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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10946: Do Ninho D'Águia até África (44): O Canjura andava farto de guerra (Tony Borié)

1. Quadragésimo quarto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 12 de Janeiro de 2013:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (44)




O Canjura não era o Canjura Turé, esse era milícia e ajudava os militares, servindo de guia tradutor, era só o Canjura e andava farto de guerra, mesmo farto.

O Canjura era um africano já com uma certa idade, que andava por ali, ajudava nas obras do aquartelamento, por lá comia e andava vestido com a roupa que lhe dava o Cifra e outros militares. Fazia recados, quando era preciso limpar alguma zona, ou qualquer trabalho que não envolvesse muita força física, o Canjura era chamado. O Cifra acredita que todos os aquartelamentos no interior tinham o seu “Canjura”. Quando não ia dormir à sua morança, que estava em muito mau estado, pois não era sua mas de alguém que “foi no mato” e a abandonou, tendo o Canjura tomado posse dela, dormia debaixo de alguma viatura militar que estivesse a jeito no aquartelamento em obras.

Sabia o nome de quase todos os militares do Agrupamento a que o Cifra pertencia, pois foram dos primeiros a ocuparem o novo aquartelamento, fazia a saudação, colocando-se em sentido antes de falar, não importava que fosse soldado ou coronel, aquilo já era um vício, podia ver o Cifra dez vezes por dia, que fazia sempre a saudação, embora o Cifra lhe dissesse por um milhão de vezes para parar com aquilo, pois todos gostavam dele sem saudação, mas ele não ouvia. Perguntavam-lhe a idade e não sabia, onde nasceu e não sabia, se tinha família e não sabia, mas via-se a aflição no seu rosto, demonstrando sempre algum desespero com receio que o mandassem embora do aquartelamento, talvez já o tivessem mandado embora de outros locais. Andava farto de guerra e de fugir, isso era o que dizia ao Cifra, dizendo também que queria morrer em “chão balanta”, nem que fosse com um tiro ou numa explosão de uma granada de morteiro, mas queria ficar em “chão balanta”. Muitas vezes, quando lhe davam um cigarro, ria-se e aceitava, também aceitava cerveja e café. Na altura da refeição, lá estava à espera, às vezes com outros africanos, ele próprio controlando e não deixando ninguém avançar sem o Arroz com Pão, que era o cabo do rancho, dar ordem.


O Canjura era popular no aquartelamento, todos sabiam o seu nome e lhe davam roupa, botas, cigarros. Quando alguém não queria qualquer coisa, dizia-se: -
Dá ao Canjura!.

Às vezes andava melhor vestido que muitos militares. Um dia, nunca se soube quem mas desconfiava-se que tivesse sido alguém do comando do Batalhão de Artilharia “Águias Negras”, que estava estacionado no aquartelamento, nas instalações recuperadas do que tinha sido um antigo convento de padres de uma ordem religiosa francesa, o vestiu a rigor, com umas divisas de major, brilhantes, novas a luzir nos seus ombros. Era uma cópia, imitando o tal major “Petinga”, que era o oficial de operações especiais do Agrupamento, a que o Cifra pertencia, o tal que tinha dado uma enorme bofetada num prisioneiro, com as mãos amarradas, que caiu no chão desamparado, só porque este lhe disse que queria ser tratado como prisioneiro de guerra, e fizeram, talvez a troco de qualquer promessa de cigarros ou outra coisa qualquer, o bom do Canjura ir ao gabinete do tal major “Petinga”, bater à porta e apresentar-se, em sentido, com uma perfeita saudação.

Calculem a fúria do major ao abrir a porta do seu gabinete e deparar com o bom do Canjura, vestido tal e qual, parecendo mesmo uma cópia do major “Petinga”!
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10927: Do Ninho D'Águia até África (43): Lodo e tarrafo (Tony Borié)

sábado, 12 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10927: Do Ninho D'Águia até África (43): Lodo e tarrafo (Tony Borié)

1. Quadragésimo terceiro episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 8 de Janeiro de 2013:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (43)




A manhã não estava muito quente, regressavam de tomar banho nos três furos de água que havia a sul do aquartelamento, de onde vinha uma água quente, mesmo muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa parecida. Traziam já o cigarro “três vintes” na boca, e o Curvas, alto e refilão, dizia ao Cifra:
- Tu não sabes o que é guerra, cala-te, tu és “tropa fandanga, tropa manhosa”, gostava de te ver a atravessar uma zona de lodo e tarrafo, sempre com o coração nas mãos, à espera de uma emboscada!

O Cifra ouvia e nada dizia, pois sabia que era verdade.

O Setúbal, acrescenta:
- Tenho mais medo de caminhar no lodo do que, às vezes, enfrentar uma emboscada, tens que caminhar, direito e sempre com todos os sentidos de alerta e equilíbrio, pois se cais, e não vai mais do que um companheiro a teu lado, é um grande problema para saíres, quanto mais força fazes, mais te enterras, e o companheiro que vem até a ti para te ajudar, se também se enterra, então é um desastre, tem que ser alguém a estender-te algo a que te possas agarrar para que aos poucos te vás safando. Então, nossa querida G-3, mais todo o equipamento que carregamos, fica com o dobro do peso. Quando se tem o azar de cair, é melhor não haver contacto físico, a maldita lama parece que tem cola, quando colocas o pé e o enterras na lama, ao tirá-lo, faz vácuo e quando se tenta mover os pés, fazemos muito mais esforço do que o normal, daí um substancial cansaço, e se não se tem os cinco sentidos apurados, entramos em pânico.


