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terça-feira, 10 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20140: Controvérsias (135): as duas noites de terror, em Farim, as de 1 e 2 de novembro de 1965, para as vítímas (mais de uma centena) do atentado terrorista, e para os indivíduos (mais de sessenta, o grosso da elite económica local) detidos e interrogados pela tropa pela PIDE, por "suspeita de cumplicidade"...


Cabeçalho do jornal "O Democrata", Guiné-Bissau, edição de 13 de novembro de 2014




Guiné > Região do Oio > Mapa de Farim (1954) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Farim, Nema e Morocunda, bairros de Farim, e Bricama.

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)


1.  Reproduzimos, agora em texto,  excertos  da História da Unidade - BART 733 (Farim,  1964/66), págs. 116/118, relativos ao massacre da noite do dia 1 de novembro de 1965, em Morocunda, à evacuação imediata dos feridos graves, por um Dakota (que aterrou em Farim em plena noite, à luz de archotes e de faróis de viaturas automóveis,  facto então inédito no CTIG), bem como à subsequente detenção e interrogatório pela PIDE e pelos militares de mais de 60 indivíduos da população local, suspeitos de envolvimento no atentado, representando o grosso da "elite económica" de Farim, na época: nada menos do que 8 comerciantes,  4 industriais,  4 escriturários da administração local,   3 enfermeiros, 2 gerentes,  2 empregados comerciais e 2 empregados dos CTT, entre outros (*)

(...) Período de 1 a 30 de novembro [de 1965}:

Secções da CART 731 [mais]  secções da CCS do BART 733] transportaram feridos e mortos devido ao rebentamento de um engenho explosivo lançado por elementos subversivos durante um batuque, que se realizava no bairro da Morocunda [, no original, Morucunda,] pelas 21h30

O rebentamento do engenho causou a morte de 27 indivíduos, 70 feridos graves e vários feridos ligeiros, todos civis.

As NT sofreram um ferido grave que assistia ao evento, o qual foi evacuado com os civis mais graves num Dakota no dia [ seguinte,] 2 [ de novembro,] pelas 1h30 para Bissau e 3 feridos ligeiros, sendo dois da CART 731 e um da CCS.

Em virtude deste atentado, foram logo detidos pelas NT 12 indivíduos considerados suspeitos.

(…) O atentado no bairro de Morocunda [, no original, Murucunda,] em Farim, de características inéditas na Província, foi puro acto de terrorismo visando a população civil a fim de suster o regresso da população refugiada no Senegal e fazendo debandar a já existente, ferindo a economia da Província e tornando difícil a vida às NT nas quais se espelharia um estado de confusão que, convenientemente explorado, espalharia o ódio e a desconfiança entre a população que permanecesse em Farim e as NT.

A pequena percentagem de baixas sofridas pelas NT reside no facto de, [na véspera,] no dia 31 de outubro [ de 1965,] se ter realizado a “Operação Canhão” e a maioria do pessoal já estar recolhido na hora do atentado.

Das primeiras averiguações efectuadas pode concluir-se o seguinte: foram lançadas duas granadas de mão, acopladas com duas cargas explosivas, constituindo um único bloco ao qual tinha[m] sido adicionado[s] pregos e lâminas.

O engenho foi fabricado com o fim de ser lançado num batuque ou ajuntamento festivo por um nativo que prestava serviço na Companhia de Milícias [nº 5] [, o soldado Issufe Mané], e que se prontificou a fazer tal trabalho a troco de 14.000$00 [,o equivalente hoje a 5.485,20 €, ou tratando-se de escudos da Guiné, 4936,68 €, dado a diferença cambial real de 10% entre o escudo da metrópole e o "peso" local].

O planeamento para o lançamento do engenho teve lugar na primeira quinzena de setembro [de 1965], quando esteve em Farim, vindo de Conacri, um emissário do Partido, transmitindo então ao Júlio Lopes Pereira, gerente da sucursal da Casa Ultramarina em Farim, instruções para o seu lançamento.

Duas granadas vieram de Conacri, na segunda quinzena de outubro [de 1965], com destino a Bricama, e trouxe-as Paulo Cabral, preso a 28 de outubro na sua canoa com um carregamento de coconote. O mesmo Paulo Cabral deveria trazer, mais tarde, outras duas, para continuar a série de atentados.

O autor da manufatura e composição do engenho foi [o] Júlio Lopes Pereira, chefe na zona, que, juntamente com Jorge João Campos Duarte, dirigia e concentrava as atividades do PAIGC, re que se encontrava diretamente dependente do diretório do PAIGC em Conacri, donde recebia instruções e para onde enviava os seus relatórios.

Foram apreendidos pela PIDE 18500$00, destinados ao PAIGC, donde sairiam os 14000$00 para o autor do lançamento que não [os] chegou a receber porque após o incidente [sic] foram as prisões dos indivíduos suspeitos.

Há muito que o Comando do Batalhão vinha insistindo superiormente para a substituição, a casa Ultramarina, do autor moral do crime, Júlio Lopes Pereira, em virtude de factos ocorridos e relatados que o tornavam fortemente suspeito. Os factos presentes vieram confirmar que a opinão , várias vezes expressa pelo Comando, a respeito do indivíduo referido, não era produto de facciosismo ou animosidade injustificada para com este.

No dia 2(…), um 1 Gr Comb da CART 731 patrulhou a vila de Farim. Na manhã deste dia encontravam-se já detidos 60 indivíduos [, no aquartelamento de Nema] , na sua maioria já de há muito referenciados como colaboradores do IN. Na prisão dos referidos indivíduos colaborou com as NT o agente da PIDE [, de apelido Prosídio (?), e que não era "bafa meigo", segundo o nosso camarada António Bastos, do Pelotão de Caçadores 953, que o conheceu, e que estava em Farim nessa noite, em trânsito para Canjambari], numa atuação rápida e eficiente digna de registo. 

De salientar o facto de a maioria dos presos serem civilizados (sic: leia-se, gente de origem europeia e cabo-verdiana), servindo-se das suas atividades normais para propagar a subversão do meio da população nativa (sic). (...)


2. Nas páginas 117/118, vem a lista dos indivíduos detidos, por nome e profissão… Não era "normal" as histórias de unidade, no CTIG, trazerem listas nominais de civis, "suspeitos de atividades subversivas" (**)...

Do total dos 64 detidos, listados, apuramos o seguinte, por  profissão e género: 

(i) A grande maioria eram homens (91%), mas havia 6 mulheres, 4 domésticas, 1 costureira, e uma Maria da Conceição dos Reis Cabral (, pelo apelido, seria eventualmente esposa de Paulo Cabral, já preso dias antes, em 28 e outubro de 1965);

(ii) a maioria dos detidos eram lavradores (14), comerciantes (8), industriais (4), escriturários da administração de Farim (4) enfermeiros (3), gerentes (2), empregados comerciais (2), empregados dos CTT (2), gente "civilizada" (sic), uma boa parte talvez de origem metropolitana ou cabo-verdiano, como o José Maria Jonet, com exceção dos "lavradores", que tinham nomes "nativos"… [os gerentes eram de duas das casas comerciais mais importantes do território: a Casa Ultramarina, o Júlio  Lopes Pereira, e a Casa Gouveia, o Henrique Morais Silva Lopes Ribeiro];

(iii) mas também havia nativos, maioritariamente de etnia mandinga, a avaliar pelos nomes: além dos lavradores (14), foram detidos gilas (4), furadores (2), sapateiros (2) e carpinteiros (2);

(iv) e ainda outros, de diversas profissões: além do soldado milícia (, de seu nome Issufe Mané, acusado de ser o autor material do atentado), um tingidor de panos, um auxiliar de mecânico, um ajudante de motorista, um pintor, um bailarino, um pescador, e ainda um cidadão estrangeiro, senegalês, ou residente em território do Senegal, de nome Iussufe Sané.

