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sexta-feira, 19 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17378: Notas de leitura (958): “Portugal e as Guerrilhas de África”, por Al J. Venter, Clube do Leitor, 2015, prefácio de John P. Cann (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2016:

Queridos amigos,

O melhor é lerem o livro de fio a pavio. É uma poderosa reportagem, não contesto, não conheço investigação tão minuciosa. Não se entende, no entanto, como é que o jornalista e escritor não procurou a confirmação de dados que ele expõe com a ar mais diáfano deste mundo. 

Quanto à Guiné, vê-se que o impressionou o patrulhamento que fez em Tite junto do capitão João Bacar Djaló. Não esconde que a Guiné era o teatro de operações mais atribulado e que a retirada de Spínola, em Agosto de 1973, prenunciava os tempos dolorosos que todos experimentaram. E confrange-se como um movimento de libertação com créditos tão firmados até na arena internacional mal chegou ao poder em Bissau parece que apostou na fragilidade do Estado e em desconjuntar o equilíbrio social, nunca lhe ocorrendo que a reconciliação de todos seria o primado da reconstrução nacional.

Um abraço do
Mário



Portugal e as guerrilhas de África (2), por Al J. Venter(*)

Beja Santos

“Portugal e as Guerrilhas de África”, por Al J. Venter, Clube do Leitor, 2015, é uma coletânea de reportagens de alguém que se perfila como o “único jornalista estrangeiro presente nas três frentes da guerra colonial”

Ao longo de cerca de 500 páginas, o jornalista e escritor colhe testemunhos, na verdade, nas três frentes. A sua investigação contempla a natureza das guerras de Portugal em África, dedica a segunda parte da obra por inteiro à guerra da Guiné e a terceira à evolução das operações no Leste de Angola e Moçambique, este último teatro de operações leva-o a proferir juízos muito cáusticos sobre o comportamento dos militares portugueses.

Na Guiné, destaca a Operação Tridente, não esconde a profunda admiração pelo herói militar João Bacar Djaló. Esteve na Guiné durante a guerra e muito depois. Nesse depois, visitou a Fortaleza de Cacheu e a suas velhas relíquias coloniais, fala mesmo em Vasco da Gama (!?) o primeiro homem a dobrar o Cabo da Boa Esperança e refere as canhoneiras portuguesas ali deixadas e tece o seguinte comentário: 

“Estas outrora orgulhosas embarcações de combate foram entregues intactas ao novo regime. Ao fim do ano tinham sido postas em seco e abandonadas para a sucata. Os seus motores foram vendidos ao um barco de pesca chinês de passagem”.

Em Nova Lamego foi recebido pelo Administrador, Dr. Aguinaldo Spencer Salomão. 

“Foi educado em Cantuária e era um anglófilo assumido. Se o enfadonho chefe de posto de Tite tinha sido um desapontamento, Aguinaldo era um sopro de vitalidade no preconceituoso reino da burocracia portuguesa na Guiné. Os seus livros em inglês, francês e português abrangiam quase todos os assuntos. A sua discoteca era vasta. Preferia Vivaldi a Schoenberg, mas era suficientemente eclético para ouvir um disco dos Beatles”

Viaja até Bambadinca, conversa com o comandante do BART 2917 e dá-nos a seguinte informação: 

“O último ataque ocorrera exatamente um ano antes de eu chegar: um grupo infiltrado tinha-se dirigido para Norte do outro lado da fronteira a partir de Kandiafara para tentar cortar a estrada de Bafatá. Num final da tarde, os guerrilheiros atacaram Bambadinca a partir do outro lado do rio, retirando-se depois para uma posição pré-determinada, onde esperaram pelo dia seguinte antes de se juntarem a outros dois grupos. Esta força combinada iria então atacar outras posições durante o assalto. Foi então que algo correu mal. Um grupo de pisteiros da força atacante colidiu com uma patrulha de Bambadinca e foi capturada intacta, sem ter sido disparado um único tiro. Um dos homens era um alto oficial do PAIGC. Os quatro homens foram levados de helicóptero para Bambadinca onde foi oferecida ao oficial a opção de contar tudo ou aceitar as consequências. Era uma situação sem saída, e o rebelde foi suficientemente inteligente para aceitar”

Sentiu-se impressionado com Bissau, encontrou-lhe semelhanças com Banjul. Considera que o PAIGC, ao agir despoticamente, provocou um dos mais trágicos desastres políticos de África. Faz uma menção a outros grupos pró-independentistas, caso da FLING. Aborda a formação de Amílcar Cabral e como organizou a orgânica do PAIGC. Não sabemos bem onde é que ele foi buscar aqueles dados, mas achou que ele tinha quatro filhos do primeiro casamento. De igual modo atribui aos soviéticos a instrução pessoal de Cabral, dado não comprovado.

De repente, introduz o tema da aviação nas guerras coloniais portuguesas, e logo a seguir vamos até ao Leste da Angola, a N’Riquinha, onde Al Venter conversa com o capitão Vítor Alves. Tudo somado, em Angola a guerra de guerrilhas estava a ser um sucesso para as Forças Armadas portuguesas, o MPLA desfazia-se em intrigas, tornara-se pouco atuante, a UNITA estava aberta à cooperação e a FNLA era uma sombra do passado. Estamos agora em Moçambique, cita várias fontes sul-africanas e rodesianas, era inconcebível como as forças armadas portuguesas destruíam tudo e mal tratavam as populações, e escreve: 

“Nas condições atuais de combate, os sul-africanos e os rodesianos consideravam os militares portugueses em Moçambique desastrados e ineptos”

Era patente que tinha havido uma deterioração no relacionamento entre os oficiais os homens sobre o seu comando, era quase uma repetição da síndrome vietnamita e tece nova consideração ácida: 

“A verdade era que em quase todo o Exército português em Moçambique tanto os oficiais como os homens mal conseguiam aguentar até ao fim as suas comissões de serviço. Na sua maioria, acabaram por desprezar o mato africano e as condições primitivas sobre as quais eram obrigados a operar”

Tanta neglicência, diz Al Venter, favoreceu a capacidade da FRELIMO em se movimentar livremente à noite. Durante as marchas operacionais, viu colunas barulhentas e desgarradas, o Estado-Maior era extremamente burocrático, impedia as respostas prontas. Tece as suas considerações sobre a natureza das baixas sofridas pelas Forças Armadas portuguesas e enaltece o papel das enfermeiras paraquedistas.

O papel documental destes relatos esbarra com imprecisões incompreensíveis para um investigador como Al Venter, serve de exemplo mostrar o jornal Avante! e dizer que é um jornal de Luanda. Os apêndices têm maior utilidade: ficamos com um escorço das tropas africanas no exército colonial português, trabalho de João Paulo Borges Coelho, como as forças especiais rodesianas contribuíram em Angola e Moçambique para ajudar os portugueses, travando nomeadamente ações de retaguarda. E, por último, repesca as operações costeiras na Guiné extraídas do livro do capitão John Cann, recentemente traduzido pela Academia da Marinha.

Em 22 de Novembro último, Al Venter concedeu uma entrevista ao Diário de Notícias, onde foi questionado se Portugal tinha perdido a guerra colonial, fugiu a uma resposta clara, não deixando de observar, porém, que o país estava a ficar exangue. Perguntado se tinha havido massacres na nossa guerra, respondeu: 

“Houve alguns massacres como My Lai nas guerras coloniais portuguesas? Diria que sim, mas apenas nos primeiros dias das mutilações em Angola. Foi um período lunático de trocas excessivamente violentas entre os dois lados e durou menos de um ano. Nada de comparável aconteceu em Moçambique ou na Guiné. No conjunto, Lisboa conduziu os últimos conflitos coloniais by the book. Isto não agradou a todos e não impediu a PIDE e outros serviços secretos de segurança de ultrapassarem as marcas”.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17038: Militares mortos na 1.ª Guerra Mundial e Guerra do Ultramar do concelho de Torre de Moncorvo (Armando Gonçalves) - Parte IV: TO de Angola, Guiné e Moçambique, a Primavera Marcelista e o fim do Estado Novo


Torre de Moncorvo: logo da câmara municipal (cortesia da página do município). 
O município erigiu, em 2013, um monumento aos combatentes da guerra do ultramar.