O Cifra continuava a ouvir, e compreendia que aquilo era verdade. E o Curvas, tirando o cigarro da boca, continuava:
- E não te quero dizer nada do que sucederia se ficasses enterrado na lama e a maré começasse a encher, depois logo a seguir à lama vem o maldito tarrafo, que é toda aquela vegetação, seca por baixo e verdejante por cima, que quando a maré está cheia, vista de longe é muito linda, mas quando não há água, até mete medo. Vem logo a seguir à lama, e temos que ter força para o atravessarmos, sempre arredando para o lado aquela vegetação tinhosa, cheia de mosquitos, e dizem que é lá que se metem os crocodilos.

E logo o Setúbal, fala mais alto, e diz:
- Também não exageres, pois eu nunca vi nenhum, mas depois a maldita lama entranhada no camuflado, com as minhas botas rotas, onde entra água e toda a porcaria, é um sacrifício caminhar. Quando vai o alferes da companhia de intervenção, e não quer parar, sempre com aquela voz fininha: “vamos, vamos, que se faz noite”, parece tal e qual as gajas que à sexta-feira apareciam na minha aldeia para fazerem “uma geral”.


O Cifa continuava a ouvir, e ia dizer que era verdade, mas o Curvas, alto e refilão, logo lhe dizia:
- Cala-te, essas mãos e essas unhas nunca sentiram uma G-3 com o cano em brasa e tu desesperado para dares mais fogo, não teres mais balas, portanto és “tropa rafeira, tropa fandanga, tropa manhosa”.

Entretanto chegaram ao dormitório, atiraram o resto cigarro para o chão, entraram ouviram o Trinta e Seis, baixo e forte na estatura, gritar para o Curvas, alto e refilão:
- Porra, estava à vossa espera para ir-mos ao café, pois já sabes, se chegas tarde, o Arroz com Pão, que era o cabo do rancho, fica pior que estragado, e ficas sem comer até ao meio dia.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10911: Do Ninho D'Águia até África (42): O Cifra encontra um inimigo (Tony Borié)

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10911: Do Ninho D'Águia até África (42): O Cifra encontra um inimigo (Tony Borié)

1. Quadragésimo segundo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (42)


O Cifra, quando da sua instrução básica, num quartel da província, e ainda se chamava Tó d’Agar, no seu último dia de instrução já tinha guia de marcha para se deslocar, ao outro dia, para um quartel nos arredores da capital, mas nessa última noite passada nesse quartel, na formatura do recolher, um militar, primeiro cabo, que já fazia de sargento de dia, pois estava à espera de promoção a furriel, tinha umas divisas parecidas com as de furriel miliciano, mas não era miliciano, era um primeiro cabo, que devia ter assistido a um curso, que lhe daria a promoção ao posto imediato, fez de todos os militares presentes no quartel, nessa formatura de recolher, “gato e sapato”, como se costuma dizer.


Mandava pôr em sentido, chamava pelo número e vinha ver se era a pessoa, pedindo a identificação, enfrentava-a com cara de mau, mas ridícula, pois fazia rir a pessoa com quem falava, depois dava uma volta em seu redor, revistava o cabelo, a barba, a farda, os emblemas limpos, as botas engraxadas e depois passava um raspanete agressivo, mesmo sem motivo.
Isto tudo na parada e numa formatura de recolher, portanto à noite, prolongando-a por mais de uma hora, pois fazia os militares ficarem em sentido, às vezes por cinco minutos. Às tantas, alguns mais atrevidos, começaram a mandar “bocas”, como por exemplo, “queres promoção”, “cabrão”, “lateiro”, “toma lá disto”, “filho da p...”, e mais uns tantos nomes que envergonhavam qualquer um. Falavam de uma ponta da formação, e quando ele corria a ver quem era, logo outro chamava da outra ponta, fazendo rir toda a formatura. O homem queria mandar, tinha mesmo sede de mandar, e com os seus excessos, tornou-se ridículo. Talvez tivesse sido treinado para isso.

O tempo passou, e estando o Cifra sentado no patamar de cimento, em frente ao centro cripto, no aquartelamento de Mansoa, a olhar o horizonte, a pensar na sua aldeia em Portugal, esperando que alguma mensagem viesse do centro de transmissões, ouve um barulho. Levanta os olhos e vê chegar umas tantas viaturas com tropas novas. Levanta-se, fecha a porta do centro cripto e vai ver se vinha alguém da sua zona em Portugal, dando de repente de caras com o tal primeiro cabo, que só era mesmo primeiro cabo.

Primeiro, olhou bem, sim era ele, pois usava óculos graduados, depois fez tal e qual como ele lhe fez na parada do tal quartel na província em Portugal, deu uma volta em seu redor, e depois certificando-se que era a mesma pessoa, e vendo as divisas de, só, primeiro cabo, disse-lhe, tirando o cigarro três vintes da boca:
- O que é que passou? Eras comandante.

O homem, não perdendo a compostura, encara o Cifra, e pergunta:
- De que é que o nosso cabo, está a falar?
- Olha, de uma noite miserável que me fizeste passar num quartel da província, em Portugal.

Ele, então baixa um pouco os olhos, e diz:
- Eu sei, não és só tu que me tem dito isso, fui treinado e instruído para isso, e essa noite era uma das provas da minha promoção, não fui muito feliz e castigaram-me, não me promoveram, e tenho sorte em ser primeiro cabo, porque depois disso já fui castigado outra vez, por assuntos que não gosto de lembrar. Agora estou aqui, com estas divisas, e tenho que provar mais alguma coisa. Olha, por favor ajuda-me, onde posso beber água? Isto aqui é difícil? Onde é que vamos dormir?