Tudo indica que, para estes civis, o dia seguinte, 2 de novembro de 1965 também terá sido de pesadelo. A vida económica de Farim deve trer ficado seriamente afetada por uns tempos. E, muito provavelmente, as  vidas destes homens e mulheres não terão sido  mais as mesmas. Conseguimos apurar alguns elementos informativos sobre alguns destes detidos... Alguns seriam nacionalistas, simpatizantes ou até militantes, de 2ª ou 3ª linha,  do PAIGC. Mas a maioria terá sido a "apanhada a jeito e a eito"... Qual terá sido o seu destino ? Há rumores de que alguns terão sido torturados até à morte ou simplesmente executados pela tropa ou pela PIDE:

(i) José Maria Jonet,  comerciante: 

Nascido em São João Baptista, Ilha Brava, Cabo Verde, em 26 de dezembro de 1906: falecido em outubro de 1966, em Bissau, com 59 anos de idade [, repare-se: menos de um ano depois da sua prisão, em Farim]: era casado com Georgina do Livramento Quejas, deste 1937. 

Fonte: página de Barros Brito, "Genealogia dos cabo-verdianos com ligações de parentesco a Jorge e Garda Brito, a seus familiares e às famílias dos seus descendentes"

(ii) Dionísio Dias Monteiro, comerciante:

(...) "Amílcar Cabral nos dizia que devíamos trabalhar como uma pirâmide. Isto é, o núcleo principal e de contactos permanentes seria pequeno, mas cada um devia ter a sua "Célula". Eu, por exemplo, tendo como Célula a Zona Velha da Cidade de Bissau (pois morava nessa zona), nunca tive contacto com Rafael Barbosa. Só mais tarde vim a saber dele, como sendo um dos principais activistas políticos desde anos 40 e um dos mentores da criação do Partido.

Para além das Células, estabeleceram-se pontos focais, ou seja elos de ligação no interior do País. Por exemplo, o elo de ligação em Farim era o Dionísio Dias Monteiro; em Bolama era Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai); em Catió era Manuel da Silva" (...)

Fonte: Depoimento de Elisée Turpin, cofundador do PAIG.

  
(iii) Pedro Tertuliano Ramos Salomão, comerciante: encontrámos um nome igual, a única informação disponível é de que terá morrido na Amadora, por volta de 2009; em 2014, constava, em aviso da CM da Amadora, o seu nome, indo-se proceder à exumação dos seus mortais, uma vez ultrapassado o prazo legal da inumação. Fonte: CM da Amadora

(iv) Júlio Lopes Pereira, gerente da Casa Ultramarina, sucursal de Farim, considerado o "autor moral" do atentado, e que terá morrido em novembro de 1965, às mãos da PIDE de Farim:

(...) "Desaparece uma jornalista em Angola, desde Junho de 2012, chamada Milocas Pereira e até hoje, ninguém sabe do seu paradeiro. Tudo indica que o seu desaparecimento esteja estritamente ligada a questões políticas e ligações entre o governo de Angola e governo então deposto na Guiné-Bissau. Desde o seu desaparecimento existiu, um silêncio total por parte das duas entidades, e nunca nenhum deles se pronunciou sobre o desaparecimento desta figura, docente numa Universidade em Luanda, analista de assuntos políticos e filha de um activo militante da luta contra o regime colonial português, morto em Farim nas celas da DGS/PIDE em Novembro de 1965. Os dados sobre a morte de Júlio Lopes Pereira, seu combate e desaparecimento, constam dos arquivos da Torre do Tombo em Portugal" (...). 

Fonte: blogue de Paté Cabral Djob, "Conosaba do Porto" > 22 de maio de 2014 > Celina Tavares: "Onde está adra. Milocas Pereira?"]

3. Este será um dos mais tristes e negros episódios da história da guerra do ultramar, da guerra colonial, ou da "guerra de libertação" , como se queira (conforme o  "lado da barricada"). Não nos honra como seres humanos, não honra ninguém que tenha estado envolvido nos acontecimentos. Passados mais de 50 anos, ainda é um acontecimento que ninguém quer lembrar. Raramente é referido pelas "cronologias" da guerra, e pelos historiógrafos, de um lado e do outro. Do lado do PAIGC, há um estranho silêncio sobre esse episódio. Do lado do exército português, também há pudor em evocá-lo. O horror ficou, indelevelmente marcado na memória das vítimas, na altura crianças, que lhe sobreviveram. "Mártires do terrorismo": há um monumento e um largo, hoje em Farim, que nos deixam apagar a memória...

Cite-se, por exemplo, o testemunho do sobrevivente e vítima do "ataque terrorista" (sic), Carlos Malam Sani [ou Sané ?], recolhido ainda há três anos atrás pelo jornal de Bissau, 'O Democrata':

(..:) "Um dos momentos marcantes da referida sessão foi quando o velho Carlos Malam Sani, um dos sobreviventes e vítima “do ataque terrorista” de Morkunda de 1 de Novembro de 1965, na altura com doze anos de idade, com uma voz trémula e emocionado, começou a narrar para os estudantes [da Universidade Lusófona de Bissau], na primeira pessoa, como tudo acontecera há 51 anos durante uma manifestação cultural da etnia mandinga “festa de Djambadon”, que decorria no coração de Farim, provocando mais de trinta mortos e vários feridos 
graves. (...). 

Fonte: O Democrata, Guiné-Bissau > Sene Camará > 2/5/2016 > Universidade Lusófona da Guiné resgata história de Farim.

Algo misterioso (mas abrindo pistas para outras leituras do que se  terá passado nessa trágica noite de 1 de novembro de 1965, em Farim), é o comentário, em crioulo, o único de resto até agora,  deixado por um tal  Romaru, em 16/11/2014 às 00:05, na caixa de comentários à supracitada reportagem de Filomeno Sambú, em 'O Democrata', de 13/11/2014: 

(...) lamento, e foi bom para relembrar d mumentos d trestes, ataque saiu d farim bedju a 3 a 4 klrs de morucunda para kem conhese farim sabe aonde fika farim bedju, ataki foi grande inganu, i ponto final cabu aqui ponto final. storia verdadeira; homem sorou quando splicou me mais sorou mesmo foi unico e grande ero que ele cometeu e nunca vai squeser, diz o homem com plavra dele que ele sorou mais e criancas e irmaos civils que tva n este tarde d disgaca" (...)

Este "Romaru" [, pseudónimo de alguém que, cinquenta anos depois (!) ainda não quis dar a  cara...] insinua que o autor material do crime (, o soldado milícia da Companhia de Milícia nº 5, um tal Issufe Mané, a crer na versão das autoridades militares, o comando do BART 733), terá agido por engano, ou ter-se-á precipitado, que o alvo não era a população civil mas os militares portugueses, de acordo com as instruções do(s) mandante(s) do crime: "o homem chorou quando me explicou, mas chorou mesmo, foi o único e grande erro que ele cometeu, e que nunca vai esquecer, disse o  homem com palavras dele, o que ele chorou mais foram as crianças e os irmãos civis que estavam lá nessa tarde [noite] de desgraça"...

Estranha-se, em todo o caso, que este antigo milícia (, que terá "confessado tudo" à PIDE e aos militares) tenha "sobrevivido aos acontecimentos", admitindo-se que o clima em Farim,  de dor, revolta e luto, nessa altura, fosse mais propício ao linchamento do que à justiça...

Enfim, não podemos também ignorar o comentário (, ao poste P 20130),  do nosso camarada Manuel Luís Lomba, contemporâneo dos acontecimentos (ex-fur mil, CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66).

