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sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13858: Memórias de Mansabá (34): As amêndoas da Páscoa de 1969 (Francisco Henriques da Silva)

Vista aérea do quartel de Mansabá
Foto: © Carlos Vinhal


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 1 de Novembro de 2014:

Meu caros camaradas e amigos,
Por razões várias, tenho prestado uma colaboração muito irregular a este blogue (mea culpa!) que, aliás, leio sempre com interesse e debato os “posts” aí publicados com os meus amigos e ex-camaradas de armas Mário Beja Santos e Raul Albino.
Junto vos envio uma descrição de um grande ataque a Mansabá, em 3 de Abril de 1969, poucas semanas depois da minha companhia se ter instalado naquela localidade, para participar na protecção aos trabalhos da construção da estrada Mansabá-K3-Farim.
Não disponho de qualquer fotografia de Mansabá no meu arquivo e muito menos do ataque em questão.

 Com um abraço cordial e amigo
Francisco Henriques da Silva
Ex- alferes miliciano de infantaria, C. Caç. 2402 (Có, Mansabé e Olossato), 1968-1970
Ex- embaixador de Portugal em Bissau (1997-1999)


MEMÓRIAS DE MANSABÁ

34 - As amêndoas da Páscoa

A 3 de Abril de 1969, Quinta-feira Santa, pelas 11 da noite, dá-se o grande ataque ao quartel de Mansabá, em que o grupo de combatentes inimigos devia ser superior a 120 elementos, armado com canhões sem recuo, morteiros de 82mm, metralhadoras pesadas, para além do armamento ligeiro habitual (Kalashnikovs, “costureirinhas”, RPG-2 e RPG-7, morteiro de 60mm, etc).(1)

A intensidade de fogo nos primeiros minutos, para além do efeito surpresa, impediu toda e qualquer reacção da nossa parte. Os rebentamentos incessantes faziam-se ouvir por todo o lado e percebia-se que tinham atingido a maioria das instalações militares.

No que me respeita, tinha acabado de fechar a luz, depois de passar os olhos, como era meu hábito, por um livro qualquer, porque no dia seguinte era dia de trabalho (ou seja, de protecção aos trabalhos em curso na estrada Mansabá-Farim), quando começou o fogachal. Encontrava-me num edifício constituído por um renque de pequenos apartamentos térreos, no enfiamento da pista de aviação, portanto num local completamente aberto e exposto ao fogo do inimigo, que estava, na prática, a fazer tiro de pontaria ao casario com, pelo menos, um ou dois canhões sem recuo e duas metralhadoras pesadas, para já não falar dos lança-rockets e das armas ligeiras que disparavam ininterruptamente. A cadência de fogo era, pois, de uma enorme violência. As coisas complicavam-se. As balas sibilavam em várias direcções. Os rebentamentos persistiam. Agarrei na G-3 e nas cartucheiras, vesti apenas a camisa do camuflado. Creio que uma bala terá trespassado a rede de mosquiteiro da janela indo alojar-se na parede. As coisas estavam a ficar feias. De xanatos e, em cuecas, corri para o quarto de banho, uma pequena dependência, nas traseiras, com uma parede de separação. Preparei-me para o pior, porque a violência do tiroteio e das explosões não abrandava. No quarto propriamente dito eu estaria demasiado exposto e o fogo vinha precisamente do fundo da pista, mesmo em frente. As balas de uma “pesada” iam quebrando as telhas do meu quarto mesmo por cima da minha cabeça. Um rebentamento muito próximo – fiquei momentaneamente surdo - dava-me a entender que uma canhoada ou morteirada devia ter destruído um dos apartamentos vizinhos. Se acaso os guerrilheiros tentassem entrar nas instalações, eu dispunha pelo menos da G-3 e de 5 carregadores para me defender. Tive a nítida sensação de que podiam tentá-lo. Não se atreveriam a tanto, ficava para a próxima... Quem sabe?

 Quartel de Mansabá - 1-Quartos dos Oficiais; 2-Edifífo do Comando: 3-Messe dos Oficiais

Será que tive medo? Não, creio que não tive, ou seja, o medo emocionalmente paralisante e que inibe o raciocínio, a decisão e a acção, mas também não podia iludir o sentimento de espanto, bem como, a veemência inicial do ataque, que atingiu proporções inusitadas. Por outro lado, também não terei tido aquela sensação habitual da entrada em combate, aquele nó na garganta, a boca seca com um gosto amargo, aquela sensação indizível de que ia começar um jogo incerto, mas que de algum modo o podia controlar, pelo menos na parte que me tocava Aqui não, estava só, literalmente só. Valia apenas por mim. Era tudo.

Entretanto, o fogo inimigo abrandou, enquanto se encetava a resposta do nosso lado, tímida e lenta, primeiro na base de morteiro 81 e uns largos minutos depois com as peças de artilharia. O tempo de reacção da nossa parte foi demasiado arrastado, o que permitiu ao IN actuar com total à-vontade. Tendo o fogo do exterior abrandado, corri para um abrigo situado na extremidade da fiada de apartamentos. Ouvi uma mulher a chorar e também o que me parecia ser o choro de uma criança. Devia ser família de algum dos engenheiros civis. Passei em corrida. Trazer mulheres e crianças para a guerra!?! Francamente...

Bati à porta, energicamente e com alguma impaciência.

- Oh, minha senhora, saia daí. É melhor refugiar-se no abrigo. É mais seguro – gritei-lhe cá de fora, agachado junto a um pequeno muro de resguardo, que a bem dizer não protegia nada, porque choviam balas tracejantes por todos os lados que iam iluminando o céu estrelado.

Noutro apartamento ao lado, alguém acendeu uma luz. Crispado, já com os nervos à flor da pele, vociferei não sei muito bem para quem:

- Desligue lá essa m... imediatamente, senão ficamos aqui todos! Não vê que isso chama a atenção?

No final da fiada de casas, lá estava o abrigo. Entro e ponho logo os pés numa quantidade infinda de fezes humanas, os meus xanatos de quarto para nada serviram. Fiquei sujo quase até aos joelhos. Os nossos bravos soldados, jamais prevendo que pudessem ser alvo de um ataque, tinham transformado o abrigo em retrete colectiva!

Não estava ali viv’alma. Enfim, para que é serviam os abrigos? Boa pergunta. Uma metralhadora lá para o fundo da pista ainda estava activa. Disparei inutilmente três ou quatro tiros, naquela direcção, porém sem qualquer convicção. O certo é que não estava a fazer nada e, entretanto, o fogo tinha amainado consideravelmente, ouvindo-se apenas tiros isolados e uma ou outra rajada. Passei pelo quarto, vesti uns calções, corri então para a parada em direcção a um dos barracões onde estavam instalados os meus homens. De caminho, vi 3 ou 4 feridos, de outras unidades, um jazia numa poça de sangue a contorcer-se com dores, um outro coxeava e tinha um braço ensanguentado, mais longe perto do abrigo do morteiro 81 alguém jazia prostrado no solo, sem dar sinal de vida (Morto? Ferido? Sei lá...). Enfim, não parei. Havia gente a correr por todos os lados e ainda se respondia ao fogo.

Entro no barracão, onde estariam os meus homens e gente da minha companhia. Pergunto de chofre:
- Temos muitos mortos e feridos?

Não era um dos meus soldados, mas pertencia à C.Caç. Respondeu-me:
- Feridos há alguns, meu alferes. Mortos creio que não, mas nas outras companhias parece que morreu gente.

Os enfermeiros e maqueiros corriam de um lado para o outro. Alguns feridos pareciam necessitar de evacuação urgente, porque aparentavam ferimentos graves. Com grande parte dos edifícios atingidos (quase todos), foi um milagre não se terem verificado mais vítimas. Para tal bastaria uma canhoada em cheio numa das casernas. Procurei o nosso capitão. Estava de serviço, mas não o encontrei.

Num abrigo de pequenas dimensões, perto da messe de oficiais e da torre de transmissões, vi o comandante de batalhão, deitado numa cama a olhar para o tecto, com um ar inquieto.

- Há muitos feridos e mortos? – perguntou-me.
- Alguns, meu comandante, alguns, ainda não se sabe ao certo quantos.
- Então, têm de ser evacuados – concluiu
- A esta hora e nestas condições não creio que seja possível - repliquei.
- Você está todo enlameado – interrompeu ele, mudando de assunto e olhando para as minhas pernas.
- Não é bem lama, meu comandante. Como sabe, estamos na estação seca. É outra coisa. Com sua licença...

Dei meia volta. Creio que não se apercebeu, nem sequer pelo olfacto, do meu estado real de sujidade, nem, tão-pouco, das razões para tal.

Foto 1 > Mansabá > Alguns dos feridos esperando evacuação para Bissau

O capitão que encontrei um pouco mais tarde disse-me que o comandante de batalhão havia solicitado apoio aéreo, o que era uma asneira, pois a aviação já nada podia fazer àquela hora, uma vez que a “guerra” tinha, de facto, acabado, nem actuava em plena escuridão. Seguiu-se uma noite sem pregar olho a cuidar dos feridos, a contabilizar os homens, a verificar os estragos e à espera de ordens. A população civil da tabanca e os trabalhadores da obra tinham sido duramente atingidos, mais do que a própria tropa, e registavam-se vários mortos e feridos entre eles, para além de inúmeras moranças incendiadas.