O Cifra não sabia onde é que iam dormir, mas guiou-o o melhor que pôde, e também lhe disse que não tinha que provar nada, tinha mas era que tentar sobreviver e deu-lhe todo o apoio que era possível durante o tempo em que esteve em Mansoa. Também lhe explicou que às vezes, depois da hora do recolher, os guerrilheiros costumavam dar tiros e atacar o aquartelamento com granadas de morteiro, e que nessa altura estávamos todos unidos para nos proteger, pelo que não havia recolher nenhum. Desejou-lhe a maior sorte do mundo, pois foi para uma zona de combate, como tantos outros.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10900: Do Ninho D'Águia até África (41): Outra vez, a menina Teresa (Tony Borié)

sábado, 5 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10900: Do Ninho D'Águia até África (41): Outra vez, a menina Teresa (Tony Borié)

1. Quadragésimo primeiro episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (41)



O Cifra andava envergonhado com o que diziam no aquartelamento a respeito da sua dignidade, andava, como as pessoas dizem, “em baixo”, dava a impressão que tinha perdido o primeiro combate, não no conflito em que estava envolvido, porque todos os antigos combatentes e não só, já sabem que o Cifra era um razoável militar, mas um fraco, mesmo fraco guerreiro, estava era cansado de procurar uma solução para satisfazer a encomenda da menina Teresa, em Portugal, a tal costureira, que já tinha passado dos cinquentas, que escrevia as cartas ao Cifra, que a sua mãe Joana notava, e que pediu uma certa encomenda ao Cifra, para lhe levar da Guiné, que os amigos antigos combatentes, e não só, já sabem do que se trata, pois o Cifra já explicou em relatos anteriores, mas para os que não se lembram, era um “Falo”, ou seja um “Phallus”, ou mais propriamente um “Pénis” em madeira de ébano preta, que ela dizia que era para lhe dar melhor sorte na vida, e não se esquecem que a menina Teresa, também mandava na referida carta uma nota do Banco Portugal de vinte escudos para despesas, e como havia um marceneiro, que vivia entre a vila de Mansoa e a tabanca, que existia perto do aquartelamento com casas cobertas de colmo, perto da estrada, que naquele tempo não era mais que um carreiro, que seguia para Mansabá, o Cifra entendeu, numa última tentativa, que esse tal marceneiro talvez lhe resolvesse o problema da encomenda, pois já tinha esgotado todas as suas tentativas para encontrar o referido objecto, com o tamanho e características que a menina Teresa explicava.


O Cifra, podia ter começado este texto a falar de qualquer coisa, ou até, dar-lhe um qualquer título só para desviar a atenção, mas não, tem que desabafar nesta linguagem, que não é muito própria, é mais uma linguagem do tipo Curvas, alto e refilão, mas é uma cópia do que se passou, e com toda a certeza que vão compreender, pois na verdade a intenção do Cifra, era falar dessa vergonha, "tirar este peso, que é a menina Teresa, de cima de si", que este sim, devia de ser o verdadeiro título para este texto, e contar as peripécias porque passou para encontrar o tal objecto, que era um “pénis” em madeira de ébano preta. O Cifra vai só contar algumas das peripécias porque passou, na sua procura, armado em “FBI”, pois quando vinha à capital da província, no carro dos doentes, dava sempre uma fugida ao mercado, e tentava fazer-se compreender a alguns “Gilas”, que vendiam peças de arte em madeira de ébano preta, e como não o compreendiam ele fazia alguns gestos, que como devem compreender podiam ser considerados obscenos, pois colocava a mão nos seus órgãos genitais, a tentar fazer-se compreender, e uma vez um “Gila”, até o olhou com olhos maliciosos. Por fim fez um desenho, com todas as características que a menina Teresa pedia, e andava com esse desenho no bolso, que por azar foi parar às mãos da lavadeira, no bolso dos calções, resultado, ela guardou-o, e veio entregar ao Cifra na frente do Pastilhas, também com um ar malicioso, que logo começou com provocações, nem sempre muito abonatórias para a dignidade do Cifra. Alguns, com menos tempo de estadia no aquartelamento, que não conheciam muito bem o Cifra, mas ouviam falar da história, até diziam:
- O Cifra, anda sempre na “tabanca”, no convívio com as “bajudas”, alguma coisa está a acontecer, pois agora procura um “Pénis”, de madeira de ébano preta.

Claro, depois o Cifra explicava tudo com a carta da menina Teresa, às vezes até mostrava os vinte escudos, o que na mente de alguns, que não sabiam ler muito bem, e “não tinham esperto no cabeça”, com uma atitude assim um pouco duvidosa, até diziam:
- O Cifra quer um caral.., daqueles dos pretos, e até dá vinte escudos, daqueles dos bons, do Banco de Portugal!


Uma vez o achinesado do Life Boy até lhe disse, com um sorriso um pouco malicioso, que o Cifra nunca soube se era por bem ou por mal:
- Então, já encontraste o teu caral.., preto?

