Mostrar mensagens com a etiqueta Estado Novo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Estado Novo. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24925: Notas de leitura (1645): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte V: O colonialismo republicano, em oposição ao salazarismo, que se assumia sem complexos, e que de certo modo antecipava as tendências reformistas que levaram, em 1951, à revogação do Acto Colonial de 1930

Angola > "A Exma. Esposa  do Coronel Félix montada num búfalo-pacaça, que, minutos antes, ela própria abatera a tiro de rifle"  (Joaquim António da Silva Félix era ofcial do exército, coronel, industrial, agricuktir e publicista, dono da fazenda Glória.)

Fonte: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 8, janeiro e março de 1934, pág. 35.

Ilha da Madeira, vista geral do Funchal e da sua baía... "Fotografia  gentilmente cedida pela Casa da Madeira, Lisboa" (A Madeira também foi lugar de desterro... até aos anos 30.)

Fonte: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 8, janeiro e março de 1934, pág. 46.



Fonte: Boletim da SociedadeLuso-Africana do Rio de Janeiro, nº 10-11, agosto - dezembro de 1934, pág- 1984


1. O investigador brasileiro Marcelo, F. M. Assunção que fez uma tese de doutoramento sobre os 20 boletins da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, publicados ao longo década de 1930 (1931-1939), coincidindo com o triunfo da Ditadura Militar e do Estado Novo em Portugal, faz questão de sublinhar que, apesar do  seu "racismo culturalista", (...) "os republicanos na oposição ao salazarismo detinham uma visão mais progressista das relações entre metrópole e colônias do que a que existia na institucionalidade dos anos 30",  e anteciparam de algum modo  o "reformismo que ganhou força nos 50, com a revogação do Ato Colonial e as reformas estatuarias (mais vocabulares do que práticas) no contexto do pós-guerra e das guerras coloniais".  Recorde-se que com  a revisão constitucional de 1951 as colónias passaram a chamar-ser "províncias ultramarinas"... Mas o trabalho forçado só foi abolido por Adriano Moreira em 1961...

Enfim, um trabalho académico que merece uma leitura mais atenta e demorada, e não apenas a correr e em diagonal:


"(...) CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma tese não pode ser considerada o esgotamento do objeto e de suas múltiplas determinações, pois os problemas e respostas que levantamos são limitados por nossos recortes temporais e teórico-metodológicos. 

Como afirmamos em nossa introdução, o estudo do Boletim constitui apenas uma parte de um projeto maior de análise do colonialismo no seio das relações culturais luso-afro-brasileiras por meio de periódicos. A despeito dos limites dessa pesquisa, que serão adereçados posteriormente em uma pesquisa mais global, podemos destacar algumas especificidades sobre a relação entre o colonialismo e a produção de periódicos. 

O projeto colonial da Sociedade Luso Africana do Rio de Janeiro e de seus sócio correspondentes representa, apesar de suas diversas particularidades, um projeto mais amplo de dominação simbólica e material das colônias que na prática não se distancia tanto do projeto colonial salazarista.

As vertentes mais “humanistas” do colonialismo na prática não abdicavam da coerção e da integração forçada das populações nativas ao sistema colonial. As diferenças, como já reiteramos diversas vezes, não apagaram o projeto global de dominação e expropriação/coerção das diversas etnias. 

Entretanto, a modernização capitalista tão almejada pela intelligentsia republicana da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, em oposição ao modelo de austeridade e centralismo salazarista, diferenciavam-se em alguns termos, inclusive em seus instrumentos de análise do “outro” colonizado.  

A antropologia de viés cultural era muito mais dominante nessa intelligentsia do que uma antropologia mainstream de cunho biológico (a Escola do Porto). Por isso, não era arbitrária a presença de antropólogos e etnólogos brasileiros já críticos aos modelos racialistas de cunho biológico nas publicações do Boletim, invertendo o sinal negativo da presença do negro na cultura brasileira, e afirmando também a importância lusitana para o processo de “democratização racial” no Brasil.

A cultura imperial republicana, salazarista ou monárquica, era unânime na defesa da manutenção da presença do Império no ultramar. Colonizar e civilizar faziam parte de uma suposta essência portuguesa. Portugal, para esses intelectuais, precisava se “alimentar” continuadamente de “gentes exóticas” para realizar a sua essência, a “antropofagia lusitana”, como já disse um arguto antropólogo (THOMAZ, 2002: 144) (...)

Todavia, a suposta assimilação do exótico, tão explícita no ideário panlusitano, dava-se em um sentido “hierárquico” entre um “nós” lusitano da metrópole culturalmente superior e um “outro” que deveria chegar ou foi levado à “civilização”. A valorização do “mestiço”, cabo-verdiano ou brasileiro, no Boletim, não se dava exclusivamente porque a cultura negra começava a ser vista como um contributo para a sociedade lusitana, mas porque, na percepção destes intelectuais, os nativos foram culturalmente “civilizados” segundo os parâmetros europeus.

O racismo culturalista desta intelligentsia era, portanto, hierárquico, e o lusitano, uma espécie de “ser vocacionado” para o “sacrifício” da colonização.

A despeito disso, os republicanos na oposição ao salazarismo detinham uma visão mais progressista das relações entre metrópole e colônias do que a que existia na institucionalidade dos anos 30. Foram de certa forma uma vanguarda 'avant la lettre' do reformismo que ganhou força nos 50, com a revogação do Ato Colonial e as reformas estatuarias (mais vocabulares do que práticas) no contexto do pós-guerra e das guerras coloniais. 

Apesar de toda a sua retórica republicana ser de fato “paradoxal”, foi em decorrência desta onda conservadora que a Sociedade e sua intelligentsia foram perseguidos até a sua completa extinção em 1939, com o último número do Boletim." (#)

(#) Fonte: Considerações finais. In: ASSUNÇÃO, Marcelo, F. M. - A sociedade luso-africana do Rio de Janeiro (1930-1939): uma vertente do colonialismo português em terras brasileiras. 2017. 324 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017, pp. 276/277.


(Seleção, revisão e fixação de texo, negritos: LG) (com a devidfa vénia...)
____________

Nota do editor:

Postes anteriores da série: 



terça-feira, 28 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24893: Notas de leitura (1639): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte I: a voz dos colonialistas republicanos nostálgicos e exilados




Fonte: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 2. maio de 1932,  pág. 71


1. A Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro foi fundada a 22 de Maio de 1930.

Este boletim foi um dos primeiros projectos desta associação. O seu objetivo era   dar a conhecer aos portugueses do continente americano, e em especial do Brasil, as colónias portuguesas espalhadas pelo mundo. Tinha como subtítulo "Pela Raça, Pela Língua". 

(...) "A nossa bandeira cobre umna superfície de mais de dois milhões de quilómetros quadrados, onde gravitam 16.860.000  portugueses", dos quais 8,7 milhões "negros", 7 milhões de "brancos", 550 mil "índios", 450 mil "malaios" e 160 mil "amarelos" (sic).

Na realidade, a Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro era "a única associação dedicada exclusivamente à propaganda colonial portuguesa no Brasil" (Assunção, 2017, pág. 60) (#).  Além disso, " também congregava a especificidade de ser produzido por intelectuais republicanos exilados no Brasil, nostálgicos de um ideário 'republicano' de colonização que detinha como principal modelo as gestões de Norton de Matos em Angola (1912-14 e 1921-1924)." (Assunção, 2017,  pág. 59).(#)

Do Boletim publicaram-se 25 números  (alguns são números duplos),  de maio de 1931  (nº 1) a dezembro de 1939 (nº 25). Diretor: António de Sousa Amorim (um republicano, minhoto de Ponta de Lima, exilado no Brasil).

Velhos africanistas como o nosso camarada António Rosinha vão gostar de  o "folhear": está disponivel, em formato pdf e html, na Hemeroteca Digital, sítio da Hemeroteca Municipal de Lisboa (HML).

De entre os  colaboradores do Boletim, descortinámos, um pouco ao acaso, e numa leitura rápida de uma amostra, nomes conhecidos como Norton de Matos, Paiva Couceiro, Henrique Galvão, Manuel Teixeira Gomes, Sarmento Pimentel, Augusto Casimiro (1889-1967) (capitão de infantaria, herói da I Grande Guerra,  braço direito de Norton de Matos em Angola, cofundador da "Seara Nova"...), e outros (quase todos republicanos,  exilados e nostálgicos de um pretenso império que ia "do Minho a Timor", como defenderá mais tarde a propaganda estado-novista )... 

A linha político-ideológica é a do "nacionalismo imperial",  do "panlusitanismo"  e mas também do incipiente "luso-tropicalismo" (teorizado por Gilberto Freire, e rejeitado nos anos 30 e 40 pelo Estado Novo)... 

São termos usados por Marcelo Assunção, na sua tese de doutoramento em história pela Universidade Federal de Goiás, para caracterizar a linha editorial do Boletim e a orientação política da Sociedade,  cada vez mais em rota de colisão com o Estado Novo e a política colonial de Salazar.

A trajetória do Boletim passa por duas grandes fases, a da crítica velada (1931-1934) à repulsa ao salazarismo (1935-1939) (que são analisados no cap. II, da tese de doutoramento abaixo citada).