(...) "Na altura encontrava-me em Nova Lamego em 'consulta externa' e na messe dizia-se que os dois fornilhos foram mandados lançar por dois comerciantes brancos, que a tropa os liquidou e até se dizia o nome dum sargento do QP que rachou um deles com o machado da sua loja. "
____________


Notas do editor:

(*) Último poste da série > 9 de setembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20135: Controvérsias (134): os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, em 1 de novembro de 1965: a memória das vítimas e o risco de falsificação da história... Excertos de reportagem do jornal "O Democrata", Bissau, 13/11/2014

(**) Vd. também postes de:

7 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20130: Controvérsias (133): Os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, de 1 de novembro de 1965, um brutal ato de terrorismo, cuja responsabilidade material e moral nunca foi apurada por entidade independente: causou sobretudo vítímas civis, que estavam num batuque: 27 mortos e 70 feridos graves

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20135: Controvérsias (134): os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, em 1 de novembro de 1965: a memória das vítimas e o risco de falsificação da história... Excertos de reportagem do jornal "O Democrata", Bissau, 13/11/2014


Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 2015 > Memorial e largo Mártires do Terrorismo >  Alguns dos sobreviventes do massacre de Morocunda (ou Morcunda), em 1 de novembro de 1965. Foto de Armando Conte, um dos organizadores da homenagem às vítimas. Cortesia de TV Guiné-Bissau (*)


1. Parece que ainda há, na Guiné-Bissau, e em especial em Farim, quem pense, mais de meio século depois, que os trágicos acontecimentos do dia 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim (**), foram provocados pelos "colonialistas portugueses"... 

Nessa noite teria havido "uma série de rumores que indicavam que um avião militar 'Dakota' (sic) iria efetuar uma rusga para perseguir e consequentemente prender pessoas nos bairros de Morcunda, Nema, Sintcham, Gã-sapo e Praça." (**)

Consequentemente, "o massacre de Farim" terá resultado de um "bombardeamento", indiscriminado, efetuado por um Dakota (!)... Indiscriminado, não, digamos... cirúrgico!... As vítimas, sobretudo mulheres e crianças, terão sido apanhadas "no meio da dança do 'Djamdadon' uma das manifestações culturais da etnia Mandinga"... Mas também houve, entre os militares presentes, um ferido grave e vários feridos ligeiros..., o que é omitido na reportagem do jornal 'O Democrata'.

Alguns dos sobreviventes, entrevistados em 2014 pelo jornal 'O Democrata' (**), admitem honestamente que são incapazes de atribuir responsabilidades ao PAIGC ou aos "colonialistas"... O próprio jornalista [,Filomeno Sambú,] reconhece que até agora [, 2015,] não há informações concretas sobre a verdadeira origem do ataque. 

Mas outros são perentórios: "Sobreviventes ilesos e testemunhas reclamam que se tratou de um ato bárbaro e premeditado perpetrado pelos colonialistas portugueses devido às perseguições contra certas pessoas ligadas ao partido PAIGC. (...) Ao mesmo tempo {que] pedem a intervenção do Governo guineense junto de Portugal para indemnizar todas as vítimas do atentado que ceifou as vidas de dezenas de pessoas e cerca de cem feridos."

Há óbvias contradições nos depoimentos: Malam Sané, um dos sobreviventes, diz que "depois do bombardeamento, na mesma noite do dia 1 de novembro, o primeiro grupo dos feridos foi evacuado de imediato para Bissau num avião" [, avião esse que sabemos que foi um Dakota, a única aeronave da FAP que estava em condições de voar à noite]. A explosão do engenho, lançado para a fogueira, terá sido tão violenta que algumas testemunhas tê-la confundida com a de um "bombardeamento aéreo"..., o que nos parece totalmente inverosímil. O 'Dakota', o avião de transporte (e não propriamente um "bombardeiro"),  que aterrou nessa noite em Farim, veio fazer as evacuações dos feridos mais graves... Na memória de alguns sobreviventes, na altura crianças, poderá ter ficado a imagem aterradora de um Dakota que provavelmente nunca tinha visto antes, muito menos à noite...

Naturalmente  também temos sérias reservas em relação à versão "oficiosa" dada na altura pelas autoridades portuguesas, neste caso o comando do BART 733 (***)... Bom seria que, ainda hoje, passados estes anos todos, o exército português fizesse uma investigação independente ao ocorrido em 1 de novembro de 1965. Alguns camaradas nossos, como o António Bastos e o Virgínio Briote, estavam lá, em Farim, nesse fatídico dia, mas não exatamente em Morocunha (antigo bairro, afastado do centro da vila).

O segundo grupo de feridos, onde se incluía Malam Sané, foi evacuado "de Farim em direção a Bissau às 8 horas do dia seguinte".

Que foi um ato de terrorismo, hediondo, foi, estamos todos de acordo. Perpetrado por quem, não sabemos. O PAIGC nunca o reivindicou. AS NT, por sua turno, acusam elementos locais,  como o comerciante Julio Lopes Pereira, de estarem por detrás deste atentado, que vitimou sobretudo mulheres e crianças, vítimas inocentes.

2. Aqui vão alguns excertos da reportagem de Filomeno Sambú (**), com a devida vénia:

(...) Depois de quarenta e nove (49) anos do Massacre de Morcunda, uma tabanca situada nos arredores da cidade de Farim, no norte do país, um grupo de pessoas decidiu trazer à memória os acontecimentos ocorridos a 1 de novembro de 1965 com registros de mais de trinta vítimas mortais e cerca de cem feridos, na sua maioria mulheres e crianças.


Na cerimónia de homenagem às vítimas deste bombardeamento de 1965, foi depositada uma coroa de flores em memória dos falecidos. O Governo central, a administração local e os deputados da nação eleitos em Farim nas últimas eleições legislativas de abril fizeram-se representar na cerimónia.


Segundo informações de testemunhas, o atentado que matou civis inocentes, aconteceu à noite, no meio da dança do “Djamdadon”, uma das manifestações culturais da etnia Mandinga.



A dança ocorria ao ritmo de sons de tambores tocados pelos “Djidius” com a multidão à volta do local. Dados recolhidos no terreno pelo Jornal 'O Democrata' revelaram ainda que o número das vítimas poderá não ter sido o que consta dos documentos coloniais [27 mortos e 70 feridos graves, todos civos, mais um ferido grave entre os militares portugueses] .

Depois do bombardeamento houve pessoas que tentaram resistir aos ferimentos, mas acabariam por morrer, ficando fora dos dados oficiais disponíveis nos boletins de informações coloniais.



A equipa de 'O Democrata' que se deslocou a cidade de Farim,  viu o local e pôde ainda constatar a tristeza e as lágrimas a caírem dos olhos de crianças depois de vários depoimentos de testemunhas ainda em vida. Este facto revela que o que aconteceu foi muito doloroso e que ainda abala a memória dos cidadãos daquela terra.



Os organizadores pretendem que no futuro a iniciativa seja institucionalizada como dia de Farim, porquanto é um dos maiores massacres da história do povo local.



Malam Sané, um dos sobreviventes do ataque, recorda de 1 de novembro de 1965 com muita tristeza e mágoa. O sobrevivente disse que estava inconsciente e que apenas se lembra dos momentos ocorridos antes do ataque.



Depois do Bombardeamento, na mesma noite do dia 1 de novembro, o primeiro grupo dos feridos foi evacuado de imediato para Bissau num avião [, um Dakota}. A segunda equipa que incluía Malam Sané saiu de Farim em direção a Bissau às 8 horas do dia seguinte.



Malam Sané informou ainda que antes do rebentamento, estava ainda em casa com a sua mãe e que de repente chegaram-lhes uma série de rumores que indicavam que um avião militar 'Dakota' iria efetuar uma rusga para perseguir e consequentemente prender pessoas nos bairros de Morcunda, Nema, Sintcham, Gã-Sapo e Praça.


Mas sobretudo Gã-Sapo e Praça, não especificando contudo as razões porque os dois últimos bairros foram sublinhados. Poucas horas depois de chegar no local, por volta das 22 horas, aconteceu o ataque que vitimou civis inocentes e feriu perto de cem pessoas, explicou Malam Sane com lágrimas nos olhos: “não posso prosseguir, chega” – concluiu.