Os comandos lá conferenciaram entre si e deram-me por missão, bem como a outros grupos de combate da minha companhia, de efectuar um reconhecimento, logo ao raiar do dia, pelos presumíveis locais de instalação do inimigo, designadamente pela pista de aviação e região circunvizinha. Verificámos dois ou três factos curiosos: antes do mais, era extremamente difícil, à primeira vista, determinar os ditos locais, uma vez que, contrariamente ao que era usual, não se viam invólucros pelo chão; em segundo lugar, os trilhos de aproximação tinham sido apagados com ramos de árvores, que nos impediam de determinar com algum grau de certeza os rodados das armas pesadas (muitas, como viemos a saber mais tarde, foram previamente desmontadas e transportadas a ombro por carregadores – técnica que era também utilizada, como se sabe, na guerra do Vietname) e as próprias pegadas do grupo inimigo; em terceiro lugar, as posições dos canhões sem recuo e dos lança-rockets só se conseguiam detectar pelas ervas queimadas ou pelos vestígios de pólvora no solo; finalmente, o terreno, vasculhado a pente fino, não estava minado, o que, felizmente, contrariava as nossas piores expectativas.

Na Sexta-feira Santa, pouco depois de terminado o nosso reconhecimento no terreno, desembarcado do helicóptero para se inteirar do que se havia passado e dar algum alento às tropas, lá estava o inefável “Caco” Baldé. Uma das alcunhas porque era conhecido, à época, António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe da Guiné. Baldé é um nome comum entre as etnias fula e mandinga e “caco” pelo facto de usar monóculo. Mostrou-se insatisfeito com o comportamento do comandante de batalhão.

Foto 3 > Mansabá > Um dos edifícios atingidos
Fotos: © Raul Albino

Uns dias mais tarde, por ordem do “hómi garandi da Bissau”, é lançada uma grande operação de retaliação na mata do Morés com pára-quedistas que, para além de terem infligido algumas baixas ao inimigo e de capturarem numeroso material de guerra, descobriram um mapa com a localização exacta das instalações militares e civis de Mansabá, com as medições em passos aferidos da localização das diferentes construções existentes e com indicação precisa das actividades que ali se desenvolviam. Ora, aí estava uma das explicações para a constante fuga de capinadores e de trabalhadores que, aliás, continuavam a circular, como sempre, sem quaisquer restrições, dentro do quartel. As deficiências da nossa intelligence foram mais que notórias, sem falar, evidentemente, das patentes falhas da segurança, que carecem de adjectivação adicional e que, aliás, continuavam.

Depois disto, Spínola, incumbiu-nos de nova missão: o Olossato, do outro lado da mata do Morés, onde iríamos terminar a nossa comissão de serviço.
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Notas do editor:

(1) Vd. poste de 24 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3146: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (12): Ataque a Mansabá

Vd. último poste da série de 2 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13457: Memórias de Mansabá (33): No dia em que morri (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA)

terça-feira, 15 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12989: Agenda cultural (310): Sessão de apresentação do livro de Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro", levada a efeito no passado dia 10 de Abril no Palácio da Independência

Palácio da Independência, 10 de Abril de 2014. Sessão de apresentação do livro "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro". À esquerda da foto os autores: Mário Beja Santos e Francisco Henriques da Silva


"Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro"

Sessão de apresentação no Palácio da Independência em 10 de Abril


Numa sala completamente apinhada, Alarcão Troni, presidente da Sociedade Histórica para a Independência de Portugal, saudou o evento e recordou as diferentes iniciativas associadas ao estudo e publicações ligadas à Guiné, por parte da instituição. Victor Raquel, da Fronteira do Caos, manifestou a sua satisfação por ver a editora conotada com obras de referência, incontornáveis na cultura portuguesa com conexões à problemática ultramarina.

O primeiro orador, Eduardo Costa Dias, do Centro de Estudos Africanos do ISCTE, saudou a publicação deste título e recordou como a história da antiga colónia e do Estado independente careciam de uma leitura que permitisse a linearidade histórica, contemplando os grandes eixos da presença portuguesa, iluminando o percurso ziguezagueante de 1974 a 2012. Considerou que o roteiro inseria e preenchia com informação rigorosa os capítulos essenciais dos cerca de 550 anos que o livro pretende abarcar. Não obstante, lembrou que há lacunas bibliográficas que poderão ser preenchidas em nova edição. Acentuou por último que o roteiro abre enormes perspetivas para novos estudos e investigações sobre a Guiné e outras regiões.

O segundo orador, Julião Soares Sousa, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Prémio Fundação Calouste Gulbenkian, História Moderna e Contemporânea de Portugal, pelo seu livro “Amílcar Cabral, Vida e Morte de um Revolucionário”, considerou que a obra que estava a ser apresentada supria uma grave lacuna não só quanto à presença portuguesa como à vida atribulada da República da Guiné-Bissau, mas igualmente estabelecia a charneira quanto às etapas fundamentais da luta da libertação, carreando informações prementes no campo da bibliografia, da literatura e da cooperação. Fez votos para que os conteúdos do roteiro venham a ser matéria-prima para trabalhos mais desenvolvidos de que aquela região africana precisa, e conta com a dinâmica das universidades portuguesas para tal, em colaboração com a investigação sediada em Bissau.

Coube a Francisco Henriques da Silva, um dos coautores, justificar a natureza da obra, apresentou-a como um projeto de diferentes valências, há estudos que carecem de aprofundamento e Portugal dispõe de instituições ímpares quanto a documentação, que é crucial para melhorar os conhecimentos do período colonial, sobretudo. No entender dos autores, o levantamento feito sobre a Guiné-Bissau é um bom ponto de partida e recordou que na guerra civil de 1998-1999 perderam-se arquivos preciosos sobre o passado e a contemporaneidade, o que agrava as dificuldades para densificar o fio condutor entre o período colonial, a luta de libertação e a história do país independente.

O Encarregado de Negócios da República da Guiné-Bissau, M’bala Alfredo Fernandes não escondeu o seu apreço por esta iniciativa e teceu considerações sobre o ato eleitoral em curso na Guiné-Bissau.
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Notas do editor

Vd. poste de 6 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12798: Agenda cultural (305): O livro "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau - Um Roteiro", co-autoria de Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, vai ser apresentado no próximo dia 9 de Abril de 2014, pelas 18 horas, no Palácio da Independência. Apresentadores: Julião Soares Sousa e Eduardo Costa Dias

Último poste da série de 14 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P12981: Agenda cultural (309): Reportagem do Porto Canal feita com a Tabanca Pequena será emitida hoje, dia 14 de Abril, depois do Jornal Diário das 20 horas

terça-feira, 8 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12947: Lembrete (2): Lançamento do livro "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro" por Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, a ter lugar no Salão Nobre da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, Largo S. Domingos, Lisboa, amanhã, dia 9 de Abril, pelas 18 horas (Francisco Henriques da Silva / Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Março de 2014:

Meu estimado camarada,
Gostava muito que me honrasse com a sua presença no lançamento de um trabalho onde investi alguns anos de estudo, fi-lo em colaboração com um querido amigo de longa data, o antigo embaixador Francisco Henriques da Silva, que também pertence à tertúlia e que combateu na Guiné entre 1968 e 1970, tendo se distinguido no decurso da guerra civil de 1998-1999, onde teve uma atuação diplomática incomum.

Procurámos pôr termo a uma lacuna escandalosa, em termos culturais, sintetizando o que há de mais relevante desde o descobrimento, passando pela ocupação efetiva, os tempos de Sarmento Rodrigues, a luta pela independência, a história da Guiné-Bissau, fazendo ponte para o que há de mais relevante em leituras e bibliografia.

Por isso mesmo o venho convidar a estar connosco num lançamento que em muito se prende com a minha participação no nosso blogue.

Um abraço do
Mário


"Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro" 
Palácio da Independência, 9 de Abril, pelas 18h

C O N V I T E 

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Notas do editor

(*) Vd. poste de 6 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12798: Agenda cultural (305): O livro "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau - Um Roteiro", co-autoria de Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, vai ser apresentado no próximo dia 9 de Abril de 2014, pelas 18 horas, no Palácio da Independência. Apresentadores: Julião Soares Sousa e Eduardo Costa Dias

Último poste da série de 26 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12901: Lembrete (1): 5ª feira, 18h30, FNAC Chiado, Lisboa, a nossa amiga Catarina Gomes, filha de ex-combatente, e jornalista, apresenta o seu primeiro livro "Pai, tiveste medo?"... Entre outros grã-tabanqueiros, estarão presentes o nosso camarada Zé Teixeira e o seu filho Tiago, médico (uma das 12 histórias pertence-lhe; outra é de um dos filhos do João Bacar Jaló)

quarta-feira, 12 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12829: O meu baptismo de fogo (26): Có - os primeiros contactos de fogo: um teste para os "piriquitos" (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 10 de Março de 2014:

Meu caros camaradas e amigos,
Junto vos envio uma descrição do primeiro ataque a Có, em Agosto de 1968, algumas semanas depois de nos instalarmos naquela localidade, recém chegados à Guiné.
A minha descrição não coincide integralmente com a do Raul Albino(*), tal como descrita nas “Memórias de Campanha" pois muito embora estivéssemos presentes quando os factos sucederam tivemos visões e percepções diferentes dos acontecimentos, o que é absolutamente natural.
De qualquer forma, as descrições em larga medida são convergentes.