(...) No segundo momento (capítulo III), analisaremos o fenômeno do pan-nacionalismo (da Sociedade Luso-Africana e outras instituições e personagens do período) no quadro mais amplo dos pan-etnicismos, evidenciando as visões sobre o panlusitanismo/luso-brasilidade nas três primeiras décadas do século XX. 

Em seguida, perscrutaremos o panlusitanismo nos anos 30, sendo o Boletim o principal órgão de reprodução do ideário, seja através da sua visão do panlusitanismo como resposta a ascenção do imperialismo germânico e italiano, seja através da 'Cartilha Colonial', de Augusto Casimiro, a principal expressão da visão de mundo dos republicanos que publicam nesta. 

Em um terceiro momento (capítulo IV), trataremos do “republicanismo nostálgico” no Boletim a partir das distintas críticas ao modelo de gestão colonial do salazarismo (centralismo, trabalho forçado, arcaismo economico, etc.). 

Por fim, no capítulo V, analisaremos os “exotismos” construídos sobre o “outro” colonizado a partir da historiografia e dos estudos africanistas (etnologia e antropologia) publicados no Boletim." (... ) (Assunção, 2017, pág. 59).(#)

Há referências à Guiné, mas as estrelas do império (e as   que ocupam mais espaço no Boletim)  são, sem dúvida, Angola e Moçambique. Talvez valha a pena, numa próxima oportunidade, explorar essas referências, o que implica percorrer com atenção os 20 exemplares disponíveis. Destaque para já para o número especial do Boletim, dedicado à Exposição Colonial do Porto de 1934 (de que foi diretor Henrique Calvão).


Capa do nº especial dedicado à exposição colonial do Porto (1934). Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 9, abril-julho de 1934.
____________

(#) Vd. ASSUNÇÃO, Marcelo. F. M. - A sociedade luso-africana do Rio de Janeiro (1930-1939): uma vertente do colonialismo português em terras brasileiras. 2017. 324 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017. Disponível em formato pdf em: http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/6960 

Resumo:

Nosso objetivo principal nessa tese é analisar o projeto colonial da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, tendo como fonte primordial de estudo os vinte volumes do seu Boletim (1931-1939), como também os livros, cartilhas e outras produções oriundas dos membros da Sociedade. 

Para realizar esse intento, num primeiro momento (capítulo I) analisamos as condições de emergência do “nacionalismo imperial” do qual o boletim é somente uma das expressões. 

Nos outros quatro capítulos, buscamos entender as diversas especificidades do Boletim. No capítulo II evidenciamos a trajetória da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro em suas duas grandes fases: da crítica velada ao salazarismo e a busca por uma grande “coalização panlusa” (1931-1934) até a repulsa ao Estado Novo dos últimos anos (1935-1939), apreendendo essas transformações a partir de diversas fontes, mas primordialmente através dos editoriais do Boletim. 

No III capítulo buscamos explorar os sentidos políticos do “panlusitanismo” no seio do contexto mais global dos “pan-etnicismos”, abordando também a partir do boletim e da obra “Cartilha Colonial”, de Augusto Casimiro” o discurso panlusitano. A frente, no capítulo IV, fizemos uma análise do projeto colonial dos gestores militares republicanos e sócio-correspondentes da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, dando ênfase as críticas que estes faziam às práticas coloniais do salazarismo e o espelhamento idealizado no “modelo Norton de Matos”. 

Por fim, no capítulo V, perscrutamos as relações entre a historiografia do colonialismo e os estudos africanistas com um ideário de “vocação imperial” tão presente no saber colonial hegemônico nos anos 30. 

Em suma, o exame destes discursos permitem visualizar no seio do Boletim, e das publicações da Sociedade, a particularidade do colonialismo republicano em meio à hegemonia política salazarista nos anos 30. Estes irão ser uma vanguarda do reformismo colonial que só ganha força nos anos 50. A derrota do seu projeto nos anos 30 é uma expressão de que em tempos de Estados Novos a retórica “democrática” (mesmo que restrita ao discurso) não tinha espaço. 

Palavras-chave: Colonialismo, Republicanismo, Salazarismo, Panlusitanismo, Relações Luso-Afro-Brasileiras, Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro.

 https://repositorio.bc.ufg.br/tedeserver/api/core/bitstreams/082dfd1d-ce90-4507-9e4f-cae7720dc11b/content (Com a devida vénia...)

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24808: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (12): de Montemuro a Montmartre ou uma história de vida "casapiana"

 

"Bal du moulin de la Galette" (1876), do pintor francês Pierre-Auguste Renoir (1841–1919), uma das obras primas do impressionismo. O "Moulin de la Galette" ficava no bairro de Montmartre, Paris, onde se situava o estúdio do artista. Óleo sobre tela. Musée d'Orsay. Paris. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikimedia Commons.


Contos com mural ao fundo (12) > De Montemuro a Montmartre ou uma história de vida "casapiana"


por Luís Graça (*)



"Nascido no ano zero, 1945"... Lembro-me de tu teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira (e única) exposição de pintura, e logo  no SNI... Lembras-te do SNI, o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, nos Restauradores ?!

Lembras-te, dessa história, passada no já longínquo ano de 1967 ?!... Foi um sucesso, a minha "vernissage"... Os "meus padrinhos e mecenas" financiaram os comes e bebes. Ate meteu "foie gras", coisa que nunca tinha provado... 
E houve mesmo  umas críticas favoráveis em um ou dois jornais da capital. Para te ser franco,  acho que foi o único momento de glória na minha vida... 

Depois veio a ressaca, a descida à terra, a dura realidade... Éramos uns putos... Ainda pensámos em "dar o salto" até Paris, éramos os dois vagamente existencialistas, e ainda mais vagamente pacífistas  e anti-imperialistas (a guerra do Vietname estava  ao rubro e ninguém, na América, queria morrer pelo tio Sam; crescia a contestação) . 

Eu sonhava com Paris, Montmartre, a boémia e as copines das belas artes (o meu lado de mulherengo!), enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre e querias estudar filosofia, jornalismo ou sociologia, ou coisa parecida (na Sorbonne, que ficaria famosa um  ano depois, com o maio de 68) !... 

Eu estava quase a completar os meus vinte e dois anos, com a tropa à perna, mas sem a mais pequena consciência disso. Tinha-me esquecido completamente que, uns bons anos antes, fora à inspeção, tendo sido apurado para todo o serviço militar. Dei uma palmada na testa, quando tu me interpelaste : "E a tropa, pá ?!"... 

Tu eras ligeiramente mais novo, um ano e picos, mas com a mania da filosofia, da crítica literária, da poesia e do jornalismo, acho que eram esses os teus interesses na época.  Convidei-te para passares uns dias comigo, em Lisboa, por ocasião da montagem da minha primeira exposição de pintura. E, claro, escreveres o texto para o catálogo. 

Não conseguimos convencer o nosso "gestor de conta" (quem tinha  conta bancária nesse tempo?!) a financiar os nossos inconsistentes projetos de aventura. Ou melhor, só queríamos chegar a Paris, de comboio, à boleia, ou "a salto", o que desse mais jeito. Contámos os tostões. Quanto é que tu tinhas no bolso e no mealheiro ? Se calhar, bem menos do que eu...

E, quando descobriram a marosca, os meus "padrinhos e mecenas" de Lisboa, expulsaram-te de casa  (uma cena triste, confesso) e, a mim, cortaram-me a "mesada"... (Ficaram histéricos, ameaçaram até denunciar-me como se eu tivesse cometido,  ou estivesse à beira de cometer,  um crime hediondo!... E, na realidade, era,  na ótica deles, católicos,  conservadores e situacionista,  um "crime de lesa-pátria", e sobretudo um caso de simbólico parricídio e de inqualificável ingratidão!)

Foi nessa altura que eu te pus a dormir  na casa que a Flora partilhava com mais duas amigas, estudantes, no Campo Grande, em frente à feira popular... A Flora, a minha namorada, madeirense, estás recordado ?!, andava a tirar o curso de serviço social. (Aliás,  acabámos os dois por ir lá ficar uns dias enquanto não passou a zanga do meu "padrinho"; de resto, o andar do Campo Grande estava por conta da Flora e das amigas.)

Eu era mais corajoso (e, seguramente, mais inconsciente) do que tu, tens que admitir. Era artista e tu literato. Tu eras mais politizado e, sobretudo, mais pragmático do que eu:

– E os nossos pais ? – interrogavas-te tu. – E a PIDE à perna ? E a Guardia Civil espanhola antes de chegares aos Pirinéus?

E não te calavas, chamando-me à razão:

E os oito, nove ou dez contos de réis para dares ao passador ? E vais fazer o quê, em Paris? Trabalhar como maçon ? E dormir no bidonville? E comer baguettes com marmelada ?

Ano zero da idade atómica. 1945… Hiroshima. O cogumelo. O horror. Mas também o fim da guerra. Libération, gritavam  os parisienses, eufóricos, ainda em 1944. Para eles, era o fim do pesadelo da ocupação nazi e o início de uma nova era. O direito à esperança, ao sonho,  extensível à  nossa terra (pensavam alguns ingénuos), o recomeço da história da humanidade, etc., etc., blá-blá, blá-blá...  (
Mas ainda não fora dessa que o Salazar cairia da cadeira.)