Claro, isto não era muito abonatório para a dignidade do Cifra, que não era violento, pois era um razoável militar, mas um fraco, mesmo fraco guerreiro, e era uma pessoa que não respondia a uma provocação com outra provocação. Na verdade, ficava com vontade de lhe mandar um murro no seu focinho achinesado, mas com a ajuda do Curvas, alto e refilão, do Setúbal, do Mister Hóstia, do Marafado, do Trinta e Seis, do furriel miliciano que andava sempre a fumar um cigarro feito à mão, do Arroz com Pão, e do Sargento da messe, entre outros, acabava sempre, embora com algum argumento, por clarificar essas mentes, menos crentes na dignidade do Cifra, mas custou, pois até chegou ao ponto de, para mostrar a sua masculinidade, andar a passear pela vila, e vir ao cinema, ver aqueles filmes de cowboys e índios, na sede do clube de futebol, de braço dado, e às vezes fazendo carícias, com algumas “bajudas”, que mostravam o seu corpo quase nu, jovem e selvagem, com uma cara de uma tonalidade preta brilhante, bonita, com tons de chocolate, onde uns olhos, que não precisavam de qualquer pintura, pois eram bonitos e selvagens, mostravam tudo, até mistério, na cabeça traziam um lenço, que encobria uns cabelos penteados e com alguns desenhos, que não precisavam de perfume, pois já tinham o perfume natural, que era o odor da sua origem de africanas, que combinava perfeitamente com a sua beleza, trajando única e simplesmente um simples pano, com imagens de África, que as enrolava na cinta, mostrando um pouco do umbigo, e encobrindo uma pele brilhante e aveludada, que lhe vinha do ventre, onde se notava umas ancas, firmes e bonitas, e com a sua “mama firme”, que lhe dava um aspecto exótico e atraente.
Caminhavam, descalças, elegantes, quase em bicos de pés, com receio de calcar e molestar o “chão balanta”, onde nasceram, com algumas argolas servindo de enfeite, no pescoço, nos braços e nas pernas, andavam com o Cifra, mas com a devida autorização do seu pai, o “homem grande”, que confiava no Cifra, a quem chamava ”irmão”, mas que na verdade, essas “bajudas”, andavam trajadas assim, mas “não falavam mentira”, a sua boca ao pronunciar as palavras, eram um reflexo do que lhes ia no coração e na alma, eram humanas, sensíveis e carinhosas, e quando as vinha trazer de volta à tabanca, lhe agarravam nas mãos e lhe diziam, Cifra, “ca bai”, enquanto o seu pai, o “homem grande”, ia buscar um trago de aguardente de palma, dentro de um pequeno copo, feito da tal madeira de ébano preta, que a menina Teresa, queria o seu objecto, dizendo também, Cifra “ca bai”, dorme aqui, “no tabanca”!

Depois disto os comentários eram ao contrário, e tinha que suportar os assobios provocantes, e os piropos durante a sessão de cinema, pois ninguém tinha o mínimo interesse pelo filme, o importante eram as “bajudas” do Cifra, que na verdade não eram do Cifra, eram dessa Guiné um pouco selvagem e misteriosa, que naquela altura andava em guerra.

Em resumo, a menina Teresa, ao mandar os célebres vinte escudos, mostrou que “tinha esperto no cabeça”, pois comprometeu o Cifra, que não podia ignorar a encomenda, e como era ela que escrevia as cartas que a mãe Joana notava, sempre lá vinha num canto da carta, bem visível, a frase, “não te esqueças da minha encomenda”, “traz um, assim um pouco grandote”, “traz uma coisa que se veja”, “custe o que custar, compra e paga, se o dinheiro não chegar, depois eu faço as contas só contigo”, enfim, lembrava sempre.

Bem, mas continuando, o Cifra foi ver o tal marceneiro, na esperança de lhe resolver o problema que tinha entre mãos, que finalmente, depois de algumas perguntas sobre a dignidade e o sexo do Cifra, e também com um ar malicioso, acabou por aceitar a encomenda. O Cifra nunca soube onde é que ele foi procurar o modelo, pois executou um “Falo”, ou seja um “Phallus”, ou mais propriamente um “Pénis”, com uma perfeição digna de figurar num álbum de qualquer casa de arte, de Paris, Londres ou Nova Iorque, onde lá mais para a frente, quando o Cifra regressar a Portugal, contará a história da sua entrega à menina Teresa, que aí sim, foi mesmo “menina Teresa”, mas perdoem, o Cifra ainda anda envergonhado, mas já está melhor, pois está quase a "tirar este peso, que é a menina Teresa, de cima de mim", que este sim, devia ser o verdadeiro título para este texto, mas por agora, vai ficar-se por aqui.
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Nota de CV:

Vd. os últimos dez postes da série de:

1 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10743: Do Ninho D'Águia até África (31): O Movimento Nacional Feminino em Mansoa (Tony Borié)

4 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10759: Do Ninho D'Águia até África (32): Falsa notícia (Tony Borié)

8 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10773: Do Ninho D'Águia até África (33): O Grupo do Cifra (Tony Borié)

11 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10785: Do Ninho D'Águia até África (34): Aquela garotada (Tony Borié)

15 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10805: Do Ninho D'Águia até África (35): Boas Festas, camaradas amigos (Tony Borié)

18 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10816: Do Ninho D'Águia até África (36): O Life Boy (Tony Borié)

22 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10844: Do Ninho D'Águia até África (37): Os Vinte Escudos da menina Teresa (Tony Borié)

26 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10866: Do Ninho D'Águia até África (38): ...a guerra e o amor (Tony Borié)

29 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10876: Do Ninho D'Águia até África (39): Passa por mim em Mansoa (Tony Borié)

1 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10887: Do Ninho D'Águia até África (40): O arame farpado (Tony Borié)

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10887: Do Ninho D'Águia até África (40): O arame farpado (Tony Borié)

1. Quadragésimo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (40)
 

 O tempo ia passando, as obras no aquartelamento tinham algum progresso, havia restos de tudo, e por todo o lado era a barafunda do costume, já havia alguns postes de cimento, colocados na parte sul, com uma certa distância uns dos outros, alinhados, e continuavam a abrir buracos no chão, derrubando algumas árvores, os veículos militares começavam a chegar com rolos de arame farpado, feios, cheios de espetos, intimidativos e arrogantes.


Estava a começar a colocação do arame farpado nessa área, a verdade estava a vir ao de cima, estavam a começar a demarcar fronteiras, para lá do arame farpado era terreno proibido, talvez dos guerrilheiros, portanto do inimigo, para cá do arame farpado, era terreno conquistado, portanto, era nosso.


Era esta a verdade que o Cifra compreendia, não porque tivesse tido escola superior ou alguém o tivesse instruído nesse sentido, mas era a natureza das coisas, que o fazia compreender, e também se recordava dos livros com histórias aos quadradinhos, que o Carlos, filho do Santos dos Correios, que tinha vindo dos lados de Leiria, trazia e lhe dava, a troco de uma conta de multiplicar ou dividir, em que o Cifra, nessa altura o To d’Agar, lhe resolvia, e onde vinham histórias do Oeste americano, nas quais os rancheiros no Arizona, no Texas ou em Montana, demarcavam fronteiras com o maldito arame farpado, e já nesse tempo andavam aos tiros para resolver as questões de fronteira.