Não disponho de qualquer fotografia de Có no meu arquivo, de modo que remeto-vos para a foto já publicada neste blogue da CCaç 2402.
Estou a reservar este texto, juntamente com outros, para a publicação, talvez ainda este ano de um livro de memórias.

Com um abraço cordial e amigo
Francisco Henriques da Silva
Ex-Alferes Miliciano de Infantaria,
CCaç 2402
(Có, Mansabá e Olossato), 1968-1970
Ex-embaixador de Portugal em Bissau (1997-1999)


Vista aérea de Có
Foto: © Raul Albino (2006). Direitos reservados


O MEU BAPTISMO DE FOGO

Có - os primeiros contactos de fogo: um teste para os “piriquitos”

Pouco antes da Companhia completar um mês na povoação de Có, no “chão” mancanha, em finais de Agosto, juntamente com o meu grupo de combate, encontrava-me na estrada que contornava o extremo da pista de aviação, umas centenas de metros a Oeste desta última, uma vez que tinha cabido em sorte ao meu grupo efectuar, naquela manhã, a chamada “picagem” da dita pista, para efeito de detecção de minas. Esta operação rotineira e diária, indispensável para garantir a segurança das aeronaves, havia terminado e preparávamo-nos para regressar a penates. Creio que seriam para aí umas seis e meia da manhã. O dia começava a raiar. O IN, com um grupo relativamente pequeno, mas expressivo, talvez 20 a 25 homens no total, ataca o aquartelamento pelo lado norte da referida pista de aviação com armas ligeiras, morteiro de 60mm e RPG-2 (lança-granadas foguete de fabrico soviético). Foi um ataque de curta duração, cerca de um quarto de hora.

Có - Vd. carta de Pelundo 1:50.000

O Comandante manda sair um grupo de combate, o do Raul e, ao mesmo tempo, manda fazer fogo com o morteiro 81, salvo erro, a única arma pesada que a Companhia então dispunha, esquecendo-se de que eu e o meu grupo estávamos já quase numa das extremidades da pista. O grupo de combate do Raul, guiado pelo chefe dos cipaios, abandona o aquartelamento pela porta de armas em direcção à tabanca, ou seja, numa direcção contrária à da pista de aviação, até porque se o fizessem por esse lado estariam a avançar em campo aberto, completamente expostos ao fogo do inimigo, a fim de efectuar uma manobra de envolvimento. Entretanto, o meu próprio grupo movimentava-se rapidamente em direcção ao final da pista, por onde passava uma estradeca de terra batida, internando-se, porém, cautelosamente pelas bermas da via e não directamente por esta, para não se expor de peito aberto ao fogo dos guerrilheiros que batiam o caminho com uma metralhadora de alto calibre. De repente caem, duas ou três granadas de morteiro de 81mm, disparadas do quartel que afocinharam, sem explodir, muito perto de nós, uma delas a cerca de três metros do local onde me encontrava. Um dos cabos que estava ao meu lado, grita-me ao ouvido: “Meu alferes, meu alferes, agache-se! Estão a disparar do quartel na nossa direcção!” Fogo amigo! Sem dúvida... Estas “amizades” é que fazem falta! No meio daquela confusão, lá consigo comunicar por rádio - o que não foi nada fácil, porque estavam quase todos a falar ao mesmo tempo e a inexperiência pesava - e peço que suspendam imediatamente os disparos de morteiro. Agradeço, à Virgem Maria e a todos santinhos a nabice do furriel encarregado das armas pesadas que nos bombardeou com granadas encavilhadas, porque se acaso tivesse actuado com profissionalismo e segundo as regras, eu, muito provavelmente, não estaria aqui para contar a história.

A este ataque inicial e, contra todas as expectativas, após uma curta acalmia, seguiu-se um segundo assalto. Os guerrilheiros reagruparam-se e prepararam-se para nova ofensiva, agora de um ponto diferente e insuspeitado. No fundo, sabiam da nossa inexperiência - era o nosso baptismo de fogo -, dos nossos naturais temores e da nossa possível desorientação. Só que as coisas não lhes correram de feição.

Recomeçou, pois, o tiroteio. Parte do grupo atacante, já muito próximo de nós, a uns escassos 70 ou 80 metros continua a varrer a estrada com a tal metralhadora de tripé que eu e os meus homens vimos claramente, pois aproximávamo-nos cada vez mais. Para lá se dirigiam os tiros das nossas G-3. De forma totalmente inconsciente, sem dizer nada a ninguém, atravesso em passo de corrida a estrada para o outro lado, na tentativa ingénua ou, mesmo, estúpida de fazer uma manobra de envolvimento. O que é que eu sabia de guerra? As balas assobiavam por todos os lados e algumas zuniam, seguidas de embates secos, levantando poeira ao embaterem na terra da estrada, tal como nos filmes made in Hollywood ou então silvavam por cima das nossas cabeças. Zing! Zing! Verifico que estou literalmente sozinho do outro lado do caminho. No meio do tiroteio, ouço a voz de alguém: “O homem é maluco!” e, logo a seguir, um dos meus furriéis adverte-me aos gritos: “Meu alferes, meu alferes, isso aí é muito perigoso. A estrada está a ser batida por uma [metralhadora] pesada.” Como se eu não soubesse. Bom, lá atravesso eu, num ápice, outra vez a estrada para me juntar aos meus homens, com as balas outra vez a baterem por tudo quanto era sítio.

O nosso poder de fogo e a nossa superioridade numérica eram muito superiores às dos atacantes. Além disso, estes estavam já a ser envolvidos por fogos cruzados oriundos, quer do meu grupo, quer do do Raul, plenamente operacional e activíssimo que os atacava pelo lado nascente, uma vez que lhes havia seguido as pegadas, bem marcadas na lama do caminho. A metralhadora calou-se, os RPG-2 há muito que estavam silenciosos e só esporadicamente se ouviam tiros isolados de armas ligeiras, até emudecerem de vez.

Ao chegarmos ao local onde estaria a metralhadora, encontrava-se o corpo sem vida de um dos guerrilheiros, com uma farda de caqui e ostentando um pequeno emblema com a foice e o martelo no chapéu de pano amarfanhado e manchado de sangue. A arma, essa, sumiu-se.

Os meus soldados deram valentes mas inúteis pontapés no cadáver inerte do guerrilheiro, até se capacitarem de que estava morto, mas bem morto, da chamada morte matada.

Passado pouco tempo, fizeram-se ouvir novos disparos, mais a Leste era o grupo do Raul que ia em perseguição do IN. Os guerrilheiros terão sido surpreendidos com esta reacção da nossa parte, que não estariam, de todo em todo, à espera, e tiveram de debandar rapidamente, sofrendo mais um morto e um número indiscriminado de feridos.

O cabo dos cipaios, Dayan, no seu português acriolado definiu bem o baptismo de fogo daquele grupo de soldados, jovens e inexperientes nas lides da guerra:
- Companhia “piriquita”, mas boa!

No jargão da época, “piriquitos” eram os neófitos, os novatos, os militares recém-chegados à Guiné, sem experiência de combate.

Ora bem, o certo é que tínhamos passado no exame e logo na primeira chamada.

Francisco Henriques da Silva

De pé: Francisco Silva, Raul Albino e Cap Vargas Cardoso
Foto: © Raul Albino (2006). Direitos reservados
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 2 DE OUTUBRO DE 2008 > Guiné 63/74 - P3265: O meu baptismo de fogo (2): Primeiro ataque ao quartel de Có (Raúl Albino)

Último poste da série de 12 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12282: O meu baptismo de fogo (25): Monte Siai, 10 de Janeiro de 1968 (Abel Santos)

quinta-feira, 6 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12798: Agenda cultural (303): O livro "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau - Um Roteiro", co-autoria de Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, vai ser apresentado no próximo dia 9 de Abril de 2014, pelas 18 horas, no Palácio da Independência. Apresentadores: Julião Soares Sousa e Eduardo Costa Dias


"Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro" 

Sessão de apresentação no Palácio da Independência, 9 de Abril, pelas 18h 
Apresentadores: Julião Soares Sousa e Eduardo Costa Dias


As razões por que escrevemos este livro
A documentação histórica sobre a Guiné portuguesa já estava profundamente desatualizada quando se deu a independência. E a caminho das quatro décadas da independência de facto, a República da Guiné-Bissau continua a não dispor de uma narrativa em sequência desde a luta da libertação até acontecimentos recentes.

Atendendo a esta inaceitável lacuna, os autores procuraram nalgumas centenas de páginas compendiar o que, na sua lógica, pode ser entendido como mais relevante sob a presença dos portugueses na Guiné, como se desenrolou a guerra de libertação e o que tem sido a vida do novo Estado, logo sacudido por intentonas, cisões, a rutura entre a Guiné e Cabo Verde, uma guerra civil e crise endémicas intermináveis.

