Mostrar mensagens com a etiqueta França. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta França. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 21 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25291: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (22): O fado de Rosemarie - Parte I


Portugal > Museu Nacional de Etnologia > Exposição "Virgílio Pereira: Itinerários de um Etnógrafo" >  31 de maio de 2020 > Instrumentos musicais populares portugueses, dos anos 60: da esquerda para a direita, rabeca chuleira, viola amarantina, bombo e baqueta (em primeiro plano) e os ferrinhos (em segundo plano). Foto: Vergílio Pereira, s/l, s/d. Cortesia de Museu Nacional de Etnologia / Arquivo Virgílio Pereira (2020)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo > O fado de Rosemarie - Parte I

por Luís Graça

− Não, não foi o coração que me levou a fugir para França, a salto, escondida na mala do carro de um passador…

Foi assim que a Rosemarie (nome fictício, por razões óbvias) começou o seu "relato de vida": um passador que será depois seu amante, companheiro e, já no fim da vida, marido, de papel passado na mairie.

A salto !... Como tanto outros portugueses e até portuguesas, nos anos 60 até meados de 70...

E, no entanto, a Rosemarie já não era nenhuma jeune fille… Tinha 30 anos feitos... E era "criada de servir"...0

− Nasci em 1939, mon chérie.

Morto o Antoine [leia-se "an-tu-a-ne", diz-te ela], há uns largos anos atrás, no virar do milénio, a Rosemarie ter-se-á sentido liberta de algumas grilhetas que a manietavam, a começar pela incerteza quanto ao seu futuro…

Afinal, por decisão dos tribunais, acabou por ficar com o património do seu segundo marido, de quem fora uma cuidadora inexcedível no seu doloroso final de vida. Houve um processo litigioso com outros herdeiros, os filhos do primeiro casamento.

Libertou-se sobretudo de uma relação de amor-ódio que manteve com o Antoine, e que só se apazigou ou atenuou depois da decisão transitada em julgado, favorável aos direitos e interesses da Rosemarie.

− Passei a ser uma viúva francesa rica em Portugal, ou um viúva portuguesa remediada em França… − comentou ela, com amarga ironia.

Só nessa altura é que passou a tratá-lo por “gajo”, com sentido jocoso e sarcástico ao mesmo tempo, sempre que se referia ao falecido segundo marido.

Foi uma vida atribulada, a da Rosemarie, uma drôle de vie, como ela repetia amiudadas vezes, com muito humor, perpassado âs vezes com alguma tristeza mas quase sempre sem rancor.

E, no entanto, ela foi uma típica vítima de violência doméstica, nos seus dois casamentos… Curiosamente, com dois homens mais velhos que ela, e com um passado de guerra.

A sua vida ("que contada dava um filme") foi passada entre o Portugal dos sombrios anos 40 e 50, e a França gloriosa, da V República.

− Voltei à minha terra natal... nem sei bem porquè. Dizem que é a voz do sangue... Mas agora tratam-me por Madame. Dantes, quando era nova, não passava da Maria, nem sequer Rosa, muito menos Rosinha.

Gostava de ser tratada como Madame Ben Oliel. Conheceste-a numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélia, como légionnaire.

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher ou até effacer (esconder ou até apagar) a sua origem portuguesa e a sua condição, humilde , de imigrante em França, filha de rendeiros pobres do Norte de Portugal. O que, na realidade, nunca conseguiu por causa do seu accent: não carregava suficientemente nos "erres"...

L’important c´est la rose!... Ah, o meu querido Gilbert Bécaud ! − desviava ela a conversa quando se tocava numa tecla mais sensível.

Tu havia-la conhecido, há já uns bons anos, quando ela andava perto dos 70, conservando alguns traços da sua beleza e jovialidade de juventude, com uns fatais olhos verdes.

− Quando tinha quinze anos, mon chéri, eu já era uma moçoila vistosa, espigada, nutrida de carnes… Mas era filha de rendeiros pobres, com um bando de filhos para alimentar. E, nessa altura, criada de servir em Chaves.

Adorava bavarder, falava pelos cotovelos, e às vezes despudoradamente.  Aceitou com relativa facilidade o convite para ser entrevistada para uma projeto de investigação sociológica sobre "histórias de vida de mulheres imigrantes portugueses em França". Envolvia também investigadores franceses que a ouviram, por seu turno, nos arredores de Paris (onde tinha residência oficial).

Naturalmente, o investigador português deu-lhe todas as garantias de sigilo e anonimato. Infelizmente meteu-se a pandemia pelo meio e, num dos seus regressos a França, acabou por adoecer e morrer, estupidamente, de covid-19. Por amigos da Rosematie, soube- se que terá morrido por infeção hospitalar… Ia fazer 81 anos.

Ficou-te então a vontade de evocar (e de certo modo homenagear) a sua figura. Infelizmente, não foi cumprida a sua última vontade, a de ser enterrada na terra que a viu nascer. Foi cremada num cemitério dos arredores de Paris, “por razões de Estado” (ou seja, de saúde pública…). Desconhece-se se deixou herdeiros, mas devia ter pelo menos sobrinhos algures, em parte incerta.

Conheceste-a na casa de praia de uns amigos comuns, parisienses, que vinham há muito a Portugal, nas férias de verão, desde 1974, atraídos pela revolução dos cravos.  Agora, professores reformados, passavam cá mais tempo. A Rosemarie era visita frequente da sua casa, perto da lagoa de Óbidos.

Nunca chegaste a saber exatamente quais eram as suas afinidades mas, das conversas cruzadas, haviam-se tornado amigos desde o tempo em que a Rosemarie cantava o fado no bistrot do Antoine.

Sem ter uma voz de eleição, a Rosemarie não imitava nada mal a Amália e até dava uma certa parecença de corpo, com dezanove anos de diferença em termos de idade… Não sem uma incontida vaidade, acrescentava:

− A Amália tinha a voz, aquela voz… E eu tinha os meus olhos, aqueles olhos verdes… 'Olhos verdes são traição, são cruéis como punhais'... Quem cantava isto ?...

− Ah!, o Francisco José, um rapaz do seu tempo...

Estes amigos franceses comuns adoravam Portugal, o sol, os fruits de mer, e muito em especial as huîtres, as ostras, a que chamavam les portugaises. E, claro, o fado, a Amália que tinham ainda conhecido, em vida, e no Olympia de Paris.

Nesse fim de semana do 14 Juillet, um sábado, em que conheceste a Rosemarie, rapidamente ganhaste a sua confiança e até a sua afeição. Falavam ora em francês, ora em português, mas longe da vista dos anfitriões, entre duas ostras e um vinho branco das Gaeiras. Sentia-se mais à vontade para fazer confidências, estando só contigo.

Explicaste-lhe que a equipa estava muito interessado em conhecer a histoire de vie de mulheres portuguesas, como ela, que tiveram a coragem de dar o salto, o duplo salto, o da emigração clandestina e o da rutura com os usos e costumes do Portugal dos anos 50/60.

Acabaste por criar laços afetivos, de empatia e até de amizade, contrariando até a tua deontologia profissional. Ainda se encontraram três ou quatro vezes e falaram ao telefone. E tiveste acesso à transcrição da entrevista feita pela equipa francesa. Em suma, conheceste razoavelmente bem a sua biografia.

Com tristeza soubeste da sua morte, vítima da pandemia do século. Tratava-te, carinhosamente, por mon chéri. meu querido ou meu jovem. Era muito maternal.

Era da região de Basto, ou Terras de Basto, sendo os seus pais oriundos de uma aldeia da serra do Alvão.

− Sou a filha mais velha das raparigas de uma família de rendeiros. Éramos um rancho, entre rapazes e raparigas, uma dúzia, fora os dois que terão morrido ainda anjinhos do céu.

E acrescentava:

− Criada de servir, femme de ménage, era o destino que nos esperava, a nós, raparigas, jeunes filles.

Naquele tempo iam para Chaves para casa de algum militar, oficial de carreira. Ou para Cabeceiras de Basto, terra de brasileiros ricos. O mais longe era para o Porto, para casa de "algum senhor doutor", médico ou magistrado, ou de algum comerciante abastado da Baixa.

− Ganhava-se uma miséria de 200 ou 300 mil réis, com cama, mesa e roupa lavada.

E mesmo assim eram precisas referências, cartas de recomendação e sobretudo uma boa cunha do abade da freguesia. Como as enfermeiras. Nesse tempo, era preciso mostrar “boa robustez física” e comprovar a “conduta moral irrepreensível”…

 As raparigas não iam à escola, quando muito faziam o exame da 3ª classe, com explicações e bofetões de uma mestra particular ou uma “regente escolar”.

No caso da Rosemarie, já era uma moçoila quando abalou para Chaves, em meados dos anos 50 como “criadita de servir” de uns senhores da família do fidalgo para quem os pais trabalhavam…

Fidalgo ?! – indagaste, curioso.

− Só por se dizer que tinha uma casa apalaçada, com um brasão antigo do tempo do senhor Dom João V, se não me engano, que eu da História de Portugal não sei nada. O muito pouco que sei,  ouvi-o desses senhores,  meus patrões.

Tinha casado, entretanto,  aos 24 anos, em finais de 1963.

− Foi a minha desgraça, a minha sina, o meu fado! – comentou. com alguma amargura na voz.

Para fugir da miséria da casa paterna e da ditadura dos patrões de Chaves, casara com "o primeiro fils de putain”, o primeiro filho da p…,  que conheceu num baile, já em Resende. E que a “desonrou” (sic).

Tratava-o sempre por “cabrão”, ao primeiro marido, para o distinguir do segundo, o companheiro com que viveu maritalmente muitos anos em França, o Antoine, de quem se voltara a falar, mais à frente.

A Rosemarie era muito "desbocada", não se coibindo de usar o palavrão nortenho, mesmo frente a pessoas estranhas. Adorava falar de algumas das suas aventuras e desventuras, não sem alguma falta de pudor.

Para. ti era a entrevistada ideal, se bem que depois fosse preciso separar o trigo do joio. Perdia-se muitas vezes com histórias laterais e detalhes circunstanciais, obrigando-te a reformular ou repetir a pergunta…

Nascida em 1939, a Rosemarie casou aos 24 "com vestido branco de noiva, raminho de laranjeira, água benta"… "e a sua bênção, senhor meu pai!"...

− Pela santa madre igreja, pois claro, de acordo com os usos e costumes da época. E confidenciava, com graça:

− Já tinha provado o 'fruto proibido'. Eu, que tinha sido catequista, só nessa altura é que percebi o sentido que os padres, no confessionário, davam à expressão 'comer a maçã'.

O vestido de branco fora-lhe oferecido pelos seus antigos patrões de Chaves a quem tinha servido durante cerca de 8 anos e que fizeram questão de ser padrinhos da noiva.

Não se atreveria naquele tempo, a casar pelo civil. Nem lhe passou sequer a ideia pela cabeça. Seria logo tratada de “curta e comprida” (sic). Eram tempos cruéis para as mulheres. Ai das raparigas que rompessem o namoro, ou fossem rejeitadas! Ou, pior ainda, que tivessem a desdita de ser mães solteiras.