Sadjo, também uma das sobreviventes do atentado, conta a sua versão na primeira pessoa. Disse que foi atingida por um estilhaço de granada que lhe cortou a barriga e que, em consequência dos ferimentos, não conseguiu comer nem beber água durante um mês. E enquanto recuperava desses ferimentos foi ajudada por médicos que administraram um soro. “Até agora padeço de dores devido aos ferimentos na barriga. Não consigo fazer nada nem jejuar”, notou a vítima.

Ela fez parte do primeiro grupo evacuado para Bissau. Referiu que depois da detonação que ouviu, nada mais soube e não pode avançar com explicações se foi algo preparado internamente ou pelos colonialistas, porque “estava no ponto da morte”, assinalou.


Armando Conté, um dos membros da organização [da cerimónia de homenagem aos 'mártires do terrorismo'], referiu que o motivo fundamental da comemoração do dia é solidarizar-se com todas vítimas e também informar as pessoas que não tinham nascido, quando o triste acontecimento sucedeu em Farim, para poderem se informar daquilo que realmente se passou no sítio do monumento. ainda em construção.


Lembra que é um primeiro passo apenas para que agora em 2015, quando se completam 50 anos, que o Governo central declare o dia 1 de novembro, curiosamente dia dos fiéis defuntos, como um dia de “ reflexão de Farim”, referiu.

“Penso que o Governo vai estar na posição de nos ver, ouvir e dar a voz a quem não tem voz. Acredito que esse ato vai ser o princípio de muitas coisas que virão para Farim e com a iminência da exploração do fosfato local”, disse.

Armando Conté disse ainda que, em 2015, a organização está construindo um monumento com nomes de todas as vítimas, para que sirva de informação aos mais novos e as gerações vindouras.

Entretanto, até agora não há informações concretas sobre a verdadeira origem do ataque. Vítimas sobreviventes do atentado dizem desconhecerem por completo a proveniência desse bombardeamento e os seus motivos específicos.

Sobreviventes ilesos e testemunhas reclamam que se tratou de um ato bárbaro e premeditado perpetrado pelos colonialistas portugueses devido às perseguições contra certas pessoas ligadas ao partido PAIGC.

As vozes que se levantaram agora atribuem o ataque aos portugueses. Ao mesmo tempo pedem a intervenção do Governo guineense junto de Portugal para indemnizar todas as vítimas do atentado que ceifou as vidas de dezenas de pessoas e cerca de cem feridos.

O registo do atentado está nas duas páginas deste livro [, história da unidade, BART 733 ?] que 'O Democrata' conseguiu fotografar, com a solidariedade de um dos elementos da equipa de reportagem da RTP-África em Bissau. (...)

[Essas imagens das supracitadas páginas não constam da edição eletrónica desta reportagem, de que reproduzimos o essencial. LG]
____________

Notas do editor:

(*) TV Guiné-Bissau > Memória: Farim e o massacre de 1965. Reprodução de texto de Filomeno Sambu, jornal "O Democrata", 13/11/2014

(**) Vd. O Democrata, Guiné-Bissau > 13/11/2014 > Filomeno Sambú > Reportagem: Farim recorda o massacre de 1965 com mágoa.


sábado, 7 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20130: Controvérsias (133): Os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, de 1 de novembro de 1965, um brutal ato de terrorismo, cuja responsabilidade material e moral nunca foi apurada por entidade independente: causou sobretudo vítímas civis, que estavam num batuque: 27 mortos e 70 feridos graves


Guiné > Região do Oio > Mapa de Farim (1954)  > Escala de 1/50 mil > Posição de Morocunda, bairro de Farim.



Guiné- Bissau > Região de Oio > Farim > Março de 2008 > Cádi ou Cati, uma sobrevivente dos trágicos acontecimentos de 1 de novembro de 1965. O António Paulo Bastos conheceu-a, ma Missão Católica, na altura da sua 3ª viagem à Guiné-Bissau.

Fotos (e legenda): © António Paulo Bastos (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Excerto de relatório sobre o período de 1 a 30 de novembro de 1965,  inserido na história do BART 733, Bissau e Farim, 1964/66). Cortesia do nosso camarada e grã-tabanquerio António Paulo Bastos,
ex-1º Cabo do Pelotão de Caçadores 953 (Cacheu, Bissau, Farim, Canjambari e Jumbembem, 1964/66) (*).

1.  Ainda está envolta em controvérsia a responsabilidade material e moral dos trágicos acontecimentos de 1 de novembro de 1965, em Morocunda [e não Morucunda...], nas imediações de Farim (**), aqui relatados em primeira mão pelo António Bastos, em 2009, em 3 postes (*) mas já referidos antes pelo Virgínio Briote (***)... 

Só conhecemos a versão da PIDE e do BART 733,  atribuindo a responsabilidade do atentado a "elementos subversivos"... Tanto quanto sabemos, o PAIGC nunca reivindicou a autoria deste horrendo atentado, que teve um balanço trágico, segundo o documento acima reproduzido: 27 mortos e 70 feridos graves, além de feridos ligeiros, entre a população civil; um ferido grave, entre as NT. 


(i) Poste P5203, de 3 de novembro de 2009:

CARNIFICINA EM FARIM

1 de Novembro de 1965

Camaradas,

No passado dia 1 [de novembro de 2009]  completaram-se 44 anos, sobre um ataque que me marcou profundamente. Tenho duas fotos de uma das sobreviventes e lembrei-me de enviar para serem publicadas no blogue.

Tudo aconteceu em Farim, resultante do rebentamento de um engenho explosivo, em pleno batuque na tabanca do Bairro da Morocunda.

Eram 21h30, quando um elemento da milícia lançou um fornilho (uma granada embebida em pregos, lâminas e bocados de ferros), para o meio do pessoal presente.

27 mortos e 70 feridos graves, uma deles era uma senhora que podem ver nas fotos e que, nessa altura, era ainda uma criança de 10 anos. Chama-se Cáti, mora atualmente em Farim e, em março de 2008, fui encontrá-la numa festa na Missão Católica em homenagem a um grupo de turistas “tugas”, que por ali passaram 2 dias.

Como tudo aconteceu: eu pertencia ao Pelotão Caçadores 953 e estava nesse dia de passagem por Farim, a caminho de Canjambari. No momento da explosão,  eu estava junto à porta da caserna do pelotão de morteiros. Logo de seguida, começaram a passar viaturas com corpos em cima, a caminho das enfermarias civil e militar.


A maioria das vítimas eram crianças e, entre elas,  estava a Cáti. Foi chamado um Dakota e recorreu-se à iluminação da pista de aterragem, com os faróis das viaturas, para se evacuar aquela gente toda.

Agora, passados estes anos, fui encontrar uma das sobreviventes e, como não podia deixar de ser, estivemos a falar do assunto, tendo ela permitido que eu obtivesse as 2 fotos do seu cicatrizado corpo. (...)

(ii) Poste P7205, de 1 de novembro de 2010:

 (...) Neste fatídico Dia 1 de novembro de 1965, pelas 21:30, horas estava eu de passagem por Farim esperando transporte para Canjambari, quando se dá um rebentamento no Bairro da Morocunda em Farim que causou a morte a 27 pessoas, 70 feridos graves e vários ligeiros, todos civis. As NT sofreram 1 ferido grave e um ligeiro.

O engenho, duas granadas reforçadas com explosivos, pregos e lâminas, foi lançado para o meio do batuque onde era suposto estar muita tropa, o que não aconteceu, porque se tinha feito uma operação e o pessoal estava ainda a descansar.

Pela primeira vez na Guiné um Dakota levantou de noite para proceder à evacuação dos feridos.

No dia seguinte já se encontravam presos na 1.ª Companhia de Caçadores em Nema (Farim), 60 indivíduos entre eles: Pedro Mendes Fernandes, Bernardo da Cunha, Raul Teixeira Barbosa, José Maria Jonet, Dionísio Dias Monteiro, Pedro Tertuliano, Dionísio da Silva Pires (este empregado dos CTT)  e muitos mais, todos empregados das repartições públicas e casas comerciais.

As prisões foram feitas pelo agente da Pide, de nome Prodízio e militares da CCS do BART 733. (...)