O arco histórico vai, pois, desde a chegada dos navegadores a esse território indefinido da Senegâmbia, em meados do século XV, até ao golpe de Estado de 12 de Abril de 2012.
Trata-se de um roteiro destinado a equipar estudiosos ou mesmo leitores meramente curiosos por essa fascinante e assombrosa Guiné, propiciar-lhes uma vasta gama de leituras e referências bibliográficas, mostrar os protagonistas envolvidos e determinantes (como é o caso de Amílcar Cabral).

Não é uma enciclopédia nem uma antologia de textos avulsos, é uma rosa-dos-ventos que pode vir a sugerir aos investigadores ideias para estudos mais abalizados. É um roteiro sem intuitos doutrinários, fica ao dispor principalmente dos leitores de Portugal e da Guiné-Bissau, já que os autores estão plenamente esperançados que este livro irá incitar estudos mais desenvolvidos que deem continuidade à modéstia do presente empreendimento.

Esta obra mais não pretende do que atrair mais e melhor estudo sobre a História da Guiné portuguesa e da Guiné-Bissau.

Francisco Henriques da Silva
Mário Beja Santos


Sobre os autores:

Francisco Henriques da Silva
Licenciado em História, foi Alferes Miliciano de Infantaria na Guiné, de 1968 a 1970. 
Ingressou no serviço diplomático em 1975.
Serviu nos Estados Unidos da América, em França, no Canadá e na Comissão Europeia na qualidade de perito nacional destacado.
Foi Director dos Serviços do Médio Oriente e Magrebe. 
Vice-Presidente do Instituto Camões e Director-Geral dos Assuntos Multilaterais do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Exerceu as funções de Embaixador na Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Índia, México e Hungria.
Possui a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo.
É autor da obra "Crónicas dos (des)Feitos da Guiné" e de diversos outros trabalhos.


Mário Beja Santos
Licenciado em História, foi Alferes Miliciano de Infantaria na Guiné, de 1968 a 1970. 
Toda a sua vida profissional entre 1974 e 2012 esteve orientada para a política do consumidor.
É autor de mais de três dezenas de títulos relacionados com as temáticas da política dos consumidores.
Foi professor do ensino superior, colaborou durante mais de duas décadas em emissões radiofónicas ligadas à defesa do consumidor e foi autor e apresentador de programas televisivos e teve uma participação activa no consumo europeu.
Alguns dos seus últimos livros foram dedicados à Guiné: "Diário da Guiné - Na Terra dos Soncó", Diário da Guiné - O Tigre Vadio", "Mulher Grande", "A Viagem do Tangomau" e "Adeus, Até ao Meu Regresso", um levantamento da literatura sobre e de combatentes na Guiné.

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12791: Agenda cultural (304): Homenagem a Carlos Schwarz (Pepito), dia 7 de Março de 2014, pelas 18h00 no Auditório da Fundação Mário Soares, Rua de S. Bento, 160, Lisboa

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12622: Notas de leitura (555): “Magrheb/Machrek – Olhares luso-marroquinos sobre a Primavera Árabe”, por Raul M. Braga Pires (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 16 de Julho de 2013:

Meus caros amigos e ex-camardas de armas,
O Raúl Braga Pires, de quem sou amigo, apesar de muito mais novo do que eu, conhece bem a Guiné-Bissau e escreve sobre a realidade bissau-guineense atual no seu blogue e no jornal “Expresso”.
É bastante crítico, como a maioria das pessoas, ao que por lá se passa e dá-nos uma visão muito interessante e abrangente, relacionando a Guiné-Bissau com os acontecimentos na região, bem como com o que se passa no Sahel e no Magrebe, em geral.
O livro podia passar desapercebido devido ao respetivo título “Maghreb/Machrek - Olhares Luso-marroquinos sobre a Primavera Árabe” que nos leva a pensar tratar-se da abordagem de outras temáticas, mas não são só esses assuntos que Braga Pires menciona, a Guiné-Bissau aparece e vale a pena estarmos atentos ao que ele refere.

Com cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva
Ex-Alferes miliciano de infantaria
- CCaç 2402 - Có, Mansabá e Olossato, 1968-1970
- ex-embaixador de Portugal em Bissau, 1997-1999


2. Comentário dos editores:

Vem a propósito do último parágrafo desta recensão do camarada Francisco Henriques da Silva, informar que a Guiné-Bissau tem eleições marcadas para 16 de Março próximo.
O recenseamento dos guineenses no exterior já começou com atrasos e problemas técnicos. Mas é importantíssimo que os nossos amigos guineenses, em Portugal, se possam recensear.
O único local onde podem fazê-lo, é na Embaixada da Guiné-Bissau, em Lisboa, até ao dia 31 de Janeiro, das 9 às 21 horas.


3. A errática Guiné-Bissau

Francisco Henriques da Silva

Raul M. Braga Pires, politólogo, arabista, professor da Universidade de Rabat e investigador do Observatório Político em Marrocos, doutorando do ISCSP, edita com regularidade um blogue, também publicado no conhecido semanário “Expresso”, sobre assuntos do Médio Oriente e Magrebe, tendo dedicado alguma atenção à Guiné-Bissau, onde se deslocou váriasvezes. Lançou recentemente um livro “Magrheb/Machrek – Olhares luso-marroquinos sobre a Primavera Árabe” (Diário de Bordo, Lisboa, 2013), onde reproduz todos os textos que publicou no “Expresso” e no dito blogue. Após uma incursão pelo Norte de África, Médio Oriente e Sahel, ou seja o prato forte da obra, digamos assim, apresenta três capítulos (ou, se se quiser, 3 “posts”) relevantes e bastante informativos sobre a atualidade daquele pais lusófono oeste-africano, que, no seu entender, tem que ver com a evolução política e estratégica das regiões contíguas. Daí a sua inclusão. Depois de ler o que Raúl Braga Pires escreveu, elaborei uma pequena recensão, que complementei com outros elementos e com algumas reflexões da minha lavra.

O autor começa por se referir à “intentona/inventona” (?) de 21 de Outubro de 2012, classificando a situação como sendo “confusa” e considerando que “a realidade ultrapassa em muito a ficção”. Acrescentaria que estas classificações e considerações são quase eufemísticas perante o caos que é hoje a Guiné-Bissau e do qual teima em não sair. Braga Pires menciona a balantização do Poder político e militar (que, aliás, não é de hoje, mas que se terá acentuado com o “putsch” de 12 de Abril de 2012), em que Kumba Ialá emerge com ambições ao Poder (no meu entender e para que as coisas não aparentem ser tão óbvias, Kumba tem no terreno, como se sabe, gente sua e poderá controlar a situação de fora sem necessidade de grande exposição pessoal, manobra táctica que me parece óbvia). Menciona um sem-número de factos, bem como algumas suposições plausíveis, atenda-se ao contexto. Em primeiro lugar, assistia-se – e assiste-se - a uma tribalização do poder político e militar, donde no conflito balantas-felupes, os primeiros levaram necessariamente a melhor. As danças e contra-danças entre as classes castrense e política, a promiscuidade generalizada sobretudo a este nível, são o que se adivinha e não valerá a pena pôr muito mais na carta. Carlos Domingos Gomes (Cadogo), PM deposto e frustrado candidato presidencial, continua a aspirar elevar-se um dia à cadeira do Poder. A actuação do capitão Pansau N’Tchama é no mínimo surrealista e as suas ligações a Portugal e à CPLP (leia-se Angola e Cabo Verde) abstrusas. O autor suscita as estranhas coincidências de ter chegado a Bissau com uma equipa de reportagem a escassas horas da “intentona/inventona” e da libertação de Pansau N’Tchama, com alegadas ligações a Portugal, ter precisamente ocorrido na véspera da sua partida.

Braga Pires faz uma análise do primeiro trimestre de 2013, salientando a chegada de Ramos Horta e a sua declaração algo desmedida ao considerar a “Guiné-Bissau como o país mais seguro da África Ocidental” (sic). O representante da ONU chega também num momento em que o PAIGC assina o Pacto de Transição e em que era já perceptível que o período transitório teria de ser necessariamente prorrogado. Neste quadro, há que tomar-se em atenção que o recenseamento biométrico da população não poderia ser feito durante a época das chuvas, o que levaria inevitavelmente a um adiamento das eleições. Apesar da descentralização anunciada e auto-elogiada pelo Governo, o autor põe em causa o recenseamento biométrico, efectuado sem grande publicidade nem campanhas de sensibilização junto da população. Neste contexto, acresceriam ainda enormes dificuldades de ordem logística e financeira. Tendo em conta os factores enunciados, o próprio PR admitiu a inevitabilidade de se prolongar o período de transição.

Ao referir-se à cimeira da CEDEAO (Comunidade Económica de Estados da África Ocidental), que a Guiné-Bissau integra, considera Braga Pires que “a solução da questão Norte do Mali/terrorismo estará sempre dependente duma resolução dos conflitos internos da Guiné-Bissau, ambos os países têm governos provisórios saídos de golpes de Estado” . Com efeito, os dois países ter-se-ão comprometido a realizar sufrágios eleitorais até 31 de Dezembro de 2013. Viu-se.

Por outro lado, haveria a necessidade do Governo de Transição ser reconhecido internacionalmente, para poder levar a cabo as tarefas a que se propôs, designadamente a condução do processo eleitoral, o que o autor admite como plausível. Mas, acrescento, com excepção da CEDEAO, mais ninguém o reconhece.