Eduardo Mondlane (1920-1969)

"Fundador e primeiro Presidente da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), arquitecto de Unidade Nacional, nasceu em Manjacaze, Província de Gaza, a 20 de Junho de 1920 e faleceu a 3 de Fevereiro de 1969, vitima de um livro armadilhado com bomba que ao explodir pôs termo a sua vida.

"Filho de um chefe tradicional, Mondlane estudou na missão presbiteriana suíça, próxima de Manjacaze, terminou os seus estudos secundários numa escola da mesma igreja na África do Sul, depois de uma curta passagem pela Universidade de Lisboa, foi ainda financiado pelos suíços para fazer os estudos superiores nos Estados Unidos da América, onde se doutorou em sociologia".

(Foto e e legenda > Fonte: Frelimo, com a devida vénia)



1. Continuação do trabalho de pesquisa do nosso amigo Armando Gonçalves, professor de História, do Agrupamento de Escolas Dr. Ramiro Salgado, em Torre de Moncorvo, e que aceitou integrar a nossa Tabanca Grande, passando a ser o nº 733 (*)

Parte IV (pp. 16-19)

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16056: Nota de leitura (836): “Portuguese Africa, A handbook”, com coordenação de David M. Abshire e Michael A. Samuels, respetivamente doutorados nas universidades de Georgetown e Columbia, nos EUA (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Junho de 2015:

Querido amigos,
O objetivo é o de compendiar tudo o que se escreveu, de diferentes proveniências, sobre a guerra da Guiné.
Este levantamento foi feito por dois estudiosos norte-americanos, a edição em referência é de Londres, 1969. A obra já refere a substituição de Schulz por Spínola. É um levantamento sobre toda a África Portuguesa, abarca a história, o processo colonial, as etnias existentes, a natureza da administração colonial, as infraestruturas, a economia e comércio. A quarta parte prende-se com as questões políticas internacionais, é aqui que entram os conflitos armados e particularmente o que se passava na Guiné.
Não é nada de assombroso, curiosamente ficamos aqui com uma água-forte do período de Schulz e do móbil da sua atuação.

Um abraço do
Mário


Um manual sobre a África Portuguesa, 1969

Beja Santos

“Portuguese Africa, A handbook”, teve como coordenadores David M. Abshire e Michael A. Samuels, respetivamente doutorados nas universidades de Georgetown e Columbia, nos EUA. Apresentam o seu trabalho como o primeiro estudo interdisciplinar da África Portuguesa, uma obra que pode interessar a geógrafos, historiadores, cientistas políticos, sociólogos, economistas e estudantes de relações internacionais. Ao longo de mais de 400 páginas, diferentes colaboradores analisam o enquadramento da África Portuguesa, as formas de governação e as sociedades, a economia e as questões políticas internacionais. Os estudos mais relevantes centram-se em Angola e Moçambique mas há bastas referências à problemática guineense, são questões analisadas a propósito da ascensão dos partidos nacionalistas e dos conflitos existentes no nosso Império.

Vejamos o que os autores abordam sobre a Guiné Portuguesa. Referem a criação do PAIGC, o trabalho militante de Amílcar Cabral e de Rafael Barbosa e esboçam a política do PAIGC, a unidade da Guiné e Cabo Verde como Estado independente, dando como adquirido de que tal estratégia assenta no pouco significado económico da Guiné e no posicionamento das ilhas de Cabo Verde. Apresenta-se a atividade em todas as direções que o líder do PAIGC, as relações com Conacri e Dakar, a orgânica do PAIGC no território colonial, a natureza do armamento nos primeiros anos da insurgência e o confronto com a FLING – Frente para a Libertação e Independência da Guiné Portuguesa. São apresentadas as alianças do PAIGC e dá-se ênfase ao reconhecimento feito pela organização da Unidade Africana. Resume-se o histórico da guerrilha a partir dos atos de sabotagem efetuados a partir de 1962 e a efetivação da guerra com a nova orgânica militar aprovada no Congresso de Cassacá. Esse histórico inclui o relacionamento do PAIGC com o MPLA e a FRELIMO, bem como o Movimento de Libertação de S. Tomé. Contextualiza-se as atividades de todos os movimentos nacionalistas ativos entre os anos 1950 e 1960, quer no interior da colónia quer nos países limítrofes. Na altura em que este manual estava a ser concluído, segundo os coordenadores o PAIGC só possuía um rival modesto, a FLING, presidida por Benjamim Pinto Bull. Os autores sublinham que no caso guineense, ao contrário de outros movimentos revolucionários similares a ênfase era dada à organização política, a militar ficava-lhe subordinada. São referidos alguns líderes militares como Osvaldo Vieira (Ambrósio Djassi) e Nino.

Chegamos agora à guerra da libertação. Extraído o ensinamento de que era impossível a luta urbana, na reunião clandestina de Setembro de 1959 Amílcar Cabral propôs transferir a subversão para os campos e para a criação de uma organização militar flexível, que se aproveitasse dos locais de mais difícil acesso para a constituição de bases, montando-se um esquema de abastecimentos e comunicações em pontos fronteiriços da Guiné Conacri. Os autores revelam-se bem informados sobre a insurgência na sua fase inicial. Pequenos grupos de guerrilheiros atravessam a fronteira a partir do Sul e faziam meetings em diferentes pontos do interior, persuadiam as populações a rejeitar a presença portuguesa, quando necessário intimidavam os relutantes queimando as moranças e aliciam jovens para a guerra. O maior sucesso de recrutamento foi na etnia balanta. Graças à preparação militar adquirida na China, os ataques às posições portuguesas eram bem pensados. De 1963 para 1964, os rebeldes foram senhores de uma elevada porção de território graças ao pânico que se instalou depois das sabotagens, destruição de infraestruturas e intimidação, sobretudo na região Sul e no Leste Presume-se, que nesta fase inicial das hostilidades cerca de 50 mil autóctones deixaram as suas casas e refugiaram-se na Guiné Conacri e no Senegal. A segunda principal etnia guineense, os Fulas, mantiveram-se fiéis a Portugal, rejeitaram perentoriamente a guerrilha, puseram-se em autodefesa, constituíram o principal efetivo das milícias. O general Schulz aparece referido como um comandante militar que inverteu a ocupação do território que o PAIGC estava a praticar. Foram reocupadas povoações e sucessivamente disseminadas unidades militares por grande parte do território. Segundo os autores, em 1965 a situação dava sinais de estabilização, a despeito de um extraordinário poder de iniciativa da guerrilha. Schulz procurou refazer a economia, melhorar a assistência sanitária e o sistema educativo. Mas continuou a ser impossível a impedir a circulação dos guerrilheiros que se infiltravam a partir da Guiné Conacri. Schulz ter-se-á esforçado por pôr tropas em todas as regiões fronteiriças com o objetivo claro de proteger as populações e de encorajar aqueles que tinham fugido para outros países a regressar, criou mesmo programas de apoio à construção dentro das povoações.