(...) No relatório falam de um agente da PIDE. O seu nome era Prodísio (nunca mais me esqueci) e, em conversa com a Cáti (ou Cádi,  não me lembro exactamente), ela confirmou-me que, depois de recuperada dos graves ferimentos que sofreu, regressou a Farim, tendo sido empregada na casa dele.
No mês de narço de 2008, ao passear com a Cáti em Farim, ela disse-me onde tinha morado o tal PIDE e onde trabalhava.

Sobre relatórios, tenho em meu poder, ainda, os do BART 733 e do BCAV 490, pois foram os batalhões onde estive adido. (...)


Em 2007, o Virgínio Briote já se te tinha referido a este ato de terrorismo,  citando o testemunho de um preso político entrevistado pela historiógrafa Dalila Cabrita Mateus (**): Pedro Pinto Pereira, nascido em Bissau, em 1926, preso e desterrado para São Nicolau, Angola (1966-1969), libertado no tempo do Spínola. Será mais tarde preso depois da independência da Guiné-Bissau, acusado de colaboracionismo.

O Virgínio Briote também estava lá nessa altura, em Farim (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


4 de novembro de  2009 > Guiné 63/74 - P5211: Efemérides (32): 1 de Novembro de 1965 – Relatório Oficial da Carnificina em Farim (António Paulo Bastos)

(...) Que assistira ao fabrico de uma bomba. Quando eles (PIDE) é que tinham deitado uma bomba em Farim, onde mataram muita gente,

(...) (quem lançou a bomba?) Foi a PIDE que mandou, tenho a certeza disso. Lançou a bomba para depois dizer que nós até matávamos africanos. Ali não havia quartéis, só havia casas comerciais, onde era fácil lançar bombas e fugir. Porque é que não lançavam as bombas nos quiosques, frequentados pelos militares portugueses? E iam deitar onde só estava a população? Queriam arranjar pretexto para fazer prisões. Havia, então, uma festa numa tabanca e morreram mais de cem pessoas. Isto passou-se no dia 1 de Novembro de 1965. (...)

(...) Nota da historiadora: Confirmado o incidente, a PIDE, em mensagem por rádio existente nos arquivos de Salazar, afirma que, no dia 1 de Novembro de 1965, cerca das 20 horas, fora lançado um engenho explosivo para o meio dos africanos que se encontravam num batuque em Farim. A explosão teria provocado 63 mortos e feridos, na sua maioria mulheres e crianças.

Foi detida meia centena de pessoas. Confissões obtidas levaram à detenção de um tal Issufo Mané, que declarou pretender atingir militares (?). Para o fazer, teria recebido 14 contos de Júlio Lopes Pereira, o qual, por seu lado, actuara por indicação do chefe da Alfândega de Farim, Nelson Lima Miranda. E este teria vindo a declarar que a bomba fora lançada a mando da direcção do PAIGC.

(AOS/CO/UL- 50-A, Informações da PIDE, 1965-1966, 86 subdivisões, pasta 2, fls. 636, 637, 638, 641 e 642).

terça-feira, 19 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16317: Controvérsias (132A): Quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto... A morte do comandante Mamadu Cassamá,e as viaturas blindadas, em Copá, em 7/1/1974 (confrontando duas versões, a do guineense Bobo Keita, "o comandante dos tanques anfíbios" e a do escritor cubano Ramón Pérez Cabrera)

1.  Depoimento de Bobo Keita, comandante do PAIGC (1939-2009) sobre a morte de Mamadú Cassamá(*), em Copá, em 7/1/1974:


"Mamadú Cassamá morreu no ataque a Copá. Tomei parte nesse ataque, juntamente com o camarada Paulo Correia. O Mamadú era dos que ainda acreditavm na 'força' dos amuletos... Avançou muito e foi até aos arames  que circundavam o quartel,  Pegou nos arames e fez força para os arrancar. Foi localizado e um tiro cverteiro silecncoiu-o de vez. O Mamadú Cassamá era o camdante daqule zona".

In: Norberto Tavares de Carvalho, De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes. p. 244.


Bobo Keita, já antes, noutra passagem se tinha referido a Copá e à utilização de viaturas blindadas;(p. 193):

"Para o assalto a Copá, que fica a uns trinta quilómetros da cidade senegaleas de Wassadou,  peguei em dois dos meus tanques (sic), constitui um comando e fomos à emboscada.  A operação em Copá contou com Quemo Mané, comandante de infantaria. Copá também não foi fácil para os tugas, Alinhámos um número razoável de combatentes, menor que Guileje e Guidaje, e o objetivo era o de isolar os colonialistas. A tomada do quartel não nos interessava, queríamos somente convencê-los  de que não tinham mais nenhuma escapatória e que deviam partir da nossa terra".

Infelizmente, Norberto Tavares de Carvalho, nas longas conversas com Bobo Keita, não explorou devidamente o fato de este ter sido nomeado, ainda em vida de Amílcar Cabral, " comandante dos tanques anfíbios" (sic) ou   "chefe dos blindados",  em substituição do Inocêncio Cani (1938-1973), antigo comandante da marinha do PAIGC, que iria ser o carrasco do  líder do PAIGC, em 20/1/1973 (vd. pp. 165 e ss.)...

No início do cap. XII, pode ler-se (p. 177): "Depois do funeral do Amílcar, realizado no dia 1 de fevereiro de 1973 em Conacri, fui tomar conta dos tanques anfíbios (sic)", tendo seguido depois  "de Boké para o Leste em março de 1973".

Em conclusão: o PAIGC já tinha viaturas blindadas anfíbias e vai usá-las contra Copá, em janeiro de 1974, de acordo com o testemunho (insuspeito) do nosso camarada António Rodrigues, um dos bravos de Copá (*). 

Mas fica a dúvida por esclarecer:  o PAIGC  tinha duas ou mais "viaturas blindadas" de tipo anfíbio  ? Eram mesmo do PAIGC ? Ou eram emprestadas pelo Sékou Touré ? Seriam do tipo  BRDM-2 ? Se sim, por que é que o Bobo Keita não se faz transportar nelas,  na "viagem triunfal" até Bissau,  em setembro de 1974 ?

2.Excerto de: Ramón Pérez Cabrera - "La historia cubana en África: 1963-1991: pilares del socialismo en Cuba" (edição de 2005), p. 1979


[Com a devida vénia...Sublinhados nossos] [Extensas partes do livro podem ser consultadas, em modo de pré-visualização, no portal da Kilibro]


3. Aristides Ramón Pérez Cabrera (n. 1939) não é nem jornalista nem historiador, e muito menos um investigador independente.  É um "homem de partido", é um homem do regime castrista, que chegou ao comité central do Partido Comunista, pelo que se não pode esperar do seu livro "La historia cubana en África", publicado em 2003, uma obra isenta, objetiva, imparcial, crítica, etc. Tal como muita da tralha "chauvinista", "trauliteira e patrioteira" que todos  nós escrevemos e continuamos a escrever sobre o glorioso passado dos nossos países europeus (nós, os portugueses, os espanhóis, os franceses, os ingleses, os alemães, os italianos, os suecos, os russos, etc.).

Muito menos foi, tanto quanto sei, o nosso Cabrera,  um combatente "internacionalista" que tenha arriscado o coirão nas bolanhas da Guiné ou nas savanas do sul de Angola... Os elementos que juntou para escrever "La historia cubana en África" e as informações que publicou, devem ser tomadas com as naturais reservas... É um trabalho de pesquisa bibliográfica e de recolha de testemunhos, que tem alguém interesse documental.  

Não tendo formação (científica) em história, é natural que corra o risco de descambar para o panegírico, a propaganda, a tirada patrioteira, sem grande preocupação com o rigor factual e o respeito pela verdade, o contraditório, a triangulação, a exploração  de outras fontes documentais, etc.

