pepito (ou Carlos Schwarz, da AD, do Projecto Guiledje)… Mas ele também está à espera de contributos nossos: quanto mais não seja irmos lá inaugurar o ecoturismo de Guiledje/Cantanhez daqui a dois anos (?). Vamos fazer um concurso para a melhor legenda para esta foto. O Pepito já deu o mote: Apropriações… Eu acrescentei outra: A Mãe Natureza não perdoa nem desperdiça… Mas também podia ser: O abraço da paz"...

Logo outros camaradas nossos, da nossa tertúlia, apareceram a mostrar a sua veia poética e artística, e legendaram a foto com o seguinte:

"Uma árvore vingou-nos do absurdo ao rir-se da guerra feita ferrugem"( João Tunes);
"Íntima Cooperação Portugal/Guiné-Bissau"( Humberto Reis);
"Naturalmente fez-se História" (António Levezinho )...

Foto: © Pepito/ AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) (2005). Direitos reservados (Editada por L.G.).


1. Texto do editor do blogue, L.G.:

Há tempos, há dois anos atrás, o nosso amigo Pepito fez-nos um pedido um algo insólito: precisava de um obus 14, para pôr no seu quartel de Guiledje, agora objecto de escavações, limpeza e reabilitação (2)...

Na altura eu até achava que a bizarria do nosso amigo Pepito se justificava: afinal, Guileje teria sido o único quartel das NT bombardeado pelas... NT. Constava, dizia o Pepito, que o Spínola terá mandado arrasar tudo, posteriormente à retirada da CCAV 8350. Ora esta versão não é correcta... Não sei.

O mais interessante, do ponto de vista da arqueologia da guerra , é que nas limpezas e escavações que o Pepito e a sua equipa do projecto Guiledje, estavam a fazer, em 2006, ia-se encontrando objectos do quotidiano dos tugas, alguns curiosos como garrafas de cerveja com o rótulo de papel intacto (!) ou garrafas de laranjada, como que reproduzimos acima, de um conhecido fabricante de refrigerantes de então, com sede em Venda do Pinheiro, Mafra... São de facto duas curiosas imagens de uma garrafa com inscrições pirogravadas (que hoje já não se usam)... Em suma, Guileje (ou Guiledje) é também, hoje, um estação de arqueologia militar...

Divertidas, para o Pepito, eram então as manifestações de humor (e de carinho) dos fulas para com os seus antigos aliados, os tugas... Há, de resto, gravações áudio e vídeos em que os antigas combatentes fulas, que estiveram do lado das NT, imitam descaradamente os tugas, quando estes estavam debaixo de pressão (na época ainda não se usava o termo stresse...):
- Seus c...! Seus f... da p...!

O Pepito prometeu-me depois mandar alguns excertos dessas gravações audio, reveladoras do superior sentido de humor fula... Ora quem diria! ... Eu, pessoalmente, sempre os achei inteligentes e com grande capacidade para negociar e estabelecer alianças estratégicas. O Pepito também corrobora este ponto de vista: os fulas são orientados para o poder, aliaram-se ao Spínola contra o Amílcar Cabral; e depois ao Luís Cabral, a seguir à independência, contra os balantas... Como diria o Príncipe de Salinas, protagonista do filme O Leopardo (Visconti, 1963), eles eram os leopardos, os leões, enquanto os novos vencedores - que se aliaram ao PAIGC - não passavam de chacais e hienas...

Mesmo assim, os fulas e os seus dirigentes têm a consciência de que, presas e predadores no passado, terão de coexistir hoje, pacificamente naquela terra, que é a sua terra... E a Guiné-Bissau ainda vai ser uma grande terra, graças à contribuição de todos os grupos étnicos-linguísticos, alguns outrora inimigos, como os balantas e os fulas... Entretanto, é importante preservar a memória do passado, dos tempos de paz e de guerra... É também para isso que servem os museus (3)...