− Ninguém mais te pegava!... Passavas a ter lepra… Com sorte, casarias com um velho, com filhos ainda por criar, ou já com pouca força na 'verga' ! − comentou ela.

À medida que se entusiasmava com a conversa, Rosemarie usava o calão do seu tempo de “mulher do Norte com pelo na venta” (sic). O facto do interlocutor ser homem, não a inibia de todo. A sua história, as suas confidências, mesmo as mais íntimas, não te deixavam todavia de surpreender, talvez por serem de gerações diferentes, tu com idade de ser seu filho.

Afinal, isto passava-se no teu país, ainda nos anos 50 e 60. E tu não podias deixar de sentir um certo amargo de boca, ao ouvi-la contar estas histórias de vida, bem duras.

− No meu tempo, as moças repudiadas, ou fugiam para o Porto ou Lisboa, ou resignavam-se à sua sorte, ficando solteironas, o que era o caso da maioria.

− A liberdade paga-se sempre cara!... Não nos é dada, conquista-se – acrescentaste tu, usando um chavão que era, de há muito, um lugar comum.

− Ah!, sim, vê o meu caso. O meu primeiro homem foi obrigado a casar comigo, a tiro… depois de os meus irmãos mais novos terem sabido que ele me tinha desonrado.

− A sério?!... A tiro ?!... Agora se percebe por que é que o seu primeiro casamento tinha tudo para não dar certo…

− Não durou mais de um ano de paixão efémera… Depois aguentei mais uns tempos, para salvar as aparências… E se eu tive uma paixão por aquele cabrão. Oh!, se tive!... Hoje acho que foi feitiço, bruxaria, mau olhado, qualquer coisa que ele me pôs no pirolito ou gasosa, uma daquelas garrafas de refrigerante que se usavam na época, e que os rapazes ofereciam às raparigas no intervalo dos bailes… Eram bailes mandados com mandadores que gritavam: “Damas, ao bufete!”…

Os “bailes mandados” ? Explicou-te ela depois: os homens e os rapazes, de um lado, as mulheres e as raparigas, e um senhor, o 'mandador', no meio, a impor o respeito, a dirigir a coreografia e a dar a vez a cada um dos machos para ir buscar o seu par e dançar. Só "as comprometidas e as casadas" é que se podiam recusar a dançar com outro que não fosse o marido ou o namorado… Não poucas vezes, acabava tudo à paulada, com o álcool e as ciumeiras entre rapazes…

Mas os feitios de ambos, e sobretudo “a miséria daqueles tempos” (sic), não ajudaram em nada o casamento. Cedo a Rosemarie descobriu que o seu “príncipe encantado” era, afinal, um 'chulo', um malandro e, pior ainda, um homem que de bebedor social se tornara alcoólico e… violento.

Não trabalhava, ou melhor, a oficina de carpintaria já não dava para um, quanto mais para dois. Fazia um biscate ou outro, um conserto aqui ou acolá, a caixa de ferramenta numa mão, a bicicleta na outra, a maior parte dos clientes eram gente pobre, das redondezas, o rol dos fiados ia até ao São Miguel, altura do ano em que se podia fazer algum dinheiro e pagar as dívidas.

− Mas como é que vocês se conheceram ? – quiseste tu saber, intrigado.

− Num baile, tinha que ser a minha sina, o meu fado. Num desses tais bailes mandados…

− Em Chaves ?...

− Não, já em Resende, na casa de um brasileiro rico, desses de torna-viagem… Tinha voltado à terra com um bom pé de meia e quis celebrar o regress, com saúde e sucesso… Já não me lembro o nome, foi há tanto tempo… Todos o conheciam por 'O Brasileiro'… Resumindo: conheci o cabrão do meu primeiro homem nesse baile… Fazia parte da tuna…

− A tuna ?

− Um grupo de músicos que animava bailes, um que tocava viola amarantina, outro violão, outro ferrinhos… E ele que tocava rabeca chuleira. Juntavam-se a outras tunas, ali da região do Marão e Montemuro, de Baião a Cinfães, do Marco a Resende… Chegavam a ir tocar a Viseu e Vila Real. Tinham mais fama que proveito, mas sempre ganhavam uns tostões. O cabrão não tinha profissão certa, dizia que era carpinteiro, mas eu nunca lhe vi obra feita, uma mesa ou armário de jeito.

− E tocava bem, o seu homem ?

− Isso, sim, se tocava!... Punha-nos 'atolambadas', o cabrão… Olhe, fez-me lembrar aqueles encantadores de serpentes, indianos, que a gente vê nos filmes. Tocava as modas da época, que já passavam na rádio, e sobretudo as modas tradicionais, a valsa, a mazurca, a dança do fado, a contradança… Já havia rádio, mas pouca gente tinha rádio e telefone… E a televisão, então, era ainda um luxo. Não havia sequer eletricidade … Ah!, mas quando ele começava a tocar aquela valsa do Danúbio Azul… Houve até uma rapariga do Porto, que estava nas termas, que desmaiou, de comoção... Só muito mais tarde, já em França, é que ouvi falar da Sissi e de toda aquele luxo da corte imperial de Viena… Naquele tempo éramos todas umas atrasadas…

− Era muito atrasado o interior do país, é verdade… mas pode falar-se de miséria, miséria mesmo ?

− Oh! Mon Dieu de France!... Escreve aí no teu cahier – começou  a tutoyer, a tratar por tu o entrevistador, que nunca lhe correspondeu,  continuando a ser deferente e cerimonioso, para com ela, até como estratégia defensiva…

Miséria para ela era o frio de rachar no inverno, as tamancas, a casa de pedra, tosca, o interior com paredes de tabique, um quarto para os pais, outro para as raparigas, com os rapazes a dormir no palheiro do milho, e por debaixo ficava a corte dos animais. E não melhorou muito quando a família se mudou de Cabeceiras para Resende.

Dois irmãos, entretanto, tinham ido para a tropa, e sido mobilizados para Angola, o mais velho, e outro a seguir para Cabo Verde e Guiné.

Em Resende, nas termas das Caldas de Aregos, a Rosemarie arranjara um emprego sazonal como auxiliar, graças a uma cunha do patrão do seu pai que era oficial do exército, e pessoa infuente. A família, que vivia no Porto, gostava de fazer termas nas Caldas de Aregos. E tinha lá uma roda de amigos. Enfim, estava ligado à antiga nobreza rural, pequena e decadente, cujas origens remontavam ao tempo do liberalismo.

− E porquê Resende, Rosemarie ?

Os pais tinham-se mudado para lá, onde os antigos patrões tinham uma quinta e estavam a precisar de um caseiro de confiança, iam-se fazer vinhas novas, etc. Com o plano de construções de barragens no Rio Douro, havia boas perspetivas de valorização dos terrenos cultivados que viessem a ser alagados com a subida das águas. As condições eram melhores do que em Cabeceiras de Basto e os rapazes mais novos até tinham arranjado emprego, ou promessa de emprego, numa empresa encarregue, já em 1964, dos trabalhos preparatórios da construção da barragem do Carrapatelo (que só será inaugurada em 1971).

Mal sabia o pai que, passado uns anos, iria ficar sem casa nem terras, obrigando-o a voltar a Cabeceiras, "com uma mão à frente e outra atrás"… E, também com a barragem, as Caldas de Aregos começaram a entrar em decadência.

Depois da separação (de facto mas não “de jure”), a Rosemarie ainda irá trabalhar para a Linha do Estoril, para casa de uns senhores importantes ligados à banca. Foi ganhar o dobro que ganhava em Chaves e em Resende, 600 mil réis, e aí, sim, aprendeu muito, como ajudante de cozinha. E, sobretudo, aprendeu a cantar o fado...

− Separação ?!... Como foi isso, Rosemarie ?

Ela contou-te tudo tim-tim por tim-tim. Mas, abreviando, aqui vai o essencial dos factos.

A Rosemarie sempre foi, desde miúda, um grande dançarina. Não perdia “bailos”, desde que os pais, e depois os patrões, a autorizassem a ir. A princípio, até aos 16 anos, ia acompanhada por um dos irmãos, “jogador de varapau”.

− Varapau ?...

− Um pau de lódão, rijo e comprido, com que os rapazes aprendiam a ser homens… Mas, coitado do meu mano, já morreu, um dia racharam-lhe a cabeça por minha causa.

− O seu irmão ?!...

− Sim, um do meio. Era muito meu amigo, o meu guarda-costas. Por causa do meu primeiro marido, acabou por ter problemas com a justiça. 

− Mas vamos lá fazer o ponto da situação, para a gente não se perder... Estávamos a falar do baile…

− Ah!, sim, o baile… os bailes!... Ficas a saber que pus a cabeça à roda de muitos rapazes e até de homens casados. Hoje estou velha, e já sem muito tempo à minha frente, mas naquela época eu era uma raparigaça que metia muitas da cidade a um canto. Não é para me gabar… E, depois, como também tinha jeito para a costura, que aprendi em Chaves, em casa, aos serões, andava sempre bem produzida com os meus vestidos de chita… E já tinha algum jeito para as cantigas.

−…Até ao dia em que...?

− Até ao dia em que conheci... aquele cabrão!... Tinha vindo da tropa, em  Angola, em meados de 1963… A cigana que me lera as mãos em Chaves, no meio da ponte romana, tinha razão!... Aquele cabrão, estava escrito que deveria ser a minha perdição!...

− Amor de perdição!... Mas como assim ?!...

− Andávamos os dois apaixonados. Apaixonados ? Qual quê, doidos!...Eu nunca tinha sentido nada parecido!... Fazíamos amor… qual amor!, fazíamos sexo em qualquer sítio, em qualquer hora… Tornei-me muito, como direi ?, 'desavergonhada'!... Desculpa a expressão, mas eu era uma cadela com cio

− Oh!, Rosemarie, todos nos apaixonámos na juventude!... Não me parece que o termo desavergonhada seja apropriado no seu caso...

D’accord!, é uma maneira de dizer, às vezes faltam-me as palavras em português… E mesmo em francês. Ninphomaniaque, c'est çá ?!... Era o que eu era nessa altura…

− Oh! Rosemarie, nessa idade, com as hormonas à flor da pele!…

Oh!, oui, éramos os dois animais de sangue quente, na força da idade, se bem que ele fosse um pouco mais velho do que eu… E deixa-me dizer-te que ele na cama ainda era melhor do que com a maldita da rabeca… Era abonado, um garanhão, o cabrão.

− E a tuna, os bailes, as tainadas?...

− Pois, é, vinha o verão, as romarias, as festas… e aí trocava-me pela rabeca!... Comecei a ter ciúmes, primeiro dela, da rabeca, depois dele. Até um dia em que quis parti-la, na cabeça dele. Ameacei-o até de lhe pôr os cornos.,,, Uma ameaça, tola, a primeira coisa que me veio à cabeça: mesmo que o desejasse, não tinha com quem, naquela terra desgraçada...