A prova de que os autores estavam bem documentados sobre estes anos de luta na Guiné é a que eles explicam o modelo de quadrícula utilizado, a articulação das unidades em batalhões, o abastecimento dos destacamentos, a natureza dos patrulhamentos, etc. O PAIGC, apercebendo-se do sucesso da campanha de pacificação portuguesa respondeu como seu próprio programa de educação, serviços sociais e abastecimento alimentar dentro das áreas que controlava. Em 1966, o PAIGC registou avanços, o contingente português aumentou, a africanização da guerra passou a ser uma realidade, estimava-se entre 20 e 30 mil o número de militares africanos. O documento avança com informações por vezes surpreendentes. Diz que as forças do PAIGC recebiam formação, na fase inicial, na base situada em Kindia, perto de Conacri, com instrutores soviéticos mais tarde substituídos por argelinos. Os guerrilheiros recebiam as suas armas e equipamento provenientes da Europa Oriental e da China. A partir de 1965, os argelinos que forneciam equipamento aos movimentos de libertação foram substituídos pela União Soviética. Os abastecimentos chegavam à guerrilha por três vias: da Argélia via Conacri; por terra, da Argélia via Mali até Conacri e por mar, de Cuba até Conacri. A partir de 1967, o relacionamento entre o PAIGC e Dakar tornou-se amigável e as incursões do PAIGC a partir do Senegal intensificaram-se. Em Koldá, havia uma base do PAIGC e técnicos cubanos. Durante a visita que Américo Tomás fez colónia, em Fevereiro de 1968, discursou de um modo muito claro de que não haveria qualquer transigência com os guerrilheiros, todos os seus ataques seriam repelidos, Portugal não enjeitaria, qualquer que fosse as circunstâncias a defender a Guiné. Para os autores, a substituição de Schulz parecia anunciar, em alguns meios, que iria acontecer uma retirada da Guiné. Mas com Marcelo Caetano, quase de imediato avançaram para a Guiné cerca de 7 mil homens.

Nas conclusões deste imenso trabalho, os autores sublinham que tudo levava a prever que os conflitos na África Portuguesa iriam continuar por muito mais tempo.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16042: Nota de leitura (835): Os navegadores que antecederam a nossa chegada à Guiné (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14082: Notas de leitura (660): “Crepúsculo de Sangue”, de Nelson Leal, Lugar da Palavra Editora, 2013 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Abril de 2014:

Queridos amigos,
A trama desta obra literária centra-se no stresse pós-traumático. É uma escrita muito cortante, muito económica, situa dois camaradas da guerra e dois palcos onde terão havido excessos que irão pesar na mente de um deles, até o destruir.
Nelson Leal desenha o percurso da doença, numa atmosfera que vai da guerra, passa pelo regime democrático e finda numa celebração em dia de Natal, os protagonistas ajustam contas com a ideologia em que acreditaram e que agora abominam. Nessa vozearia, João Manilha revive todo as imagens fantasmáticas que o perseguem, que continuam vivas na sua cabeça.
Pode não ser uma obra exemplar, mas confronta-nos sem tibiezas sobre a dor que ainda persegue muitos dos nossos camaradas.

Um abraço do
Mário

Um romance sobre o stresse pós-traumático: Crepúsculo de sangue, de Nelson Leal

Beja Santos

“Crepúsculo de Sangue”, de Nelson Leal, Lugar da Palavra Editora, 2013, é um romance de um oficial da Armada, muito ligado ao jornalismo que resolveu centrar-se no stresse pós-traumático. O primeiro episódio impressivo passa-se com a coluna que avança para Nambuangongo. Os rebeldes ainda resistem, cada vez mais timidamente. E logo uma descrição truculenta, o cabo Meireles manda cortar a cabeça a um rebelde morto: “O Frinchas, de olhos marejados, retirou, a custo, a catana da mão do negro e, num guinchar de raiva, lançou-a sobre o pescoço do cadáver… A cabeça do negro, indiferente à dor do colono, sorria de troça. E foi com ar de troça que se manteve, espetada num pau, junto à picada. Um troféu que a nossa exibia aos bacongos, que acreditavam que o guerrilheiro morto ressuscitaria, desde que mantivesse a cabeça”. Estamos no Norte de Angola, na Terra dos Dembos, o BCAÇ 96, do tenente-coronel Maçanita, tivera a sua primeira baixa. A operação Viriato está no auge. O nome do alferes Toscano aparece pela primeira vez. Maçanita quer a tudo o custo ser o primeiro a entrar em Nambuangongo. As tropas movimentam-se. O furriel João Manilha a tudo assiste, em silêncio. Como numa recapitulação histórica, assiste-se ao desenvolvimento da operação: “Avançaram baterias de artilharia, armadas de obuses 8,8 e 10,5. Avançou o tenente-coronel Armando Maçanita, de pistola em punho, no seu jipe trepidante, a ignorar os sobressaltos do terreno, de peito alçado. A coluna avança, alguns militares matam indiscriminadamente, incendeia-se Quicangassala… Algumas cabeças decepadas ergueram-se em estacas, a celebrar a vitória”. João Manilha está em estado de choque. E assim entra em Nambuangongo, enquanto o corpo de paraquedistas foi lançado em Quipedro, base de guerrilha, próxima de Nambuangongo.

Toscano e Manilha fizeram amizade, estamos nos fins dos anos 60, em Coimbra, Toscano enamora-se de Carminda e João Manilha de Giesta Maria. A guerra para eles continua. Toscano é oficial dos comandos, Manilha também faz parte das forças especiais. Dá sinais de depressão, Giesta afasta-se, Manilha insiste, é demasiado tarde, Giesta deu coração a outro.

E passamos para o massacre de Wiriyamu, dezembro de 1972, 6.ª Companhia de Comandos, operação Marosca, procura-se à viva força capturar o guerrilheiro Raimundo que anda a incomodar a região de Tete. As hélices dos helis troam pela savana, frenéticos, os Comandos tomam posição: “Um sujo véu castanho ia cobrindo os soldados da 6.ª Companhia, que formigavam entre as naves, a despejar armas, cantis, mochilas, rações, lonas. E as ténues silhuetas dos Comandos, de G3 em riste, agachados, em passo de corrida, foram, pouco a pouco, desaparecendo, tragadas na poeira. Wiriyamu esperava-os”.

Entretanto Mário Toscano trabalha para Jorge Jardim, está no seu exército particular, o SEI. Fala-se dos ataques da FRELIMO à via-férrea de Tete e das sortidas na estrada de Zobué, cresce a inquietação à volta da cidade da Beira. Jorge Jardim confia no êxito da Marosca. Começa o ataque a Wiriyamu, os habitantes são metidos nas suas palhotas e queimados, algumas mulheres violadas e depois abatidas. E o autor explica como irá ter lugar a denúncia do massacre de Wiriyamu, os rolos fotográficos e o relato das barbaridades chegou às mãos do padre Hastings, que os recambiou para Londres, serão publicados no jornal The Times, em julho de 1973. Mais uma dor de cabeça na política diplomática de Marcello Caetano.

João Manilha adoece em Tete, a depressão aprofunda-se, Mário Toscano visita-o. Dorme mal, tem pesadelos tenebrosos, as imagens dos massacres regressam em força.

E passamos para um de maio de 1974. Toscano tornou-se revolucionário, vive com Carminda junto a Cacilhas, convidou Manilha para jantar. Manilha descobre que Giesta Maria perdeu o marido na guerra da Guiné. Irá a Coimbra bater-lhe à porta, os seus afetos recuperam-se. Na aldeia os pais de João Manilha empurram-no para Luísa do Monte, após peripécias que envolvem as duas famílias, chega-se ao acordo para o contrato nupcial. Só que João Manilha não selará o contrato, irá casar com Giesta Maria.

Toscano vive a febre revolucionária, é membro do PCP, é convidado a dar informação do que se passa no Regimento dos Comandos, recusa-se, começa a rutura.

Os anos passam, João Manilha está a ler o Diário de Notícias na praia, na companhia da enteada e do filho, lê e relê uma reportagem sobre a guerra de Angola, a guerra civil está ao rubro. O stresse pós-traumático eclode: “Já não é a praia que ele vê, é a selva imensa de África, é a guerra, é o João que tropeça, que cambaleia, que cai e que se levanta, regressam as hélices dos helis, ele sente as metralhadoras a matraquear, tem um desmaio".