As palavras eram tuas, escritas  no meu catálogo (exceto a referência ao Salazar, como é óbvio, o Salazar era tabu!)...   Até estava bonito e original, o catálogo ... não estava ?! ...Original,  "subversivo", no mínimo, provocador... Com o  teu treino de jornalista, aprendeste a  escrever nas entrelinhas, e a cultivar o sarcasmo, a ironia, o "non-sense",  o humor negro, para iludir a vigilância dos censores da nossa praça (que só mais tarde vim a descobrir que eram da tropa,   coronéis na reserva ou na reforma)...

Uma exposição no SNI em 1967!... "A arte ao serviço da Nação"!... Que privilégio, ironizavas tu!... O SNI, o Secretariado Nacional de Informação (ou da Propaganda, emendavas tu, sarcástico) no Palácio Foz, nos Restauradores, criado pelo António Ferro... Tu até tinhas repugnância em lá entrar, sei que fizeste esse "enorme  sacrifício" por amizade...

Mas, em boa verdade, não havia borra-botas, aprendiz de artista,  que não quisesse expor no SNI naquela época!... Ora, um merdas como eu a expor no SNI!... Um casapiano, novato, serigrafista, sócio de uma cooperativa de artes gráficas, estudante de Belas-Artes, filho de pai incógnito, nascido nas faldas da serra de Montemuro, afilhado de um gajo do regime, aprendiz de pintor que sonhava ir para as belas-artes em Paris e pintar, ao ar livre, nas ruas de Montmartre, de boina preta, lenço de seda vermelho ao pescoço, e uma rosa na lapela, ao som de um acordeão... Sempre adorei o preto e o vermelho. E o som do acordeão. E as rosas. E as francesas (que começavam a aparecer em Lisboa, nos seus 2 cavalos, Citroën, que lindas, vaporosas, livres, provocantes!)...

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, o fim de uma época, o início de outra… Que ilusão, meu amigo, tu que me chamavas o Renoir de Montemuro, só por que eu já frequentava o 3º ano das Belas Artes, e tinha um "padrinho e mecenas", em Lisboa, que terá metido uma cunha, ao patrão do SNI, o dr. César Moreira Baptista, para eu poder fazer a minha primeira exposição no Palácio Foz, ali nos Restauradores…  (Mas o melhor, dizias tu, era a "Ginginha", ali ao lado, no Rossio, no Largo de São Domingos...)

Só por que eu fazia umas coisas démodées, vagamente impressionistas, com mais de meio século de atraso... Vagamente impressionistas, mas já a caminho do abstracionismo... Enfim, aprendiz de Renoir, talvez imitador da Vieira da Silva, de que só conhecia umas reproduções de má qualidade. 

Alguns amigos, como tu, faziam-me o favor de me incentivar, mostrando que eu tinha talento e até uma carreira de futuro à minha frente!... (Sim, ao nível da gravura, da água-forte, da serigrafia, acho que podia ter ido mais longe!...Ainda ganhei, confesso, uns tostões com as minhas gravuras, havia gentinha com dinheiro fresco que comprava tudo o que fosse obra de arte, naquela época, em que começou o frenezim de investir em arte e ganhar dinheiro... A começar pelos amigos do meu "padrinho e mecenas" de Lisboa, que conseguiu impingir alguns trabalhos meus a um ou outro colecionador; coitado, eu, casapiano, fui para ele o filho que ele nunca teve, mas o contrário infelizmente não era verdadeiro.)

Enfim, aprendiz de Renoir, aprendiz de pintor, isso, sim, podes escrever, que o sonho naquele tempo não pagava imposto!... E esse sonho começou Casa Pia: devo-lhes esse favor, aos mestres que me ensinaram os rudimentos  de desenho e pintura nas oficinas, que ficavam lá por detrás dos Jerónimos.... Ainda hoje estou grato à Casa Pia por me ter acolhido e educado. Mas lá também me faltou o amor  de pai, coisa que eu nunca tive na vida.

Claro, fiquei inchado que nem um peru de Natal quando entrei em Belas-Artes. Ainda dei essa alegria à minha querida mãezinha e aos meus pobres avós. Infelizmente, nunca cheguei a acabar  o curso, a tropa cortou-me as pernas. 

Na minha cédula pessoal, podia-se ler um nota a lápis já meio sumida. Letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre ou de conservador do registo civil. Qualquer coisa como "mais uma boca com direito a senha de racionamento". Milho, açúcar, farinha, azeite, café, etc., que tinha que se ir à vila de Cinfães buscar, serra abaixo, serra acima… Uma porrada de quilómetros a pé ou de burro... Ou então na loja do "Francês", na minha aldeia, tudo mais caro, porque aqui não havia concorrência...

Havia racionamento de géneros por causa da guerra, a II Guerra Mundial. Lembras-te ? Talvez não te lembres, nasceste já depois, em 47, não apanhaste esses tempos que foram duros para a minha mãe e os meus avós, e para todos os demais pobres da minha aldeia. Tu estavas muito mais perto da capital, no Oeste Estremenho, imagino que lá se vivia melhor, à beira-mar.

Nesse mesmo ano em que eu nasci, filho de mãe solteira e "de pai incógnito" (lá estava escarrapachada a infamante expressão, originando um estigma social que me perseguiu até ir para a tropa, ou me persegue ainda hoje!), acabava de regressar da Índia (da Índia portuguesa, como então se dizia, englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) o filho do "Francês", o cabo chefe ou regedor da aldeia e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 

Seria depois, esse filho do "Francês",  o primeiro rapaz da terra  a ir estudar para a Universidade. Casou-se no Porto, ainda estudante, teve um primeiro filho em 1947 ou 1948, o Gustavo.  E no Porto acabaria por estabelecer-se como advogado.

O "Francês" tinha uma pensão do ministério da guerra. Fora gaseado na Flandres. Regressara herói medalhado de La Lys. Admirava Pétain, Sidónio Pais, Gomes da Costa, Salazar e Franco. (Só não gostava dos "boches"...).  Vociferava contra "a corja dos republicanos e dos 'rojos' que tinham destruído a Espanha". Berrava, igualmente, contra a malta do "reviralho", os que eram contra a "situação", como então se dizia. Mas não havia malta do "contra", na minha aldeia, a não ser um pobre diabo, sem eira nem beira, que ficava na corte dos animais, e que era meio atolambado, sobrevivendo à custa de pequenos recados e fretes que ia fazendo, a este ou aquele, e que no largo da escola, onde se hasteava a bandeira nacional,  dava vivas à  República no dia 5 de Outubro!

O regedor era o meu... "padrinho de batismo"! Por favores que lhe deviam (e deferências que lhe prestavam) os meus avós e a minha pobre mãe!... Nunca soube quais. Nunca quis saber. Ou melhor, acabei por saber, ainda muito novo: havia quem na aldeia insinuasse que ele era o meu pai biológico... Na escola, chamavam-me "o filho do Francês", o "zorro", o filho bastardo... 

Nas aldeias, toda a gente sabe tudo (ou quase tudo) da vida de todos. Mas eu ia aos arames, cheguei a andar à porrada na defesa do bom nome da minha mãe e dos meus avós (que, coitados, eram mal vistos na aldeia pelo "pecado da filha").

A minha mãe tinha sido criada de lavoura na casa do "Francês", desde muita nova, ao longo dos anos da guerra... Solteira, menor, com 18 anos, apareceu grávida, teve-me a mim em agosto de 1945...Uma mulher, muito bonita, e sobretudo de enorme coragem  e capacidade de sofrimento, como muito poucas que conheci na vida: recusou-se a casar à pressa, só para salvar as aparências, não acatando o "prudente e caridoso conselho"  do padre de Cinfães ou de Resende (já não me lembro), que ainda era aparentado com os meus avós... 

O escândalo foi rapidamente abafado.  A minha mãe desapareceu das vistas da aldeia.   Por uns tempos refugiou- se na casa de uns parentes no concelho vizinho, Resende. Casaria, sim, mais tarde, "de livre vontade",  com um rapaz bastante mais novo, pastor de cabras, o "cabreiro", de quem teve mais filhos, meus meios-irmãos (com quem, de resto, pouco convivi, e  de quem perdi praticamente o rasto, lamento dizê-lo).

Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, passei a detestar as relações de clientelismo, dependência e nepotismo (e de hipocrisia) que vigoravam na minha terra, uma aldeia da serra de Montemuro, a meia encosta, uma aldeia de pastores e de rendeiros que não era muito diferente de tantas tabancas, fulas e balantas, por onde eu haveria de passar, depois, na Guiné…


Gostava que ainda chegasses a conhecer a minha aldeia, hoje completamente diferente e com pouca gente, muito menos nova, Não sei se terei coragem para lá levar-te. Disseste-me que de Candoz, no Marco, a que chamas a "tua tabanca", se via Cinfães, do outro lado do rio Douro, com a serra de Montemuro à tua frente... Em agosto, no teu "querido mês de agosto", quando vieres de férias,  bem poderemos lá dar um salto!…

Eu, confesso, que ainda gostaria de regressar, pela última vez antes de morrer, às minhas raízes telúricas, mas tenho uma relação de amor-ódio com a terra que me viu nascer, como deves imaginar.