− Ficou, portanto, o caldo entornado…

− Ele dava em sair com o grupo dele, tudo gente de vida airada. Chegavam a ir tocar a Vila Real, Amarante e até ao Porto. Só pelas tainadas.

− Mas também ao pé de si, nas Caldas de Aregos, na época balnear, não ?!…

− Sim, e à volta de Resende: Baião, Cinfães, Marco de Canaveses…

− Começaram os problemas no casal, é isso ?!…

Passaram-se os seis meses da lua de mel, um ano… E nada!...

Nada, o quê ?!-…

− Ele achava que eu não lhe dava filhos, o que para um homem, na época, era uma vergonha, uma humilhação… Um cabrão que não emprenhasse logo a mulher, não era macho, era um frouxo, ou até um mariconço…

− Portanto, a culpa só podia ser "dela"!…

Ah!, oui!... Então Começou a bater-me. Começou a ficar ciumento, possesso… Um animal!… E eu recusava-me a abrir-lhe as pernas, para o cabrão 'despejar os colhões', desculpa-me o termo.

E aqui começa outra estação do calvário da Rosemarie.

− Fechava-me no quarto para não levar porrada… Ele fazia cenas, eu berrava para alvoroçar a vizinhança... Eu desculpava-me, que estava com a 'rabeca', a menstruação, quando ele queria 'servir-se' de mim... Enfim, uma vergonha para mim e para a minha família... Pedi ajuda, até ao padre... Todos me diziam: "Entre o homem e a mulher, não ponhas colher!"...

Até um dia em que enchi-me de coragem e bati com a porta, voltando para casa dos meus pais. Tive a proteção dos meus irmãos, que lhe foram pedir satisfações. Houve porrada. Veio a GNR, mas ficou tudo em águas de bacalhau, que o cabrão tinha, na época, bons conhecimentos entre os senhores de Resende… Os homens protegem-se uns aos outros...

− E depois ?...

− Constou-se que voltara a Angola… que já conhecia,  já havido ido para lá quando rebentara o terrorismo... Depois em 74 ou 75, com a independência,  veio com os outros  retornados… Tinha, ao que se dizia,  um imão mais  velho no Brasil, foi ter com ele…  Já eu estava em França, há um bom par de anos, desde 1969…Nunca mais na vida lhe pus a vista em cima… Heuresement!... 

− Mas o mundo é pequeno, Rosemarie...

− Sim, houve quem o visse a sambar, a tocar rabeca, no carnaval do Rio. Depois perderam-lhe o rasto. Deve ter tido um fim desgraçado, que Deus o perdoe. Mas, quando eu me quis divorciar, foi o cabo dos trabalhos. Estava em parte incerta, ninguém sabia se estava vivo ou morto. Divorciei-me já em França, já com quase 60 anos… Lá no Brasil o meu advogado francês tratou de arranjar uma certidão de óbito…  Não sei se falsa ou verdadeira, custou-me uma boa nota…

− Mas a fuga para França é outra aventura da Rosemarie…

− Se foi!... Dava para outro filme, mon chérie… Mas hoje já não to conto, fica para outro dia, estou trop fatiguée

(Continua) 

© Luís Graça (2020). Revisão em 21 de março de 2024.

_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 11 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25261: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (21): O pão que o diabo amassou

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Guiné 6/74 - P25217: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte V: Angola 'versus' Guiné


Gen Bettencourt Rodrigues (Funchal, 1918 - Lisboa, 2011)


1. Há documentos que devem merecer a nossa atenção e ser divulgados neste blogue de antigos combatentes da Guiné... É o caso do depoimento do gen Bettencourt Rodrigues (Funchal, 1918 - Lisboa, 2011), o último governador e com-chefe da Guiné, antes do 25 de Abril, prestado em 1997, no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida. 

O sítio original na Net foi descontinuado. Só há pouco tempo o conseguimos recuperar através do Arquivo.pt.  Devido à sua entensão,  será reproduzido,  com negritos nossos (e itálicos), em duas parte (com a devida vénia, ao ICS - Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa). 

A primeira parte é dedicada a Angola, onde o general Bettencourt Rodrigues foi o "herói da região militar leste" (1971-1973). A segunda, à Guiné.

Os entrevistadores, já falecidos, Manuel Lucena, cientista político (1938-2015)  e Luís Salgado de Matos, sociólogo (1946-2021), foram dois brilhantes investigadores do ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Este documento também está disponível no Arquivo de História Social do ICS. Faz parte do espólio de Manuel Lucena.

Estudos Gerais da Arrábida > 
A DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA

Painel dedicado à Guiné (29 de Julho de 1997) 


Manuel de Lucena

Antes da eclosão da guerra Angola - e baseando-me no depoimento que concedeu a José Freire Antunes  (2) - sei que estagiou em unidades norte-americanas e esteve integrado na Divisão SHAPE. Quer falar-nos um pouco dessa experiência? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Em 1952, depois de ter feito o curso de Estado Maior no Instituto de Altos Estudos Militares, o então Chefe de Estado Maior, general Barros Rodrigues, destacou-me para tirar o curso de Comando e de Estado Maior nos EUA (Kansas). Seguidamente, estagiei na 1ª Divisão de Infantaria norte-americana instalada no campo de Graffenworhr, na Alemanha Ocidental. 

Passado algum tempo, constituiu-se a Divisão SHAPE, que actuou em numerosos exercícios e manobras, dentro e fora do país, Nessa unidade, fui adjunto da 3* Repartição do Quartel General durante o período de manobras de 1953 e anos seguintes. 

Quando regressei a Portugal, estive durante algum tempo colocado em Santa Margarida, onde se começaram a aplicar os modelos e técnicas americanas ao Exército português: foi em Santa Margarida que nasceu o moderno Exército portuguesa. 

Foi talvez em 1958 que começámos a ter a percepção de que algo iria acontecer em África, fundamentalmente devido ao exemplo da guerra da Argélia e às primeiras independências na África negra. 

Por essa  altura tomaram-se certas providências tendo em vista a adaptação do Exército ao tipo de inimigo que poderia ter de vir a enfrentar. 

Enviaram-se alguns oficiais para a Argélia (Hernes de Oliveira, Almiro Canelhas, Franco Pinheiro, entre outros), a fim de se familiarizarem com os métodos de luta anti-guerrilha; mudaram-se os planos de instrução; no Instituto de Altos Estudos Militares, na Academia Militar e nas Escolas Práticas começou leccionar-se a teoria da «guerra subversiva»; em Lamego, foi criado o Centro de Instrução de Operações Especiais, especialmente vocacionado para a luta antissubversiva 

Em 1960 - o ano da independência do Congo belga -, o coronel Almeida Fernandes, então ministro do Exército, mandou uma missão do curso de Estado-Maior a Angola. Fiz parte dessa missão - era então professor no curso Estado Maior - tendo levado comigo os alunos da parte complementar do curso, Percorremos toda a fronteira Norte de Angola em duas station wagons sem que tivéssemos dado conta de algo de anormal. Angola parecia estar perfeitamente pacificada. 

Quando a grande bronca rebenta, - os massacres da UPA de 14 de Março -, eu estava lá em missão, juntamente com os generais Beleza Ferraz e Câmara, respectivamente CEMGFA e CEME. Em Buco-Zau (Cabinda), onde nos encontrávamos, chamaram-nos de urgência para a Luanda. Depois daqueles dois responsáveis terem regressado a Lisboa, na companhia do ministro do Ultramar, Vasco Lopes Alves, ainda lá fiquei uns dias. 

Manuel de Lucena: 

Qual era o propósito dessa última missão? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Tratava-se de uma simples missão de rotina, tanto quanto me recordo. Simplesmente, calhou estarmos lá aquando da eclosão da guerrilha. Depois dessa ocasião, voltei repetidas vezes a Angola, uma delas com o então major Pedro Cardoso, adjunto do Secretário-Geral da Defesa Nacional, por ocasião do cerco a Carmona. 

Em Novembro de 1961 teve lugar um acontecimento dramático: o desastre do Chitado, onde pereceu o general Silva Freire, então comandante da região militar de Angola. Pouco tempo depois, o general Holbeche Fino, designado para suceder a Silva Freire, telefona-me dizendo que gostaria de me levar para Angola como seu chefe de gabinete. 

À minha maneira, respondi-lhe que tinha dois patrões; o general Gomes de Araújo e o general Câmara Pina; se ele se entendesse com eles, muito bem, iria para Angola, Comigo foi sempre assim: basta apresentarem-me a guia de marcha e eu vou para qualquer lado. 

Luís Salgado de Matos: 

Quando em Março de 1961 rebenta a «bernarda» em Angola, o dr. Salazar não quis falar com as pessoas que lá estavam?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Não sei. Pela minha parte, só falei com o Costa Gomes e o Almeida Fernandes. 

Luís Salgado de Matos: 

Não é no regresso daquela visita que os generais Beleza Ferraz e Câmara Pina classificam os incidentes em Angola como um simples caso de polícia e depois são muito criticados? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, admitia-se que o general Beleza Ferraz talvez não tivesse medido bem a gravidade da situação; e daí essas declarações menos felizes. 

Luís Salgado de Matos: 

Ainda em relação a esse ano de 1961, como viu o golpe do general Botelho Moniz? 

General Bettencourt Rodrigues: 

O general Botelho Moniz era um homem muito complicado, muito fechado sobre si mesmo. Quem não segue as regras no Exército, acaba sempre por «dar gato»

Ainda hoje não sei bem o que foi a «Abrilada». Que eles queriam derrubar o dr. Salazar e o almirante Américo Tomás é um facto - e o Craveiro Lopes até já tinha a mala feita para se instalar em Belém. Agora o que sucederia depois do golpe, isso permaneceu sempre um mistério para mim. 

Manuel de Lucena: 

Como é que o sr. general sentiu o ambiente das Forças Armadas em Angola, em 1961? Nos escalões que contavam, é evidente. 

General Bettencourt Rodrigues: 

Apesar de uma certa surpresa perante a proporção que as coisas assumiram em Março de 1961, já havia um certo planeamento por parte dos responsáveis militares. O general Silva Freire, um estratega brilhante, tinha alinhavado algumas ideias para enfrentar um possível foco de subversão. 

Infelizmente, no desastre do Chitado faleceram também dois chefes de Repartição do Quartel General. Escaparam, valha-nos isso, o hoje coronel Moreira Rebelo, da 1ª Repartição, e o hoje general Salazar Braga, da 2ª Repartição. 

Em finais de 1961 tínhamos para resolver: a reconstituição Quartel General, as comunicações, a logística e a montagem do sistema de quadrícula. Ou seja, praticamente o essencial. 

O sistema de quadrícula, de inspiração francesa, surgiu-nos como o mais adequado, até porque os massacres tinham eclodido em regiões onde não existiam guarnições militares, deixando os fazendeiros num grande isolamento. 