Irá ser tratado no Hospital Militar Principal, vai a uma consulta de psiquiatria, e daqui partirá para uma Junta Médica, é considerado incapaz para todo o serviço. “Reformou-se numa quarta-feira de março de 1988. Vestiu-se de luto, porque percebeu que morrera, ainda novo. Perdeu amigos, perdeu companheiros, perdeu escalas, perdeu serviços, perdeu bares, perdeu noitadas, perdeu borgas, perdeu sonhos. Reformou-se com 45 anos e com 27 anos de serviço. Com uma miséria no bolso e com dois filhos ainda por criar”. E rumam para Águeda, Giesta arranjou colocação numa Escola Preparatória, João Manilha procura integrar-se. Caminhamos para a atualidade. Diogo Toscano enamora-se de Joana Palla, em agosto de 2000 teremos casamento de muita e uma cerca circunstância, Diogo quer singrar na vida, é simplesmente filho de um capitão, e Joana é filha de um responsável socialista, com muitas conexões, o autor dá-nos uma imagem de Diogo servil e estúpido, mas capaz de tudo para ter um lugar ao sol. João Manilha está em casa e a empregadita são-tomense ciranda por ali, crepita a chuva, um vento enfurecido não dá tréguas, ressoou um trovão, João atira-se à jovem. Mas ele já deixara de ser velho. Ele voltara a ser o Furriel João Manilha e ela era aquela negra de África. Puxou-lhe as roupas num frenesim, como se fosse um ritual, atirou-a para o sofá, como se fosse um fardo e olhou, com os olhos perdidos, aquele corpo por cumprir, aquele ventre de ébano e aquele púbis encaracolado. É desta que João Manilha tem um AVC.

Na boa tradição da literatura e do cinema, haverá um almoço onde toda esta gente se irá reencontrar. Mário Toscano está no campo ideológico oposto ao que tivera a seguir ao 25 de abril, tem o filho bem instalado, há por ali comentários insultos de vária ordem, há mesmo uma atmosfera de derrisão em que o Manifesto Anti Dantas, de Almada Negreiros transforma-se numa catilinária à geração dos coelhos. Manilha está presente mas ausente, tem reminiscência duma cacofonia de canhangulos e carabinas, em desconcerto, a acordar o matorral. As balas, desencontradas, a silvarem traços de morte à sua volta, ceifando o chão e cravejando o arvoredo. À mesa, todos discutem, entusiasmado. A enteada de João Manilha vê duas gotas a escorrerem nas faces de João Manilha. Este está sozinho na guerra, vai matando, vai incendiando, está em Nambuangongo e salta para Wiriyamu, a menina grita: “Acudam, que o pai está mal! Depressa! Ai, que ele ainda morre!”.

“Crepúsculo de Sangue” pode não ser uma jóia literária mas reconduz-nos ao inferno da doença não tratada, vai ao coração do trauma da guerra e alerta-nos para um sofrimento que ainda devasta muitos antigos combatentes.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14064: Notas de leitura (659): “Cabo Verde e Guiné-Bissau: Da democracia revolucionária à democracia liberal”, por Fafali Koudawo, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 2001 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13824: Notas de leitura (646): “Os congressos da FRELIMO, do PAIGC e do MPLA: Uma análise comparativa”, por Luís Moita, CIDAC/ULMEIRO, 1979, e "Aprender português na Guiné-Bissau": Um manual do aluno datado de 1994 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2014:

Queridos amigos,
Neste afã de ajuntar o que à Guiné diz respeito, dei com esta edição do CIDAC de 1978 e permito-me chamar à vossa atenção para o papel pioneiro que eles tiveram na cooperação luso-guineense, é documentação que se pode consultar na sua sede, não há para ali revelações bombásticas mas dá para verificar que houve muita generosidade, vários doadores apostaram no progresso guineense. E coube-me a sorte em encontrar um tocante livro de aprendizagem português feito em parceria com a Escola Superior de Educação de Setúbal.
Dá gosto ver como sabemos ajustar a comunicação e ir ao encontro às reais necessidades dos outros.

Um abraço do
Mário


Os congressos da FRELIMO, do PAIGC e do MPLA: 
Uma análise comparativa

Beja Santos

“Os congressos da FRELIMO, do PAIGC e do MPLA: Uma análise comparativa”, por Luís Moita, CIDAC/ULMEIRO, 1979, é o balanço feito por um dos fundadores do CIDAC aos congressos dos três principais movimentos de libertação africanos de língua portuguesa, em 1977. Para o leitor mais interessado em conhecer a história do CIDAC, que começou por ser Centro de Informação e Documentação Anticolonial, logo em maio de 1974, e que se tornou posteriormente em Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral, remete-se para o link: www.cidac.pt/files/9013/8434/2125/Solidariedades.pdf, encontra-se neste documento a narrativa de 30 anos atividade laboriosa em termos de cooperação com as ex-colónias, o estudioso poderá encontrar na Biblioteca do CIDAC (Rua Tomás Ribeiro, 3-9 1069-069 Lisboa) o historial da cooperação com a Guiné-Bissau.

Importa registar que Luís Moita escreveu sobre os congressos do PAIGC anteriores a 1977. Referindo-se ao Congresso de Cassacá (13 a 17 de fevereiro de 1964), cita uma frase de Amílcar Cabral em 1969: “O partido já estava doente, após um ano de luta”. O Congresso tomou decisões fundamentais no domínio da organização política e militar, trata-se de matéria que está profundamente documentada. Passado 9 anos, o PAIGC reuniu o seu II Congresso no Boé. Em dezembro de 1972, tinham decorrido as eleições para a Assembleia Nacional Popular e em 20 de janeiro Cabral é assassinado. Neste II Congresso decidiu-se convocar a Assembleia Nacional Popular no decurso desse ano 1973, a fim de cumprir a decisão de proclamar o Estado da Guiné, são os acontecimentos de 24 d setembro de 1973. São portanto Congressos que assinalam etapas fundamentais da luta e onde se tentou a superação de contradições e dificuldades sentidas enquanto movimento independentista.

Luís Moita detém-se uma estrutura social guineense e cabo-verdiana e alude ao relatório do Conselho Superior de Luta do PAIGC onde se diz que o processo histórico da luta de libertação nacional foi desencadeado não por uma classe mas pelo setor revolucionário da pequena burguesia, não havia, tanto na Guiné como em Cabo Verde, um operariado consciente dos seus interesses.

O III Congresso debruçou-se sobre os anos de poder, entre 1974 e 1977. O PAIGC não fala em revolução socialista,  fala em democracia nacional revolucionária e procura não iludir as realidades: o poder político assentava numa base económica frágil, em virtude do baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas nacionais, por isso a tarefa primordial era alargar e fortalecer a base económica do poder político. O III Congresso considerou que a etapa que se vivia era fundamentalmente caraterizada pelas necessidades de consolidação da independência e de mobilização nacional.

Entendia o PAIGC que se tinha estruturado como partido e tinha adotado um programa de frente nacional, era a vanguarda do povo da Guiné e Cabo Verde, praticava uma política de unidade nacional e definia-se como um movimento de libertação no poder. Neste III Congresso aprovaram-se novos estatutos do PAIGC onde se equacionavam as relações entre o partido e as organizações de massas:

  “Processam-se na base do princípio da independência orgânica e autonomia dessas organizações e do princípio da direção e controlo pelo partido”.

E assim chegamos ao conceito de desenvolvimento, apresentado por Aristides Pereira: 

“Só tomando medidas concretas que conduzam à liquidação da exploração pelo homem na nossa terra podemos criar as condições para que seja real o progresso continuo no nosso povo. Isto significa que o desenvolvimento da nossa terra tem de processar-se na base da mobilização das camadas mais desfavorecidas da população, sobretudo dos trabalhadores do campo”

E, mais adiante: 

“Na Guiné, há duas questões fundamentais que estamos a desenvolver: uma, é a criação de condições que conduzam ao estabelecimento do equilíbrio da nossa balança de pagamentos e a outra é a necessidade de reforçar e alargar as medidas tendentes a quebrar o círculo fechado da nossa autossubsistência, em que se encontra 80 % da nossa população”

Segue-se a enumeração de um conjunto de projetos, que, como se sabe, ou foram rotundos fracassos (caso do complexo agro industrial do Cumeré) outros que não encontraram doadores ou financiadores.

A direção do PAIGC eleita no III Congresso tinha a seguinte Comissão Permanente: Aristides Pereira (secretário-geral), Luís Cabral (secretário-geral adjunto), Francisco Mendes, João Bernardo Vieira, Pedro Pires, Umarú Djaló, Constantino Teixeira e Abílio Duarte.