Menos claro foi o julgamento do capitão Pansau N’Tchama que acusou o deposto CEMGFA, Zamora Induta, de o ter coagido à tentativa de “putsch” de 21 de Outubro de 2012, acusando as autoridades gambianas de envolvimento na suposta operação, bem como inúmeras personalidades locais com ligações ao PAIGC e a figuras militares e politicas, algumas de destaque como é o caso de Domingos Simões Pereira, então Secretário Executivo da CPLP. O julgamento, aduzo, poderia, por assim dizer, “limpar o terreno” de muitos elementos incómodos e permitir uma actuação “mãos livres” de António Indjai (actual CEMGFA) e de Bubo Na Tchuto, entre outros. Até aqui nada de novo, a Guiné-Bissau conhece desde há muito estes processos sombrios como devem ser conduzidos e para que servem.

Alguns factos, porém, vêm a alterar o panorama. Em Abril de 2013, o almirante Bubo Na Tchuto é apanhado numa armadilha muito bem montada pela DEA (Drug Enforcement Agency) norte-americana, detido em águas internacionais e levado para os EUA, a aguardar julgamento. Estavam em causa 4 toneladas de cocaína (cujo valor médio na rua pode atingir entre 130 a 160 milhões de Euros!). Sabia-se que Na Tchuto, bem como Papá Camará (Chefe de Estado Maior da Força Aérea) e o próprio António Indjai, estão desde há muito envolvidos no tráfico de droga. O primeiro estava identificado pela DEA desde 2010. Tanto quanto sei por outras fontes, a operação consistiria na troca de armamento das Forças Armadas da Guiné-Bissau para a guerrilha colombiana das FARC por cocaína. Não se trataria de armamento convencional, mas, sim, de mísseis terra-ar! Os agentes da DEA fizeram-se passar por membros da guerrilha. Em suma, estamos a falar de uma operação sofisticada a uma escala muito grande e que teria outros envolvimentos cujos pormenores, porém, desconheço.

Por outro lado, soube-se que Na Tchuto permitiu a evasão de 3 jihadistas mauritanos acusados de terem assassinado 4 turistas franceses no sul da Mauritânia em 2007. Um agente secreto norte-americano teria sido despachado para o local mas apareceu morto (degolado), o que indicaria a presença de fundamentalistas islâmicos. Na opinião de Braga Pires, para além de traficante de droga, Bubo Na Tchuto teria ligações à AQMI (Al Qaeda no Magrebe Islâmico) que opera na África Ocidental, designadamente na Guiné-Bissau.

Para a detenção de Na Tchuto, os norte-americanos terão presumivelmente obtido a cumplicidade de Indjai, uma vez que este queria livrar-se de um rival e os norte-americanos a detenção do almirante. Este último era objecto de um processo de reabilitação por envolvimento num golpe de Estado (mais um no rol que averba a Guiné-Bissau) em 26 de Dezembro de 2011, que levou ao seu exílio temporário na Gâmbia. Ora, Na Tchuto tinha por objectivo principal substituir Indjai como CEMGFA. É tão simples quanto isto.

Como refere a justo título o autor e citamos: “A primeira novidade da acusação apresentada pelos americanos é absolutamente demolidora para as duas principais figuras do Período de Transição: o Presidente interino, Manuel Serifo Nhamadjo e o Primeiro-ministro interino, Rui Duarte Barros, são implicados nas provas apresentadas pela DEA.” Aparentemente, essas altas figuras do Estado beneficiariam de 13% do “produto/negócio” (?), apesar dos desmentidos indignados, a dúvida obviamente permanece.

Dizer que a credibilidade da Guiné-Bissau e das mais altas figuras civis e militares do Estado foi afectada é um mero eufemismo. Resta saber neste quadro pouco auspicioso como é que a Guiné-Bissau se vai financiar para poder realizar eleições? O próprio Secretário-geral da ONU já admitiu que pode deixar cair a Guiné-Bissau e abandoná-la como a Somália. Se a Guiné-Bissau não consegue assumir as funções basilares de um Estado será ou não um Estado falhado? Era bom que não se mastigassem as palavras.

Aliás, os acontecimentos mais recentes naquele país, caso dos 74 sírios embarcados à força nos aviões da TAP, que levaram à suspensão das ligações aéreas Lisboa-Bissau, reforçam a nossa tese, isto é que não se está perante um Estado minimamente sério.

No meio de tudo isto e tendo em conta o julgamento do capitão Pansau N’Tchama, as tensões étnicas, as fricções do foro castrense, as rivalidades entre diferentes pseudo-líderes civis e militares e, agora, os atritos inter-religiosos geram um quadro de forte instabilidade que pode desembocar numa guerra civil gravíssima. O alerta aqui fica.

Registo que Raúl Braga Pires chama a atenção para um facto novo: o conflito entre sunitas e xiitas. A maioria da população islamizada é como se sabe de obediência sunita, mas os libaneses, de fé xiita, há muito radicados no país, já criaram raízes e prosélitos na Guiné-Bissau. Iremos assistir à criação de mais um foco de tensão, até agora insuspeitado?

Haveria que reflectir-se sobre a intervenção francesa no Mali e no problema da droga. A questão é, para todos os efeitos, regional. De acordo com várias fontes fidedignas, o circuito da droga parece estar a alimentar os jihadistas e a Guiné-Bissau aparece nesta equação como um factor que, pelas razões expostas, não pode ser ignorado. A pacificação do Mali – e sabendo-se da proliferação dos grupos islamitas por todo os Estados do Sahel – é uma questão de importância vital, mas essa intervenção não pode limitar-se apenas ao Norte do Mali, como se tratando apenas de um abcesso localizado a extirpar, a Guiné-Bissau, cujos governantes actuais não merecem qualquer credibilidade, terá também de ser intervencionada, ou seja o alargamento da Missão de Paz no Mali pode (deve) estender-se à Guiné-Bissau.

Bom, já agora, eleições para quando?
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12609: Notas de leitura (554): "Mudança Sócio-Cultural na Guiné Portuguesa", dissertação de licenciatura de José Manuel Braga Dias (3) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11853: Notas de leitura (502): "Guineidade e Africanidade", por Leopoldo Amado - uma outra leitura (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 16 de Julho de 2013:

Segue a 2.ª parte da minha análise crítica do livro de Leopoldo Amado.
Cpts amigos
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alf. Mil. de Infª.
C.Caç. 2402,
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)


"Guineidade e Africanidade" 
(parte 2 de 2)

É interessante registar a posição de Leopoldo Amado relativamente ao regresso de “Nino” Vieira em 2005, que saúda, como grande árbitro da polarização entre facções castrenses, antevendo os perigos de uma crescente militarização e consequente instabilidade do país, nestes termos: “Ante a excessiva politização da sociedade castrense e da sua propensão de assunção do poder pela força, acredito que Nino Vieira, como chefe carismático e histórico das forças armadas guineenses, possa ter um papel de moderação perante as profundas clivagens” (p. 143). Para além de outros argumentos apresentados em prol do regresso de Nino à Guiné-Bissau o autor preconiza o julgamento “justo e imparcial” do ex-Chefe de Estado.

Estas posições de L. Amamdo foram objeto de grande controvérsia, dividindo-se os bissau-guineenses em reações pró e contra. Atente-se, por exemplo, numa entre muitas: “Nino Vieira não é senão um criminoso nato com as mãos sujas de sangue, com decisão consciente de dar mais primazia ao poder do que verdadeiramente construir a Guiné-Bissau.” (Carlos Mussa Embaló citado a pp. 151). Apesar de todas as “máculas”, registadas antes e no decurso da guerra civil – e não são poucas – o autor considera que o regresso de Nino Vieira é desejável, na medida em que o processo não pode excluir quaisquer guineenses e que o ex-PR pode pôr “a sua experiência e as suas potencialidades positivas ao serviço da paz e do desenvolvimento” (p. 154).

Quanto à organização do poder político e ao debate da representatividade, o autor salienta, em várias passagens da sua obra, a importância da representação do poder tradicional, na esteira de outros compatriotas seus, permitindo assim articular o rural e o urbano, o moderno e o tradicional, o direito positivo e o consuetudinário. Este rumo não só atenuaria tensões internas mas, se bem levado à prática, constituiria um processo democrático sui generis adaptado à situação da Guiné-Bissau. Penso que é um ponto que merece adequada reflexão e que poderá constituir um guia para a futura organização do Estado da Guiné-Bissau. Aliás, mutatis mutandis e guardadas as devidas proporções trata-se de uma ideia já defendida na época colonial por António de Spínola, porém com outras roupagens – os chamados Congressos do Povo.

Uma outra preocupação invocada com fundada razão nos textos de Leopoldo Amado [foto à esquerda] consiste na temática das Forças Armadas e dos serviços de segurança, “mormente o indissociável e recorrente problema da corrupção e o uso da violência gratuita” (p. 224). Problemas que não só afetam a imagem do país, mas influenciam-no negativamente, quer interna, quer externamente.