Luís Salgado de Matos: 

O general Silva Freire era um oficial da escola francesa? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, mas era sem dúvida o nosso melhor general, um dos mais brilhantes estrategas da sua geração. Ele teve a inteligência de perceber que era através da quadrícula que poderíamos contactar com as populações, trazê-las para o nosso lado. 

Repare: a guerra dita subversiva é um conflito assimétrico; uma disputa entre dois adversários desiguais em termos de organização, recursos e implantação no terreno. 

O sistema da quadrícula adaptou-sese bem às características da guerra subversiva. Era a quadrícula que integrava o médico que fornecia os cuidados de saúde básicos, o cabo que dava a instrução primária aos indígenas, o soldado que conhecia bem os musseques, a sanzala, enfim, a tropa que ia fazendo o  «trabalhinho». 

Quando se queria bater com força, então chamavam-se as forças de intervenção. Foram ambas indispensáveis e complementares uma da outra. 

Luís Salgado de Matos: 

Diz-se que a quadrícula deixou de combater em 1965. 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não tenho essa ideia. Sinceramente. Quando voltei a Angola em 1971 (a minha missão com o general Holbeche Fino terminou em 1964), para chefiar a Zona Militar Leste, combatia-se com determinação. Tanto assim que ainda nesse ano voltou a ser possível circular à vontade nessa região.

 Manuel de Lucena: 

Entre 1961 e 1964, a ideia era cooperar e pacificar, por um lado, e bater quando necessário, por outro? 

General Bettencourt Rodrigues: 

A ideia do apaziguamento era primordial. Era a razão de ser da nossa guerra. Nunca se perseguiu uma estratégia de aniquilamento do inimigo. O nosso lema era «a conquista pelas mentes». 

Luís Salgado de Matos: 

Voltando um pouco atrás. O general Beleza Ferraz tinha ou não razão quando dizia que a situação em Angola se pacificava num ápice? Porque em 1962 as coisas estavam aparentemente controladas... 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não é tanto assim. Aquela gente era determinada, batia-se bem, tinha armamento, apoios internacionais. 

Manuel de Lucena: 

A guerrilha era então vista como um inimigo a longo prazo?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Era impossível liquidá-la de uma só vez. Repare: qual é a finalidade da guerra subversiva? Substituir uma autoridade por outra, naquele caso, portugueses por angolanos. 

Nesse aspecto, a subversão falhou: foi o 25 de Abril que nos derrubou. 

Como a finalidade era aquela, não podia haver soluções de compromisso. Como é que se faz um cessar-fogo no âmbito de uma guerra subversiva? Nunca ninguém mo soube explicar até hoje. 

Utilizando uma imagem conhecida: uma mulher está grávida ou não; não pode estar apenas um bocadinho grávida…

Manuel de Lucena: 

O que o sr. general pretende dizer é que na guerra subversiva o compromisso é sempre o prelúdio da derrota de um dos lados. É isso? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Eu vou mais longe: qualquer compromisso equivale sempre a uma derrota incondicional

À guerrilha nunca interessam partilhas territoriais, soluções intermédias. É a vitória total ou nada. 

Manuel de Lucena: 

E em relação ao compromisso, quando é que se percebe que um dos lados se está a precipitar no abismo? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Veja esta hipótese: o general Spínola chegava a um entendimento com o Amílcar Cabral e conseguia chamá-lo para o Governo, oferecendo-lhe o cargo de secretário-geral ou coisa que o valha. Neste caso, quem vencia era o general Spínola porque o Governo, a autoridade, mantinha-se portuguesa. 

Luís Salgado de Matos: 

A esse respeito tenho uma espécie de teoria sentimental sobre a descolonização portuguesa. Ganhámos a guerra militarmente - com a possível excepção Guiné - mas o pais decidiu que se retirava, que não valia a pena continuar em África. 

Manuel de Lucena: 

Depois do trabalho com o general Holbeche Fino, entre 1961 e 1964, e até voltar a Angola, por onde andou o sr. general? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Estive três anos em Londres como adido militar e depois fui ministro do Exército, já com o professor Marcelo Caetano. Em 1971 fui então nomeado Comandante da Zona Militar Leste.

 Manuel de Lucena: 

Como surgiu essa sua última nomeação? 

General Bettencourt Rodrigues: Creio que foi o general Costa Gomes, meu grande amigo, que me propôs. 

Luís Salgado de Matos: 

Com quem tinha grandes afinidades tácticas, segundo julgo saber… 

General Bettencourt Rodrigues: 

Direi que partilhávamos de uma certa unidade de vistas. Em 1970-71 a situação em Angola apresentava sinais de deterioração. A subversão alastrou do Norte até ao Leste, à Lunda, ao Mochico e, o que era verdadeiramente preocupante, começara a ameaçar Nova Lisboa, o centro nevrálgico de Angola. 

Nessa altura, o general Costa Gomes decidiu remodelar o dispositivo e criar a Zona Militar Leste, que abrangia os distritos do Bié, Lunda, Mochico e Cuando Cubango. Essa sua iniciativa coincidiu com uma viagem do general Sá Viana Rebelo, ministro da Defesa a Angola. 

Em conversa, o general Costa Gomes sugeriu o meu nome para a chefia do novo comando, tendo obtido a anuência do ministro. 

Manuel de Lucena: 

Entretanto, falou também com o professor Marcelo Caetano? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Exactamente. De resto, eu sempre estive muito à vontade com o professor Marcelo. Tinha sido seu ministro, conhecíamo-nos bem... Ele até dizia que eu usava uma linguagem muito pitoresca... 

Luís Salgado de Matos: 

O professor Marcelo alguma vez se confessou consigo sobre os contados secretos com o PAIGC? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não acredite nisso... Eu não duvido que o Villas-Boas tenha ido a Londres, mas foi só ver o que é que os tipos queriam, mais nada. Havia um toque do Foreign Office e não se podia dizer que não. 

Manuel de Lucena: 

Quando falou com o professor Marcelo antes de ir para o Leste,  havia mais alguma coisa na manga, ou era apenas uma conversa normal entre o Presidente do Conselho e um antigo ministro que ia desempenhar uma importante missão militar? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Prefiro essa segunda hipótese. Para ser sincero, a conversa foi até relativamente inócua. Discutimos a delicadeza da situação militar, particularmente dramática à volta de Nova Lisboa; falámos das acções que se poderiam desenvolver junto das populações. 

Este último desiderato era, não me canso de sublinhá-lo, muito importante para nós. Nisso, o dr. Salazar e o prof. Marcelo não eram muito diferentes. 

Nas três frentes em que estivemos envolvidos, não arrasámos nada, não recorremos a bombardeamentos maciços, não seguimos uma política de terra queimada

É claro que, numa situação de conflito, há sempre uns tipos desequilibrados que podem praticar abusos. 

Luís Salgado de Matos: 

Na Argélia o uso da tortura em uma directiva explícita do Estado-Maior. O comando de pára-quedistas de Argel estava especificamente treinado para aterrorizar. 

Manuel de Lucena: 

Bem, a esse respeito há até quem fale de uma excessiva brandura por parte da tropa portuguesa. Quer comentar,  sr. general? 

General Bettencourt Rodrigues: 

É claro que quando era preciso bater, nós batíamos. No entanto, é sempre muito difícil dosear essas coisas... 

Mas fomos sempre formados para não cometer excessos. 

Manuel de Lucena: 

Sobre a sua acção no Leste, pode dizer-nos alguma coisa sobre os seus acordos com Jonas Savimbi? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Relativamente a esse assunto, entendo que não devo falar, uma vez que a pessoa em questão ainda está viva e politicamente activa. 

No entanto, esclareço que após o 25 de Abril nunca tive nada a ver nem com a UNITA, nem com o MPLA. 

Manuel de Lucena: 

O brigadeiro Passos Ramos, que nos prestou dois depoimentos em 1995 e 1996, levantou um pouco a ponta do véu sobre esses acordos. Disse-nos, nomeadamente, que houve um entendimento entre o Exército português e a UNITA com vista à formação de um santuário, que, naturalmente, funcionava contra o MPLA. 

Disse-nos também que a UNITA não era um movimento fantoche: estava bem implantada, cobrava impostos aos madeireiros, controlava áreas muito vastas - em suma, dava-nos trabalho. 

General Bettencourt Rodrigues: 

A única coisa que posso dizer é que o general Costa Gomes estava dentro desse entendimento, tal como o professor Marcelo Caetano. O que não equivale a atribuir-lhes a paternidade da ideia. 

Luís Salgado de Matos: 

O fim do 'modus vivendi' com Savimbi ficou a dever-se à inabilidade do seu sucessor? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Em certa medida. A guerra subversiva é uma guerra - como direi? - suja, pouco ortodoxa. 

Se sigo com demasiada intransigência os meus princípios - e essa foi a opção meu sucessor - não estou a jogar pelas regras do jogo. 

Luís Salgado de Matos: 

Mas essa inflexão face à UNITA terá tido o assentimento do ministro, não?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Não sei. Mas note que o Leste de Angola é um sítio remoto. Naquele conflito gozávamos de uma grande margem de autonomia. 

Manuel de Lucena: 

Quando estive exilado, falei uma vez com um homem do MPLA, um mestiço, Castro Lopo, que se confessou muito impressionado com as dificuldades que o movimento então experimentava na Frente Leste. Dificuldades sobretudo ao nível dos abastecimentos - vinha tudo de muito longe, da Zâmbia, por exemplo, forçando-os a longas caminhadas…

 General Bettencourt Rodrigues: 

Precisamente. Por outro lado, eram essas as vantagens dos terroristas na Guiné. Mas o Governo Zâmbia não regateava apoios à subversão. À semelhança, aliás, de alguns lobbys norte-americanos, como o American Comitte for Africa

Quem tocava no Caminho de Ferro de Benguela era a UNITA, o que não convinha nada à Zâmbia, um país de hinterland com acesso ao mar bloqueado. Isso dava-nos um grande trunfo sobre o Kaunda. É por isso que chamei à guerra subversiva uma guerra suja: cada um dos lados combatia com manhas e artimanhas. 

Manuel de Lucena: 

Nesse sentido, o acordo com a UNITA revestía-se de um carácter eminentemente prático; quanto muito implicaria uma integração de quadros dirigentes daquele movimento na administração portuguesa. É isso? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, é mais ou menos isso. 

Luís Salgado de Matos: 

Passando agora para a Guiné (...)

(Continua em próximo poste)

__________

Notas dos entrevistadores:

1 José Manuel Bettencourt Rodrigues (n. 1918): Oficial de Infantaria. Ministro do Exército (1968-70). Comandante da Zona Militar Leste de Angola (1971-73). Sucedeu a Spínola como governador da Guiné (1973-74). 

(2) José Freire Antunes, A Guerra de África, 1° vo1. Lisboa; Círculo de Leitores, 1996. 

(Revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, para efeitos de publicação neste blogue: LG)

__________

Nota do editor:

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24808: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (12): de Montemuro a Montmartre ou uma história de vida "casapiana"

 

"Bal du moulin de la Galette" (1876), do pintor francês Pierre-Auguste Renoir (1841–1919), uma das obras primas do impressionismo. O "Moulin de la Galette" ficava no bairro de Montmartre, Paris, onde se situava o estúdio do artista. Óleo sobre tela. Musée d'Orsay. Paris. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikimedia Commons.


Contos com mural ao fundo (12) > De Montemuro a Montmartre ou uma história de vida "casapiana"


por Luís Graça (*)



"Nascido no ano zero, 1945"... Lembro-me de tu teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira (e única) exposição de pintura, e logo  no SNI... Lembras-te do SNI, o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, nos Restauradores ?!

Lembras-te, dessa história, passada no já longínquo ano de 1967 ?!... Foi um sucesso, a minha "vernissage"... Os "meus padrinhos e mecenas" financiaram os comes e bebes. Ate meteu "foie gras", coisa que nunca tinha provado... 
E houve mesmo  umas críticas favoráveis em um ou dois jornais da capital. Para te ser franco,  acho que foi o único momento de glória na minha vida... 

Depois veio a ressaca, a descida à terra, a dura realidade... Éramos uns putos... Ainda pensámos em "dar o salto" até Paris, éramos os dois vagamente existencialistas, e ainda mais vagamente pacífistas  e anti-imperialistas (a guerra do Vietname estava  ao rubro e ninguém, na América, queria morrer pelo tio Sam; crescia a contestação) . 

Eu sonhava com Paris, Montmartre, a boémia e as copines das belas artes (o meu lado de mulherengo!), enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre e querias estudar filosofia, jornalismo ou sociologia, ou coisa parecida (na Sorbonne, que ficaria famosa um  ano depois, com o maio de 68) !... 

Eu estava quase a completar os meus vinte e dois anos, com a tropa à perna, mas sem a mais pequena consciência disso. Tinha-me esquecido completamente que, uns bons anos antes, fora à inspeção, tendo sido apurado para todo o serviço militar. Dei uma palmada na testa, quando tu me interpelaste : "E a tropa, pá ?!"... 

Tu eras ligeiramente mais novo, um ano e picos, mas com a mania da filosofia, da crítica literária, da poesia e do jornalismo, acho que eram esses os teus interesses na época.  Convidei-te para passares uns dias comigo, em Lisboa, por ocasião da montagem da minha primeira exposição de pintura. E, claro, escreveres o texto para o catálogo. 

Não conseguimos convencer o nosso "gestor de conta" (quem tinha  conta bancária nesse tempo?!) a financiar os nossos inconsistentes projetos de aventura. Ou melhor, só queríamos chegar a Paris, de comboio, à boleia, ou "a salto", o que desse mais jeito. Contámos os tostões. Quanto é que tu tinhas no bolso e no mealheiro ? Se calhar, bem menos do que eu...

E, quando descobriram a marosca, os meus "padrinhos e mecenas" de Lisboa, expulsaram-te de casa  (uma cena triste, confesso) e, a mim, cortaram-me a "mesada"... (Ficaram histéricos, ameaçaram até denunciar-me como se eu tivesse cometido,  ou estivesse à beira de cometer,  um crime hediondo!... E, na realidade, era,  na ótica deles, católicos,  conservadores e situacionista,  um "crime de lesa-pátria", e sobretudo um caso de simbólico parricídio e de inqualificável ingratidão!)

Foi nessa altura que eu te pus a dormir  na casa que a Flora partilhava com mais duas amigas, estudantes, no Campo Grande, em frente à feira popular... A Flora, a minha namorada, madeirense, estás recordado ?!, andava a tirar o curso de serviço social. (Aliás,  acabámos os dois por ir lá ficar uns dias enquanto não passou a zanga do meu "padrinho"; de resto, o andar do Campo Grande estava por conta da Flora e das amigas.)

Eu era mais corajoso (e, seguramente, mais inconsciente) do que tu, tens que admitir. Era artista e tu literato. Tu eras mais politizado e, sobretudo, mais pragmático do que eu:

– E os nossos pais ? – interrogavas-te tu. – E a PIDE à perna ? E a Guardia Civil espanhola antes de chegares aos Pirinéus?

E não te calavas, chamando-me à razão:

E os oito, nove ou dez contos de réis para dares ao passador ? E vais fazer o quê, em Paris? Trabalhar como maçon ? E dormir no bidonville? E comer baguettes com marmelada ?

Ano zero da idade atómica. 1945… Hiroshima. O cogumelo. O horror. Mas também o fim da guerra. Libération, gritavam  os parisienses, eufóricos, ainda em 1944. Para eles, era o fim do pesadelo da ocupação nazi e o início de uma nova era. O direito à esperança, ao sonho,  extensível à  nossa terra (pensavam alguns ingénuos), o recomeço da história da humanidade, etc., etc., blá-blá, blá-blá...  (
Mas ainda não fora dessa que o Salazar cairia da cadeira.)

As palavras eram tuas, escritas  no meu catálogo (exceto a referência ao Salazar, como é óbvio, o Salazar era tabu!)...   Até estava bonito e original, o catálogo ... não estava ?! ...Original,  "subversivo", no mínimo, provocador... Com o  teu treino de jornalista, aprendeste a  escrever nas entrelinhas, e a cultivar o sarcasmo, a ironia, o "non-sense",  o humor negro, para iludir a vigilância dos censores da nossa praça (que só mais tarde vim a descobrir que eram da tropa,   coronéis na reserva ou na reforma)...

Uma exposição no SNI em 1967!... "A arte ao serviço da Nação"!... Que privilégio, ironizavas tu!... O SNI, o Secretariado Nacional de Informação (ou da Propaganda, emendavas tu, sarcástico) no Palácio Foz, nos Restauradores, criado pelo António Ferro... Tu até tinhas repugnância em lá entrar, sei que fizeste esse "enorme  sacrifício" por amizade...

Mas, em boa verdade, não havia borra-botas, aprendiz de artista,  que não quisesse expor no SNI naquela época!... Ora, um merdas como eu a expor no SNI!... Um casapiano, novato, serigrafista, sócio de uma cooperativa de artes gráficas, estudante de Belas-Artes, filho de pai incógnito, nascido nas faldas da serra de Montemuro, afilhado de um gajo do regime, aprendiz de pintor que sonhava ir para as belas-artes em Paris e pintar, ao ar livre, nas ruas de Montmartre, de boina preta, lenço de seda vermelho ao pescoço, e uma rosa na lapela, ao som de um acordeão... Sempre adorei o preto e o vermelho. E o som do acordeão. E as rosas. E as francesas (que começavam a aparecer em Lisboa, nos seus 2 cavalos, Citroën, que lindas, vaporosas, livres, provocantes!)...

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, o fim de uma época, o início de outra… Que ilusão, meu amigo, tu que me chamavas o Renoir de Montemuro, só por que eu já frequentava o 3º ano das Belas Artes, e tinha um "padrinho e mecenas", em Lisboa, que terá metido uma cunha, ao patrão do SNI, o dr. César Moreira Baptista, para eu poder fazer a minha primeira exposição no Palácio Foz, ali nos Restauradores…  (Mas o melhor, dizias tu, era a "Ginginha", ali ao lado, no Rossio, no Largo de São Domingos...)

Só por que eu fazia umas coisas démodées, vagamente impressionistas, com mais de meio século de atraso... Vagamente impressionistas, mas já a caminho do abstracionismo... Enfim, aprendiz de Renoir, talvez imitador da Vieira da Silva, de que só conhecia umas reproduções de má qualidade. 

Alguns amigos, como tu, faziam-me o favor de me incentivar, mostrando que eu tinha talento e até uma carreira de futuro à minha frente!... (Sim, ao nível da gravura, da água-forte, da serigrafia, acho que podia ter ido mais longe!...Ainda ganhei, confesso, uns tostões com as minhas gravuras, havia gentinha com dinheiro fresco que comprava tudo o que fosse obra de arte, naquela época, em que começou o frenezim de investir em arte e ganhar dinheiro... A começar pelos amigos do meu "padrinho e mecenas" de Lisboa, que conseguiu impingir alguns trabalhos meus a um ou outro colecionador; coitado, eu, casapiano, fui para ele o filho que ele nunca teve, mas o contrário infelizmente não era verdadeiro.)

Enfim, aprendiz de Renoir, aprendiz de pintor, isso, sim, podes escrever, que o sonho naquele tempo não pagava imposto!... E esse sonho começou Casa Pia: devo-lhes esse favor, aos mestres que me ensinaram os rudimentos  de desenho e pintura nas oficinas, que ficavam lá por detrás dos Jerónimos.... Ainda hoje estou grato à Casa Pia por me ter acolhido e educado. Mas lá também me faltou o amor  de pai, coisa que eu nunca tive na vida.

Claro, fiquei inchado que nem um peru de Natal quando entrei em Belas-Artes. Ainda dei essa alegria à minha querida mãezinha e aos meus pobres avós. Infelizmente, nunca cheguei a acabar  o curso, a tropa cortou-me as pernas. 

Na minha cédula pessoal, podia-se ler um nota a lápis já meio sumida. Letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre ou de conservador do registo civil. Qualquer coisa como "mais uma boca com direito a senha de racionamento". Milho, açúcar, farinha, azeite, café, etc., que tinha que se ir à vila de Cinfães buscar, serra abaixo, serra acima… Uma porrada de quilómetros a pé ou de burro... Ou então na loja do "Francês", na minha aldeia, tudo mais caro, porque aqui não havia concorrência...

Havia racionamento de géneros por causa da guerra, a II Guerra Mundial. Lembras-te ? Talvez não te lembres, nasceste já depois, em 47, não apanhaste esses tempos que foram duros para a minha mãe e os meus avós, e para todos os demais pobres da minha aldeia. Tu estavas muito mais perto da capital, no Oeste Estremenho, imagino que lá se vivia melhor, à beira-mar.

Nesse mesmo ano em que eu nasci, filho de mãe solteira e "de pai incógnito" (lá estava escarrapachada a infamante expressão, originando um estigma social que me perseguiu até ir para a tropa, ou me persegue ainda hoje!), acabava de regressar da Índia (da Índia portuguesa, como então se dizia, englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) o filho do "Francês", o cabo chefe ou regedor da aldeia e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 

Seria depois, esse filho do "Francês",  o primeiro rapaz da terra  a ir estudar para a Universidade. Casou-se no Porto, ainda estudante, teve um primeiro filho em 1947 ou 1948, o Gustavo.  E no Porto acabaria por estabelecer-se como advogado.

