Mostrar mensagens com a etiqueta Histórias e memórias de Belmiro Tavares. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Histórias e memórias de Belmiro Tavares. Mostrar todas as mensagens

domingo, 10 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11228: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (40): O sr. Dr. Matos

1. Em mensagem do dia 13 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES 

40 - O Sr. Dr. Matos

Li atentamente e gostei bastante do interessante artigo do José Alberto sobre o ilustre médico do Colégio, o Sr. Dr. Joaquim T. de Matos; como é apanágio do autor, deixou pouca margem para acrescentar o quer que seja acerca de tão ilustre galeno. O José Alberto estava noutro patamar – que não nós – e lidava de modo diferente com as pessoas que trabalhavam no COA – e foram muitas e, regra geral, acima da média – connosco não era a mesma coisa! Eu tinha pensado escrever algo sobre o Dr. Matos, mas não descortinei tão ampla matéria que justificasse a minha vontade; isto, talvez, porque eu, Graças a Deus, não fui utilizador assíduo dos seus serviços. Posso afirmar que (não é apenas no caso do Dr. Matos) os médicos em geral não têm tido soberanas oportunidade de enriquecer, desalmadamente, à minha custa. O futuro a Deus pertence!
Acrescento apenas um caso em que ele me acompanhou, desveladamente, durante várias horas, em serviço noturno, a tratar do meu caso; e outro em que, sem nos “encontrarmos” estivemos envolvidos numa decisão tomada pela Dª Adília. Ele agiu, na prática, como fiel da balança.

No dia 11 de Novembro de 1952, durante o intervalo da tarde - hora da merenda - numa louca correria desenfreada no velho e exíguo recreio, antes de haver o ginásio, tropecei não sei em quê ou em quem, caí com o braço esquerdo debaixo do corpo, que, naquela altura, já era pesadinho: fraturei os dois ossos (rádio e cúbito) do antebraço. Não pensem que isto é um estranho caso de memória e elefante! Na verdade, aquele acidente ocorreu àquela hora, no dia de S. Martinho, do ano em que entrei no COA – tão simples quanto isso.

Senti dores horrorosas (mais ou menos), mas para que um qualquer PPC da época não me declarasse piegas, ou que alguém entendesse e manifestasse que eu era mais assustadiço que uma senhora grávida (certamente, àquele tempo eu nem sabia o que aquilo era) decidi engolir em seco e aguentei firme e hirto… como um adulto robusto e serrano. Alguns alunos sentenciaram que não havia osso(s) fraturado (s) porque eu movia, embora muito ligeiramente, os meus dedos tenros.

Cumpri o horário até às 19h00. Depois de jantar, como as dores não davam sinais aceitáveis de abrandar, solicitei a simpática colaboração do meu conterrâneo, Valdemiro, Amaral, (já falecido) para que me ajudasse a despir o casaco. O meu braço, o sinistro, quase não saía da manga, de tão inchado que estava; tinha já ma cor avermelhada… feia q.b.

O prefeito (creio que ainda era o Sr. Fernandes, o antecessor do velho Correia) levou o caso à Direção; avisaram logo o Dr. Matos que ordenou que eu me dirigisse, sem mais delongas, ao seu consultório; ele aguardaria ali até que eu chegasse. O Dr. Matos logo diagnosticou uma fratura. Telefonou a um tal Dr. Fernando, ortopedista, e solicitou a presença do Sr. Almeida que logo compareceu de carro no consultório. Na viatura, fui sempre carinhosamente amparado pelo nosso médico; com palavras meigas, dava-me ânimo e alegava que não era grave, que era coisa passageira.

O consultório do Dr. Fernando ficava numa rua cujo nome nunca soube mas sei que desembocava, vindo de baixo, na Estrada Nacional, junto ao jardim; ficava num 1º andar, no mesmo prédio ou ao lado do velho e já desaparecido Foto Paúl. Há uns meses percorri aquela rua e encontrei, creio que no mesmo rés-do-chão, ou muito próximo, um restaurante bastante razoável e agradável.