Ora nós, os militares, estávamos a demarcar fronteiras, esta era a realidade das coisas, sem talvez nos apercebermos de que estávamos a dar todo o terreno ao inimigo e a isolarmo-nos numa área cercada de arame farpado.
O Cifra também compreendia que não era bem este tipo de protecção que precisávamos, mas porquê então este isolamento? E logo com arame farpado?
Era sinal de que não estávamos num cenário livre. Enfim, neste caso, o arame farpado até foi útil, talvez só pela sua presença e intimidação, deverá ter evitado muitos confrontos, portanto, salvou muitas vidas, tanto nos guerrilheiros, como nos militares, oxalá que sim.


O Cifra nunca se sentiu seguro dentro do arame farpado, se tinha medo continuou a tê-lo, tentava não pensar no perigo, tentava sobreviver, arranjando sempre algo que lhe mantivesse a mente ocupada, por isso fumava, também bebia e andava pela aldeia com casas cobertas de colmo que existia perto do aquartelamento, onde não havia arame farpado. Havia pessoas que, embora vivessem numa profunda miséria, gostavam dele, o acarinhavam, o abraçavam, entre outras coisas, e que eram suas amigas, e lhe acariciavam as mãos, dizendo “ca bai”, quando se despedia.

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)   
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10876: Do Ninho D'Águia até África (39): Passa por mim em Mansoa (Tony Borié)

sábado, 29 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10876: Do Ninho D'Águia até África (39): Passa por mim em Mansoa (Tony Borié)

1. Mais episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, que retoma a sua actividade no seu aquartelamento.

Do Ninho D'Águia até África (39)


Já lá ia mais de ano e meio que vivia no aquartelamento em Mansoa, vamos descrever um dia normal do Cifra, que já conhecia o local e as pessoas.

Creio que este texto, fará relembrar todos os companheiros, que na mesma situação, estiveram ali estacionados. Embora estivesse rodeado de militares e equipamento bélico, o dia foi passado sem ataques ao aquartelamento, ou qualquer outro incidente, e estando de folga das suas tarefas, portanto cá vai.

Levanta-se mais ou menos pelas seis e meia, sete horas da manhã, que era quando alguns camaradas do pelotão de morteiros se preparavam para saírem em patrulha, não faz a cama, pois a partir de um certo tempo de estadia em cenário de guerra era um “desleixado”, como dizia o Trinta e Seis, mas diziam que dava sorte, deixando a cama por fazer, única e simplesmente fecha o mosquiteiro, veste os calções, coloca nos pés umas tamancas, que lhe fez o Mister Hóstia, com umas tábuas e uma tira de lona, que faziam de dobradiças de uma caixa de munições, coloca ao ombro o farrapo branco e encardido, que fazia de toalha, que em novo se chamava oficialmente toalha, e era feito de pano cru, pega na barra de sabão “Lifebuoy”, que tinha comprado ao achinesado “Life Boy”, mas que ficou a dever, pois só acertava contas no fim do mês quando recebia o “patacão”, mas apontou a lápis numa tábua de uma caixa de granadas que fazia de mesinha de cabeceira, pois o achinesado do “Life Boy” não era lá muito certo nas contas de fiado, pelo menos no parecer do “Marafado”, e encaminha-se para um local, na parte mais a sul do aquartelamento, onde tinham sido abertos três furos de água, que vinha quente, mesmo muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa parecida, e onde havia alguns bidões vazios de gasolina, gasóleo ou mesmo óleo, que tinham sido lavados e estavam já cheios dessa água, do dia anterior, e estava morna, onde o Cifra toma banho nu ao ar livre.


Uma vez aconteceu, àquela hora cedo da manhã, o Cifra ir lá tomar banho com outros companheiros, onde ia o Curvas, alto e refilão, aparecendo por lá os tais polícias que faziam interrogatórios, e se passeavam pelo aquartelamento, creio que nessa altura andavam a fiscalizar a instalação do arame farpado, e o Curvas, alto e refilão ao vê-los, chama-os, e com o seu ar agressivo, na sua linguagem, toca com as duas mãos nos seus órgãos genitais, e diz, numa voz, que quase se ouvia em todo o aquartelamento:
- Venham cá filhos da p..., interrogar o Cifra! O que vocês querem é disto, cabrões, cornudos, qualquer dia faço-vos a folha!

Os polícias, começaram a caminhar rápido, sempre encostados ao arame farpado, em direcção à saída do aquartelamento, talvez já tivessem conhecimento da pessoa que era o Curvas, alto e refilão.

Mas continuando com a narrativa, toma banho, regressa ao dormitório, por vezes vestia roupa lavada, outras não, calça as botas de lona, coloca um cigarro “três vintes” na boca e dirige-se à cozinha, onde o “Arroz com pão”, gravura ao lado, lhe dá uma caneca de café, sem açúcar, que tirava ao de cima, de uma enorme panela.

Senta-se cá fora, bebe o café e pensa como devia estar o tempo lá na sua aldeia em Portugal, naquela altura da primavera, com um sol brilhante, lindo e sem aquela humidade que naquele momento já se fazia sentir.

Enfim, com estes pensamentos, dirige-se à aldeia que existia próximo do aquartelamento, visita o tal africano que como sempre estava deitado na rede, e que fazia os tais cigarros especiais. O Cifra, levanta a mão e diz-lhe “olá”. Ele vendo o Cifra àquela hora da manhã, sem dizer nada vai dentro da “morança”, trás uma mão cheia de cigarros, de onde o Cifra tira dois, que não fumou, guardando-os para mais tarde.