O "Francês" tinha uma pensão do ministério da guerra. Fora gaseado na Flandres. Regressara herói medalhado de La Lys. Admirava Pétain, Sidónio Pais, Gomes da Costa, Salazar e Franco. (Só não gostava dos "boches"...).  Vociferava contra "a corja dos republicanos e dos 'rojos' que tinham destruído a Espanha". Berrava, igualmente, contra a malta do "reviralho", os que eram contra a "situação", como então se dizia. Mas não havia malta do "contra", na minha aldeia, a não ser um pobre diabo, sem eira nem beira, que ficava na corte dos animais, e que era meio atolambado, sobrevivendo à custa de pequenos recados e fretes que ia fazendo, a este ou aquele, e que no largo da escola, onde se hasteava a bandeira nacional,  dava vivas à  República no dia 5 de Outubro!

O regedor era o meu... "padrinho de batismo"! Por favores que lhe deviam (e deferências que lhe prestavam) os meus avós e a minha pobre mãe!... Nunca soube quais. Nunca quis saber. Ou melhor, acabei por saber, ainda muito novo: havia quem na aldeia insinuasse que ele era o meu pai biológico... Na escola, chamavam-me "o filho do Francês", o "zorro", o filho bastardo... 

Nas aldeias, toda a gente sabe tudo (ou quase tudo) da vida de todos. Mas eu ia aos arames, cheguei a andar à porrada na defesa do bom nome da minha mãe e dos meus avós (que, coitados, eram mal vistos na aldeia pelo "pecado da filha").

A minha mãe tinha sido criada de lavoura na casa do "Francês", desde muita nova, ao longo dos anos da guerra... Solteira, menor, com 18 anos, apareceu grávida, teve-me a mim em agosto de 1945...Uma mulher, muito bonita, e sobretudo de enorme coragem  e capacidade de sofrimento, como muito poucas que conheci na vida: recusou-se a casar à pressa, só para salvar as aparências, não acatando o "prudente e caridoso conselho"  do padre de Cinfães ou de Resende (já não me lembro), que ainda era aparentado com os meus avós... 

O escândalo foi rapidamente abafado.  A minha mãe desapareceu das vistas da aldeia.   Por uns tempos refugiou- se na casa de uns parentes no concelho vizinho, Resende. Casaria, sim, mais tarde, "de livre vontade",  com um rapaz bastante mais novo, pastor de cabras, o "cabreiro", de quem teve mais filhos, meus meios-irmãos (com quem, de resto, pouco convivi, e  de quem perdi praticamente o rasto, lamento dizê-lo).

Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, passei a detestar as relações de clientelismo, dependência e nepotismo (e de hipocrisia) que vigoravam na minha terra, uma aldeia da serra de Montemuro, a meia encosta, uma aldeia de pastores e de rendeiros que não era muito diferente de tantas tabancas, fulas e balantas, por onde eu haveria de passar, depois, na Guiné…


Gostava que ainda chegasses a conhecer a minha aldeia, hoje completamente diferente e com pouca gente, muito menos nova, Não sei se terei coragem para lá levar-te. Disseste-me que de Candoz, no Marco, a que chamas a "tua tabanca", se via Cinfães, do outro lado do rio Douro, com a serra de Montemuro à tua frente... Em agosto, no teu "querido mês de agosto", quando vieres de férias,  bem poderemos lá dar um salto!…

Eu, confesso, que ainda gostaria de regressar, pela última vez antes de morrer, às minhas raízes telúricas, mas tenho uma relação de amor-ódio com a terra que me viu nascer, como deves imaginar.

Voltei lá uma meia-dúzia de vezes, se tanto, depois de regressar da Guiné, a última das quais, para enterrar a minha pobre mãe, nos anos 90... Morreu cedo coitada, de doença oncológica, com sessenta e poucos anos. E os seus filhos, meus meios-irmãos, muito mais novos do que eu, são-me completamente estranhos, conheci alguns de vista, no enterro da nossa mãe, mas já não seria capaz de os reconhecer se os encontrasse. Foram à vida, espalharam-se pelo mundo. Tal como eu, a partir dos 10 anos.

Havia sempre festa na aldeia quando um filho regressava das colónias. No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. O filho mais velho e herdeiro do "Francês", estava a chegar em meados de 1945, no final da guerra, tinha eu uns escassos meses, e uma ama de leite, a minha mãe ficara sem peito, talvez devido a depressão pós-parto e ao alarido social  que provocara a sua gravidez de rapariga solteira... Os meus avós maternos, com quem fui criado, é que me contaram  isso, mais tarde, quando eu já tinha entendimento para as coisas da vida e do mundo...

Quando puto, imagina!, ainda sonhei ser missionário, e ajudar a converter os pretinhos lá nas missões do Ultramar. Problemas de pulmões impediram-me de seguir essa vocação precoce.  Estás-me a imaginar de sotaina branca,  longas barbas pretas e óculos de tartaruga,  não estás ?! E acabar, mártir e santo, frito no caldeirão de uma tribo de canibais! Ah!, como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!... 


Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça, por certo o padre, a catequista ou a professora, o pregador da quaresma que vinha de fora... Ou o até próprio regedor... Mas a serra de Montemuro, que abarca Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire e Lamego, deu muita gente para as colónias, as missões e, depois, para a guerra, mas também para a emigração. Eu próprio estava longe de imaginar, no verão de 1967, que um ano e tal depois estaria a desembarcar em Bissau... como combatente!

No início de 45, quando nasci, os tempos ainda eram bem duros. Escondia-se, na serra, nas fragas, nas minas de água, o milho, o centeio, os cabritos e os anhos, dos fiscais do Governo. Como sempre se escondera o pão (e o gado), da vista de todos os invasores,  usurpadores e bandidos. Contavam os meus avós, maternos, esses com quem vivi até ir para a Casa Pia, em 1955, depois de feita a 4ª classe com distinção. 

Mesmo assim fazia-se festa rija quando os nossos rapazes regressavam das guerras do Ultramar, ou alguém, mais raramente, voltava do Brasil... para construir casa e casar!...

O foguetório não era como hoje, em que se gastam rios de dinheiro... Nesse tempo era um luxo. Lançavam-se uns petardos. Pólvora seca. Não havia dinheiro para nada. Só no São João, que era a festa anual do concelho. Era a altura em que se fazia algum graveto. Os cabritos e os anhos do São João ajudavam a compor o magro orçamento das gentes da minha aldeia, incluindo os meus avós.  Não havia dinheiro, pura e simplesmente. Não me recordo,  até aos meus dez anos, de ver uma nota de 20, 50, muito menos de 100 escudos. Só tostões, pretos, encardidos como as mãos, sebentas e rugosas, daquela gente. 

Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro. Os cabritos e os anhos. Ou até nos barcos rabelos, embarcados no ancoradouro de Porto Antigo. À boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido. Ainda não havia as barragens, e o Douro era belo, puro, duro e selvagem, com um percurso cheio de cachões… Hoje está completamente amansado, como tu bem sabes, e já aqui não chegam a lampreia e o sável.

O "Francês", meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. O homem mais rico da aldeia, dono de casas e terras  compradas ao desbarato na crise dos ano 30 e 40.  Era, além disso, negociante de gado arouquês, com clientes no Porto e até em Lisboa Mas antes  ganhara muito dinheiro no garimpo e no contrabando do volfrâmio, com um sócio, seu antigo camarada de armas, a quem também chamavam "Francês", o "Francès de Moncorvo", por ter andado na guerra e ser natural daquela terra transmontana.


Tinha fama de ser violento8 e andava sempre armado, o meu padrinho. Os caminhos da serra não eram seguros na época. Percorria os concelhos à volta, de Resende a Castro Daire, numa velha camioneta Ford. Foi o primeiro a ter transporte automóvel. 

Além disso, era o dono da única mercearia da aldeia, com um anexo, misto de café e tasco, onde se podia ouvir a Emissora Nacional, através do único rádio existente ali nas redondezas… Vendia a fiado. E ele próprio era o "carteiro" e  lias cartas e os telegramas para os analfabetos.  

Não havia luz elétrica, nem muito menos ainda a barragem do Carrapatelo, mas ele já tinha gerador... Ia lá a casa o povoléu, parolo,  para ver (e, de olhos arregalados,  benzer-se!...) aquela máquina que "parecia coisa do demo", que transformava a noite em dia...E tinha também o único telefone da aldeia... 

Por todas estas razões, mais o rol dos fiados, era o homem mais importante, mais poderoso e sobretudo temido e venerado da aldeia... Todos, de uma maneira ou doutra, lhe deviam favores e precisavam dele...

Ainda por cima, dava-se bem com a gente graúda de fora: por exemplo, um tal "mandjor" de Porto Antigo, que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto, e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época, a nível do distrito de Viseu. Não sei, nunca o conheci, nem posso confirmar.

Ao que parece, a esposa desse tal  major, a "Fidalga", mandava cartas diretamente ao Salazar, contava a minha mãe, a pobre da minha mãe, sempre atenta a (e não menos temerosa de) os fios com que se costurava a manta do poder.

Nem por isso o meu padrinho, que era militante da União Nacional (coisa que eu não sabia o que queria dizer), e amigo dos presidentes das câmaras da região e do governador civil do Porto, metera uma cunha para livrar o filho da tropa, durante a II Guerra Mundial. Honra lhe seja feita!... O rapaz esteve em Goa, como expedicionário, com muito orgulho do pai e maior mágoa da mãe (a quem chamávamos a "Madama", com reverência e despeito, para mais sendo de fora).

Ele, o meu padrinho de batismo, sempre teve um grande carinho por mim. Ou, talvez melhor,  algum discreto  carinho por mim: chegava a beijar-me na testa, mas nunca em público. Aos 10 anos deixei de o ver... Ele, o padre, a professora da escola primária e os meus avós arranjaram maneira de me mandar para a Casa Pia em Lisboa, para "estudar e aprender um ofício "... (Ainda pensaram no seminário, mas ficava mal a um futuro padre ter sido concebido "em pecado".)

E foi em Lisboa que arranjei (ou me arranjaram, já não sei como ) uns novos "padrinhos", um casal sem filhos, que me "adotou" e me "protegeu" até à minha ida para a tropa..., e que tu chegaste a conhecer na sua casa, em  Benfica.

Ao fim de semana, eu saía da Casa Pia, em Belém, apanhava o elétrico,  e ia ficar na casa deles, uma vivenda, em Benfica, perto do jardim zoológico. Depois de fazer o 5º ano, aos 16 anos, passei a viver com eles, fiz o liceu e matriculei-me nas Belas-Artes. Ele era um quadro superior do Ministério das Corporações e Previdência Social. Sempre o tratei cerimoniosamente como "padrinho". Nunca houve adoção legal, porque eu já não tinha idade para isso.

Já doente, com setenta e tal anos, o meu outro padrinho, o da terra natal, o de batismo (meu hipotético pai biológico!),  soube da minha partida para África em finais de 1968, depois de eu ter chumbado em Belas-Artes, por ser cábula e andar na má vida. 