E ainda mais importante é o reforço dos laços - linguísticos, afectivos, culturais e económicos... - entre os nossos dois povos... É que numa coisa estamos de acordo, muitos de nós, portugueses e guineenses: o mais importante que deixámos na Guiné não foram os restos calcianados das máquinas de guerra, mas um instrumento de paz, de desenvolvimento, de cultura e de ciência, que é a língua, e que é a língua portuguesa... É em Português que nos entendemos, é em Português que aprendem as nossas crianças, fulas, balantas, açorianas, madeirenses, alentejanas, minhotas, de Lisboa ou de Bissau, de Bragança ou de Bafatá...

2. E a propósito de apropriações/desapropriações, e de uma pequena querela linguística (sobre a grafia do topónimo Guiledje em vez de Guileje e que envolveu o prestigiado Ciberdúvidas da Língua Portuguesa), tenho que voltar a transcrever, na íntegra, o magnífico texto, intelectualmente provocador, desassombrado, descomplexado, que o Pepito me mandou na altura (e que eu publiquei, e que está de novo na altura de reler, agora que se fala em mais uma revisão do Acordo Ortográfico entre os países lusófonos).
Seria ocioso recordar aqui que o Carlos Silva Schwarz, Pepito, é engenheiro-agrónomo de formação, licenciado, tal como o Amílcar Cabral, pelo nosso Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa.

Escrevia então o Pepito (4) (itálico e bold meus):
Prometi que voltaria ao assunto de “Guiledje ou Guileje?”, e aqui estou a dar a minha opinião, não como linguista que não sou, mas como simples utilizador da língua portuguesa.

Gosto por igual, e muito, do português quando o leio nas penas do Eça de Queiroz (Portugal), Pepetela (Angola), Jorge Amado (Brasil), Mia Couto (Moçambique) e Abdulai Silá (Guiné-Bissau). E sei que não é só um português.

São vários, com um tronco comum é certo, mas mesmo assim variado na forma de escrever e falar. Amilcar Cabral dizia que a melhor coisa que Portugal nos deixou foi a língua.

Para o bem e para o mal o português deixou de pertencer só a Portugal. É também a língua de outros povos, que dela se apropriaram e a utilizam diariamente.

Só que o processo de apropriação de algo que não é inicialmente nosso, implica a incorporação daquilo que é nosso. Senão, não há apropriação e continua a ser eternamente estrangeiro. Quando falamos e escrevemos em português, não estamos a fazer nenhum favor a Portugal. Estamos a utilizar algo que também agora é nosso.

Quem não aprecia os fabulosos vocábulos inventados pelo Mia Couto ou a irreverência do Pepetela que começa um dos seus livros com a palavra “Portanto” (forma literariamente criticada alguns anos antes por um seu professor da Faculdade de Letras de Lisboa)?

Para mim, a lusofonia não é uma questão de se falar “bom português”, mas é um processo de exigências e concessões recíprocas na procura de caminhos solidários e cúmplices de aproximação e de desenvolvimento.

A dinâmica de incorporação de novos vocábulos é imparável. No nosso caso, na Guiné-Bissau, o grupo consonântico “dj” é utilizado por dá cá aquela palha. Dizer que se vai a Jufunco ou a Djufunco é o mesmo que ir a duas localidades diferentes. A realidade incontornável é esta.

O bico de obra, não é nosso. É dos especialistas que têm de regulamentar uma língua que, por ser viva, vai ter que aceitar o desafio de pertencer a um numero cada vez maior de pessoas.

Abraços

pepito
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 14 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXVI: A Nossa Foto de Natal 2005 (Luís Graça / Pepito)

(2) Vd. poste de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se! (Luís Graça)
(2) Vd. postes de:

16 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2544: Campanha 1 Peça para o Museu de Guiledje (1): Gesto de ternura e simbolismo do herói de Gadamael, J.C.Carvalho

17 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2547: Campanha 1 Peça para o Museu de Guiledje (2): O aerograma em que o Casimiro Carvalho prêve o ataque ... (Manuel Rebocho)

(3) Vd. poste de 6 Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXL: O melhor que Portugal nos deixou foi a língua (Pepito)

(4) Vd. poste de 6 Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXV: Em bom português (1): Guileje e não Guiledje (Luís Graça / Ciberdúvidas)

domingo, 16 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P963: Antologia (50): Português, língua africana, com muitas (ciber)dúvidas (Luís Graça)