Cá fora da morança, duas das suas mulheres tentavam arrumar alguma lenha (foto em cima com o Cifra no meio delas), passa pela vila, vai ao mercado (foto em baixo), ver os produtos que estavam para venda.


Já aqui falámos de outras vezes, viu os tais cães vadios, e os africanos, alguns quase nus, outros vestidos com uma vestimenta que tinha sido branca, há algum tempo atrás, diziam que eram “os Gilas”, que lhes cobria o corpo até aos pés, quase todos descalços, a falarem e sempre a mascarem algo, que cuspiam de vez em quando, sem repararem em ninguém, e sempre que encaravam com um militar, calavam-se, virando a cara para outro lado. Também havia mulheres com um balaio de qualquer coisa à cabeça, que equilibravam como se estivessem num circo, e crianças com o ranho no nariz e o dedo na boca, agarradas às pernas da mãe. O Cifra, que quase sempre andava com rebuçados no bolso, dava-os a essas crianças, que sempre que o encontravam se aproximavam dele, outras ainda bebés, amarradas com um pano largo às costas das mães. Quando choramingavam, as mães ouvindo o choro, passavam por baixo do braço uma das mamas para trás, para que o bebé se amamentasse e se calasse.
Seguidamente passa pela casa onde está uma espécie de câmara municipal e diz “olá” ao funcionário, que é seu amigo, também passa pelos correios e compra dois selos para colocar numas cartas que quer mandar com fotografias para os seus pais. Estes selos têm o formato de losangos e representam animais, são compridos, tendo de ser colocados no envelope, antes de escrever a direcção, pois ocupam muito espaço.
Vai em frente, passa pela loja do Libanês, para comprar rebuçados, não era porque precisasse, mas sempre via as filhas do Libanês (gravura em baixo), continua caminhando, e mais à frente, junto ao rio, onde estão algumas canoas, umas em terra seca, outras na água, são quase todas do Iafane, africano seu amigo, que lhe chama “irmão”, que faz o transporte de pessoas e bens, que vieram trazer os seus produtos, para vender no mercado ou na Casa Ultramarina. O Cifra reparou, que alguns desses africanos, quando viajam na canoa, vão nus, só colocando uma tanga, depois de as atracar.

Foi à sede do clube de futebol, deu dois dedos de conversa com o rapaz africano que servia no bar, muito educado, que já sabia qual a bebida preferida de quase todos os militares, ao qual tratava pelo nome, pois já os conhecia, mas que neste momento andava a varrer, com uma vassoura feita de ramos de alguns arbustos, cá fora, o chão térreo, levantando algum pó, portanto sujando mais do que limpava. Questionado pelo Cifra porque fazia tanto pó, ele respondeu que o “Homem Grande”, seu pai, lhe dizia que o pó e a lama faziam bem à pele e a protegia do sol. O Cifra, quando por vezes encontrava alguém que quisesse jogar às cartas, lá ia numa “sueca” ou numa “bisca lambida”, quase sempre na disputa de uma cerveja, até que chegava a hora de ir à “Bóia”, como dizia o saudoso cabo Bóia, que era a refeição do meio dia, que o Cifra, quase nunca comia, pois esperava pelo fim dela para ir visitar o sargento da messe, que sempre guardava qualquer coisa do almoço, e que sabia que o Cifra gostava.


Aí ficava por quase toda a tarde, ajudando nas contas ou simplesmente conversando, dava um cigarro dos especiais ao sargento da messe, guardando o outro. Quando já era um pouco mais fresco, quase no fim da tarde, que era quando os mosquitos apertavam mais, mas que pouca diferença já fazia, pois a pele do corpo já estava rija e curada, na companhia do Setúbal e do Curvas, alto e refilão, iam dar uma volta pela ponte e admirar o rio (foto em baixo), que adorava na altura da maré cheia, pois parecia o rio da vila a que a sua aldeia do vale do Ninho d’Aguia, pertencia, por altura do inverno quando a água das chuvas, vinda da montanha, o fazia transbordar e alagar os campos vizinhos.


O pôr do sol era um espectáculo lindo com o astro rei a brilhar sobre o manto de água reluzente, pois na sua superfície existia sempre uma camada de lama. Nessa altura fumavam o cigarro especial, entre os três, sentados na beira da ponte, e talvez por isso, o cenário se tornasse encantador, tal qual como se viam nas películas, que às vezes se exibiam na sede do clube de futebol.
Ao final, chegavam ao aquartelamento, passavam pela cozinha, onde o Cifra sempre roubava um naco de pão, sobre o olhar do “Arroz com pão”, que sabia que o Cifra fazia isso quase todos os dias, por isso tinha o pão, sempre no mesmo sítio, que era numa espécie de banca de cozinha, mas muito mal feita, com os restos de umas tantas caixas de munições, bebendo cada um uma cerveja, que já tinham trazido da messe dos sargentos, vinham para o dormitório, onde o Cifra ouvia as aventuras dos que tinham saído em patrulha, ou em alguma operação de destruição de bases inimigas, e adormecia, quase sempre tarde, quando o último terminava de falar, ou alguém deixava de ressonar.

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10866: Do Ninho D'Águia até África (38): ...a guerra e o amor (Tony Borié)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10866: Do Ninho D'Águia até África (38): ...a guerra e o amor (Tony Borié)

1. Trigésimo oitavo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, desta vez dedicado a um desafortunado ex-combatente americano.


Do Ninho D'Águia até África (38)


...a guerra e o amor!