Eu nunca lhe pedira nada, nem ele nunca me dera nada, nem sequer o tradicional folar da Páscoa que qualquer padrinho, mesmo pobretana, oferece a um afilhado. E muito menos lhe iria pedir agora que me safasse de ir parar à Guiné. Sempre tive o meu orgulho. Inclusive proibi a minha mãe e os meus avós, ainda vivos, de o fazerem por mim. Nem ele era homem para aceitar um pedido desses,  mais do que humilhante, inconcebível, para ambos. Nem sequer ao "padrinho" de Lisboa eu meti qualquer cunha (a não ser a entrada no SNI, mas isso foi até iniciativa dele, se bem recordo a esta dostância).

Tal como o "Francês" (nunca o tratei pela alcunha!, era "sua benção, padrinho" e pouco mais, sentia-me inibido na sua presença), eu tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada, enfim, da coerência. Coisas que hoje não vejo ser valorizadas pelos mais novos, por exemplo os meus filhos e sobrinhos.

Quando voltei da Guiné, evacuado, no 2º semestre de 1970, ele já tinha morrido, de um AVC isquémico. Ele e o Salazar ( que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente, mas de quem era um admirador acérrimo e acrítico).

O seu maior desgosto era um dos netos que devia seguir as peugadas do pai (como te disse, advogado no Porto, e meu putativo irmão, mais velho)... Numas férias de verão, em meados dos anos 60, o Gustavo ficou em Londres a lavar pratos. No final desse ano já estava na Suécia, em Lund, aclamado como "herói", por ter fugido à guerra colonial... Fazia 18 anos, era dois anos e picos mais novo do que eu, já tinha dado o nome para a tropa.

Terá sido considerado  refratário pelas autoridades militares.  Como estava a estudar na Faculdade de Direito de Coimbra, já no 2º ano, beneficiava do adiamento da data de incorporação, tal como eu, de resto. Aproveitou para dar o "salto", numa viagem de intercâmbio universitário, segundo me constou. 

Eu sei que nessa época ninguém escapava à tropa e depois   à guerra, até filho de general era mobilizado  (era o que se dizia). Nunca conheci nenhum general,  mas imagino que, na pior das hipóteses, os filhos dos generais ficavam na guerra do ar condicionado: em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques… 

Nunca conheci nenhum, minto: conheci o Spínola (o Schulz já não o apanhei), mas não sei se ele tinha filhos em idade de ir para a tropa, julgo que nunca teve filhos.

O avô, o "Francês", pelo menos publicamente, viu na traição do neto uma desonra para a família (e para a terra, que considerava, abusivamente, uma extensão da família).
 
– Coimbra, a república dos estudantes jacobinos, dera-lhe a volta à cabeça  lamentava-se ele.

 Para mais era o seu neto querido, o mais ladino, o mais  vivaço, o mais parecido com ele.

– Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça –  concluía o meu padrinho, quando o fui visitar, nas minhas férias no verão de 1969.
 
 Sua bênção, padrinho   foram as primeiras palavras que lhe disse, desde há anos…

– Já o pai não prestava, era um fraco – arrematava  ele, entre dois ataques de tosse. 

– As melhoras, padrinho !– foram as últimas palavras que eu lhe dirigi… 

Julgo que eram sinceras, que nada tinham de cínico. (Mas como eu tanto gostaria de lhe poder chamar pai, se ele tivesse tido a coragem, nessa ocasião única, e irrepetível, de me chamar filho!...)

Puxou então de uma nota de 100 paus (!), e disse-me que era "para a viagem de regresso à Guiné, meu rapaz". Fiquei banzado, nunca me tinha dado nada, nem um rebuçado ou um pirolito... Quis recusar, mas ele sentiu-se ofendido...

Impressionou-me a sua decadência, a sua descida do pedestal, acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… A saúde a falhar, a família a desmoronar-se, a Pátria a esvanecer-se, o Império a ruir, a aldeia a minguar com a emigração… Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, que era para ele o coveiro do Estado Novo e do Império. 

Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois, respeitado, por certo,  mas não amado. Durante décadas fora pai, padrinho, cacique e patrão, um verdadeiro "capo", um "padre padrone" (como dizem os italianos), um cabo chefe de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal… que até então  pouco mudara,   apesar das mudanças de regime.

Gustavo, o neto do meu padrinho da aldeia, ainda me escrevera um dia para o SPM de Cacine.  Éramos amigos e, provavelmente parentes: eu podia ser tio dele, mas tinha desistido há muito da ação de investigação da paternidade "post mortem"!... (Mais por respeito pela memória da minhã mãe, tenho que o confessar; se por um lado, eu bem gostaria de ter um pai como toda a gente, por outro repugnava-me a ideia ter como meu progenitor o violador da minha mãe.)

Ou melhor, éramos "mais vizinhos do que amigos", eu e o Gustavo: tínhamos brincado juntos até aos 10 anos, a idade da inocência, nas férias de verão,  Ele estudara em colégio particular, e vivia em zona fina, na Foz, no Porto. Só quando entrou para a Universidade, é que se mudou para Coimbra. Não gostava da aldeia do avô e do pai, que achava terra de gente "parola". Mas ia lá algumas vezes, com os pais, nas férias grandes, no Natal e na Páscoa. De carro.

 Nessa altura (até eu entrar para a Casa Pia de Lisboa) brincávamos por entre as fragas que cercavam a aldeia. Havia aquela cumplicidade de putos, pesem embora as diferenças sociais e até de idade. Ele era o "menino", que comia ovos estrelados e bebia leite,  e eu o "catraio", alimentado a caldo e a broa... Nós, os putos da aldeia,  éramos a "canalha".

Agora, em Lund, na Suécia, militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer e angariava dinheiro para o PAIGC e para apoio aos "exilados políticos. refractários e desertores da guerra colonial". Dinheiro que, no caso do PAIGC, tanto servia para comprar livros e medicamentos como armas e munições, questionava-me eu. Irritou-me a sua missiva, cheia de metáforas, clichés, prosápia, slogans, frases pomposas, retiradas do livrinho vermelho do execrável camarada Mao. (Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo.)

As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC, algo quixotescas, guevaristas, românticas (inculcadas nas Belas Artes), desvaneceram-se com os imperativos da camaradagem na caserna e com a prova de fogo na frente de batalha, quando cheguei à Guiné. Não se podia objectivamente estar "do lado de cá", fardado de camuflado, e equipado com a G3, e ser-se um simpatizante, vagamente romântico, mesmo quixotesco, dos gajos do "outro lado de lá", daqueles que nos combatiam (e nós combatíamos)… E que feriam e matavam os nossos camaradas e a população que estava do "nosso lado".

Além disso, devo dizer-te, chocavam-me os métodos de terror usados pelo PAIGC contra os fulas (e os demais que não alinhavam com eles), quer na zona leste quer no sul (que também conheci)… Tinha alguns amigos guineenses, entre eles, fulas, guias, picadores e milícias, desde Nova Lamego até Bafatá, e depois em Cacine…

Nunca lhe respondi, ao Gustavo. Achava-o um puto mimado, egoísta, oportunista e provocador. Em suma, um cabrãozeco. Não me admirei de o vir a encontrar, depois do 25 de Abril, num dos partidos do arco do poder. Andará hoje por Bruxelas, segundo me disseram, assessor de um qualquer político da nossa praça, com assento no Parlamento Europeu ou funcionário na Comissão Europeia. Tinha-se casado com uma sueca. Mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. (Foram, por certo,  amores de verão.)

Confesso-te que, secretamente, ainda lhe cheguei a invejar a sorte, ele ali no bem bom da Suécia e das suecas louras, de olhos azuis, que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos…... E eu a gramar a pastilha de uma comissão de serviço militar na Guiné!... (Bolas, qual comissão!... Eu fui para um teatro de guerra!)

Achei que o mundo não era justo.  Mas mesmo assim não me podia queixar. Estava vivo. E os primeiros tempos, passados entre Piche, Nova Lamego e Bafatá, até nem foram maus de todo. Ainda fiz o gosto ao dedo e pintei alguns quadros, em acrílico, que até tiveram um ou outro comprador, a preço simbólico. Outros ofereci a gente conhecida e amiga, incluindo uma família de comerciantes libaneses cuja casa costumava frequentar, e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar. (Eram bonitas,  as libanesas.)

Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta, isto é, da aldeia de Montemuro. da Casa Pia, do bairro de Benfica e, depois, do leste da Guiné … Montmartre fora apenas uma miragem... Enfim, uma deceção, a minha vida!... Nunca me perdoei, de resto, ter estupidamente chumbado nas Belas-Artes e de ter sido chamado, prematuramente, para a tropa, acabando,  para azar meu,  nas matas e bolanhas da Guiné.

Nunca falei disto a ninguém, passei por uma grave crise existencial nos últimos meses da comissão, ainda tive, uma vez, uma única vez, depois de ter despejado uma garrafa de uísque, a pistola Walther apontada ao céu da boca. Senti a atração da morte, a vertigem do nada, a comiseração da autodestruição, a autopiedade, a autocompaixão... Mas, mesmo anestesiado, era demasiado cobardolas para resolver, com um tiro mortal, as minhas contradições "pequeno-burguesas" (dirias tu), agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, que tu  conheceste, no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, em 1967, a bela menina-família do Funchal, que estava a estudar serviço social, ali no Campo de Santana, em Lisboa, tinha-me trocado por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… Ainda trabalhara uns tempos na Misericórdia de Lisboa, num dos projectos de realojamento de população de um bairro de lata, antes de regressar à Madeira (creio que no Natal de 1969). 


Não esqueço a última carta que ela me mandou, de despedida, no início do ano de 1970 (já não posso precisar o mês), a dizer que ia para a Venezuela, para casar. (Estava já eu em Cacine, no sul da Guiné, sei que era a época das chuvas.) 

Era um encanto de miúda, delicadíssima como uma orquídea, linda de morrer, com pele de veludo e blusinhas de renda, que mal tapavam os seus deliciosos marmelos, mas com pouca ou nenhuma margem de decisão em relação à sua vida pessoal e sentimental.

O clã é sempre quem mais ordena. O pai, tanto quanto me apercebi, seria um homem do regime, da média ou média-alta burguesia funchalense, mas com problemas financeiras, por negócios, mal sucedidos, na área do import-export, bananas, frutas tropicais, flores, eletrodomésticos e coisas assim do género. Família numerosa, muitos manos, muita cagança e estaleca a menos. 

Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora. Nunca pensei, de resto, em pedir-lhe a mão. Muito menos depois de conhecer o paraíso da Guiné. Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão. Namorávamos apenas... Ou trocávamos cartas e aerogramas. Gostava da sua companhia e do seu perfume. E ela fora inclusive ao meu embarque, no Cais da Rocha Conde de Óbidos. Ficou chorosa, mas não de coração destroçado. (Foi aí que me convenci que ela nunca iria esperar por mim.)

Fiquei surpreendido quando um furriel de uma companhia madeirense, meu conhecido, por sinal do Funchal e das relações da família da Flora, e que sabia da nossa história, veio-me lembrar que seria bom decidir-me e pedir-lhe a mão em casamento, de acordo com os usos e costumes da terra... 

– Porque  há mais pretendentes na fila, à porta de casa!...  