O português, a língua portuguesa, pode (e deve) ser uma janela de oportunidades para todos os seus falantes e para todos os povos cujos Estados o(a) têm como língua oficial... Não confundir este recurso (essencial) - a língua como elemento estruturador da identidade e da cultura de um ou mais povos que a história pôs em contacto, aproximou, modelou - com um instrumento de dominação e exploração... Se um guineense, angolano ou moçambicano já não vê a língua portuguesa como a língua oficial de uma potência colonial ou até um instrumento de dominação de uma dada cultura, é bom que os portugueses, alguns portugueses, tomem consciência de que o português já não lhes pertence, tem uma dinâmica própria, uma dinâmica universal, é também património de outros povos... Falar bem e escrever melhor o português são duas coisas essenciais para todos nós, para o futuro dos nossos povos... Adicionalmente, é um ponto de honra da nossa tertúlia e dos seus membros...

Foto: Parede exterior de uma casa, pintada com os símbolos e as cores da bandeira portuguesa... por ocasião do Campeonato Mundial de Futebo dee 2006. Local: Lourinhã, Bairro de Santa Catarina; data: Julho de 2006.

Fotógrafo: © Luís Graça (2006)


Agora que acabou (felizmente!) o Campeonato Mundial de Futebol de 2006 e o nosso coração pôde finalmente repusar em paz, no sítio do costume, deixámos de falar futebolês e voltámos a preocupar-nos com as mil e umas outras coisas de que também é feita a vida... A começar pela língua (materna e/ou oficial) de cada um de nós...

Selecionei e vou aqui reproduzir - com a devida vénia aos respectivos autores e fontes -, dois textos, a propósito da importância estratégica do português, num mundo global, permitindo a comunicação, por exemplo neste blogue, entre guineenses e portugueses que passaram por uma experiência comum que foi a guerra de 1963/74, conduzindo à independência da República da Guiné-Bissau... Mas também sobre as dúvidas (incluindo as ciberdúvidas) sobre o que se tem feito no domínio das políticas da língua por parte da CPLP, em geral, e de cada um dos membros da CPLP, em particular...

Justamente, amanhã, em Bissau começa mais um encontro oficial da CPLP, dos oito países da CPLP, numa organização que teve o apoio (político, logístico e financeiro) de parceiros tão inesperados como a China e a Líbia... Do português se ouvirá falar, de certo, nestes próximos dias e em português se entenderão, em Bissau, os representantes dos países da lusofonia...

Embora modestamente, o nosso blogue pretende, também ele, ser em português um traço de união entre os nossos povos...

1. CPL QuÊ?
editorial Nuno Pacheco
Público 16 de Julho de 2006

Por estes dias, reúnem-se em São Petersburgo os mais ricos, vulgo G8; e em Bissau reúnem-se noutra cimeira alguns pobres (uns mais que outros, evidentemente) sob a sigla CPLP. São também oito e, ao longo de uma década de voluntária união, alinhada em quatro consoantes de difícil pronúncia, pouco mais conseguiram do que a fama, simpática, de bons mediadores em conflitos. Nos seus conflitos, diga-se. No mundo, as tais letras pouco pesam. Falta-lhes "visibilidade", lamentam-se os seus líderes. Na verdade faltam-lhe outras coisas: mais empenhamento colectivo nos objectivos há muito traçados, mais capacidade de execução prática, mais acção e menos retórica.

Amanhã, em Bissau, a tal cimeira que reúne chefes de Estado e outros governantes de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, decorre num cenário de algum "luxo" visual: como relatava ontem a agência Lusa, "as ruas foram limpas, as paredes pintadas, os buracos nas estradas tapados e até um hotel de cinco estrelas foi construído em tempo recorde para acolher os cerca de 400 participantes, entre delegações e jornalistas". Num país que tem vivido mergulhado em permanentes conflitos políticos e militares e apresenta ainda hoje um dos piores índices de pobreza do mundo, vão circular também doze limusinas de luxo com "chauffeur" e 18 motorizadas, emprestadas pela Líbia a fim de servirem de transporte aos participantes na cimeira. Sob este artificial e fugaz fausto, a CPLP bem pode encontrar meios eficazes de sair da sua semi-sonolência e rumar a territórios onde pode, de facto, ser útil. Assim o queiram os seus membros. Pode dizer-se que, na VI cimeira da sua primeira década de vida (haverá outras? Deixarão algum lastro na história?), a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa só pode aspirar a um balanço magramente satisfatório. Montou uma máquina burocrática que se aprimorou em diplomacias e salamaleques de ocasião mas se mostrou fraca ou quase inútil para levar a bom termo dois dos objectivos primordiais a que propôs na sua génese: a projecção da língua portuguesa e a cooperação no desenvolvimento.