É o caso, por exemplo,   do nome do comandante das forças que atacaram Copá em janeiro de 1974... O homem que morreu em 7/1/1974 não era Mamadou Cassamba (sic), mas sim Mamadu Camassá... E não terá morrido a tripular uma das "quatro" (sic)  viaturas  blindadas BTR (ou BRMD) que o PAIGC não devia ter na altura, mas sim de um tiro certeiro, talvez no coração ou noutro órgão vital... disparado pelo nosso António Rdorigues ou algum outro dos bravos de Copá.

O Ramón Pérez Cabrera estava a milhares de quilómetros de distância, provavelmente em Havana, não viu o horror e o heroísmo desses dias em Copá, nem cita fonte idónea... Inclino-me mais facilmente para aceitar, como versosímil,  a versão do  Bobo Keita, que afirma ter estado em Copá nessa noite, tal como o comandante da Frente Leste, o Paulo Correia, valente guerrilheiro balanta, com várias  e importantes funções políticas a seguir à independência, que irá morrer muito mais tarde, em 1986, fuzilado, depois de barbaramente torturado  pelos esbirros do 'Nino' Vieira, na sequência de uma inventona....

Enfim, tudo indica que o  Cabrera, ingénua ou deliberadamente,  terá inventado um versão "heróica" para a morte (estúpida) de um comandante de guerrilha que nem sequer devia ter "carta de condução" de BTR (ou BRDM)... 

Aliás, o Bobo Keita, velha glória do futebol no tempo dos "tugas", não parece ter grande consideração pelo seu camarada Mamadu Cassamá: dele diz, com ironia, que  "era dos que ainda acreditavam na 'força' dos amuletos", a exemplo do próprio 'Nino' Vieira (leia-se, dos "mésinhos" que tornavam o "corpinho de bó" impenetrável às balas do "tuga")...

Moral da história: quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto...  LG

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Vd. poste anterior:

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16315: Controvérsias (132): Blindados do PAIGC? Não os vi em Jemberem, ninguém os viu em Bissau, Gadamael, Cacine, Mansoa, etc... aquando da transferência dos nossos aquartelamentos, o que seria normal e expectável se o PAIGC os tivesse... (Joaquim Sabido, ex-alf mil art, 3.ª CART/BART 6520/73 e CCAÇ 4641/73, Jemberem, Mansoa e Bissau, 1974)

1. Comentário, ao poste P16309 (*), do nosso camarada Joaquim Sabido

[foto à direita, abaixo: Joaquim Sabido, ex-alf mil art, 3.ª CArt/BArt 6520/73 e CCaç 4641/73, Jemberém, Mansoa e Bissau, 1974);  foto à esquerda: Joaquim Sabido, hoje, advogado, a viver em Évora;  é nosso grã-tabanqueiro desde 24/8/2010; tem uma dezena de referênciasno nosso blogue]



No meu modesto entendimento, este tema encontra-se estreitamente ligado à questão da "guerra perdida vs. guerra ganha".

Naturalmente que não podemos nunca deixar de equacionar que a situação não se poderia eternizar. Por vezes, há camaradas que aqui vêm quase pedir contas àqueles que, como eu, nos encontrávamos no TO do CTIG a 25 de Abril de 74 e que entregámos o território. Sinto-me quase na obrigação de pedir desculpa por ter nascido mais tarde e, por isso, de lá estar no ano de 1974 e não antes.

Quanto à temática dos blindados no terreno. Nunca dei conta de tal e, à época da alegada aparição de viaturas blindadas, estávamos, precisamente, em Jemberém. O buraco a que se chamava quartel, era mesmo em cima de uma estrada que foi alcatroada e que ia até Cadique (isso eu sei) e diz-se que fazia ligação com a Guiné Conakry (isso eu não sei).

Mas blindados só se eram como os que alegadamente o Sadam teria no Iraque.

De facto, o pessoal até dizia que os ouvia o IN noite dentro a circular. Isto apesar de lhes explicar e demonstrar que aquilo que efectivamente escutavam, com maior nitidez durante a noite, como é óbvio, tratava-se, a final da maré a encher ou vazar no braço de mar que ia ter ou que vinha do Cacine e que se situava a cerca de 3 kms do aquartelamento.

Estou certo de que se tratava, mais de um mito "urbano". No mato nunca tal foi avistado.

Nem, posteriormente, em Bissau, ouvi a nenhum dos elementos do PAIGC com os quais contactei - por razões de passagem de testemunho da guarda ao Palácio do Governador e outras actividades de segurança na cidade - falar desse material de guerra.

Senão atentemos que, por exemplo, quando lhes foi entregue Gadamael, Cacine, Mansoa ou até mesmo Bissau, apareceu algum desse equipamento? Não seria de bom tom, se tivessem esses blindados, que os viessem apresentar? Parece-me que a resposta só pode ser que sim, que apareceriam com eles.

Então no relato do tal cubano [, Ramón Pérez Cabrera,] não se diz que se deram ao trabalho de resgatar o blindado inutilizado pela mina? Teriam lá também o reboque do ACP?

Num dos almoços do BART 6520/73, é que o meu Camarada Eiras (de Bragança e fur mil de transmissões da minha 3.ª CART) me recordou uma situação por ele vivida em Bissau, e que passo a relatar:
No quartel onde ele se encontrava colocado,  depois de termos regressado de Jemberém, e estando ele na parada,  acompanhado do seu adjunto também em Jemberém, o cabo das transmissões, foi abordado por dois elementos do PAIGC, e que lhes disseram de imediato: "Vocês estavam em Jemberém, não estavam?" A resposta não podia deixar de ser afirmativa.

Acontece que um desses elementos que até nem falava português, apenas o crioulo, disse através do outro que o cabo de transmissões, uma vez no cais de Jemberém, tinha tido a arma apontada à cabeça quando se encontrava em cima de uma Berliet - numa situação de reabastecimento e no transbordo da LDP (era só o que lá chegava).

Isto porque o nosso cabo de transmissões era facilmente reconhecido e identificável devido a umas malhas brancas que, aos 21 anos, já tinha no cabelo.

Concluíram dizendo que não dispararam nem nos atacaram ali, porque tiveram medo e não eram muitos, estavam a recrutar pouco. Afinal também tinham medo.

E estamos a falar de uma base importante na região, esta que eles tinham ali ao nosso lado. Que ao que se dizia até tinha hospital.

E cubanos também, meu caro Pereira da Costa. Sendo certo que entendo perfeitamente o que dizes e a vossa posição. E, pessoalmente, agradeço pelo 25 de Abril. Apesar dos níveis de adrenalina a que aquela terra, a guerra e o embrulhanço nos levavam, não podíamos manter a situação por muito mais tempo. Por esse andar já lá tinha ido o meu filho e um dia deste ia o meu neto. Não!

Concluindo: blindados nem vê-los. Estávamos à espera que entrassem por ali dentro e levassem as três fiadas de arame farpado que por lá tínhamos. Mas não.

Um grande abraço para todos e continuo a partilhar e a concordar com as opiniões expendidas nos textos (as quais já tive oportunidade de escutar atentamente e de viva voz) do nosso camarada e amigo AMM (*).

Joaquim Sabido


Uma das raras fotos de viaturas blindadas, alegadamente ao
ao serviço do PAIGC no final da guerra. Foto (pormenor) do
Arquivo Mário Pino de Andrade / Casa Comum /
Fundação Mário «Soares.
 Clicar aqui para ver o original
2. Comentário do nosso editor LG (*):

No Arquivo Amílcar Cabral, tratado e disponibilizado para o grande público pela Fundação Mário Soares, no portal Casa Comum, não há qualquer referência a viaturas blindadas entregues pelos russos no porto de Conacri... Estamos a falar de 10 mil documentos, que abrangem todo o período da guerra de "libertação",,,

Até finais de 1971, a ex-União Soviética só fornecia armas automáticas, RPG 7, munições, fardamento, medicamentos e coisas assim... E mesmo assim era preciso negociar com o "ciumento" Sekou Touré... que não perdoava a Amílcar Cabral o crescente prestígio e protagonismo a nível internacional e o leque de alianças e apoios (que ia da Suécia à China)...