Estávamos a comer umas ostras e a beber umas cerveja, numa esplanada em Bissau, talvez no "Pelicano", já não me lembro. Viera a uma consulta de estomatologia. Foi um choque. Fiquei engasgado. Não estava preparado para tomar nenhuma decisão, e muito menos naquela parte do mundo, no cu de Judas. Muito menos para decidir quem deveria ser a mãe dos meus filhos. 

Estava na Guiné, estava na guerra, sem saber o que fazer da minha vida, sem saber sequer se iria chegar à meta, que era cumprir a minha pena de 21/22 meses, de “perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”, a que fora condenado pelo único crime de ser português, natural de Cinfães, filho de mãe solteira, e de pai incógnito, o filho da puta que a violara… e que, cinicamente, se oferecera para ser o meu padrinho de batismo. 

No mínimo, a minha pequena grande ambição, e a única,  era chegar inteiro à meta, de novo ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, donde havia partido... Inteiro, de cabeça, tronco e membros, e com os tomates no sítio. Ainda tentei telefonar-lhe, à Flora, de  Bissau (fiquei lá uma noite nos correios à espera de ligação para o Funchal). Em vão. As ligações com a Madeira (e para a Metrópole) não eram fáceis. Desisti. Sempre fui, afinal, um merdas, um fraco, um falhado. Nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido com a minha encantadora namorada madeirense que, cansada de esperar, acabou por me trocar por ... um padeiro venezuelano rico! (Hoje não a condeno, nem sei  se está viva e é feliz; nenhuma mulher  ficava à espera de um gajo que ia para a Guiné e que,  se regressasse vivo, seria sempre um teso de um artista plástico!)

Já agora, e se ainda tiveres pachorra para me ouvir, conto-me o resto da história, já que me apanhas em maré-alta de (in)confidências...

Acabei, já em Lisboa, por não conseguir voltar a estudar  (não me perguntes porquê, não tinha cabeça ) e por tornar-me bancário (o primeiro emprego que arranjei, ali à mão, não longe da sétima colina, aonde tive a  sorte de descobrir umas águas-furtadas para morar). 

Infeliz, acabei também por me casar,   na primeira oportunidade, com uma galega de Orense, que vivia no bairro, e que nunca chegarás a conhecer, pela simples razão de que já fomos cada um à sua vida… É apenas a mãe dos meus dois filhos, um deles, o rapaz, a viver em Vigo, e cada vez mais galego como a mãe. (Ainda por cima foi ela que pediu o divórcio!, a minha ex, o que feriu o meu orgulho de pobre macho lusitano.)

Mas ainda antes de tudo isso , meu amigo,  já te devida ter falado do rol de desgraças que me aconteceram na Guiné. A descida aos infernos. A cafrealização, à maneira do Rimbaud, dirias tu. A porrada do segundo comandante no Gabu. A ida, por castigo, para o sul, para Cacine, em rendição individual. O tiro de Kalash que me mandou uns largos meses para o Hospital Militar da Estrela, e que me podia ter deixado tetraplégico.  Enfim, poupo-te os pormenores macabros, um dia contar-tos-ei, se ambos tivermos tempo e pachorra, eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos guardados no armário da minha memória…

Esqueci a Guiné durante décadas. Ou tentei esquecer a Guiné (o que é difícil quando te vês ao espelho e tens uma bruta cicatriz abaixo  das costelas, e que só por milagre não me atingiu nenhum órgão vital). 

Esqueci a Guiné... até ao dia em que, não sei como nem porquê, vi na Net o teu nome, a tua cara, os teus óculos, associado a uma terra, um dos poucos sítios de que eu até guardava boas memórias, da minha breve passagem por lá, em trânsito para Bissau… Toda a malta do leste tinha que passar por lá, por Bambadinca... Eu sei que fiquei lá umas duas ou três  noites, à espera do "barco turra", para Bissau quando fui de férias. 

É verdade, desencontrámo-nos na Guiné. (Estarias tu ainda em Contuboel, pelo que me contaste ao telefone.) Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado, na Guiné, podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro ,  no 2º semestre de 1969, nomeadamemnte em Bafatá, onde devemos ter estado algumas vezes, no mesmo dia e na mesma hora, embora eventualmente em sítios diferentes, mas muito perto um do outro. 

Achei piada ao teu jogo de palavras, quando, ao telefone, me respondeste ao meu olá: “o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te para marcarmos um encontro e matar saudades. Com mais tempo e vagar. Se ainda formos a tempo... É coisa que, de resto, me vai faltando, o tempo. Cada vez mais. Ando agora com o frenesim (chama-lhe compulsão,  se quiseres), das viagens, por terra, ar e mar: só para saberes, já visitei mais de sessenta países dos cinco continentes... E ainda me faltam dois terços do planeta...

Tenho pressa de viver, à medida que eu vejo os meus parentes, amigos e conhecidos lerparem, naquela idade em que ainda há a ilusão de que temos o resto da vida toda à nossa frente. Eu já não tenho essa ilusão:  vivo o dia a dia!... "Carpe diem", é o meu lema. Tornei-me cínico, cético e hedonista.

Preciso de ganhar coragem. Confesso que tenho medo de revisitar o passado. Tenho medo das armadilhas do passado. E, por agora, ando a recuperar o tempo perdido, depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco, a lidar com o dinheiro dos outros. (E a fingir, à noite, que era um promissor artista plástico.) Aceitei vir-me embora do banco, com uma indemnização. Ou mandaram-me embora, para ser mais correto. O que foi humilhante: afinal, eu estava lá a mais!

Até lá, ao nosso próximo encontro, se formos vivos, um abraço, como vocês dizem, do tamanho do nosso Rio Geba.

Assina este relambório o teu falhado amigo pintor, e, pior do que isso, frustrado companheiro da viagem "a salto", até Paris, viagem que nunca passou de um devaneio de umas tantas tardes de verão em que estivemos, juntos, em 1967, na casa dos meus "padrinhos" em Benfica e no SNI, o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, a preparar a exposição que foi a minha "vernissage", entre copos de ginjinha e amendoins. Recordo esse tempo com muita saudade, muito mais do que a Guiné.  Tenho saudades de ti, da Flora e das suas amigas do Campo Grande.

Até sempre, amigo (e camarada)!


Teu F..., o Renoir de Montemuro.


PS1 -  E já que falei o meu "padrinho" de Lisboa, que tu conheceste, embora mal (era um homem irascível e autoritário, quando se zanagava), tenho a dizer-te que ele foi, pobre diabo, uma das primeiras vítimas do 25 de Abril: trabalhava na Praça de Londres, no Ministério das Corporações e Previdência Social, foi saneado, pela Comissão de Trabalhadores, por ser assessor de um "fascista", entrou em depressão, tentou cometer suicídio... Não morreu logo, ainda esteve uns dias nos cuidados intensivos do Hospital de São José.

Confesso que fiquei desolado: nunca foi o substituto ou o sucedâneo do pai que eu nunca tive,  mas foi, para mim, um  bom homem, um amigo, um protetor... À maneira dele, quis sempre o melhor para mim. Estou-lhe grato por me ter ido "buscar" à Casa Pia, me ter acolhido na sua bela casa,  me ter dado uma "família normal"... Foi graças a ele que continuei a estudar e entrei em Belas-Artes. A minha "madrinha", essa, ainda aguentou uns anos, morreu de abandono e demência... Era professora de liceu...

Nunca mais voltei ao Rossio para  beber uma ginjinha… E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para o seu lado... Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto, quando voltar a Lisboa. Afinal fiquei com uma pensão de Deficiente das Forças Armadas, a par da reforma do banco. Vivo sozinho, e com poucos luxos, tirando as viagens. (#)


________


(#) Duas notas do autor:


(i) Ainda estou para beber a tal ginjinha, prometida  pelo meu amigo F..., "aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre"... Nunca mais deu sinal de vida, depois que falámos longamente ao telefone, há uns anos atrás. Deve ter mudado de mail e de telemóvel. Sei que adora(va) viajar. E que tem(tinha) uma filha, casada, arquiteta, a viver nos arredores de Paris (além de um filho em Vigo, com quem não falava). Enfim, deve andar por aí a dar o resto da volta ao mundo... Ou a descobrir novos mundos (se é que ainda os há)...

Mas perguntar-me-á o leitor mais atento ou curioso: "como é que, afinal, o conheceu e onde, a esse tal rapaz de Montemuro"? A resposta é simples: no Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã, no verão de 1964.. Tinha eu 17 anos. Os "padrinhos de Lisboa" costumavam lá alugar uma casa de verão e adoravam a lagosta suada do Zé Felipe... Foi lá que eu descobri o seu talento artístico de ex-casapiano...  Passámos a corresponder-nos. Até que veio o inesperado convite, em 1967,  para lhe escrever o catálogo para  a exposição no SNI.


(ii) Um bilhetinho para o F...

Meu caro F...

Não tenho a certeza se alguma vez vais ler este texto, que resume o essencial que eu sabia de ti mais o que passei a saber,  na nossa última (e única) conversa ao telefone, em 2008. Conversa que reconstitui, tendo sido, tanto quanto possível, fiel à tua oralidade, tão expressiva quanto torrencial.

Mas sempre te direi que ninguém é feito de uma só peça, nem muito menos a nossa história (individual e coletiva) é escrita a preto e branco.

Foi o nosso autorretrato possível (ou a "selfie", como se diz agora)  para este meu possível livro de "contos  com  mural ao fundo"... 

"O passado (e nomeadamente, o meu tempo na Guiné) está morto e enterrado", acho que foi a tua resposta  quando eu insisti em que escrevesses umas notas sobre esse tempo, para "memória futura"...  Percebi que és daqueles casmurros que puseram (ou gostavam de poder pôr) uma pedra (tumular) sobre o passado...

Sabes onde vivo. Se (ou quando) passares por aqui perto, faz-me uma visita, dá -me um toque. Eu, pessoalmente, ficarei radiante. Por mim, por ti, pela nossa velha amizade de juventude e os nossos sonhos juvenis. E até pelo "carimbo da guerra no nosso passaporte da vida"...

Como a vida, afinal, também é feita de surpresas, talvez a gente ainda se encontre, mum qualquer dia do meu querido mês de agosto, nas Portas de Montemuro... E a propósito, nunca me chegaste a dizer qual é a tua aldeia. (Conheço algumas, mal: Alhões, Boassas, Bustelo, Gralheira, do lado de Cinfães... E gosto de ir tomar um café no parque de lazer  do rio Bestança em Pias, sitio onde  tu  seguramente nunca foste, foi inaugurado há uns anos). 

Da minha tabanca de Candoz até à tua tabanca de Montemuro, do outro lado do rio Douro, deve ser  apenas a distância  de um tiro de obus 14. (...)

© Luís Graça (2009). Nova versão, revista e melhorada, em 31/10/2023. 
_____________

Nota do editor  L.G.:

(*) Último poste da série > 22 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24781: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (11): E na hora da nossa morte, ámen!