Num comentário colocado no site Ciberdúvidas, a propósito do futuro da língua portuguesa no mundo, há uma síntese exemplar assinada por José Manuel Matias: "A expansão do Português no mundo surgirá naturalmente, quanto mais ciência se fizer em língua portuguesa, quanto mais cultura for criada em língua portuguesa, quanto mais arte for criada em língua portuguesa e quando os países integrantes da CPLP se afirmarem nas relações económicas internacionais. Estes factores serão essenciais para que falantes de outras línguas necessitem e queiram aprender a falar Português." Se a nível da projecção económica as dificuldades se avizinham maiores, já em termos da criação ou investigação há um caminho que pode e deve ser incentivado. Isto cuidando, sempre, de respeitar as outras línguas ou dialectos no espaço onde também (embora não exclusivamente, é bom não esquecer) se fala o português. Quanto à cooperação no desenvolvimento, só os mais ricos de entre os tais oito pobres poderão acentuar incentivos e práticas recomendáveis e úteis. Pode ser que as tais consoantes de difícil pronúncia passem, até, a soar melodiosas com o tempo.


2. Português, língua africana *
José Manuel Matias**
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa

Os países de língua oficial portuguesa constituem uma base da maior importância para a expansão do português em África. A opção pela língua de Camões foi tomada pelos movimentos independentistas ainda no decurso da luta de libertação e resultou do reconhecimento de que a sua utilização concorreria eficazmente para consolidar as fronteiras políticas e culturais dos futuros Estados, contribuindo também para fortalecer a independência e unidade nacional.

Naturalmente que nessa decisão pesaram os exemplos dos processos de descolonização no continente africano, mas, igualmente, a contribuição da língua na construção da unidade do Brasil. O fundador do PAIGC, Amílcar Cabral, sintetizou a relevância da língua portuguesa, ao afirmar que «o português é uma das melhores coisas que os portugueses nos deixaram».

O potencial da nossa língua em África é extremamente significativo, sobretudo no hemisfério sul. Além dos PALOP, cuja população crescerá, segundo as estimativas da ONU, para 58 milhões em 2025 e para 83 milhões em 2050, regista-se uma crescente procura da aprendizagem do português nos diversos sistemas de ensino de países que integram a SADC, com particular destaque para a África do Sul, Namíbia e Zimbábue. Idêntico movimento se verifica em vários Estados da UEMOA e CEDEAO, assumindo especial relevância os casos do Senegal, da Costa do Marfim e do Gabão.

Procurarei, de seguida, sintetizar algumas reflexões que permitam deduzir a importância do português para os países africanos de língua oficial portuguesa, no limiar do séc. XXI:

A Língua Portuguesa como elemento estruturante das identidades nacionais

O Estado africano foi criado durante a implantação do colonialismo europeu que, na sua génese, não teve em consideração as identidades africanas. Assim, o clássico modelo de nação, ambicionada pelas soberanias ocidentais, foi adoptado pelos povos africanos que se tornaram independentes no processo de descolonização da última metade do século XX.

Surgiram, assim, Estados formados pela integração de grupos com identidades culturais e linguísticas muito diferenciadas. Neste contexto histórico, político e cultural, pela sua capacidade de endogenizar povos linguisticamente vários, a língua portuguesa é um elemento substancial da construção das identidades nacionais.

Por outro lado, a afirmação e assimilação do português em espaços africanos com fronteiras estatais que separaram uma mesma identidade linguística – fa(c)to muito comum em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique – opera um processo de diferenciação de comunicação linguística em relação à do outro Estado que é, em si, um factor de identidade nacional. Muitos intelectuais africanos dos países da CPLP afirmam que o português «exprime a construção das nacionalidades.