Felizmente para nós, parte do armamento e das munições deviam ser "obsoletos"... São os próprios e "insuspeitos" cubanos que dizem que 40% das granadas lançadas contra Copá em janeiro de 1974 não rebentavam!... (As culpas tanto podiam ser dos fabricantes como, mais provavelmente, das condições de transporte, armazenamento e operação).

BRDM para o Amílcar Cabral? Devem ser fantasias dos burocratas da 2.ª Rep, para justificar o seu ordenado ao fim do mês e as horas de tédio (e de algum cagufe) passadas em Bissau... A gente sabe como funcionava a nossa "intelligentsia" na Guiné, incluindo os "broncos" da PIDE/DGS... que tinham a 4.ª classe mal tirada...

O PAIGC nunca teve, ao que parece, este tipo de veículos... Os russos terão oferecido, em 1969, 10 BRDM-1 (5 toneladas e meia + 4 tripulantes e depósito de 150 litros de gasolina)... "Sucata" que o Sekou Touré poderá ter disponibilizado, depois da morte de Amílcar Cabral, aos homens do PAIGC... que ele precisava de controlar... Mas aquela viatura devia gastar 100 aos 100!...

Como é que vocês queriam vê-la a passar o "arco de triunfo" em Bissau? Ou a passar a ferro as 3 fiadas de arame farpado de Jemberém?

Quanto às BRMD-2 (versão posterior, melhorada, 7 a 8 toneladas!), era muito menos provável que os guerrilheiros do PAIGC alguma vez lhes tenham posto a vista em cima... a não ser, já reformados, em 1998, quando a Ucrânia ofereceu à Guiné-Bissau quatro veículos desses, se calhar a cair de podres... É que até a caridade tem um preço!

Angola teve 50 destes veículos, mas já em plena guerra da chamada "2.ª independência"... E Angola tinha petróleo e diamantes, contrariamente à pátria de Amílcar Cabral...

O BRMD-2 era um "besta" de 7 a 8 toneladas, com uma tripulação de 4 elementos (condutor, adjunto, comandante apontador de metralhadora pesada...) e um depósito de 290 litros de gasolina, 5,75 metros de comprido, 2 metralhadoras (uma pesada e outra ligeira)... Onde é que o PAIGC tinha gente com unhas para manobrar um "anfíbio" destes? E sobretudo logística? E depois era um alvo fácil para a nossa aviação...

Ler aqui mais dobre o BRDM-2 (em inglês):

(...) O BRDM-2 (Boyevaya Razvedyvatelnaya Dozornaya Mashina, Боевая Разведывательная Дозорная Машина, literally "Combat Reconnaissance/Patrol Vehicle"[5]) is an amphibious armoured patrol car used by Russia and the former Soviet Union. It was also known under the designations BTR-40PB, BTR-40P-2 and GAZ 41-08. This vehicle, like many other Soviet designs, has been exported extensively and is in use in at least 38 countries. It was intended to replace the earlier BRDM-1, compared to which it had improved amphibious capabilities and better armament. (...)
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Nota do editor:

16 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16309: Controvérsias (131): Blindados do PAIGC ? Quem os viu de ver e não de ouvir ?... (António Martins de Matos, ex-tenente pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje ten gen pilav ref)

sábado, 16 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16309: Controvérsias (131): Blindados do PAIGC ? Quem os viu de ver e não de ouvir ?... (António Martins de Matos, ex-tenente pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje ten gen pilav ref)

1. Mensagem de António Martins de Matos  [ex-tenente pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje ten gen pilav ref; membro da nossa Tabanca Grande]

Data: 10 de julho de 2016 às 16:03
Assunto: Blindados

Caro amigo:

Vi ontem no canal Memória da RTP a repetição de um episódio do Joaquim Furtado, onde refere a cerimónia da "Independência da Guiné", ocorrida na área libertada do Boé (dizem eles), no Boé da vizinha Guiné-Conacri (digo eu).

Nesse filme aparecem 2 viaturas de transporte de pessoal acompanhando o desfile das forças em parada.

Farto das conversas sobre Migs, (que sim, que não, que talvez…) e porque penso que, até agora, nunca se falou sobre a estória dos blindados PAIGC, talvez seja a altura de abordar o assunto.

Para inicio do tema, já sabemos que "alguém" lhes deu o diesel e um outro "alguém" lhes forneceu os mapas, (tudo pessoal amigo), aqui deixo o repto.

Blindados PAIGC:

Desde quando? Que tipo? Armados? Só para transporte de pessoal?

Empregues onde?

Quem os viu em operações? VIU DE VER e não de ouvir, que ruídos na noite... propagam-se facilmente (moro a 6 quilómetros do aeroporto de Lisboa e, de noite, oiço o C-130 da FAP a pôr em marcha)

Abraços
AMM


2. Comentário do editor:

António, obrigado pela tua sugestão. Boa sugestão de verão, em que é preciso continuar a alimentar o blogue, apesar da modorra e preguicite aguda que nos dá nesta estação do ano...

Na realidade, pouco se tem escrito, aqui,  sobre as tais viaturas blindadas do PAIGC.  Há uma ou outra referência.  Tudo indica que o PAIGC já as tivesse, no final da guerra, estacionadas do outro lado da fronteira (na Guiné-Conacri)... Teria uma ou a outra à experiência, e para "tuga ver" ou "sueco ver".... O problema devia ser a falta de unhas para as conduzir e manobrar... Terão sido usadas (mal) contra Copá (em 7/1/1974) e em Bedanda (em 31/3/1974).n Em Copá custou a vida aio comandante das forças atacantes, Mamadu Cassambá.

O alf mil António Graça de Abreu e o asp mil Miguel 
Champalimaud,  do CAOP1,  em janeiro de 1974, 
no aeroporto de Cufar.  Foto de A, Graça de Abreu (2012)
Uma dessas referências, às famosas viaturas blindadas do PAIGC,  é do nosso amigo e camarada (e grã-tabanqueiro de longa data) António Graça de Abreu, ex-al mil,  CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74).

Ele estava perto, em Cufar, quando Bedanda foi atacada, em 31 de março de 1974,  com morteiros 120 mm, foguetões 122 mm, RPG2 e RPG7, armas automáticas e outras armas pesadas em duas viaturas blindadas do tipo autometralhadora:


(...) Cufar, 3 de Abril de 1974

A guerra está feia. Bedanda embrulhou durante todo o dia, um ataque tremendo, doze horas consecutivas de fogo. A festa só acabou à noite com uma espécie de cerco à povoação levado a cabo pelos homens do PAIGC.

Em Cufar, tão próximo, além de distinguirmos nitidamente as rajadas de metralhadora de mistura com os rebentamentos dos RPG, foguetões e canhão, à noite viam-se as balas tracejantes e as explosões no ar.

Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda. Existe uma estrada que vem da Guiné-Conacry, passa junto a Guileje – abandonada pela tropa portuguesa, – entra pela região do Cantanhez e termina em Bedanda. O IN está a utilizar esse percurso para deslocar camiões carregados com todo o tipo de armamento, em seguida é só despejar sobre os aquartelamentos portugueses mais expostos e fáceis de alcançar, como Chugué, Caboxanque, Cobumba, Bedanda, Cadique e Jemberém.

Bedanda é uma povoação grande, a maior do sul da Guiné depois de Catió. Terá uns cinco mil habitantes e ontem já se falava em abandonar o aquartelamento. A população africana saiu da vila, ficando por próximo.

Bedanda levou com mais de sessenta foguetões e centenas e centenas de granadas de RPG, morteiro e canhão sem recuo. Foi medonho, há muita coisa destruída, mas tiveram sorte, contam-se apenas dois feridos, um furriel e um negro que levou um tiro nas costas. A tropa passou mais de doze horas metida nas valas.

Espera-se novo ataque a Bedanda. As NT já foram remuniciadas e há promessa de se enviarem mais militares para defender a terra. Os guerrilheiros também devem ter ido descansar e reabastecer-se.