Relativamente ao assassinato de Amílcar Cabral, o autor considera que o plano de proclamação do Estado da Guiné-Bissau tenha constituído a causa imediata. É uma tese plausível, mas que necessita de ser arguida. Quanto à “autoria moral” e sem embargo dos norte-americanos considerarem em documentos seus que se estava “perante um feudo entre mulatos das ilhas de Cabo Verde e africanos do continente” (o que é citado a p. 228), “desvalorizando incompreensivelmente”, segundo Leopoldo Amado, a “directa participação da PIDE-DGS e das autoridades coloniais portuguesas no vil acto”, para o autor “é possível hoje provar-se” que a quem mais directamente interessava a eliminação física de Cabral figurava inquestionavelmente a PIDE-DGS e as autoridades coloniais portuguesas (cfr. p. 228). Neste particular, manifestamos uma opinião contrária: com efeito, em nosso entender, a morte de Cabral não interessava a Spínola, pois aquele era o único interlocutor válido a ser encetado um verdadeiro e consequente processo negocial de paz entre as duas partes beligerantes. Por outro lado, não existem quaisquer registos escritos nos arquivos da PIDE-DGS que de algum modo refiram a hipotética eliminação física de Cabral ou que sustentem de essa tese, directa ou indirectamente. Nesta matéria, que eu saiba, as teorias são as mais diversas, mas não existem, nem podem por isso ser apresentadas, quaisquer provas e o mistério quanto à autoria moral do assassinato permanece.

É curiosa e historicamente do maior interesse a evolução dos movimentos pró-independência que surgem nos anos 50, do MING (Movimento Nacional para a Independência da Guiné) ao MLG (Movimento de Libertação da Guiné) que está na origem do PAI, que se transformaria, numa fase ulterior, no PAIGC. Aliás, Leopoldo Amado refere que “a reivindicação a posteriori da paternidade do Pindijiguiti por parte do PAI(GC) só se pode compreender na medida em que tanto o MLG como o PAI partilhavam, indistintamente, o mesmo espaço político, a mesma clientela...” (p. 245), subsistindo uma certa confusão quanto à divisão de águas entre os dois, isto nos finais da década de 50. É igualmente relevante – e um facto que eu desconhecia – a distribuição de panfletos em Cantchungo, em Bissau e a sua própria afixação no estabelecimentos comerciais e postes de iluminação da capital, logo em 1960.

No que respeita à guerra colonial/luta de libertação, concorro com a tese defendida pelo autor de que o “PAIGC perseguia objetivos políticos e nunca agendou a possibilidade de derrotar militarmente o Exército português , obedecendo sempre as diferentes estratégias militares e as correspondentes tácticas aos objectivos políticos.” Sublinho os termos.

Não posso deixar de terminar voltando a frases duras que infelizmente e com grande pena minha definem a Guiné-Bissau de hoje, cito o autor “O Estado faliu. Faliu financeiramente, mas igualmente faliu nos princípios e na acção, ou melhor, na inacção, pois não se faz nada, literalmente nada, e, pior que isso, nada nem ninguém deu ainda inequívocas mostras de possuir ideias, estratégias e vontade política susceptíveis de reverter este estado de coisas” (p. 284)

A vontade e a capacidade de mudança, a meu ver, estão inteiramente nas mãos dos bissau-guineenses.

Pelas razões apontadas e inúmeras outras que poderia acrescentar e atenta a falta de livros e publicações sobre a Guiné-Bissau de hoje é indispensável a leitura de “Guineidade e Africanidade” de Leopoldo Amado para tentarmos compreender esse país que tem de quebrar definitivamente as correntes que o amarram a soluções inconvenientes e perigosas.
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Nota do editor

Poste anterior de 17 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11851: Notas de leitura (501): "Guineidade e Africanidade", por Leopoldo Amado - uma outra leitura (1) (Fernando Henriques da Silva)

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11851: Notas de leitura (501): "Guineidade e Africanidade", por Leopoldo Amado - uma outra leitura (1) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 15 de Julho de 2013:

Meus caros amigos e ex-camaradas de armas,
O nosso comum amigo Mário Beja Santos - no meu caso amigo de há quase 50 anos! - elaborou uma recensão, em duas partes, ao excelente livro do nosso confrade Leopoldo Amado, "Guineidade e Africanidade" (ver aqui e aqui).
Decidi de algum modo completar essa recensão com uma análise minha, sublinhando outros aspectos não focados pelo Mário, mas que se me afiguram igualmente relevantes. Porém, concentro-me mais na Guiné-Bissau contemporânea e nas imensas dificuldades de construção do país sobre o qual se colocam inúmeros pontos de interrogação e que, seguramente, não se dissiparão tão cedo.
A temática da guerra e da literatura da guerra também me interessa, como é óbvio - ou não tivesse por lá andado por lalas e bolanhas, quer no chão mancanha, quer nas matas do Morés - mas neste momento, entendo que a temática da construção ou se se quiser da própria "criação" do país é um assunto das maiores importância e actualidade e, neste particular, as tarefas são ciclópicas, porque, na prática, falta tudo ou quase tudo para se atingir a meta.
À semelhança do Mário divido também o meu texto em duas partes.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alf. Mil. de Infª. C.Caç. 2402,
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)


"Guineidade e Africanidade"

A minha leitura do livro de estudos, crónicas, ensaios e outros textos de Leopoldo Amado [foto à direita], sob o rótulo abrangente, algo enigmático e ambicioso de “Guineidade e Africanidade”, cobrindo um vastíssimo período histórico, desde a literatura colonial até aos nossos dias, incidiu mais nos aspectos contemporâneos da sociedade bissau-guineense e menos nos factores históricos, designadamente nos relativos à guerra colonial/luta de libertação nacional, uma vez que se trata de um tema amplamente glosado por inúmeros autores e incontornável quando nos referimos ao nascimento conturbado e sangrento da Guiné-Bissau, com repercussões em todo o então espaço colonial português e, antes do mais, no próprio Portugal, como se sabe. Li, evidentemente, e com as maiores atenção e interesse toda a obra, mas dado que o meu colega e amigo, Mário Beja Santos, abordou na sua recensão desta colectânea de escritos de Leopoldo Amado o tema em apreço, limitar-me-ei a fazer apenas duas ou três referências de passagem à temática da chamada “guerra de África”.

O trabalho a que se propõe o autor consiste, no fundo, num exercício de reflexão em que nos apresenta escritos de natureza muito diversa em momentos também muito diferentes da sua vida e da vida do seu país e com estados de espírito igualmente variáveis. Podemos dizer que há de tudo um pouco desde a crónica ao ensaio, passando pelo relato de pendor jornalístico, pela análise política profunda ou pela emissão de opiniões sobre determinados eventos. Neste labor intelectual de indubitável mérito, o autor procura sempre ser rigoroso e objetivo, mas, como dizia, não deixa de exprimir em vários dos seus textos estados de alma e opiniões, digamos, musculadas sobre personalidades e acontecimentos no seu país de origem.

Começo por referir dois aspectos que me suscitaram em particular a minha atenção e sobre os quais vou, desde logo, exprimir juízos críticos (construtivos, obviamente), mas que se me afigura deverem ser devidamente aferidos pelo autor: em primeiro lugar, não há nenhum texto em que se defina com clareza os conceitos de guineidade e africanidade – estas questões poderão ser despiciendas para os bissau-guineenses, para os africanos cultos em geral ou para os estrangeiros (não africanos, entenda-se) interessados e familiarizados com estas matérias, mas não o são, seguramente para o público em geral; em segundo lugar, os textos relativos ao século XXI – alguns são peças do maior interesse – param de uma forma algo abrupta em 2008 e nós sabemos que, mês após mês, para não dizer dia após dia, os acontecimentos se sucedem incessantemente a um ritmo por vezes galopante e cujo fluxo, como se sabe, altera a vida política, económica e social da Guiné-Bissau. Estes são os meus reparos principais. Assim, a meu ver, seria importante, como nota introdutória, uma clara definição conceptual da temática que o autor se propõe tratar e em que termos o vai fazer e, por outro lado, são necessários esclarecimentos sobre a evolução mais recente da Guiné-Bissau, mesmo que assumam a forma de meros relatos jornalísticos, opiniões conjunturais ou incluso de apontamentos pessoais.

Estas questões são tanto mais importantes quanto sabemos que nos dias que correm e mercê do fluir vertiginoso dos acontecimentos o país está em constante e acelerada mutação.

Não vamos entrar no debate académico sobre a tipologia do Estado da Guiné-Bissau que interessa sobretudo a especialistas, mas que tem ampla repercussão na opinião pública, na medida em que as conclusões são via de regra muito polémicas e provocam as mais vivas reacções emotivas, em especial por parte dos visados, ou seja por parte dos cidadãos dos Estados classificados. Nesta matéria, vou ser muito claro, não só concordo parcialmente com o que refere Leopoldo Amado – que considera em vários dos seus textos que, não está em causa somente o processo democrático... mas a própria sobrevivência do país; qualifica a Guiné-Bissau como um Estado refém de si próprio, (p. 61); um Estado falhado (p. 143) e inclusive propõe a assunção pelas Nações Unidas de uma administração transitória do país (o que na prática significa a suspensão pura e simples da soberania – p. 146), admite que “o Estado faliu quase completamente e, mesmo que assim não fosse, ainda não deu mostras de possuir nem ideias e nem vontade política de ir fazendo alguma coisa com recursos próprios” (p. 277) vou porém mais longe numa asserção que espero clara e que, aliás, consta do meu livro recentemente publicado: “A Guiné-Bissau pode formalmente ser considerada um Estado, com bandeira e hino próprios, com fronteiras reconhecidas internacionalmente, com instituições que pretensamente funcionam (ou não) e com assento na ONU, todavia não se me afigura que estejamos perante um Estado, na verdadeira acepção e dignidade intrínseca da palavra. Deparamos, antes, com uma “entidade caótica ingovernável” - na formulação de Oswaldo de Rivero (Vd. "Crónicas dos (des)feitos da Guiné”, p. 521) Compreendo, pois, muito bem os gritos de alma de Leopoldo Amado e como amigo da Guiné-Bissau sinto-me no direito de não só corroborar as opiniões expressas, mas também de exprimir os meus sentimentos sobre a matéria.