Neste contexto de contingência histórica, a língua portuguesa em África (principalmente em Angola e Moçambique, onde a geografia não forjou nenhum crioulo) não é um instrumento neutro, um contigente meio de comunicação entre os africanos, mas a expressão da sua afirmação nacional. Em suma é um factor de apaziguamento político e social.

A Língua Portuguesa e o desenvolvimento econó[ô]mico

Nas sociedades contemporâneas o desenvolvimento económico dos Estados está intimamente associado aos avanços da ciência e da tecnologia. O Produto Interno Bruto depende muito dos índices de investigação científica. Nos países africanos membros da CPLP a forma mais imediata de acesso ao conhecimento é através da língua portuguesa, língua do sistema educativo.

Por outro lado, nestes países, o domínio da língua portuguesa é fundamental como elemento estruturante do próprio Estado, pois o português é a língua da administração, e uma administração pública eficaz é outro fa(c)tor essencial do desenvolvimento econó[ô]mico, tanto mais que, nestes países, o seu tecido empresarial ainda se encontra em processo de formação histórica. O escasso domínio da língua da administração provoca, em certas circunstâncias, uma certa impotência do Estado para solucionar problemas quotidianos.

A Língua Portuguesa como afirmação de cidadania
O domínio da língua portuguesa é igualmente uma afirmação de cidadania e de democratização das sociedades africanas. O fraco domínio da língua da administração dificulta a comunicação entre estas populações e o Estado e com as elites políticas, marginalizando-as do desenvolvimento econó[ô]mico e da participação política e cívica.

O domínio da língua portuguesa é, assim, fa(c)tor imprescindível de resgate dos diversos espaços e linguagens, para que toda a população se afirme como cidadãos sujeitos responsáveis pela sua posição nas sociedades.

O espaço do português em África
Nas últimas décadas, assistiu-se a uma expansão exponencial do português nos países africanos de língua oficial portuguesa com a possível excepção da Guiné-Bissau, embora seja difícil estabelecer quantitativos exa(c)tos de falantes de português.

Dados do Recenseamento Geral da População de 1997 de Moçambique (Ministério da Educação) indicam que, numa população de doze milhões de habitantes (população com mais de cinco anos de idade), cerca de 6,4 por cento fala o português como língua materna, em zonas urbanas, e 1,2 por cento em zonas rurais. Assim, possivelmente mais de quatro por cento dos moçambicanos terão o português como língua materna. Ainda segundo este mesmo recenseamento, cerca de 40 por cento da população fala o português como segunda língua, havendo uma taxa de cerca de 59,9 por cento de analfabetismo. Poderemos admitir que alguns milhões de moçambicanos não conseguem comunicar em português.

Em relação a Angola, o sítio www.ethnologue.com estima que a percentagem de população que tem o português como língua materna seja muito superior à de Moçambique, possivelmente o dobro. Este fenó[ô]meno resulta de décadas de guerra civil que transformaram a cidade de Luanda numa megametrópole constituída pelas muitas nações angolanas que, para comunicar entre si, tiveram de se socorrer do português. Este país com uma taxa de 55,2 por cento de analfabetismo, tal como Moçambique, terá alguns milhões de habitantes que não conseguem comunicar em português.

Segundo o mesmo sítio na Internet, somente 11 por cento da população da Guiné-Bissau fala o português; e sobre Cabo Verde e São Tomé e Príncipe apontam para percentagens de cerca de 70 por cento de populações bilingues (têm o crioulo como língua materna e o português como segunda língua).

Dizem que um pessimista é um optimista bem informado. Eu não queria carregar excessivamente na nota negativa, quero apenas sublinhar que, com estes dados, torna-se necessário maior investimento na difusão do português em África, designadamente na Guiné-Bissau. Estes dados evidenciam uma realidade: a língua portuguesa em África ainda não ultrapassou as fronteiras da cidade; é um meio de comunicação essencialmente urbano; não conquistou as comunidades rurais.