A radioscopia pareceu-me uma coisa engraçada. Nunca tinha visto nada assim! Foi divertido ver as quatro metades dos meus dois ossos a “bailarem”, um tanto desconexadamente. O Dr. Fernando não queria que eu olhasse, porque podia assustar-me, mas eu mirei sempre, pois tinha todo o interesse em observar com que “linhas iriam coser-me”. O Sr. Almeida segurava com firmeza o meu úmero esquerdo, junto ao cotovelo; o Dr. Matos puxava com força a minha frágil mão; o Dr. Fernando entrelaçava os dedos e, com as palmas das mãos, comprimia, duramente, o meu braço no local da fratura. Depois de cada aperto/esticadela, eu voltava à radioscopia e achava aquela “caranguejola” sempre engraçada.

Já depois da meia-noite o serviço de corregimento estava concluído. De seguida, envolveram o meu braço desde o meio do úmero até à base dos dedos, com uma espessa e resistente camada de gesso, fazendo um ângulo reto entre o braço e o antebraço.

O Sr. Dr. Matos – nunca esquecerei – acompanhou-me até à camarata e, com muito carinho e cautela, e dedicação, ajudou-me a despir e a deitar. Foi a minha primeira noite de braço ao peito. No dia seguinte, o Sr. Almeida levou-me ao Porto para ser observado pelo então famoso ortopedista Dr. Abel Portal; o exame teve lugar no edifício da Europeia Seguros. Depois da observação cuidada e exaustiva, o doutor ortopedista transmitiu ao Sr. Almeida o seguinte recado: - Diga lá ao Dr. Fernando e ao Dr. Matos que, por muito que se esforcem, nunca mais farão um trabalho melhor que este! Está absolutamente perfeito! Se estivesse melhor… não prestava! As últimas palavras não foram proferidas pelo hábil Dr. Abel Portal, são da minha lavra.! Um certo domingo o Senhor Almeida repreendeu-me , severamente, porque eu fazia de goleiro durante uma brincadeira com bola; nem Keeper podia ser.

Na verdade, depois de me ser retirado o gesso, nunca senti qualquer mazela naquele braço que pudesse ser atribuída à fratura e já lá vão uns anos; até parece que me aproximo da velhice.

O outro caso que vou narrar, é bem diferente. Parece-me que eu frequentava o 5º ano. Mas, seja qualquer for a data, isto ocorreu no ano em que fomos flagelados por um surto alargado da perigosa e fortemente contagiosa gripe asiática.

Alguns alunos (internos e externos) estavam já de baixa faltando, justificadamente, às aulas. O Sr. Almeida estava fora! Talvez nalguma caçada. Um grupo de alunos propôs à Srª Dª Maria Adília que encerrasse o Colégio durante uns dias ou até que o flagelo fosse debelado. Ela não concordou! No dia seguinte de manhã aconselhámos, insistimos, quase obrigámos (ou impusemos mesmo ?!) alguns alunos a não comparecerem às aulas da tarde desse dia. Entretanto mais uns alunos receberam baixa médica. Parecia que a artimanha iria proporcionar bons frutos. Conversámos novamente com a Srª Diretora, enumerando (com exagero) o número de baixas e a sua progressão. A Srª Dª Adília conferenciou com o Dr. Matos e… o Colégio foi encerrado durante não sei quantos dias. Costuma dizer-se que a justiça divina pode tardar… mas não falta! Na verdade, eu fui um dos mais acérrimos defensores do encerramento da escola e consegui manter-me imune à gripe. Quando cheguei a casa, supondo ter uns dias extra de livre brincadeira, adoeci com a dita gripe, passando, na cama, aqueles dias de encerramento do Colégio. Quando tive “alta” estava na hora de voltar ao COA. Triste sina a minha!

Castigo merecido!