Voltei lá uma meia-dúzia de vezes, se tanto, depois de regressar da Guiné, a última das quais, para enterrar a minha pobre mãe, nos anos 90... Morreu cedo coitada, de doença oncológica, com sessenta e poucos anos. E os seus filhos, meus meios-irmãos, muito mais novos do que eu, são-me completamente estranhos, conheci alguns de vista, no enterro da nossa mãe, mas já não seria capaz de os reconhecer se os encontrasse. Foram à vida, espalharam-se pelo mundo. Tal como eu, a partir dos 10 anos.

Havia sempre festa na aldeia quando um filho regressava das colónias. No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. O filho mais velho e herdeiro do "Francês", estava a chegar em meados de 1945, no final da guerra, tinha eu uns escassos meses, e uma ama de leite, a minha mãe ficara sem peito, talvez devido a depressão pós-parto e ao alarido social  que provocara a sua gravidez de rapariga solteira... Os meus avós maternos, com quem fui criado, é que me contaram  isso, mais tarde, quando eu já tinha entendimento para as coisas da vida e do mundo...

Quando puto, imagina!, ainda sonhei ser missionário, e ajudar a converter os pretinhos lá nas missões do Ultramar. Problemas de pulmões impediram-me de seguir essa vocação precoce.  Estás-me a imaginar de sotaina branca,  longas barbas pretas e óculos de tartaruga,  não estás ?! E acabar, mártir e santo, frito no caldeirão de uma tribo de canibais! Ah!, como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!... 


Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça, por certo o padre, a catequista ou a professora, o pregador da quaresma que vinha de fora... Ou o até próprio regedor... Mas a serra de Montemuro, que abarca Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire e Lamego, deu muita gente para as colónias, as missões e, depois, para a guerra, mas também para a emigração. Eu próprio estava longe de imaginar, no verão de 1967, que um ano e tal depois estaria a desembarcar em Bissau... como combatente!

No início de 45, quando nasci, os tempos ainda eram bem duros. Escondia-se, na serra, nas fragas, nas minas de água, o milho, o centeio, os cabritos e os anhos, dos fiscais do Governo. Como sempre se escondera o pão (e o gado), da vista de todos os invasores,  usurpadores e bandidos. Contavam os meus avós, maternos, esses com quem vivi até ir para a Casa Pia, em 1955, depois de feita a 4ª classe com distinção. 

Mesmo assim fazia-se festa rija quando os nossos rapazes regressavam das guerras do Ultramar, ou alguém, mais raramente, voltava do Brasil... para construir casa e casar!...

O foguetório não era como hoje, em que se gastam rios de dinheiro... Nesse tempo era um luxo. Lançavam-se uns petardos. Pólvora seca. Não havia dinheiro para nada. Só no São João, que era a festa anual do concelho. Era a altura em que se fazia algum graveto. Os cabritos e os anhos do São João ajudavam a compor o magro orçamento das gentes da minha aldeia, incluindo os meus avós.  Não havia dinheiro, pura e simplesmente. Não me recordo,  até aos meus dez anos, de ver uma nota de 20, 50, muito menos de 100 escudos. Só tostões, pretos, encardidos como as mãos, sebentas e rugosas, daquela gente. 

Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro. Os cabritos e os anhos. Ou até nos barcos rabelos, embarcados no ancoradouro de Porto Antigo. À boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido. Ainda não havia as barragens, e o Douro era belo, puro, duro e selvagem, com um percurso cheio de cachões… Hoje está completamente amansado, como tu bem sabes, e já aqui não chegam a lampreia e o sável.

O "Francês", meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. O homem mais rico da aldeia, dono de casas e terras  compradas ao desbarato na crise dos ano 30 e 40.  Era, além disso, negociante de gado arouquês, com clientes no Porto e até em Lisboa Mas antes  ganhara muito dinheiro no garimpo e no contrabando do volfrâmio, com um sócio, seu antigo camarada de armas, a quem também chamavam "Francês", o "Francès de Moncorvo", por ter andado na guerra e ser natural daquela terra transmontana.


Tinha fama de ser violento8 e andava sempre armado, o meu padrinho. Os caminhos da serra não eram seguros na época. Percorria os concelhos à volta, de Resende a Castro Daire, numa velha camioneta Ford. Foi o primeiro a ter transporte automóvel. 

Além disso, era o dono da única mercearia da aldeia, com um anexo, misto de café e tasco, onde se podia ouvir a Emissora Nacional, através do único rádio existente ali nas redondezas… Vendia a fiado. E ele próprio era o "carteiro" e  lias cartas e os telegramas para os analfabetos.  

Não havia luz elétrica, nem muito menos ainda a barragem do Carrapatelo, mas ele já tinha gerador... Ia lá a casa o povoléu, parolo,  para ver (e, de olhos arregalados,  benzer-se!...) aquela máquina que "parecia coisa do demo", que transformava a noite em dia...E tinha também o único telefone da aldeia... 

Por todas estas razões, mais o rol dos fiados, era o homem mais importante, mais poderoso e sobretudo temido e venerado da aldeia... Todos, de uma maneira ou doutra, lhe deviam favores e precisavam dele...

Ainda por cima, dava-se bem com a gente graúda de fora: por exemplo, um tal "mandjor" de Porto Antigo, que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto, e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época, a nível do distrito de Viseu. Não sei, nunca o conheci, nem posso confirmar.

Ao que parece, a esposa desse tal  major, a "Fidalga", mandava cartas diretamente ao Salazar, contava a minha mãe, a pobre da minha mãe, sempre atenta a (e não menos temerosa de) os fios com que se costurava a manta do poder.

Nem por isso o meu padrinho, que era militante da União Nacional (coisa que eu não sabia o que queria dizer), e amigo dos presidentes das câmaras da região e do governador civil do Porto, metera uma cunha para livrar o filho da tropa, durante a II Guerra Mundial. Honra lhe seja feita!... O rapaz esteve em Goa, como expedicionário, com muito orgulho do pai e maior mágoa da mãe (a quem chamávamos a "Madama", com reverência e despeito, para mais sendo de fora).

Ele, o meu padrinho de batismo, sempre teve um grande carinho por mim. Ou, talvez melhor,  algum discreto  carinho por mim: chegava a beijar-me na testa, mas nunca em público. Aos 10 anos deixei de o ver... Ele, o padre, a professora da escola primária e os meus avós arranjaram maneira de me mandar para a Casa Pia em Lisboa, para "estudar e aprender um ofício "... (Ainda pensaram no seminário, mas ficava mal a um futuro padre ter sido concebido "em pecado".)

E foi em Lisboa que arranjei (ou me arranjaram, já não sei como ) uns novos "padrinhos", um casal sem filhos, que me "adotou" e me "protegeu" até à minha ida para a tropa..., e que tu chegaste a conhecer na sua casa, em  Benfica.

Ao fim de semana, eu saía da Casa Pia, em Belém, apanhava o elétrico,  e ia ficar na casa deles, uma vivenda, em Benfica, perto do jardim zoológico. Depois de fazer o 5º ano, aos 16 anos, passei a viver com eles, fiz o liceu e matriculei-me nas Belas-Artes. Ele era um quadro superior do Ministério das Corporações e Previdência Social. Sempre o tratei cerimoniosamente como "padrinho". Nunca houve adoção legal, porque eu já não tinha idade para isso.

Já doente, com setenta e tal anos, o meu outro padrinho, o da terra natal, o de batismo (meu hipotético pai biológico!),  soube da minha partida para África em finais de 1968, depois de eu ter chumbado em Belas-Artes, por ser cábula e andar na má vida. 

Eu nunca lhe pedira nada, nem ele nunca me dera nada, nem sequer o tradicional folar da Páscoa que qualquer padrinho, mesmo pobretana, oferece a um afilhado. E muito menos lhe iria pedir agora que me safasse de ir parar à Guiné. Sempre tive o meu orgulho. Inclusive proibi a minha mãe e os meus avós, ainda vivos, de o fazerem por mim. Nem ele era homem para aceitar um pedido desses,  mais do que humilhante, inconcebível, para ambos. Nem sequer ao "padrinho" de Lisboa eu meti qualquer cunha (a não ser a entrada no SNI, mas isso foi até iniciativa dele, se bem recordo a esta dostância).

Tal como o "Francês" (nunca o tratei pela alcunha!, era "sua benção, padrinho" e pouco mais, sentia-me inibido na sua presença), eu tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada, enfim, da coerência. Coisas que hoje não vejo ser valorizadas pelos mais novos, por exemplo os meus filhos e sobrinhos.

Quando voltei da Guiné, evacuado, no 2º semestre de 1970, ele já tinha morrido, de um AVC isquémico. Ele e o Salazar ( que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente, mas de quem era um admirador acérrimo e acrítico).

O seu maior desgosto era um dos netos que devia seguir as peugadas do pai (como te disse, advogado no Porto, e meu putativo irmão, mais velho)... Numas férias de verão, em meados dos anos 60, o Gustavo ficou em Londres a lavar pratos. No final desse ano já estava na Suécia, em Lund, aclamado como "herói", por ter fugido à guerra colonial... Fazia 18 anos, era dois anos e picos mais novo do que eu, já tinha dado o nome para a tropa.