Na nossa linguagem de antigos combatentes, falamos de guerra, de pormenores, do comandante que às vezes tinha cara de comandante, do capitão que era mais comandante que o próprio comandante, do alferes e do furriel, que também eram comandantes, do soldado, que alguns comandantes pensavam que não serviam para mais nada, senão para receber ordens do comandante, do soldado Curvas, alto e refilão, que tinha algum desprezo pela vida, pois não tinha família, que a sua mãe abandonou em criança, e diziam que andava “na vida”, e revoltado, não acatava ordens e queria mandar e devia ser general, e portanto também devia de ser comandante, às vezes também falamos de coisas sem qualquer importância, até pensamos que está tudo dito com respeito à guerra que nós antigos combatentes vivemos, e quando se começa a ler um texto sobre este assunto, dizemos:
- Lá vem outra história de guerra, que eu já estou farto de saber!

Sim é verdade. E é verdade também que quem faz as guerras entre países, não é o povo, são os dirigentes desses países, o povo ama-se e compreende-se, e quer paz, um tecto para se abrigar, roupa para se agasalhar, trabalho, comida na mesa, a educação e o bem estar dos seus, mas os governos geram conflitos, contando sempre com apoio do povo, que formam os seus exércitos, para os defenderem.

E depois quem defende esse povo, que defendeu esses dirigentes, que tomando decisões, não muito acertadas, e apoiando-se sempre, nesse mesmo povo que queria a paz, um tecto para se abrigar, roupa para se agasalhar, trabalho, comida na mesa, a educação e o bem estar dos seus?
Simplesmente, ninguém.

Podemos escrever um milhão de páginas, que o resultado é sempre o mesmo, o povo luta e sofre.

E só para terminar, pois todos estamos fartos de falar de guerra, vejam as fotografias deste casal, onde este jovem do povo, que queria paz, um tecto para se abrigar, roupa para se agasalhar, trabalho, comida na mesa, a educação e bem estar dos seus, é agora um dos muitos sobreviventes e estropiados da guerra.

Perdeu as pernas e parte dos braços numa guerra que o Cifra não quer dizer, mas os amigos, antigos combatentes, quase já identificaram, pois sabem a procedência do texto, que representa o verdadeiro amor, o juntar de corações, a procura de partilhar paixões, desgostos e gostos da vida.

Ela carrega-o às costas para a praia, ajuda-o na sua reabilitação, o abraça com ar de felicidade, e lhe deu o “SIM” ao selar o seu casamento, pois ele é o seu amor, e não tem culpa de não ter parte dos braços nem pernas. Foi uma vítima de ter estado num momento menos feliz, num cenário de guerra, mas apesar de lhe terem destruído parte do corpo, tem uma coisa que ninguém lhe destruiu, nem tão pouco roubou, que é o seu coração!

Digam lá, não é bonito?
Bom ANO DE 2013 para todos, do Cifra amigo, e já agora sem guerras!










(Texto e ilustrações: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10844: Do Ninho D'Águia até África (37): Os Vinte Escudos da menina Teresa (Tony Borié)

sábado, 22 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10844: Do Ninho D'Águia até África (37): Os Vinte Escudos da menina Teresa (Tony Borié)

1. Mais um episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, este dedicado a uma das suas personagens já nossa conhecida, a menina Teresa, uma descarada, dizemos nós.

Do Ninho D'Águia até África (37)
 




Já lá vai algum tempo em que o Cifra andava para contar esta história, mas sempre que começava não tinha coragem para a acabar, mas pensando melhor ela também faz parte das suas memórias de guerra, pois a protagonista era a pessoa que escrevia as cartas que a mãe Joana, mandava ao Cifra, quando estava na Guiné, mas antes pedia aos amigos antigos combatentes, e não só, que depois de lerem, dessem duas ou três gargalhadas, se por acaso acharem graça, e tiverem alguma saúde e disposição para o fazer, oxalá que sim, mas que não fossem mal intencionados, pois eu tenho quase a certeza que vão ser, portanto cá vai.

A menina Teresa, não sei se estão lembrados, era uma vizinha, costureira e solteira, de quase sessenta anos, que como sabia ler e escrever, entre outras coisas era a conselheira da família do Cifra, que nessa altura era o To d’Agar, na sua aldeia do vale do Ninho d’Águia. Era muito boa pessoa no dizer da mãe Joana, mas o pai Tónio, sempre que a via chegar, dizia:
- Lá vem o “pau de virar tripas”!

Tinha tido um namorado quando era nova, de nome Alberto, que trabalhava numa fábrica de ferragens na vila, diziam que era um artista, trabalhava na forja, e com uma lima e um martelo fazia qualquer peça de ferramenta. Namorou com ela uns anos, até diziam as más línguas que já faziam vida de casados, o que naquele tempo era um sacrilégio, mas o Alberto procurando melhor vida, emigrou para o Brasil, onde tinha uns tios, e sempre com promessas de amor eterno, um dia sai de Portugal, no vapor Serpa Pinto, pois o Cifra recorda-se do nome do vapor. Ela sempre dizia, com as mãos juntas e a cara virada ao céu com uma voz, que o pai Tónio dizia que era “estérica”:
- O meu amor Alberto foi para o Brasil, no vapor Serpa Pinto, e é esse vapor que me há-de levar para os seus braços!

O Cifra, que nessa altura era uma criança, e se chamava To d’Agar, andava por ali, descalço, com um “bibe” vestido, quase sempre com um bocado de broa nas mãos, às vezes mesmo uma côdea, e não sabia o que era o vapor Serpa Pinto, mas a mãe Joana explicou-lhe que era onde os “brasileiros” e “venezuelanos” vinham a Portugal, muito bem vestidos, com um fato branco, que chamavam “terno” ou “paletó”, uns sapatos com duas cores, que normalmente eram brancos e castanhos, ou brancos e pretos, dependia da época, e alguns anéis nos dedos, e com as faces rosadas e gordas, sinal de que estavam muito bem na vida. Ficavam hospedados na pensão da vila, faziam correr o boato de que procuravam esposa, e alguns pais, com muita dignidade, pois queriam ver as filhas bem casadas e com futuro, vinham quase oferecer, e se não ofereciam directamente, faziam chegar ao conhecimento desses potenciais maridos, por intermédio de outras pessoas, que as suas filhas eram umas donzelas, que sabiam cozinhar, lavar e engomar, e que podiam levá-las à confiança, no vapor Serpa Pinto, atravessar o oceano e irem para esses países tropicais, pois além de todas estas virtudes, estavam vacinadas, iriam saber dirigir as suas casas, darem-lhe muitos filhos, pois eram muito boas parideiras, e ficarem muito ricos.