Todas estas flagelações, apesar de serem destinadas aos vizinhos do lado, deixam marcas em todos nós. São horas, dias, meses a ouvir continuamente o atroar dos canhões da guerra. Eu ando um bocado desconexo, excitado, “apanhado”. Quase não tenho dormido, são as sensações finais, o cansaço, o desamor à mistura com o alvoroço do regresso a casa. (...)

Fonte: António Graça de Abreu, Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007,  p.  220. (**) [Imagem da capa do livro, à direita]


Há um comentário ao Poste P9375 (*) do nosso leitor António Rodrigues (, de Vila Real, e que se apresenta como alferes mil, colocado em Bedanda naquela altura, e a quem convidadamos para "dar a cara" e um dia destes se sentar aqui connosco, à sombra do poilão da Tabanca Grande):

Caros camaradas: Estava colocado em Bedanda aquando do ataque com viaturas blindadas, onde era alferes miliciano. As viaturas com que fomos atacados eram as BTR 152 (soviéticas), equipadas com metralhadoras. A sua quase entrada no perímetro deveu-se ao facto de elas terem atacado a partir da zona onde se situavam as tabancas da população civil e isso impedir que quer as "bazookas" quer os canhões sem recuo [tenham ripostado]. Abraços, António Rodrigues.


Outro António Rodrigues, mas, esse, nosso grã-tabanqueiro, registado, e um dos bravos de Copá, ex-sold cond auto da 1ª CCAV / BCAV 8323 ( Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Buruntuma, 1973/74), autor da notável série "Memórias de Copá" (de que se publicaram pelo menos 6 postes), escreveu aqui o seguinte (**)

(...) Ora nós em Copá, no dia 7 para 8 de Janeiro de 74, enfrentámos o assalto do PAIGC ao nosso aquartelamento, precisamente com dois blindados, um dos quais chegou a entrar dentro do aquartelamento e nós na altura, só com 27 homens (bazucas uma) e muita sorte, lá os conseguimos repelir.

(...) Soube recentemente, através de uma pessoa que se deslocou à Guiné e a Copá e falou com os guerrilheiros da altura, que lhe disseram que, durante os combates na noite de 7 para 8 de Janeiro de 74, com carros de combate do PAIGC, lhes matamos o comandante que os comandava nessa noite. E a minha conclusão é que esta foi mais uma razão para eles retirarem ao fim de 01,10 horas e assim termos escapado a uma quase eminente captura. (...) .


Ramón Pérez Cabrera, em "La historia cubana en África: 1963-1991: pilares del socialismo en Cuba" (edição de 2005), tem um capítulo sobre a guerra na Guiné (pp. 135-184) e a participação  dos "internacionalistas" cubanos.

A Op Abel Djassi [, nome de guerra de Amílcar Cabral], na sua 2ª fase (época seca de 1973/74) é descrita com detalhe: o início da operação começa justamente a 3/1/1974, com  a ofensiva contra Copá, por intermédio de forças de infantaria e artilharia, "apoiadas por quatro blindados (...) BTR".

O comandante das FARP era Mamadu Cassamba que, "tripulando um dos BTR, penetrou temerariamente na instalação militar"... Teve o azar do seu BTR  acionar uma mina A/C que lhe causou a morte instantânea. As forças do PAIGC conseguiram resgatar o veículo e, dentro dele, o cadáver do seu comandante.

Uma das raras fotos de viaturas blindadas, alegadamente ao
ao serviço do PAIGC no final da guerra. Foto (pormenor) do
Arquivo Mário Pino de Andrade / Casa Comum /
Fundação Mário «Soares. Clicar aqui para ver o original.
  

Face a esta grande contrariedade, o comandante da Frente Leste, Paulo Correia, mandou suspender os assaltos com a infantaria, continuando com as flagelações da artilharia, durante todo o mês de janeiro, até que as NT, como é sabido, abandonam Copá em 12/13 de fevereiro  de 1974, por ordem do Com-Chefe.

Nesta 2ª fase da Op Djassi (a primeira tem a ver como os três G - Guidaje, Guileje e Gadamael, maio / junho de 1973, ainda no tempo do Spínola), Ramon Pérez Cabrera diz que participaram "14 internacionalistas cubanos", um dos quais, um jovem oficial que tinha partido de Cuba por via aérea em 13/12/1973, e que vai  encontrar a morte nas imediações de Copá (ou de Canquelifá ?),  às 8 da manhã do dia 8 (ou 7 ?) de janeiro de 1974, surpreendido por tropas portuguesas.

O seu corpo terá do  "levado para Buruntuma", mutilado e exumado, diz Ramón Pérez Cabrera.   [Tratar-se-ia, quanto a nós,  da mesma emboscada em que terá sido apanhado vivo, o caboverdiano Jaime Mota, 1940-1974, alegadamente executado depois. Ramón Maestre Infante terá sido o último dos 9 internacionalistas cubanos a morrer na "guerra de liberación" da Guiné-Bissau. Enfim, mais um caso para alimentar a nossa série Controvérsias (***)], e o nosso Jorge Araújo vai, por certo, querer explorar, ele que agora tem em mãos o "dossiê médicos cubanos"..


Excerto de: Ramón Pérez Caberra - "La historia cubana en África: 1963-1991: pilares del socialismo en Cuba" (edição de 2005), p. 1979 [Com a devida vénia...Sublinhados nossos]  [Extensas partes do livro podem ser consultadas, em modo de pré-visualização, no portal da Kilibro]
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Notas do editor:

(*) 20 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9375: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (5): ): "Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda [, em 31 de março de 1974]"...

(**) 23 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 – P7320: Controvérsias (111): Copá: Quero aqui repor a verdade dos factos! (António Rodrigues, ex-Soldado Condutor Auto do BCAV 8323)

Vd. também postes de:

4 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15327: Louvores e condecorações (10): Os bravos Copá, da 1ª C/BCAV 8323/73, que resistiram durante mais de um mês ao cerco do PAIGC

7 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14128: Memórias de Copá (3): Janeiro de 1974 (António Rodrigues, ex-sold cond auto, 1ª CCAV / BCAV 8323, Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Buruntuma, 11973/74)

(...) 7 de janeiro de 1974: o dia mais infernal por que já passei

(...) Novo ataque às 23h50 junto ao arame farpado, com apoio de viatura blindadas e artilharia... Mas Copá resistiu!

E as viaturas encaminhavam-se a toda a força na direcção de Copá e cerca das 23 horas e 50 minutos tudo parou e o ruído deixou de se ouvir, (a falta de iluminação facilitou-lhes as manobras e a instalação à vontade de todo o seu dispositivo) e ficamos na expectativa à espera de mais um momento terrível daquela noite e o meu pressentimento veio a concretizar-se, era exactamente meia noite e dez minutos quando se ouviu o já típico rebentamento que dava início aos ataques do inimigo.
Aí teve início mais uma hora e cinco minutos horrorosos, infernais e terríveis de enfrentar, aí o inimigo estava 10 metros à nossa frente e trazia uma táctica que estava muito bem montada, tinha junto ao arame farpado 3 secções, separadas alguns metros, o que lhe permitiu fazer fogo de armas ligeiras ininterruptamente durante 1 hora e 5 minutos, porque o fazia por secções e quando uma estivesse sem munições a outra estava já preparada para disparar e assim sucessivamente, mas para além destas secções de homens armados de metralhadoras tinham um auto-blindado (tipo ZIG Russo) junto a uma das secções a apoiá-la com os disparos do seu canhão e na retaguarda destas secções tinham toda a artilharia com que nos tinham atacado durante a tarde, esta encontrava-se a cerca de 1 Km também apoiada por outro auto-blindado do mesmo tipo. (...)

(***) Último poste da série > 8 de março de  2016 > Guiné 63/74 - P15832: Controvérsias (130): O "nosso Cabo Miliciano", que em 1965 ganhava 90 escudos de pré (34,24 euros, hoje), fazendo o serviço de sargento... (Mário Gaspar)