Terá sido considerado  refratário pelas autoridades militares.  Como estava a estudar na Faculdade de Direito de Coimbra, já no 2º ano, beneficiava do adiamento da data de incorporação, tal como eu, de resto. Aproveitou para dar o "salto", numa viagem de intercâmbio universitário, segundo me constou. 

Eu sei que nessa época ninguém escapava à tropa e depois   à guerra, até filho de general era mobilizado  (era o que se dizia). Nunca conheci nenhum general,  mas imagino que, na pior das hipóteses, os filhos dos generais ficavam na guerra do ar condicionado: em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques… 

Nunca conheci nenhum, minto: conheci o Spínola (o Schulz já não o apanhei), mas não sei se ele tinha filhos em idade de ir para a tropa, julgo que nunca teve filhos.

O avô, o "Francês", pelo menos publicamente, viu na traição do neto uma desonra para a família (e para a terra, que considerava, abusivamente, uma extensão da família).
 
– Coimbra, a república dos estudantes jacobinos, dera-lhe a volta à cabeça  lamentava-se ele.

 Para mais era o seu neto querido, o mais ladino, o mais  vivaço, o mais parecido com ele.

– Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça –  concluía o meu padrinho, quando o fui visitar, nas minhas férias no verão de 1969.
 
 Sua bênção, padrinho   foram as primeiras palavras que lhe disse, desde há anos…

– Já o pai não prestava, era um fraco – arrematava  ele, entre dois ataques de tosse. 

– As melhoras, padrinho !– foram as últimas palavras que eu lhe dirigi… 

Julgo que eram sinceras, que nada tinham de cínico. (Mas como eu tanto gostaria de lhe poder chamar pai, se ele tivesse tido a coragem, nessa ocasião única, e irrepetível, de me chamar filho!...)

Puxou então de uma nota de 100 paus (!), e disse-me que era "para a viagem de regresso à Guiné, meu rapaz". Fiquei banzado, nunca me tinha dado nada, nem um rebuçado ou um pirolito... Quis recusar, mas ele sentiu-se ofendido...

Impressionou-me a sua decadência, a sua descida do pedestal, acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… A saúde a falhar, a família a desmoronar-se, a Pátria a esvanecer-se, o Império a ruir, a aldeia a minguar com a emigração… Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, que era para ele o coveiro do Estado Novo e do Império. 

Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois, respeitado, por certo,  mas não amado. Durante décadas fora pai, padrinho, cacique e patrão, um verdadeiro "capo", um "padre padrone" (como dizem os italianos), um cabo chefe de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal… que até então  pouco mudara,   apesar das mudanças de regime.

Gustavo, o neto do meu padrinho da aldeia, ainda me escrevera um dia para o SPM de Cacine.  Éramos amigos e, provavelmente parentes: eu podia ser tio dele, mas tinha desistido há muito da ação de investigação da paternidade "post mortem"!... (Mais por respeito pela memória da minhã mãe, tenho que o confessar; se por um lado, eu bem gostaria de ter um pai como toda a gente, por outro repugnava-me a ideia ter como meu progenitor o violador da minha mãe.)

Ou melhor, éramos "mais vizinhos do que amigos", eu e o Gustavo: tínhamos brincado juntos até aos 10 anos, a idade da inocência, nas férias de verão,  Ele estudara em colégio particular, e vivia em zona fina, na Foz, no Porto. Só quando entrou para a Universidade, é que se mudou para Coimbra. Não gostava da aldeia do avô e do pai, que achava terra de gente "parola". Mas ia lá algumas vezes, com os pais, nas férias grandes, no Natal e na Páscoa. De carro.

 Nessa altura (até eu entrar para a Casa Pia de Lisboa) brincávamos por entre as fragas que cercavam a aldeia. Havia aquela cumplicidade de putos, pesem embora as diferenças sociais e até de idade. Ele era o "menino", que comia ovos estrelados e bebia leite,  e eu o "catraio", alimentado a caldo e a broa... Nós, os putos da aldeia,  éramos a "canalha".

Agora, em Lund, na Suécia, militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer e angariava dinheiro para o PAIGC e para apoio aos "exilados políticos. refractários e desertores da guerra colonial". Dinheiro que, no caso do PAIGC, tanto servia para comprar livros e medicamentos como armas e munições, questionava-me eu. Irritou-me a sua missiva, cheia de metáforas, clichés, prosápia, slogans, frases pomposas, retiradas do livrinho vermelho do execrável camarada Mao. (Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo.)

As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC, algo quixotescas, guevaristas, românticas (inculcadas nas Belas Artes), desvaneceram-se com os imperativos da camaradagem na caserna e com a prova de fogo na frente de batalha, quando cheguei à Guiné. Não se podia objectivamente estar "do lado de cá", fardado de camuflado, e equipado com a G3, e ser-se um simpatizante, vagamente romântico, mesmo quixotesco, dos gajos do "outro lado de lá", daqueles que nos combatiam (e nós combatíamos)… E que feriam e matavam os nossos camaradas e a população que estava do "nosso lado".

Além disso, devo dizer-te, chocavam-me os métodos de terror usados pelo PAIGC contra os fulas (e os demais que não alinhavam com eles), quer na zona leste quer no sul (que também conheci)… Tinha alguns amigos guineenses, entre eles, fulas, guias, picadores e milícias, desde Nova Lamego até Bafatá, e depois em Cacine…

Nunca lhe respondi, ao Gustavo. Achava-o um puto mimado, egoísta, oportunista e provocador. Em suma, um cabrãozeco. Não me admirei de o vir a encontrar, depois do 25 de Abril, num dos partidos do arco do poder. Andará hoje por Bruxelas, segundo me disseram, assessor de um qualquer político da nossa praça, com assento no Parlamento Europeu ou funcionário na Comissão Europeia. Tinha-se casado com uma sueca. Mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. (Foram, por certo,  amores de verão.)

Confesso-te que, secretamente, ainda lhe cheguei a invejar a sorte, ele ali no bem bom da Suécia e das suecas louras, de olhos azuis, que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos…... E eu a gramar a pastilha de uma comissão de serviço militar na Guiné!... (Bolas, qual comissão!... Eu fui para um teatro de guerra!)

Achei que o mundo não era justo.  Mas mesmo assim não me podia queixar. Estava vivo. E os primeiros tempos, passados entre Piche, Nova Lamego e Bafatá, até nem foram maus de todo. Ainda fiz o gosto ao dedo e pintei alguns quadros, em acrílico, que até tiveram um ou outro comprador, a preço simbólico. Outros ofereci a gente conhecida e amiga, incluindo uma família de comerciantes libaneses cuja casa costumava frequentar, e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar. (Eram bonitas,  as libanesas.)

Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta, isto é, da aldeia de Montemuro. da Casa Pia, do bairro de Benfica e, depois, do leste da Guiné … Montmartre fora apenas uma miragem... Enfim, uma deceção, a minha vida!... Nunca me perdoei, de resto, ter estupidamente chumbado nas Belas-Artes e de ter sido chamado, prematuramente, para a tropa, acabando,  para azar meu,  nas matas e bolanhas da Guiné.

Nunca falei disto a ninguém, passei por uma grave crise existencial nos últimos meses da comissão, ainda tive, uma vez, uma única vez, depois de ter despejado uma garrafa de uísque, a pistola Walther apontada ao céu da boca. Senti a atração da morte, a vertigem do nada, a comiseração da autodestruição, a autopiedade, a autocompaixão... Mas, mesmo anestesiado, era demasiado cobardolas para resolver, com um tiro mortal, as minhas contradições "pequeno-burguesas" (dirias tu), agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, que tu  conheceste, no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, em 1967, a bela menina-família do Funchal, que estava a estudar serviço social, ali no Campo de Santana, em Lisboa, tinha-me trocado por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… Ainda trabalhara uns tempos na Misericórdia de Lisboa, num dos projectos de realojamento de população de um bairro de lata, antes de regressar à Madeira (creio que no Natal de 1969). 


Não esqueço a última carta que ela me mandou, de despedida, no início do ano de 1970 (já não posso precisar o mês), a dizer que ia para a Venezuela, para casar. (Estava já eu em Cacine, no sul da Guiné, sei que era a época das chuvas.) 

Era um encanto de miúda, delicadíssima como uma orquídea, linda de morrer, com pele de veludo e blusinhas de renda, que mal tapavam os seus deliciosos marmelos, mas com pouca ou nenhuma margem de decisão em relação à sua vida pessoal e sentimental.

O clã é sempre quem mais ordena. O pai, tanto quanto me apercebi, seria um homem do regime, da média ou média-alta burguesia funchalense, mas com problemas financeiras, por negócios, mal sucedidos, na área do import-export, bananas, frutas tropicais, flores, eletrodomésticos e coisas assim do género. Família numerosa, muitos manos, muita cagança e estaleca a menos. 

Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora. Nunca pensei, de resto, em pedir-lhe a mão. Muito menos depois de conhecer o paraíso da Guiné. Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão. Namorávamos apenas... Ou trocávamos cartas e aerogramas. Gostava da sua companhia e do seu perfume. E ela fora inclusive ao meu embarque, no Cais da Rocha Conde de Óbidos. Ficou chorosa, mas não de coração destroçado. (Foi aí que me convenci que ela nunca iria esperar por mim.)