Bem, vamos mas é continuar, pois estamos a tomar um rumo que não é o original, daqui a pouco estamos todos desencontrados e perdemos o fio à meada, portanto continuando, a menina Teresa, depois de uma crise de choro, com alguma baba e ranho, que lhe durou quase um mês, até receber a primeira carta, que veio mostrar à mãe Joana, lavada em lágrimas, com o selo do Brasil, e que guardou no peito, mesmo junto ao coração. Ficaram a cartear-se, aquilo era, carta lá carta cá, e a menina Teresa, sempre esperando o carteiro.

O Alberto, no Brasil, trabalhava como um desalmado para arranjar dinheiro, pôr casa e mandar ir a menina Teresa, que era o grande amor da sua vida. Só que, na Baía, que era onde moravam os seus tios, logo na casa a seguir à que vivia, morava uma “baiana”, morena, cabelos negros, soltos e caídos, sempre com uma flor, descalça, selvagem, andava quase sempre com o mínimo de roupa no corpo, não usava roupa interior, talvez por causa do calor, tinha um perfume que o Alberto não sabia se era do seu próprio corpo ou era mesmo perfume, nunca tinha imaginado que existisse um aroma assim, provocativa, que ainda por cima tocava viola e cantava canções de amor entre outras coisas, com uma voz meiga, sedutora, procurando carinho, talvez mais qualquer coisa, na varanda, mesmo a provocar o Alberto que chegava do trabalho cansado. Aquela rapariga, bonita “baiana”, de nome Solange, sempre que o via chegar a casa, acenava-lhe da varanda, só com uma saia curta, que nem era saia nem era nada, aquilo era um farrapo de pano muito justo em alguns locais do seu corpo e largos em outros, onde fazia sobressair toda a sua beleza, uma camisa sem mangas, aberta na frente, mostrando ainda mais, tudo com que o Criador a contemplou, lhe dizia, com uma voz amorosa e quase cantando:
- Meu bem, qué tomá um sumo de maracujá, qué?. Tá fresquinho, meu bem! Senta um pouquinho aqui, que está gostoso, tá? Você é bonito Português, mi dá um carinho, tá?

Pronto, o Alberto passado dois meses já falava com sotaque brasileiro, bebia maracujá, comia farofa e uns salgadinhos, para si uma cerveja era “um chôpo”, e quando via a Solange, dizia:
- Meu bem, você está gostosa, que gostusura de minina, tá! Seu corpo se rebola, que perfume, você me põe louco, não dá para pensá, não! Tou perdido por você, me dá seu carinho, meu bem!

E depois de olhar o seu corpo esbelto e selvagem, dizia baixinho, e só para si:
- Como pode o pessoau, viver no Portugau? Qui bágunça, tá! 

E não se lembrava mais da menina Teresa, que até já começava a ter uma espécie de bigode, que a cabeleireira, quando vinha fazer a permanente na vila, lhe colocava um produto que tinha vindo de França, que, como já sabem de relatos anteriores, até cheirava mal, e que lhe fazia desaparecer o bigode por uns tempos, que agora passava dias e dias atormentando-se, esperando o carteiro, e nada. Os dias, semanas, meses e anos foram passando e já passava dos cinquenta, estava quase nos sessenta anos esperando o carteiro. Ia à vila arranjar a permanente, e pouco mais, já tinha o cabelo “grizalho”, estava a ficar magra, e sempre com uma cara de amargura, dizendo que não tinha sorte.

Já chega de pormenores, agora vamos ao assunto principal, a menina Teresa, um dia ao escrever uma carta, que a mãe Joana, mandou para o Cifra, dizia mais ou menos isto:
- Meu querido filho, vou terminar, e que a bênção do céu te proteja, agora a menina Teresa, vai falar contigo, adeus meu filho.

Então a menina Teresa pedia na carta ao Cifra, se lhe podia trazer da Guiné, um “Falo” ou seja um “Phallus”, ou mais propriamente um “Pénis” em madeira de ébano preto, que era para dar boa sorte na sua vida, e mais à frente explicava o tamanho e tudo, com alguns pormenores que o Cifra não quer explicar, pois então sim, os seus amigos antigos combatentes, e não só, iriam mesmo pensar coisas que até eram, e depois dizia que se não o encontrasse, se o podia mandar fazer em algum artesão africano, pois tinha visto, quando ia à cabeleireira, fazer a sua permanente, numa revista francesa, que os faziam na África. Também mandava uma nota do Banco de Portugal, de vinte escudos, para a despesa.

O Cifra não vai contar mais nada, ainda se encontra na província da Guiné e não sabe o que lhe vai acontecer, pois apesar de ser um razoável militar, é um fraco guerreiro, mesmo muito fraco, e também, apesar de estar rodeado de arame farpado, e ter a protecção do Curvas, alto e refilão, do Setúbal, do Mister Hóstia, do Trinta e Seis, do Marafado e do Furriel Miliciano que anda sempre com um cigarro feito à mão na boca, o Pastilhas, o Arroz com Pão e o Sargento da Messe, que dizem que é burro, passe a expressão, sem falar no Comandante, mas só às vezes quando põe cara de comandante, só lhe dão trabalho e problemas, mas fiquem atentos, pois quando o Cifra chegar à sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, irão saber o final da história.

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10816: Do Ninho D'Águia até África (36): O Life Boy (Tony Borié)