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Aprender português na Guiné-Bissau: 
Um manual do aluno datado de 1994

Encontrei este manual editado pela Escola Superior de Educação de Setúbal na Feira da Ladra, teve uma tiragem de 900 exemplares, foi escrito por Alcina Ferreira e tem desenhos de Luís Balata e Manuel Júlio, a capa é de Elisa da Costa, uma aluna guineense.

Na apresentação ao aluno diz-se que “Durante este ano, vais aprender a escrever em pequenas frases aquilo que pensas. Vais também aprender a ler melhor, para entender o que os outros te contam por escrito. No fim deste ano serás capaz de ler o jornal, as cartas, as revistas e outros livros”.

É um livro felizmente articulado com as realidades guineenses, oxalá tinha sido útil a muitos meninos, preparando-os para falar mais fluentemente o português. Dá gosto ver materializada a cooperação entre metodólogos portugueses e guineenses, o manual tem conteúdo e a sua sobriedade não afeta o valor das mensagens. Aqui ficam algumas imagens.



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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13806: Notas de leitura (645): “Cidade e Império, Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais”, organizadores Nuno Domingos e Elsa Peralta, Coleção História e Sociedade, Edições 70 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13275: (In)citações (66): Sobre o 10 de Junho, Dia da Raça (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 11 de Junho de 2014:


Sobre o 10 de Junho, dia da Raça

Comemora-se hoje o dia da raça. Durante o período colonial, designadamente durante a guerra de África, a RTP dedicava importante espaço de emissão à grande sala de cerimónias no Terreiro do Paço, onde as tropas formavam, onde se juntavam deficientes e familiares de falecidos durante a missão africana, e alguns combatentes que eram publicamente homenageados (todas as nações elegem os seus heróis), e apresentados como exemplos a seguir. Havia, claro, um período para discursos, que continham mensagens de patriotismo e devoção nacional, como símbolo do sentido militar. Lembro que o juramento de bandeira, abrangia a dádiva da vida pela defesa nacional. Era grande o sentimento de comunhão e solenidade entre civis e militares. Se os milicianos juravam a defesa da nação até às últimas consequências, os militares profissionais, por maioria de razão e opção de vida, também o faziam. Aliás, entroncava nessa vertente o chamado estatuto militar, que contemplava a especial condição de contagem de tempo para reforma, e a excepcional melhoria de vencimento enquanto deslocados em África, entre outras situações distintivas da condição militar.

Hoje recordei a clivagem gerada pelo MFA. Aquele movimento veio justificar o golpe que levou a cabo, pela conclusão de que a guerra só poderia ter uma solução política. Tal conclusão, por parte dos profissionais militares que, em princípio, estariam de posse dos elementos conclusivos naquela direcção, deveria ter dado sinais claros dessa preocupação, depois de o tentarem pela via hierárquica, fazendo chegar ao Governo relatórios suficientemente estruturados, e demonstrativos das novas razões que se impunha ponderar. Estas coisas não acontecem com a facilidade de premir o interruptor, pelo que deviam estar preparados para um período de debate governativo, depois de estabelecidos canais de comunicação adequados, e que garantissem o necessário segredo sobre as "démarches". A união em torno de argumentos sérios e inequívocos, daria aos capitães a garantia de não haver vítimas disciplinares, ou outras que se mostrassem ostensivas.

Tudo parecia correr com "normalidade": os profissionais eram mobilizados com parcial regularidade para comissões no ultramar. Alguns integravam unidades de combate. Os restantes exerciam as suas actividades, em princípio, a recato dos perigos da guerra e chegavam a fazer-se acompanhar pelas famílias. Daqueles que integravam, como comandantes ou sub-comandantes, as unidades de combate, alguns assumiam o risco, outros refugiavam-se nas sedes das unidades, e renunciavam às suas obrigações de líderes de combatentes. Esta situação era conhecida e tolerada. Os comandantes de unidades de combate que se refugiavam de riscos, nem sequer eram instigados a mudar de atitude. Nessa medida poderiam influenciar a maior ou menor eficácia dos seus comandados que, em geral, ficavam sob a tutela dos jovens milicianos comandantes de pelotões, que praticavam e intuíam a guerra conforme as suas experiências e capacidades. Este, poderemos considerar um primeiro paradoxo.

O livro do General Spínola, "Portugal e o Futuro", desencadeou uma espécie de debate público entre apoiantes e oponentes do Governo. Mas, se o livro propunha uma solução política que não contemplava a independência do ultramar, e limitava implicitamente as negociações com os movimentos de libertação, parece ter inspirado definitivamente as insondáveis angústias dos militares, que viriam a desencadear o golpe, sem que tivessem acautelado alguma responsabilidade perante a nação, tendo em conta que os seus argumentos poderiam ser óbvios na defesa do interesse nacional. Em vez de um golpe, poderiam ter tido a força para, ponderada e decisivamente, ajudar o país a descobrir novos rumos políticos e estratégicos, que garantissem uma regular passagem de uma situação a outra, incluindo qualquer das formas de autodeterminação. Ora, o que aconteceu, nos termos em que aconteceu, de abandono acelerado de territórios e gentes, pode exprimir novo paradoxo.

Entretanto, já havia mostras de vontade negocial por parte dos movimentos, nomeadamente, na Guiné e em Moçambique, que envolviam nações do grupo dos afro-asiáticos como o Senegal, o Malawi e a Zâmbia, para além de outras nações ocidentais. Em Angola, vivia-se um clima de grande tranquilidade, com a guerra praticamente em banho-maria. Mas Angola era um caso especial de progresso e desenvolvimento económico e social, onde todos poderiam ser integrados na vida profissional, e havia estruturas que, se não fossem exemplares, davam mostras claras de um estado organizado. Em todas as parcelas podemos dizer, que os movimentos não tinham apoio regular das populações, o que contrariava um dos princípios fundamentais da guerrilha, pelo que não eram representativos de nenhuma parte específica de cada uma das chamadas "províncias", além de lhes faltar homogeneidade ideológica. Outro paradoxo.

Esta situação ilustra que a guerra era alimentada do exterior por países satélites de interesses ou ideologias (USA, URSS e China). Na Guiné, o PAIGC não tinha identidade ideológica com o Senegal, pelo contrário, conflituavam frequentemente. Em Moçambique também a Frelimo não mantinha identidade com os países vizinhos, apesar da guarida dispensada por dois de entre seis, embora reflectisse algum perigo político-económico relativamente a alguns deles.

Desencadeado o golpe veio a verificar-se, porém, que nenhuma das razões apontadas como justificativas, correspondia a um espírito de grupo coeso e identificado com o Programa. Na verdade, logo aconteceram as diatribes provocadas por inúmeras diferenças de objectivos e comportamentos, entretanto influenciados pela política, tornando clara a impreparação de um golpe que se pretendia representativo do sentir das Forças Armadas. A desorientação espelhou-se na procura de civis mais ou menos credenciados, com oportunismos à mistura, no sentido de oferecerem alguma espécie de garantia e desapego do poder, tanto interna, como internacionalmente. O que atrapalhava esse objectivo, era a constante confrontação e definição de grupos de pressão. Disso viria a reflectir-se a sucessão de asneiras sobre o ultramar. Inventou-se a "descolonização exemplar", que não foi além da entrega ostensiva, imoral, incompetente e criminosa, dos destinos das colónias aos movimentos que, além de não serem representativos, não eram manifestamente capazes de assegurar o normal funcionamento das nações onde passaram a governar, porque o MFA e os políticos cooptados, todos sem legitimidade democrática, em nome de uma pretensa superioridade moral e democracia de satisfação a interesses externos, capitulavam surpreendentemente nas negociações com os movimentos, e com isso condenaram todos os que, pretos, mulatos ou brancos que se acolhiam sob a cultura, bandeira e nacionalidade portuguesa, a situações vexatórias de violação dos direitos mais sagrados, ao arrepio de uma tutela internacional consagrada na Carta da Nações Unidas, e fica manchado como atitude de desprezo dos militares pelas obrigações que juraram assumir, o que constitui outro paradoxo.