Fiquei surpreendido quando um furriel de uma companhia madeirense, meu conhecido, por sinal do Funchal e das relações da família da Flora, e que sabia da nossa história, veio-me lembrar que seria bom decidir-me e pedir-lhe a mão em casamento, de acordo com os usos e costumes da terra... 

– Porque  há mais pretendentes na fila, à porta de casa!...  

Estávamos a comer umas ostras e a beber umas cerveja, numa esplanada em Bissau, talvez no "Pelicano", já não me lembro. Viera a uma consulta de estomatologia. Foi um choque. Fiquei engasgado. Não estava preparado para tomar nenhuma decisão, e muito menos naquela parte do mundo, no cu de Judas. Muito menos para decidir quem deveria ser a mãe dos meus filhos. 

Estava na Guiné, estava na guerra, sem saber o que fazer da minha vida, sem saber sequer se iria chegar à meta, que era cumprir a minha pena de 21/22 meses, de “perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”, a que fora condenado pelo único crime de ser português, natural de Cinfães, filho de mãe solteira, e de pai incógnito, o filho da puta que a violara… e que, cinicamente, se oferecera para ser o meu padrinho de batismo. 

No mínimo, a minha pequena grande ambição, e a única,  era chegar inteiro à meta, de novo ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, donde havia partido... Inteiro, de cabeça, tronco e membros, e com os tomates no sítio. Ainda tentei telefonar-lhe, à Flora, de  Bissau (fiquei lá uma noite nos correios à espera de ligação para o Funchal). Em vão. As ligações com a Madeira (e para a Metrópole) não eram fáceis. Desisti. Sempre fui, afinal, um merdas, um fraco, um falhado. Nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido com a minha encantadora namorada madeirense que, cansada de esperar, acabou por me trocar por ... um padeiro venezuelano rico! (Hoje não a condeno, nem sei  se está viva e é feliz; nenhuma mulher  ficava à espera de um gajo que ia para a Guiné e que,  se regressasse vivo, seria sempre um teso de um artista plástico!)

Já agora, e se ainda tiveres pachorra para me ouvir, conto-me o resto da história, já que me apanhas em maré-alta de (in)confidências...

Acabei, já em Lisboa, por não conseguir voltar a estudar  (não me perguntes porquê, não tinha cabeça ) e por tornar-me bancário (o primeiro emprego que arranjei, ali à mão, não longe da sétima colina, aonde tive a  sorte de descobrir umas águas-furtadas para morar). 

Infeliz, acabei também por me casar,   na primeira oportunidade, com uma galega de Orense, que vivia no bairro, e que nunca chegarás a conhecer, pela simples razão de que já fomos cada um à sua vida… É apenas a mãe dos meus dois filhos, um deles, o rapaz, a viver em Vigo, e cada vez mais galego como a mãe. (Ainda por cima foi ela que pediu o divórcio!, a minha ex, o que feriu o meu orgulho de pobre macho lusitano.)

Mas ainda antes de tudo isso , meu amigo,  já te devida ter falado do rol de desgraças que me aconteceram na Guiné. A descida aos infernos. A cafrealização, à maneira do Rimbaud, dirias tu. A porrada do segundo comandante no Gabu. A ida, por castigo, para o sul, para Cacine, em rendição individual. O tiro de Kalash que me mandou uns largos meses para o Hospital Militar da Estrela, e que me podia ter deixado tetraplégico.  Enfim, poupo-te os pormenores macabros, um dia contar-tos-ei, se ambos tivermos tempo e pachorra, eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos guardados no armário da minha memória…

Esqueci a Guiné durante décadas. Ou tentei esquecer a Guiné (o que é difícil quando te vês ao espelho e tens uma bruta cicatriz abaixo  das costelas, e que só por milagre não me atingiu nenhum órgão vital). 

Esqueci a Guiné... até ao dia em que, não sei como nem porquê, vi na Net o teu nome, a tua cara, os teus óculos, associado a uma terra, um dos poucos sítios de que eu até guardava boas memórias, da minha breve passagem por lá, em trânsito para Bissau… Toda a malta do leste tinha que passar por lá, por Bambadinca... Eu sei que fiquei lá umas duas ou três  noites, à espera do "barco turra", para Bissau quando fui de férias. 

É verdade, desencontrámo-nos na Guiné. (Estarias tu ainda em Contuboel, pelo que me contaste ao telefone.) Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado, na Guiné, podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro ,  no 2º semestre de 1969, nomeadamemnte em Bafatá, onde devemos ter estado algumas vezes, no mesmo dia e na mesma hora, embora eventualmente em sítios diferentes, mas muito perto um do outro. 

Achei piada ao teu jogo de palavras, quando, ao telefone, me respondeste ao meu olá: “o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te para marcarmos um encontro e matar saudades. Com mais tempo e vagar. Se ainda formos a tempo... É coisa que, de resto, me vai faltando, o tempo. Cada vez mais. Ando agora com o frenesim (chama-lhe compulsão,  se quiseres), das viagens, por terra, ar e mar: só para saberes, já visitei mais de sessenta países dos cinco continentes... E ainda me faltam dois terços do planeta...

Tenho pressa de viver, à medida que eu vejo os meus parentes, amigos e conhecidos lerparem, naquela idade em que ainda há a ilusão de que temos o resto da vida toda à nossa frente. Eu já não tenho essa ilusão:  vivo o dia a dia!... "Carpe diem", é o meu lema. Tornei-me cínico, cético e hedonista.

Preciso de ganhar coragem. Confesso que tenho medo de revisitar o passado. Tenho medo das armadilhas do passado. E, por agora, ando a recuperar o tempo perdido, depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco, a lidar com o dinheiro dos outros. (E a fingir, à noite, que era um promissor artista plástico.) Aceitei vir-me embora do banco, com uma indemnização. Ou mandaram-me embora, para ser mais correto. O que foi humilhante: afinal, eu estava lá a mais!

Até lá, ao nosso próximo encontro, se formos vivos, um abraço, como vocês dizem, do tamanho do nosso Rio Geba.

Assina este relambório o teu falhado amigo pintor, e, pior do que isso, frustrado companheiro da viagem "a salto", até Paris, viagem que nunca passou de um devaneio de umas tantas tardes de verão em que estivemos, juntos, em 1967, na casa dos meus "padrinhos" em Benfica e no SNI, o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, a preparar a exposição que foi a minha "vernissage", entre copos de ginjinha e amendoins. Recordo esse tempo com muita saudade, muito mais do que a Guiné.  Tenho saudades de ti, da Flora e das suas amigas do Campo Grande.

Até sempre, amigo (e camarada)!


Teu F..., o Renoir de Montemuro.


PS1 -  E já que falei o meu "padrinho" de Lisboa, que tu conheceste, embora mal (era um homem irascível e autoritário, quando se zanagava), tenho a dizer-te que ele foi, pobre diabo, uma das primeiras vítimas do 25 de Abril: trabalhava na Praça de Londres, no Ministério das Corporações e Previdência Social, foi saneado, pela Comissão de Trabalhadores, por ser assessor de um "fascista", entrou em depressão, tentou cometer suicídio... Não morreu logo, ainda esteve uns dias nos cuidados intensivos do Hospital de São José.

Confesso que fiquei desolado: nunca foi o substituto ou o sucedâneo do pai que eu nunca tive,  mas foi, para mim, um  bom homem, um amigo, um protetor... À maneira dele, quis sempre o melhor para mim. Estou-lhe grato por me ter ido "buscar" à Casa Pia, me ter acolhido na sua bela casa,  me ter dado uma "família normal"... Foi graças a ele que continuei a estudar e entrei em Belas-Artes. A minha "madrinha", essa, ainda aguentou uns anos, morreu de abandono e demência... Era professora de liceu...

Nunca mais voltei ao Rossio para  beber uma ginjinha… E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para o seu lado... Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto, quando voltar a Lisboa. Afinal fiquei com uma pensão de Deficiente das Forças Armadas, a par da reforma do banco. Vivo sozinho, e com poucos luxos, tirando as viagens. (#)


________


(#) Duas notas do autor:


(i) Ainda estou para beber a tal ginjinha, prometida  pelo meu amigo F..., "aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre"... Nunca mais deu sinal de vida, depois que falámos longamente ao telefone, há uns anos atrás. Deve ter mudado de mail e de telemóvel. Sei que adora(va) viajar. E que tem(tinha) uma filha, casada, arquiteta, a viver nos arredores de Paris (além de um filho em Vigo, com quem não falava). Enfim, deve andar por aí a dar o resto da volta ao mundo... Ou a descobrir novos mundos (se é que ainda os há)...

Mas perguntar-me-á o leitor mais atento ou curioso: "como é que, afinal, o conheceu e onde, a esse tal rapaz de Montemuro"? A resposta é simples: no Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã, no verão de 1964.. Tinha eu 17 anos. Os "padrinhos de Lisboa" costumavam lá alugar uma casa de verão e adoravam a lagosta suada do Zé Felipe... Foi lá que eu descobri o seu talento artístico de ex-casapiano...  Passámos a corresponder-nos. Até que veio o inesperado convite, em 1967,  para lhe escrever o catálogo para  a exposição no SNI.