Já em Angola, em Moçambique e na Guiné-Bissau, para as comunidades do interior a língua portuguesa é-lhes estranha, pois os seus processos históricos foram outros. Contudo, para a constituição do Estado-Nação formado, como diz o sociólogo catalão Manuel Castells, por «nós de uma rede de Poder mais abrangente», para um Estado-Nação, dentro do qual as comunidades rurais se possam afirmar plenas da sua identidade, é necessário o domínio do português. A língua portuguesa ajudará estes países a caminhar para um tempo exclusivamente seu, num processo de reconstrução da sua própria identidade

A expansão do português para o mundo rural destes países, porém, não poderá corresponder à extinção das línguas africanas. Com a morte de uma língua, morre uma criação humana, uma forma particular de exprimir uma concepção do mundo, um modo de expressar uma relação com a natureza, uma tradição oral, uma poesia.

Para que este fenó[ô]meno não ocorra é necessário a adopção de Didácticas que assumam uma relação de diálogo autêntica entre as diferentes línguas, de tal modo que se pressuponha a não existência de uma língua com estatuto privilegiado. As sociedades africanas estão assim perante o desafio de desenhar e construir relações de igualdade entre as suas línguas incluindo a portuguesa como componentes essenciais do seu património cultural.

Trata-se de um desafio não somente linguístico, mas sobretudo cultural. Assim se exprimiu recentemente Mia Couto:

«A língua portuguesa tem de romper com o estatuto de oficialidade para se tornar uma língua de expressão plena, de tradução da intimidade. Os que pensam que isso só é possível se se agride a africanidade estão cativos de uma atitude estética. Afinal é preciso acreditar que os africanos, ao adoptarem um língua europeia, não ficam em posição de inferioridade, a sua cultura originária fica até mais forte.»

(comunicação lida no Congresso Bienal da Língua Portuguesa na CPLP, em Viseu, dias 19, 20 e 21 de Abril do corrente ano de 2004)

* Organização do Instituto Piaget de Portugal

** Vice-presidente da Sociedade da Língua Portuguesa e co-coordenador editoral do Ciberdúvidas.

2004-04-23

domingo, 6 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P255: Em bom português (1): Guileje e não Guiledje (Luís Graça)

Consulta ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa:

1. Pergunta:

Povoação no Sul da Guiné-Bissau, na região de Tombali, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, Guileje foi um importante aquartelamento das tropas portuguesas durante a guerra colonial.

Construído em 1964, foi sitiado e tomado pelo PAIGC em 22 de Maio de 1973. No tempo do colonialismo, escrevia-se Guileje (vd. a carta da Guiné, dos Serviços Cartográficos do Exército, 1961).

Os guineenses e os cooperantes portugueses na Guiné-Bissau têm hoje tendência para escrever Guiledje ou até Guiledge. Vd. por exemplo, a página pessoal de Fernando Casimiro (Didinho) ou a página de uma organização não-governamental como a AD - Acção para o Desenvolvimento, que tem em curso justamente o Projecto Guiledje .

Pergunto ao Ciberdúvidas: qual é a grafia correcta?

Luís Graça, Portugal

2. Resposta:

Como diz - e atestam os registos mais credíveis que cita (1) - , sempre se escreveu Guileje. Portanto, a grafia Guileje, sem o d, é a única corre(c)ta, dado que em português normal não existe grupo consonântico dj, nem tch, o modo correspondente.

Por isso, é incorre(c)to igualmente escrever "Tchecoslováquia", em vez de Checoslováquia, apesar de em checo a palavra começou por tal som, grafado C (um c com acento circunflexo invertido). Mas o som tch foi o do ch em português até ao princípio do século XIX, e ainda hoje se ouve no Norte do Portugal.

Resumindo, é mesmo assim que se deve continuar a grafar o nome desse aquartelamento das tropas portuguesas durante a guerra colonial, na Guiné-Bissau: Guileje. A corruptela do "dje" (e a do "g") pressupõe um mau domínio da ortografia da nossa língua, com outros conhecidos infelizes exemplos - como é essoutra (má) tendência (no caso, em Angola) de se ter passado a escrever com as letras Ku nomes e topónimos que em português sempre se escreveram, e escrevem, com Qu.
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(1) Também era assim que se grafava no título do excelente documentário "De Guileje a Gadamael - o corredor da morte", da autoria do jornalista José Manuel Saraiva e do realizador Manuel Tomás, exibido no canal de televisão português SIC, em 1998.

Ciberdúvidas
11/10/2005