O Programa do MFA, segundo um contemporâneo, foi redigido em termos de congregar as vontades que ainda se encontrassem dispersas, de obter a adesão de todas as correntes políticas e, mesmo, a contemporização das camadas conservadoras da sociedade portuguesa, o que constituía evidente ardil e novo paradoxo. Muitos portugueses optaram pela comemoração emotiva do evento, sem que o tivessem apreciado na essência, e priveligiaram exuberantemente a exultação da contradição com o regime autoritário deposto. Deram gestação ao Estado liberal (travestido de socialista, que ia do CDS à UDP), incongruente e deficitário que persiste.

Último paradoxo: toda a gente sabe, e está consignado na lei, que qualquer individuo com ligações laborais fica vinculado a princípios de lealdade e disciplina, pelo que no caso dos aderentes ao MFA, empregados do Estado, tendo em vista a desgraça de consequências daquele acto colectivo, só por terem sido rebeldes vencedores, é que não respondem pelas indignas consequências do que levaram a cabo, assim como, também se evidencia a cumplicidade nas relações entre políticos (poder constituído) e militares, prova provada, do atraso social da comunidade onde ocorreram as situações descritas, numa comunhão e protecção de interesses semelhante à que perdurava durante o regime derrubado.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13212: (In)citações (65): Salvemos o elefante africano que 40 anos depois do fim guerra volta a percorrer o corredor de migração de Gandembel, Balana, Cumbijã e Colibuía na época das chuvas!

terça-feira, 15 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9904: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (22): Havia mais "PALOP" (entendimentos) antes das independências

1. Mensagem do nosso camarada António Rosinha, (ex-Fur Mil em Anagola) topógrafo na TECNIL na Guiné-Bissau, depois da sua independência, com data de 11 de Maio de 2012:

Havia mais "PALOP" (entendimentos) antes das independências

Guerra colonial portuguesa, Guerra do Ultramar, Luta de Libertação Nacional de Angola, Guerra de Independência da Guiné-Bissau, Luta de libertação de Moçambique, sem falarmos nos casos de São Tomé e Cabo Verde, são tantos os nomes da guerra da geração dos que nasceram nas décadas de 40 e 50 do século passado, que todos os nomes se podem ajustar a cada circunstância.

Mas se quisermos balizar a guerra entre as datas que provocam a frase “para Angola e em força” de Salazar, até à entrada de Marcelo Caetano no Chaimite de Salgueiro Maia, então se quisermos ser realistas com a história, foi como “Guerra do Ultramar”, nome com que no continente e ilhas era alcunhada a guerra pelos soldados que embarcavam no continente e ilhas, a caminho das colónias.

Mas para os movimentos que lutaram contra os que iam do continente e ilhas e imensos que eram naturais das colónias, essas datas dizem muito pouco, pois eles próprios, que são vários movimentos, cada qual tem as suas datas, ignorando mesmo as datas importantes dos outros movimentos irmãos.

E exigem para cada um, o seu próprio protagonismo, e hoje, até fazem por ignorar os feitos dos “irmãos” e assumiram as suas próprias datas comemorativas, exclusivas e isoladas uns dos outros, quando na realidade foi em conjunto que trabalharam.

Esta é uma realidade que se quer varrer para debaixo do tapete pelos 5 PALOP, que estiveram sempre associados na luta contra o colonialismo português, e hoje quase se ignoram.

Claro que podem ser encontradas razões para esse afastamento entre os governos MPLA/FRELIMO/PAIGC/PAICV
(Não incluo aqui São Tomé nem a UNITA nem FNLA nem RENAMO porque estes foram secundarizados por aqueles).

É que o protagonismo dos dirigentes desses movimentos “vitoriosos” que se relacionavam entre si a nível internacional, era tão excessivo que apagaram o sacrifício que os povos sofreram, tanto dos que acreditaram nesses movimentos como aqueles que ainda hoje não acreditam.

E como esses dirigentes, que se conheciam todos uns aos outros e se entendiam bem, eram tão poucos que rapidamente foram sendo apagados e excluídos politicamente e até eliminados fisicamente alguns, e hoje “desconhecem-se” mutuamente, após as independências e as vicissitudes que se seguiram, porque os dirigentes que “sobraram” eram desconhecidos uns dos outros.

Ao contrário do que se passava no tempo colonial, que havia uma união entre os principais protagonistas da luta anti-colonial, e mesmo entre eles e a oposição política portuguesa metropolitana, e agora não há CPLP nem PALOP “que lhe valha”, e é uma pena que a tal elite tradicional que existia se tenha apagado tanto, embora fosse previsível que tal acontecesse.

Era uma mais valia enorme para todos os 5 PALOP, pois havia muito entendimento entre eles e é a união que faz a força, pode ser que um dia reapareça essa união que existiu, o que parece difícil.

A conjugação de esforços e entendimento entre os dirigentes dos referidos movimentos era tal que no caso de Amílcar Cabral é considerado nos relatos históricos como co-fundador de MPLA, angolano, e do PAIGC.

E após as independências, no caso da Guiné é bem conhecida a colaboração de guineenses e cabo-verdianos do PAIGC que se prolongou durante bastantes anos, e acabou essa colaboração com maus resultados para o futuro da Guiné.

Mas sabemos que não era a colaboração que estava errada, mas as políticas “importadas” e completamente erradas e contrárias ao espírito dos povos e que não diziam nada às pessoas, e que acabaram num virar de costas, mau para todos.
(Absurdos como ideologias guevaristas em balantas, Ganguelas e macuas ou beirões e algarvios, nem em Cuba foi bom)

Ainda no caso da Guiné, conhecemos no tempo de Luís Cabral, um angolano como ministro do governo guineense, Mário Pinto de Andrade, que foi, durante a luta anti-colonial um dos presidentes do MPLA.

Mas como todos os casos semelhantes a Mário Pinto de Andrade, que já era um “exilado” de Angola, tornou-se exilado também da Guiné, foi péssimo a fuga dos mais informados.

E foram milhares de angolanos, guineenses, e de todos os PALOP, que se “exilaram” em Portugal, no Brasil e por todo o lado. Por cá, ainda há quem chame a alguns de retornados. Mas periodicamente, durante estes 38 anos de independências, os mais informados vão-se afastando dos seus países.

Embora muitos países em África descolonizada tenham problemas semelhantes, no caso das ex-colónias portuguesas têm uns problemas específicos, à vista de todos.

Menciono dois:

Um desses problemas mencionava-o Samora Machel numa visita a Portugal num discurso com Ramalho Eanes, presidente, dizia Samora que: “…todos têm pai, só nós (moçambicanos) não temos pai", referia-se à colaboração dos vizinhos com a Inglaterra. (neocolonialismo???), chame-se o que se queira, mas da parte de Portugal era impossível impor-se à “bola de neve” que esses movimentos criaram, que até os próprios dirigentes esmagou.

O outro enorme problema específico é o êxodo quase total da tal elite que Amílcar falava como a “burguesia “ que corria o risco de se suicidar, mas que tanta falta fazia viva, mas bem viva, porque eram patriotas, bem formados e formavam uma sociedade sã e adaptada aos vários ambientes étnicos, religiosos e culturais e já não se consideravam nem eram vistos pelas etnias, como simples colonos, embora a maioria fossem brancos ou mestiços e muitos eram negros já desintegrados da respectiva etnia.

Não se suicidou, mas exilou-se contra a vontade da maioria deles que não viram maneira de contrariar as forças internacionais, tremendamente malignas para todas as etnias africanas, que a “demagogia das independências” atraiu naquele momento errado.

Claro que esta gente que (conheci e fui colega de centenas) teve que se “exilar”, também deita muitas culpas para cima da tropa e dos políticos tugas, por certas coisas correrem tão mal.