(ii) Um bilhetinho para o F...

Meu caro F...

Não tenho a certeza se alguma vez vais ler este texto, que resume o essencial que eu sabia de ti mais o que passei a saber,  na nossa última (e única) conversa ao telefone, em 2008. Conversa que reconstitui, tendo sido, tanto quanto possível, fiel à tua oralidade, tão expressiva quanto torrencial.

Mas sempre te direi que ninguém é feito de uma só peça, nem muito menos a nossa história (individual e coletiva) é escrita a preto e branco.

Foi o nosso autorretrato possível (ou a "selfie", como se diz agora)  para este meu possível livro de "contos  com  mural ao fundo"... 

"O passado (e nomeadamente, o meu tempo na Guiné) está morto e enterrado", acho que foi a tua resposta  quando eu insisti em que escrevesses umas notas sobre esse tempo, para "memória futura"...  Percebi que és daqueles casmurros que puseram (ou gostavam de poder pôr) uma pedra (tumular) sobre o passado...

Sabes onde vivo. Se (ou quando) passares por aqui perto, faz-me uma visita, dá -me um toque. Eu, pessoalmente, ficarei radiante. Por mim, por ti, pela nossa velha amizade de juventude e os nossos sonhos juvenis. E até pelo "carimbo da guerra no nosso passaporte da vida"...

Como a vida, afinal, também é feita de surpresas, talvez a gente ainda se encontre, mum qualquer dia do meu querido mês de agosto, nas Portas de Montemuro... E a propósito, nunca me chegaste a dizer qual é a tua aldeia. (Conheço algumas, mal: Alhões, Boassas, Bustelo, Gralheira, do lado de Cinfães... E gosto de ir tomar um café no parque de lazer  do rio Bestança em Pias, sitio onde  tu  seguramente nunca foste, foi inaugurado há uns anos). 

Da minha tabanca de Candoz até à tua tabanca de Montemuro, do outro lado do rio Douro, deve ser  apenas a distância  de um tiro de obus 14. (...)

© Luís Graça (2009). Nova versão, revista e melhorada, em 31/10/2023. 
_____________

Nota do editor  L.G.:

(*) Último poste da série > 22 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24781: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (11): E na hora da nossa morte, ámen!

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24525: Documentos (42): "Acordo Missionário", de 7 de maio de 1940, celebrado entre a Santa Sé e a República Portuguesa

"Assinatura da Concordata e do Acordo Missionário no Vaticano, 7 de Maio de 1940. À direita o Cardeal Luigi Maglione, representante da Santa Sé e à esquerda o General Eduardo Marques, antigo Ministro das Colónias portuguesas. [AHD- Colecção de Álbuns Fotográficos]" (Fonte: Cortesia de Instituto Diplomátio / Ministério dos Negócios Estranheiros)


1. Faz agora 83 anos que a Santa Sé (Estado do Vaticano) e o República Portuguesa assinaram a Concordata, a par do Acordo Missionário. Foi no dia 7 de maio de 1940. 

O histórico evento passou-se no papado do Pio XII e no governo de António de Oliveira Salazar. Os dois documentos foram depois ratificados,  a 30 de maio desse ano, pela Assembleia Nacional (que não tinha qualquer legitimidade democrática, dado o Estado Novo ser um regime de partido único),

Foi a 5.ª Concordata da História de Portugal. Com ela procurou-se "normalizar" as relações entre o Estado e a Igreja Católica.  Ficou consagrada a liberdade religiosa e a separação entre o poder laico e o religioso. À Igreja foi restituída parte do património que perdera em momentos históricos anteriores (nomeadamenet durante o liberalismo e a República), bem como uma série de prerrogativas (como a liberdade de organização, certas isenções fiscais, etc.). 

Recorde-se que durante a República foi promulgada, em 1911, a Lei da Separação do Estado das Igrejas de 1911, o que deu origem  a um  corte de relações diplomáticas que vigorou até 1918.

Lê-se na Infopédia (Concordata):

(...) "O chamado Acordo Missionário, assinado na mesma altura, criou condições para a colaboração entre a Igreja Católica e o regime salazarista, quer no território europeu, quer, e sobretudo, nas colónias ultramarinas.

"A Igreja fora lesada no seu património e liberdades pelo liberalismo do século XIX e de novo a seguir à implantação da República. Com a Concordata, porém, adquiriu ou recuperou uma série de prerrogativas: foi consagrado o direito de ela se organizar como melhor lhe conviesse, de comunicar com os fiéis sem prévia autorização do Estado e de lhes cobrar coletas, de ministrar instrução religiosa nas suas próprias instituições de ensino e noutras instituições privadas.

"Por outro lado, ficou previsto o ministério da religião e moral católicas nas escolas públicas e o serviço dos sacerdotes como capelões nas Forças Armadas. Aos casamentos católicos foi reconhecida validade civil.

Ainda nos termos dos acordos de 1940, a Igreja recebeu parte do património que lhe fora expropriado, prescindindo explicitamente da parte restante, enquantoa" o Estado se comprometeu, em contrapartida, a subsidiar a ação missionária nas colónias (em que Salazar estava especialmente interessado, como instrumento de consolidação do império) e a conceder-lhe regalias ímpares no capítulo das isenções fiscais.

"À Concordata e ao Acordo Missionário estavam subjacentes dois princípios distintamente modernos. Por um lado, estabelecia-se a separação do poder laico e da Igreja: ficou consagrado o princípio da não intromissão de uma esfera na outra, sem prejuízo de poder haver cooperação com objetivos específicos. Por outro lado, foi consagrado o princípio da liberdade religiosa. Estes dois princípios constituem, ainda hoje, a base do relacionamento do Estado português com as confissões e instituições religiosas." (..:)

Lê-se na Wikipédia (Concordata entre a Santa Sé e Portugal de 1940):

(...) "Apesar de ser um documento negociado pessoalmente por Salazar e conotado com o Estado Novo vigorou até 2004 tendo sobrevivido 34 anos em regime autoritário e 30 anos em regime democrático. O texto sobreviveu intacto, tendo apenas sofrido apenas uma alteração em 1975 de molde a acabar com a renúncia legal ao divórcio para os casamentos católicos posteriores à Concordata, o que na prática resultava na indissolubilidade dos casamentos canónicos.

"Curiosamente este era um ponto onde Salazar tinha aceitado a contragosto a posição da Santa Sé, tendo na altura deixado claro que essa não era no seu juízo a melhor solução. A fórmula alternativa que veio a ser consagrada na revisão deste artigo 1975 foi justamente a fórmula que Salazar e os seus conselheiros tinham sugerido à Santa Sé em 1937.

"Salazar pretendeu sempre evitar tudo o que pudesse ser interpretado como uma violação do regime de separação entre Estado e Igreja e conseguiu, através de negociações firmes e de um hábil jogo diplomático, fazer valer as posições do Estado português face às pretensões da Santa Sé" (..:).

2. Para saber mais: 

Manuel Braga da Cruz · As negociações da Concordata e do Acordo Missionário de 1940. Análise Social, vol. XXXII (143-144), 1997 (4.º-5.º), 815-845, Disponível em http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218793712C5wMG9pn8Pj18SG5.pdf


 3. Texto do Acordo Missionário (realces a amarelo: editor LG). (Sob o descritor "Missionários" temos mais de meia centena de referências no nosso blogue; na Guiné, e nomeadamente durante guerra colonial, as relações entre as autoriddaes locais, civis e militares, e as missões católicas estrangeiras, nomeadamente os missionários italianos do PIME - Pontífico Instituto Para as Missões Exteriores, não foram fáceis nem pacíficas, como documenta o nosso blogue).

INTER SANCTAM SEDEM ET REMPUBLICAM LUSITANAM 

SOLLEMNES CONVENTIONES (#)

ACORDO MISSIONÁRIO ENTRE 

A SANTA SÉ  E A REPÚBLICA PORTUGUESA 


Considerando :

Que na data de hoje foi assinada a Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa;

Que na dita Concordata nos artigos XXVI-XXVIII estão enunciadas as normas fundamentais relativas à actividade missionária;

Que durante as negociações para a conclusão da mesma Concordata o Governo Português propôs que as ditas normas fôssem ulteriormente desenvolvidas numa Convenção particular;

A Santa Sé e o Governo Português resolveram estipular um acordo destinado a regular mais completamente as relações entre a Igreja e o Estado no que diz respeito à vida religiosa no Ultramar Português, permanecendo firme tudo quanto tem sido precedentemente convencionado a respeito do Padroado do Oriente.

Para este fim nomearam Plenipotenciários respectivamente

Sua Eminência Reverendíssima o Senhor Cardeal LUIGI MAGLIONE, Secretário de Estado de Sua Santidade;

 e Sua Excelência o Sr. General EDUARDO AUGUSTO MARQUES, antigo Ministro das Colónias, Presidente da Câmara Corporativa, Grã- Cruz das Ordens militares de Cristo, de S. Bento d'Aviz e da Ordem do Império Colonial;

Sua Excelência o Sr. Doutor MARIO DE FIGUEIREDO, antigo Ministro da Justiça e dos Cultos, Professor e Director da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Deputado e Grá-Cruz da Ordem militar de S. Tiago da Espada;

Sua Excelência o Sr. Doutor VASCO FRANCISCO CAETANO DE QUEVEDO, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário junto da Santa Sé, Grã-Cruz da Ordem militar de Cristo e Cavaleiro de Grã-Cruz da Ordem de S. Gregório Magno;

os quais, sob reserva de ratificação, concordaram em quanto se segue :

Art. 1

A divisão eclesiástica das Colónias Portuguesas será feita em dioceses e circunscrições missionárias autónomas.