São importantes as fortes denúncias do autor às propostas alterações à lei da nacionalidade, no Verão de 1999, uma vez terminada a guerra civil, ou seja a chamada regra dos dois avós guineenses para a assunção de altos cargos do Estado que L. Amado polemiza com abundância de argumentos qualificando-a de racista e tribalista. Com efeito, nos termos desta lei, Amílcar Cabral, se fosse vivo, não poderia de jure candidatar-se à chefia do Estado, atenta a sua ascendência cabo-verdiana, o que é significativo.

Considero interessante a adjectivação e/ou qualificação que o autor faz de certas personalidades, instituições e acontecimentos da vida bissau-guineense: por exemplo, o regime de Nino Vieira é qualificado de “despótico” (p. 30); a “cultura da matchundade” (ou seja, os “matchos” que se afirmam pela razão da força e não pela força da razão – p. 62); o “administrativo – colonial-sanguinário Honório Barreto” (p. 35), um tanto contraditoriamente com outras referências menos abonatórias constantes da obra, “Nino” Vieira acaba por ser definido em termos encomiásticos como militar e como político, sem embargo de se lhe apontar defeitos na gestão do Estado e de ter cometido erros políticos graves (pp. 141 a 143); o PAIGC é definido, quando da ascensão à independência como “partido único de matriz revolucionária anticapitalista e autocrático” (p. 169); o consulado do PRS de Kumba Ialá, na sequência das eleições de 1999, para o autor “reforçou a tendência de definhamento do papel do Estado” (p. 176), o controverso Rafael Barbosa – ex-líder do PAIGC, que terá aderido ao ideário spinolista, ao tempo da guerra - é considerado por Leopoldo Amado um “extraordinário nacionalista” (p.255)

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11841: Notas de leitura (500): "As Ilhas Afortunadas, um estudo sobre a África em transformação", de Basil Davidson (Mário Beja Santos)

domingo, 19 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11597: Notas de leitura (483): Soronda - Revista de Estudos Guineenses - Dezembro de 2000 (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 16 de Maio de 2013:

Meus caros amigos e ex-camaradas de armas,
Na sequência do meu "post" anterior, junto segue a 2.ª parte da minha recensão sobre o número especial da revista "Soronda" relativo ao conflito armado de 1998-1999.

Afiguram-se particularmente interessantes os "cartoons" de Fernando Júlio, “A guerra desenhada – Lutu na Polón di Brá”, de que reproduzo alguns, em que o desenhador compara, com humor, a guerra civil à luta livre tradicional, muito popular na população bissau-guineense, onde, todavia, há sempre a enorme vantagem de não se registarem mortos.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alf Mil de Infª
CCaç 2402,
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999


Soronda – um exercício a várias vozes sobre a guerra civil

(continuação)

Mamadu Jao faz uma “Leitura do Conflito Guineense” em que analisa as causas e consequências da guerra de 7 de Junho. No que concerne as causas, segundo ele, não existe, até à data, uma versão que se possa considerar consensual: para uns, designadamente para o Poder político em Bissau o conflito constituiu uma verdadeira surpresa; para outros, o país reunia todas as condições objectivas (políticas, económicas e sociais) e subjectivas para a eclosão das hostilidades em larga escala. Calcula o número de mortos em 6.000, o que se nos afigura exagerado, desconhecendo-se o rigor da cifra apresentada e como se atingiu tal valor. Considera ainda que a guerra colonial de 11 anos não atingiu a crueldade desta que, em contraste, durou apenas 11 meses. Em conclusão, para o autor, quando o conflito tem lugar, a Guiné-Bissau debatia-se com uma profunda crise económica e social, perfilhando por conseguinte a segunda tese. Adianta que a guerra não se traduziu em condições mais dramáticas para as populações devido ao espírito de solidariedade e de entreajuda, sobretudo no interior do país, mais tangível nas primeiras fases da guerra e menos na fase final, em que se geraram mesmo alguns focos de tensão.

“A tragédia de Junho de 1998 – factos e comentários” de Leonardo Cardoso é um texto em que, à parte um ou outro elemento novo eventualmente a reter, repete informação já conhecida e especula de forma infrene sobre o envolvimento de países exteriores à região (neste caso, a França e Portugal). A análise centra-se sobre as razões do conflito e as diferentes tomadas de posição sobre o mesmo, bem como, a variabilidade dessas mesmas tomadas de posição ao longo da contenda. Não primando pela inovação, nesta matéria, o autor repisa os habituais lugares comuns de todos os que escreveram sobre o conflito. Aponta como motivos para a guerra a crise generalizada política, económica e social com que se debatia a Guiné-Bissau culminando no levantamento de 7 de Junho. A deficiente democratização do país, a má governação, a gestão deficiente, a corrupção endémica, a degradação das condições de vida da população, os problemas nas áreas de maior impacto social (educação e saúde) são alguns dos temas glosados à exaustão ao longo de vários parágrafos. Para Leonardo Cardoso “começava a desenhar-se o início do fim da era do PAIGC enquanto partido no Poder e do autoritarismo do seu líder, Nino Vieira” (p. 132). Mais grave ainda era a situação no seio das FA’s com diferentes facções que se opunham entre si, num ambiente tenso e malsão. Quanto ao tráfico de armas (considerada por quase todos os autores como uma das causas do conflito), o autor alega que não está na origem, mas que foi apenas um acelerador do processo. Em seguida, L. Cardoso, depois de se referir à condenação internacional do levantamento militar, analisa as posições de Portugal e da França. As adesões à Francofonia e à UEMOA da Guiné-Bissau conduzem a uma “derrapagem da política linguística e cultural de Portugal nesse país “franco-luso-africano a favor da França que multiplica as suas ações e vê as suas relações com a Guiné-Bissau cada vez mais fortalecidas” (p. 144). Afigura-se-nos que, neste particular, apesar de Leonardo Cardoso ter parcialmente razão, está a analisar o problema de modo muito superficial, o desenrolar da guerra, designadamente a intervenção dos países vizinhos, e o seu desfecho vêm precisamente contrariar esta tese. Refere-se a uma alegada “intervenção francesa directa” (bombardeamentos por navios franceses, militares desta nacionalidade na linha da frente, morte de 2 militares, etc.). Trata-se, bem entendido, de pura especulação sem qualquer fundamento ou coerência. Em seguida, com base numa notícia publicada pelo “Observatório” da Liga Guineense dos Direitos Humanos (de Novembro de 1998) refere que o embaixador de Portugal em Bissau, na altura eu próprio, teria, supostamente, recebido um telefonema anónimo, cerca das 5 e 30 da manhã, de 7 de junho de 1998, a informar-me do levantamento militar, que eclodiria minutos depois, o que é totalmente falso. Afirma L. Cardoso: “É, no mínimo, questionável este telefonema. Que relações existiam entre o embaixador português e o levantamento militar? O levantamento representava. algo de importante para Portugal ao ponto de o seu embaixador ser informado em primeira mão ainda antes de começar, com todos os riscos que a chamada pudesse representar caso fosse interceptada?” (pp. 149-150). O delírio destas pretensas informações, sem qualquer credibilidade ou fundamento, é absoluto. É questão para nos interrogarmos quanto às razões que levaram à respetiva publicação. O autor vai ainda mais longe, considerando que a prontidão em evacuar os cidadãos portugueses , “permite concluir que Portugal estava na posse de informações sobre as disposições da Junta Militar” (p. 150), o que é um absurdo. Poder-se-á dizer que devido à situação de grande instabilidade político-militar na Guiné-Bissau, Portugal dispunha já de um plano secreto de evacuação (Operação Crocodilo) que foi acionado logo que se encetaram as hostilidades, o que, aliás, é hoje bem conhecido. O autor alude ainda ao “envolvimento de Portugal no conflito ou de uma grande simpatia para com a Junta Militar, à qual tinha sido prometido o apoio da marinha portuguesa caso se consumasse o envio das corvetas francesas” (ibid). Eis, Alice, resplandecente, no País das Maravilhas! Quaisquer comentários adicionais são inúteis.