Mas para a “morte ter desculpa”, quando vemos as revoluções e os massacres por motivos étnicos, religiosos, fronteiriços ou políticos em África, se for nas ex-colónias portuguesas pode-se dizer que a culpa foi do atraso em que Portugal deixou aqueles territórios, noutros casos fica à responsabilidade da ONU, essa abstracção.

Quando digo que havia mais PALOP (entendimento) entre aqueles cidadãos desses futuros países, havia mesmo uma irmandade tão saudável e até com alguma rivalidade competitiva e orgulho na própria terra que era entusiasmante e saboroso conviver e assistir ao entusiasmo daquela gente, antes do terrorismo do Norte de Angola e mesmo depois.

Mas há certos motivos para explicar a diminuição de um sentimento “PALOP”, mas deixo para momento mais propício,

Claro que a Europa colonialista cansada da guerra da Índia, da guerra da Indochina, da 2.ª Grande Guerra, optou por ver os outros em guerra, sozinhos.

Alguns de nós portugueses, assim como em tudo, seguimos sempre a Europa um pouco mais atrasados, tinha que ser.

Um abraço e coragem para os editores “editarem sempre”
António Rosinha
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9655: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (211): TECNIL, importante empresa de obras públicas, que desaparece do mapa (Parte III)

segunda-feira, 28 de março de 2011

Guiné 63/74 - P8008: Notas de leitura (221): A Luta pela Independência, por Dalila Cabrita Mateus (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2011:

Queridos amigos,
Nada mau como dissertação de mestrado, imensos dados da maior importância, entrevistas com revelações nunca antes publicadas. Esclarecedor da torrente de utopias e do entusiasmo desses dirigentes africanos que julgavam estar à altura de uma tarefa gigantesca. Falaram em geração da utopia, reuniram-se em Lisboa, ainda nos anos 40, depois da guerra, e foram a correr atrás dos ventos da descolonização. É o estudo desse percurso, a maioria deles andou por estas ruas de Lisboa, até por quartos alugados. O prédio da Casa dos Estudantes do Império ainda lá está, no Arco do Cego.

Um abraço do
Mário


À volta da formação da elite fundadora do PAIGC (1)

Beja Santos

“A Luta pela Independência, a formação das elites fundadoras da FRELIMO, MPLA e PAIGC” foi o primeiro trabalho de investigação de Dalila Cabrita Mateus (Editorial Inquérito, 1999). Com base numa dissertação de mestrado, este trabalho de investigação discorre sobre as lutas pela independência das ex-colónias portuguesas, entra na questão de fundo das opções ideológicas e modelos económicos e sociais adoptados por tais movimentos e procura equacionar os diferentes factores que conduziram tais opções a insucessos.

A autora, foi das primeiras investigadoras a trabalhar os então recém-disponibilizados arquivos da PIDE, estrutura a sua investigação na seguinte linha de análise: espinha dorsal da chamada missão civilizadora portuguesa; constituição das elites urbanas e crioulas dos três principais movimentos independentistas; ambiente em que se formaram as elites africanas em Portugal, sobretudo em torno de A Casa dos Estudantes do Império (CEI) e na órbita do PCP; natureza dos apoios externos à luta independentista; da utopia ao colapso da pequena burguesia independentista. Obviamente que esta recensão procurará, no essencial, dirigir-se à questão guineense.

1945 foi o ano em que, praticamente, se iniciaram as actividades da CEI, que irá ter um papel destacado na formação das elites políticas que fundaram a FRELIMO, o LMPA e o PAIGC. Ao tempo, já está em marcha a missão civilizadora que tem a sua pedra de toque no Acto Colonial, onde se afirmava ser “da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar populações indígenas que neles se compreendam”. Questão matricial era a doutrina da superioridade racial dos colonizadores, como proferiu Salazar em 1933: “Devemos organizar cada vez mais eficazmente e melhor a protecção das raças inferiores”. E como acrescentará em 1957: “Nós cremos que há raças, decadentes ou atrasadas, como se quiser, em relação às quais perfilhamos o dever de chamá-las à civilização”.

Embora estes conceitos tenham vindo a ser posteriormente amaciados nas exposições do ditador, ele nunca as retirou da sua perspectiva teórica. O regime lançou as bases do desenvolvimento, dentro da lógica do aproveitamento dos recursos a pensar na economia da metrópole e na transferência de mão-de-obra da Metrópole para as colónias. Em torno desse processo colonizador havia que encontrar cidadania e estatuto para os chamados não-civilizados. Na década de 50, a esmagadora maioria dos africanos continuava a ser considerada não-civilizada. A autora documenta com a evolução do ensino oficial nas colónias, postula com a evolução do ensino missionário católico e como este acabou inevitavelmente por entrar em conflito com a missionação das igrejas protestantes.

Está perfeitamente documentado o papel de Amílcar Cabral, nos anos 50 do MPLA e PAIGC. Os dirigentes da corrente independentista circulavam no meio de elites crioulas e o PAIGC, como é por demais sabido, assentou nas elites crioulas da Guiné e Cabo-Verde. Foi em Bissau, no número 16-A da Rua Dr. Vieira Machado (na casa onde morava Aristides Pereira), que se realizou, em Setembro de 1956, a reunião onde participaram Amílcar e Luís Cabral, Aristides Pereira, Júlio Almeida, Fernando Fortes e Elysé Turpin. Seguiu-se a mobilização orientada para as camadas urbanas. Em 1958, o partido criava a União Nacional dos Trabalhadores da Guiné, organização sindical clandestina. Estima-se que em 1959, ano do massacre do Pidjiquiti, havia meia centena de membros activos, mas quase todos em Bissau. Com o desenvolvimento da luta, a origem social dos militantes do PAIGC modificar-se-á e em 1962-1963 assentará profundamente no campesinato do interior. Os principais dirigentes são cabo-verdianos e estes serão sempre uma percentagem insignificante dos combatentes.

A CEI é o ponto de encontro destes jovens que vêm à procura de habilitação superior. A casa [CEI – Casa dos Estudantes do Império] surgira ligada à Mocidade Portuguesa, fora patrocinada pelo Ministro das Colónias e pelo Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa. Situava-se no Arco do Cego, no nº 23 da Avenida Duque d’Ávila. Está lá hoje uma lápide a lembrar a sua existência, bem mal tratada por sinal.

Surgem publicações e Amílcar Cabral, com o pseudónimo de Arlindo António, irá aqui publicar um dos seus primeiros textos de reflexão política. Dalila Mateus descreve o funcionamento da CEI bem como doutras organizações, como é o caso do Centro de Estudos Africanos, o Clube Marítimo Africano e a Casa de África. As influências político-orgânicas radicaram na projecção do PCP, pólo de atracção destes líderes africanos.

Como recorda a autora, o PCP foi praticamente a única força oposicionista organizada no seio da juventude universitária. Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos, Mário de Andrade e Vasco Cabral fizeram parte do MUD juvenil. Nesses anos 50 um número importante destes dirigentes começa a participar junto de entidades satélites dos soviéticos, na Europa de Leste. Depois, na perfeita clandestinidade, fundam organizações unitárias como o Movimento Democrático das Colónias Portuguesas, o Movimento Anticolonialista, que evoluirá para a FRAIN (Frente Revolucionária Africana para a Independência das Colónias Portuguesas) e depois a CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas).

Debruçando-se sobre as influências político-culturais destes estudantes africanos, revela-se que eles liam Gorki, Ehremburg, Cholokov, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Fernando Amora, José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, entre tantos outros. Aliás, a autora entrevistou alguns desses dirigentes e verificou que o leque de leituras era extensivo aos franceses e norte-americanos. O grosso das fugas começa no início da década de 60, vão engrossar os quadros dirigentes dos movimentos de libertação, muitas vezes graças à colaboração dos quadros comunistas portugueses.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7960: Notas de leitura (220): Comício, um grande poema em defesa do ultramar, por Couto Viana (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7454: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (11): O PAIGC que nos saiu na rifa, a Portugal e à Guiné: Cumbe di Baguera / Ninho de abelhas

1. Texto do nosso camarigo António Rosinha


Data: 15 de Dezembro de 2010 23:20


Assunto: O PAIGC que saiu a Portugal e à Guiné - Cumbe di Baguera


Quando se fala que Portugal não preparou elites africanas a quem entregar a governação das suas colónias, partimos do princípio que franceses, ingleses e belgas criaram essas elites.