Aos bispos das dioceses cabe organizar, por intermédio do clero secular e regular, a vida religiosa e o apostolado da própria diocese.

Nas circunscrições missionárias a vida religiosa e o apostolado serão assegurados por corporações missionárias reconhecidas pelo Governo, sem prejuízo de, com autorização deste, se estabelecerem, nos ditos territórios, missionários doutras corporações ou do clero secular.

Art. 2

Os Ordinários das dioceses e circunscrições missionárias, quando não haja missionários portugueses em número suficiente, podem, de acordo com a Santa Sé e com o Governo, chamar missionários estrangeiros, os quais serão admitidos nas missões da organização missionária portuguesa, desde que declarem submeter-se às leis e tribunais portugueses. Esta submissão será a que convém a eclesiásticos.

Art. 3

As dioceses serão governadas por bispos residenciais e as circunscrições missionárias por Vigários ou Prefeitos Apostólicos, todos de nacionalidade portuguesa.

Tanto numas como noutras, os missionários católicos do clero secular ou de corporações religiosas, nacionais ou estrangeiros, estarão inteiramente sujeitos à jurisdição ordinária dos sobreditos prelados no que se refere ao trabalho missionário.

Art. 4

As dioceses e as circunscrições missionárias serão representadas junto do Governo da Metrópole pelo respectivo prelado ou por um seu delegado, e as corporações missionárias pelo respectivo Superior ou por um seu delegado.

Os Superiores e os delegados, aqui mencionados, terão a nacionalidade portuguesa.

Art. 5

As corporações missionárias reconhecidas estabelecerão em Portugal continental ou ilhas adjacentes casas de formação e de repouso para o seu pessoal missionário.

As casas de formação e de repouso de cada corporação constituem um único instituto.

Art. 6

São desde já criadas três dioceses em Angola, com sede em Luanda, Nova Lisboa e Silva Porto; três em Moçambique, com sede em Lourenço Marques, Beira e Nampula; uma em Timor, com sede em Dili. Além disso, nas ditas colónias e na Guiné poderão ser eretas circunscrições missionárias.

A Santa Sé poderá, de acido com o Govêrno, alterar o número das dioceses e circunscrições missionárias. Os limites das dioceses e circunscrições missionárias serão fixados pela Santa Sé de maneira a corresponderem, na medida do possível, à divisão administrativa e sempre dentro dos limites do território português.

Art. 7

A Santa Sé, antes de proceder à nomeação de um arcebispo ou bispo residencial ou dum coadjutor cum iure successionis, comunicará o nome da pessoa escolhida ao Governo Português a fim de saber se contra ela há objecções de caracter politico geral. O silêncio do Governo, decorridos trinta dias sôbre a referida comunicação, será interpretado no sentido de que não há objeções. Todas as diligências previstas neste artigo ficarão secretas.

Quando dentro de cada diocese ou circunscrição missionária fôrem estabelecidas novas direções missionárias, a nomeação dos respectivos diretores, não podendo recair em cidadão português, só será feita depois de ouvido o Governo Português.

Criada uma circunscrição eclesiástica, ou tornando-se vacante, a Santa Sé, antes do provimento definitivo, poderá imediatamente constituir um administrador apostólico provisório, comunicando ao Govêrno Português a nomeação feita.

Art. 8

Às dioceses e circunscrições missionárias, às outras entidades eclesiásticas e aos institutos religiosos das colónias, e bem assim aos institutos missionários, masculinos e femininos, que se estabelecerem em Portugal continental ou ilhas adjacentes, é reconhecida a personalidade jurídica.

Art. 9

As corporações missionárias reconhecidas, masculinas e femininas, serão, independentemente dos auxílios que receberem da Santa Sé, subsidiadas segundo a necessidade pelo Governo da Metrópole e pelo Governo da respectiva colónia. Na distribuição dos ditos subsídios, ter-se-ão em conta não somente o número dos alunos das casas de formação e o dos missionários nas colónias, mas também as obras missionárias, compreendendo nelas os seminários e as outras obras para o clero indígena. Na distribuição dos subsídios a cargo das colónias, as dioceses serão consideradas em paridade de condições com as circunscrições missionárias.

Art. 10

Além dos subsídios a que se refere o artigo anterior, o Governo continuará a conceder gratuitamente terrenos disponíveis às missões católicas, para o seu desenvolvimento e novas fundações. Para o mesmo fim, as entidades mencionadas no artigo 8 poderão receber subsídios particulares e aceitar heranças, legados e doações.

Art. 11

Serão isentos de qualquer imposto ou contribuição, tanto na Metrópole como nas colónias :

a) todos os bens que as entidades mencionadas no artigo 8 possuírem em conformidade com os seus fins:

b) todos os actos inter vivos de aquisição ou de alienação, realizados pelas ditas entidades para satisfação dos seus fins, assim como todas as disposições mortis causa de que forem beneficiárias para os mesmos fins.

Além disso, serão isentos de todos os direitos aduaneiros as imagens sagradas e outros objectos de culto.

Art. 12

Além dos subsídios previstos no artigo 9, o Governo Português garante aos Bispos residenciais, como Superiores das missões das respetivas dioceses e aos Vigários e Prefeitos Apostólicos honorários condignos e mantém-lhes o direito à pensão de aposentação. Para viagens ou deslocações, porém, não haverá direito a qualquer ajuda de custo.

Art. 13

O Govêrno Português continuara a abonar a pensão de aposentação ao pessoal missionário aposentado e para, o futuro dá-la-á aos membros do clero secular missionário quando tiverem completado o número de anos de serviço necessário para tal efeito.

Art. 14

Todo o pessoal missionário terá direito ao abono das despesas de viagem dentro e fora das colónias. 

Para gozar de tal direito basta que na Metrópole o Ordinário ou seu delegado apresente ao Governo os nomes das pessoas, juntamente com atestado médico, que comprove a robustez física necessária para viver nos territórios do Ultramar, sem necessidade de outras formalidades. 

Se o Governo, por fundados motivos, julgar insuficiente o atestado médico, poderá ordenar novo exame que será feito na forma devida por médicos de confiança, sempre do sexo feminino para as pessoas deste sexo.

As viagens de regresso à Metrópole por motivo de doença ou em gozo de licença graciosa serão, por proposta dos respectivos prelados, autorizadas segundo as normas vigentes para os funcionários públicos.

Art. 15

As missões católicas portuguesas podem expandir-se livremente, para exercerem as formas de actividade que lhes são próprias e nomeadamente a de fundar e dirigir escolas para os indígenas e europeus, colégios masculinos e femininos, institutos de ensino elementar, secundário e profissional, seminários, catecumenatos, ambulâncias e hospitais.

De acordo com a Autoridade eclesiástica local, poderão ser confiados a missionários portuguêses os serviços de assistência religiosa e escolar a súbditos portugueses em territórios estrangeiros.

Art. 16

Nas escolas indígenas missionárias é obrigatório o ensino da língua portuguesa, ficando plenamente livre, em harmonia com os princípios da Igreja, o uso da língua indígena no ensino da religião católica.

Art. 17

Os Ordinários, os missionários, o pessoal auxiliar e as irmãs missionárias, não sendo funcionários públicos, não estão sujeitos ao regulamento disciplinar nem a outras prescrições ou formalidades a que possam estar sujeitos aqueles funcionários.

Art. 18

Os Prelados das dioceses e circunscrições missionárias e os Superiores das corporações missionárias na Metrópole darão anualmente ao Governo informações sobre o movimento missionário e actividade exterior das missões.

Art. 19

A Santa Sé continuará a usar da sua autoridade para que as corporações missionárias portuguesas intensifiquem a evangelização dos indígenas e o apostolado missionário.

Art. 20

Mantém-se em vigor o regime paroquial da diocese de Cabo Verde.

Art. 21

Os dois textos do presente Acprdo, em língua portuguesa e em língua italiana, farão igualmente fé.

Feito em duplo exemplar.

Cidade do Vaticano, 7 Maio de 1940. (*)

L. Card. MAGLIONE

EDUARDO AUGUSTO MARQUES

MARIO DE FIGUEIREDO

S. VASCO FRANCISCO CAETANO DE QUEVEDO (**) 

(#) AAS 32 (1940) 235-244.

_____________

Notas do editor:

(*) Texto disponível aqui:

https://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/archivio/documents/rc_seg-st_19400507_missioni-santa-sede-portogallo_po.html

(**) Último poste da série > 21 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23904: Documentos (41): "Diploma de Cobra", outorgado pelo cap inf Jorge Parracho, cmdt da CCAÇ 3325, "Cobras" (Guileje e Nhacra, 1971/72) ao seu amigo e camarada do tempo da Academia Militar, cap art Morais da Silva, cmdt da CCAÇ 2796, "Gaviões" (Gadamael e Nhacra, 1970/72)