“La guerre des mandjua – crise de gouvernance et implosion d’un modèle de résorption de crises” de Fafali Koudawo trata-se de um dos artigos mais interessantes desta edição especial da “Soronda”. Mandjua significa em crioulo pares, ou seja da mesma idade, da mesma geração. No sistema tradicional vigente na Guiné-Bissau, o termo refere-se à igualdade social e à identificação com o mesmo grupo etário. Para Koudawo estamos perante uma crise multidimensional. Se a razão imediata para a guerra consistiu no tráfico de armas para os rebeldes de Casamansa, as causas remotas são mais complexas, a saber: as marcas deixadas pelo processo de independência por um partido armado; os efeitos perversos do sistema de hegemonia politica do PAIGC; a insuficiente despolitização (leia-se, despartidarização) das FA’s, consideradas o braço armado do PAIGC; a incompleta conversão do PAIGC em partido civil; a difícil adaptação do partido único ao novo contexto politico pluralista; a questão mal resolvida da desmobilização dos antigos combatentes, abandonados pelo Poder; a cisão entre ex-combatentes privilegiados versus ex-combatentes proletarizados (lumpen), ou seja um sistema iníquo criado pelos antigos companheiros de luta; os obstáculos reais à criação de um verdadeiro estado de direito; a preeminência da má governação com problemas graves de administração e de gestão do Estado e dos recursos do país, a opacidade e a corrupção. Koudawo coloca o acento tónico na questão da má governação e na ruptura dos equilíbrios que engendrou.

Seguindo as teses de Fafali Koudawo, ao longo do tempo, a transferência de competências institucionais para círculos privados traduziu-se numa efetiva privatização das instituições e numa forte informalização do Estado. A suspensão de Ansumane Mané do cargo de CEMGFA em Janeiro de 1998 e o aumento das tensões entre fações militares, atinge, digamos, um ponto de não retorno quando a crise (designadamente a questão do tráfico de armas) sai dos círculos informais e passa para os circuitos formais. O Parlamento tenta reabsorver uma situação crítica, o que deveria ser considerado normal, mas, com efeito, acaba por gerar maior instabilidade. O autor conclui: “A guerra não é pois o simples resultado do fracasso duma saída da crise, é também a consequência fatal duma tentativa de saída do Estado informal. Posto noutros termos se a crise é resultado da má governação, a guerra é o resultado duma tentativa abortada de instrumentalização da boa governação numa situação de crise. É este aparente drama da boa governação que constitui o paradoxo Bissau-guineense.” (trad. pp. 157-158). Por conseguinte, a má governação constitui, por assim dizer, o elemento decisivo, o que engendra um sistema informal de resolução de gestão de conflitos nas diversas esferas de poder (económico, politico e militar) com ramificações por toda a sociedade, prevalecente na Guiné-Bissau desde a independência, mas que é posto em causa quando da abertura política em 1991 e sobretudo nas eleições de 1994. O PAIGC e o velho sistema informal de resolução de crises desorganizam-se e não podem funcionar, como no passado, porque as regras do jogo são outras. Os mandjuas (os pares, os iguais) que resolviam os problemas entre si deixam de o poder fazer e os diferendos passam para os circuitos formais e institucionais de eficácia precária ou inoperantes. Os actores sentem que a situação lhes escapa, mas concomitantemente sentem também que as questões permanecem todas em aberto e sem solução à vista. Esta manifesta incapacidade de gestão dos conflitos internos está na origem do levantamento militar, ou seja na expressão violenta do descontentamento, pela via das armas, com inevitáveis reflexos regionais e internacionais. Atente-se que Nino pensava ter resolvido o problema do partido no VI Congresso pela via informal e preparava-se para suprimir a resistência do CEMGFA suspenso, por processos semelhantes. A revolta de Mané é um elemento capital, mas só pôde ser concretizada porque – e não é demais sublinhá-lo - não foi um ato isolado. Tratava-se sobretudo da recusa na restauração da hegemonia pessoal e autoritária em torno do Presidente da República (v. p. 168). Nino procurava impor-se e conquistar o Poder absoluto. A mensagem dos mandjuas é simples: Nino não é mais que um primus inter pares e os pergaminhos do tempo de luta devem-se igualmente aos seus iguais.

“O impacto do conflito na reserva da biosfera do arquipélago Bolama-Bijagós” de Justino Biai, refere que as ações beligerantes levaram muitos milhares de cidadãos de Bissau a procurar refúgio em regiões menos afetadas pela guerra, como foi o caso do arquipélago Bolama-Bijagós. Para alem dos deslocados, as ilhas receberam também militares estrangeiros, senegaleses e conacri-guineenses que para ali foram destacados, uma vez que o aeródromo da ilha principal, Bubaque, era vital para os militares leais a “Nino” Vieira e para a tropa estrangeira, sobretudo após a queda do Leste (Bafatá e Gabu) a favor da Junta Militar. Todavia, o arquipélago é uma reserva da biosfera e possui um eco-sistema muito frágil. A população aumentou desmesuradamente o que veio a prejudicar os recursos naturais e as atividades da população local.

“O Impacto do conflito político-militar sobre o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa” de Samba Sané é amplamente referenciado neste artigo. O INEP era uma instituições científicas e culturais de referência na Guiné-Bissau. Situado na linha da frente, entre a tropa de “Nino” Vieira e dos seus aliados e os rebeldes da Junta Militar, foi alvo de bombardeamentos, pilhado e saqueado. Serviu de caserna à tropa senegalesa. A maior parte da documentação e do material foi destruída ou roubada. “Todo um trabalho de mais de 15 anos de recolha de dados com vista à constituição da memória histórica do país desapareceu” (p. 211).

O antropólogo francês Gérald Gaillard, da Universidade de Lille, publica um extenso artigo intitulado “La guerre en son contexte: histoire d’une erreur politique” que se divide em quatro partes: na primeira, analisa a história da Guiné-Bissau, sobretudo a partir de 1980; na segunda, debruça-se sobre a guerra civil, com alguma minúcia; na terceira, em que predomina a especulação amiúde infundamentada, avalia a queda de “Nino” Vieira, as políticas divergentes da União Europeia, uma vez que Portugal e a França alinharam em campos opostos e, sobretudo, tenta compreender os erros desajeitados cometidos por Paris na análise da situação bissau-guineense, das realidades locais e dos jogos internos de relação de forças; finalmente, na quarta parte, examina a situação da Guiné-Bissau no rescaldo da guerra civil, o problema de Casamansa, a influência líbia na região, designadamente, na Guiné-Bissau e na Gâmbia e a situação neste último país. A primeira e segunda partes constituem uma narrativa descritiva relativamente extensa que nos vamos abster de comentar em geral, limitando-nos a referir quatro ou cinco questões pontuais. Para Gaillard não há uma cesura étnica na Guiné-Bissau o que, a seu ver, demonstraria uma grande maturidade por parte do povo bissau-guineense. Parece-nos uma conclusão apressada e superficial. Ao referir-se às eleições de 1994, alega que “Nino” não terá obtido votos junto dos veteranos de guerra, o que demonstraria que estes já não estariam maioritariamente com ele. Não se sabe até que ponto esta asserção é verdadeira. Apesar de todos os defeitos do regime, as agências de cooperação e assistência internacionais e as embaixadas estrangeiras teriam confiado em “Nino” na ausência de uma alternativa viável – i.e., não haveria ninguém para o substituir. Esta conclusão é presumivelmente verdadeira. Estamos em crer que Portugal, a França e os demais países apostaram sempre em Kabi, até porque estavam convictos que o regime, apesar das turbulências, estava de pedra e cal e o PR para ficar. Gaillard refere-se ao dossiê petrolífero e às reservas off-shore bem como às posições perdedoras da Guiné-Bissau nesta matéria, sem, porém, entrar em grande pormenores. Seria importante que o tivesse feito, mas trata-se, bem entendido, de matéria opaca. Afirma que a “luz verde” para o ataque final às posições ninistas em 6 de maio terá sido dada pelo presidente nigeriano Abdulsalami Abubakar a Ansumane Mané, o que se nos afigura totalmente especulativo e pouco crível. Para o autor, Portugal ao conceder o asilo político a Vieira, no fundo, “impôs” (?) uma solução que evitaria o respetivo julgamento em território da Guiné-Bissau. Desconheço que elementos de informação dispôs Gaillard para poder concluir desta forma. Ora bem, se se deparam com especulações na primeira e segunda partes aquelas continuam com uma intensidade quiçá reforçada na terceira e quarta, até por que aqui a matéria de facto já não é tão abundante e a imaginação não tem fronteiras. É claro que a ausência de uma política europeia comum em relação à Guiné-Bissau, como em relação a n outras regiões do mundo e a outros tópicos de politica externa, é no fundo uma tautologia. Considera que a França falhou ao acalentar uma aproximação da Guiné-Bissau ao Senegal e a integração do país no conjunto francófono. Todavia, Gérald Gaillard chega a advogar que a Guiné-Bissau se possa tornar uma província do Senegal (!). Finalmente, para além dos erros crassos cometidos pela França, duvida da capacidade de Portugal se impor como coordenador da politica externa europeia na Guiné-Bissau. Trata-se a meu ver de um problema geral de falta de confiança no nosso país, que, aliás e infelizmente, não é só apanágio de certos autores franceses.

Finalmente, Fafali Koudawo, analisa os “cartoons” da história em quadradinhos de Fernando Júlio no texto intitulado “A guerra desenhada – Lutu na Polón di Brá” em que compara, com humor, a guerra à luta livre tradicional, muito popular na população bissau-guineense, onde, todavia, não se registam mortos.


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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11591: Notas de leitura (482): Soronda - Revista de Estudos Guineenses - Dezembro de 2000 (1) (Francisco Henriques da Silva)