Não pretendo contrariar ou desmentir quem assim pensa, porque tudo é relativo, conforme quisermos ver esta questão, até podemos dizer que os movimentos MPLA, FRELIMO e PAIGC tinham muita gente bem preparada para governar, tanto nos seus quadros efectivos, como no seio dos seus muitos simpatizantes.

Simplesmente Salazar jamais entregava as colónias fosse a quem fosse, e duvido que outros políticos portugueses que estivessem no governo o fizessem. Pelo menos naqueles anos 50/60 do século passado.

Se atentarmos em Amílcar Cabral, Vasco Cabral etc., e toda a burguesia guineense, (auto-intitulada), e toda unida e acreditando, tipo Yes, We Can, à volta do PAIGC, porque haveremos de afirmar que não havia uma elite para governar a Guiné? 


Se olharmos para Cabo Verde vemos que era viável tal governação, e o Luís Cabral chegou a dar mostras de ser possível governar a Guiné.


Em Angola, essa burguesia era descomunalmente superior em número à da Guiné. Qualquer cidade angolana tinha angolanos na chefia de todos os organismos públicos, exceptuando os governadores gerais, e de distrito, e mesmo assim muitos já eram descendentes de africanos.


Tal como na Guiné, também havia em Angola muitos funcionários oriundos de Cabo Verde, que se viam nos Notários, Câmaras, Caminhos de Ferro, Portos, Obras Públicas, etc.


Sobre Moçambique não me pronuncio, mas penso que a FRELIMO tinha também nos seus quadros gente muito capaz.  


Mas, apesar de haver muita gente nas colónias que almejava libertar-se de Portugal, pouca gente em Portugal, e alguma em Angola, mesmo os anti-salazaristas, achavam normal uma independência porque já havia muita confusão na anglofonia e francofonia.


Nos outros movimentos pouco se sabe, porque de uma maneira geral ficaram muito ofuscados, quando não mesmo desaparecidos, caso da Guiné. Embora parecessem desactivados aos olhos de Spínola e de Amílcar, talvez existissem devidamente camuflados, e é de supor quem devia saber falar sobre esses hipotéticos movimentos camuflados, são os juizes que julgaram os assassinos de Amílcar.


Alguns desses juízes ainda estão vivos, podiam falar e escrever como foi, antes que desapareçam com a idade. Sem dúvida que havia muitos africanos, em que se podem abranger também lusodescendentes e caboverdeanos que possuiam o liceu ou tinham sido universitários ou estudaram em missões, estavam bastante preparados para governar as colónias portuguesas em 1960. O grande problema dessas elites é que, ao recorrerem a certos processos de luta, alguns desses processos nunca chegaram a ser compreendidos pelo povo, e afastaram a maioria dessas mesmas elites, que gostariam de se ligar activamente à luta de libertação, ou seja, lutar pela independência da sua terra. E, ao contrário, muitos até chegaram a lutar contra esses movimentos ao lado do exército português. 


E o que se seguiu à desistência da luta da parte do exército português com o 25 de Abril, aconteceu o que todos temiam, foi a guerra total, em Angola e Moçambique e, embora sem guerra declarada na Guiné, a mesma guerra esteve sempre latente até há poucos anos. 


Essa guerra latente, não seria perpetrada pelos tais movimentos camuflados a que me refiro atrás, que podiam existir bem disfarçados debaixo do emblema do PAIGC?


E, debruçando-nos apenas à Guiné e ao PAIGC, não teria Amílcar Cabral cometido um erro enorme, quando, com a sua reconhecida eficácia política e capacidade de persuasão, fez desaparecer todos os movimentos guineenses tipo FLING e outros? Em que estes movimentos, insidiosamente acabariam por se organizar sob a bandeira do PAIGC, e aí continuam até aos dias de hoje, dividindo em facções o partido e que teem provocado todos os acontecimentos nefastos, desde o assassinato de Amílcar, até ao fim de Nino Vieira?


Enquanto o MPLA tinha facções, em que até houve massacres que fazem esquecer o ques passou com PAIGC, toda a gente sabia quem era quem e de que lado estava, no PAIGC, mata-se e morre-se e tem sido tudo tão internamente que até hoje nem aparece nada escrito nem julgado, isto desde os tempos de Conacri.


O PAIGC criou uma constituição depois de 1981 (?), em que era vedado a cidadãos como Amílcar Cabral, com ascendentes estrangeiros, serem candidatos a presidentes da República. Este assunto era discutido publicamente em Bissau e não sei se ainda é assim.

 

Ao contrário do que se passa em Angola, os detratores de José Eduardo dos Santos [JES], (ou este próprio) fazem correr que ele é filho de sãotomenses. JES aproveita a embalagem para criar uma imagem de neutralidade tribal, o que é positivo; no caso de Amílcar é acusado que não é fidju di terra, e é criada uma imagem negativa.

E aqui entra o ninho de abelhas, Cumbe di Baguera, que em Canjadude, capital do mel, os apicultores colocam bem no alto de grandes árvores. Tal como o Cumbe de Baguera, o povo guineense viu sempre o PAIGC bem lá no alto, com as abelhas a picar os diversos apicultores, (Amilcar, Luís, Nino). E tal como o Cumbe di Baguera, impõe um certo afastamento a tudo o que o rodeia.

E o grande criador desse ninho de abelhas, foi Amílcar Cabral, (mesmo depois do multipartidarismo, continuou o ferrão pronto, ou seja, o dedo no gatilho). 

 

Houve muito entusiasmo nos primeiros anos de independência da parte dos jovens guineenses, mas prudentemente, uma faixa etária mais antiga, que assistiu à luta de libertação desde o início, ficou olhando sempre para o PAIGC com distanciamento, e o partido retribuia na mesma moeda.   Se o sonho de Amílcar Cabral era uma Bandeira e um país independente,  o sonho foi realizado. [Foto à esquerda, Domingos Ramos, empunhando a bandeira do PAIGC]


Se todos os meios para atingir os fins eram lícitos, também tinha razão, mas da parte do Estado português fosse qual fosse o governo, cairia muito mal perante a sociedade guineense se apadrinhasse uma independência a figuras como os fundadores do PAIGC, aliás, a outros quaisquer pois já estavam outros com apoios dos vizinhos.

 

E perante a política internacional daquela guerra fria daquele tempo, não seria um país como Portugal que teria hipóteses de proteger um governo apadrinhado, como faziam ingleses com uma Gâmbia, ou a França com um Senghor. Entregar à ONU? Sabemos o que se passava e passou onde essa entidade entrou. Aliás, na Guiné, desde a FAO, UNICEF, OMS, todos estes anos ajudaram àquilo que resta.

 

Como através do Blog e dos anos que vivi na Guiné, criei uma ideia do que se passou e podia ter passado neste país, e como vi em Angola, o papel de MPLA, da UNITA e da UPA (FNLA), e tambem criei ao fim destes anos uma ideia sobre Angola, transmito o que me pareceu ser o desempenho daqueles que aqui tratamos de IN.

 

Sobre o papel daqueles que por lá andámos, só espero que aquelas fronteiras nunca desapareçam, que será o mínimo dos mínimos que merece a memória daqueles que lá ficaram, porque se não fossem aqueles treze anos, nem as velas como as que arderam por Timor as salvavam.

Mas, como neste blog contamos a nossa história para que ninguém a conte por nós, é apenas e só o meu ponto de vista que aqui está. E ninguém me pergunte onde me documentei. Pode contestar e contradizer. Porque neste blog, cada um dá os tiros com a sua própria mauser.


Um abraço para a tertúlia, Antº Rosinha


[ Revisão / fixação de texto / título / fotos: L.G.]


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Nota de L.G.: 


Último poste da série > 23 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7321: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (10): As desilusões históricas ou Portugal não é para levar a série