Dizem as velhas da minha terra que… “Deus castiga sem pau nem pedra! Mas bem que podia não ser tão rigoroso comigo!

Saudações colegiais.
Fevereiro 2013
BT
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 3 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11184: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (39): Uns alunos foram à matança

domingo, 3 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11184: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (39): Uns alunos foram à matança

1. Em mensagem do dia 13 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

39 - Uns alunos foram à matança

Em princípio de Dezembro de 1960 (poderá ter sido no mesmo mês de 1959, mas de qualquer modo ocorreu há, apenas há uma escassa “meia dúzia” de anos) um grupo de alunos finalistas do COA aceitaram, contentes e alvoraçados, o convite para se deslocarem a Rocas do Vouga, a casa dos meus pais, para participar num almoço diferente do habitual, porque era fora do COA e não só. Esta refeição, chamada localmente, de “rejoada”, ou seja, o prato principal constava de rojões – lombo de porco cozinhado, em nacos de bom tamanho, na própria banha do animal, em panela de ferro e ao lume brando da lareira.

Nos dias de hoje, principalmente no Ribatejo e Alentejo, tal almoço típico, ocorre no próprio dia do abate dos animais (matança) e consta quase só de carne grelhada (febras ou fêveras, costeletas e entremeada).

Naquele tempo, lá na terra, os animais eram abatidos na quinta-feira; ficavam pendurados, para escorrer o sangue, e arrefecer até sábado; neste dia, logo pela manhã, procedia-se à “desmancha” (desfazer, com arte, os animais em pedaços). A carne devidamente cortada era guardada em sal, dentro de grandes arcas (salgadeira) feitas de madeira de pinho ainda verde; não se utilizavam pregos, parafusos ou dobradiças metálicas, pois o salitre corroeria essas peças em tempo curto e as tábuas da arca desconjuntar-se-iam de seguida.

O dia da matança não era escolhido ao acaso; os agricultores tinham em grande conta as fases da lua, não só para matar os animais, mas também para semear cereais e até cortar as árvores cuja madeira eles utilizavam nas suas construções ou reparações.

No espaço de tempo que decorria entre o abate e a própria rojoada, preparavam-se morcelas e chouriças com produtos dos porcos abatidos – morcela com carne e um pouco de sangue; as chouriças eram elaboradas só com carne, tudo temperado a preceito - todos os artigos eram absolutamente frescos, da melhor procedência e de superior qualidade.

O colega José Sá e Sousa, oriundo lá das bandas da Vila da Feira, tinha carro (coisa raríssima naqueles bons velhos tempos); o Armando Figueiredo, creio que não era ainda encartado, mas a mãe emprestou-lhe a sua viatura e lá fomos cinco em cada carro, até quase ao limite interior do distrito de Aveiro.

Quem se lembra de todos aqueles convivas? Eu recordo apenas 8: Sá e Sousa, Reis Ferreira; Armando, Valdemar, Eugénio, Belmiro, Eberl e Ribeiro, havia mais dois; destes o Miller, talvez fosse um deles. Se alguém se lembrar do outro ou se houver imprecisão da minha parte, há que esclarecer.

Chegámos ao local pouco antes da hora aprazada. Solicitei ao Eberl que me acompanhasse até ao canto da eira e perguntei-lhe, apontando para determinada planta ali existente:
- Que arbusto é aquele?

O Eberl ficou surpreendido e comentou:
- Tu não podes ter isto aqui! É absolutamente proibido!
- Não foi isso que eu perguntei! Responde à minha pergunta!
- Isto é a planta do tabaco e não é permitido cultivá-la na Metrópole!
- Eu só pretendia o teu esclarecimento! Sempre ouvi dizer que se tratava de tabaco, mas faltava-me a opinião dum conhecedor.

O Eberl nasceu em Angola, no Pango Aluquem, mais precisamente na fazenda Quenuma Numa e era filho de pais alemães; creio que cultivavam café e tabaco.

Ainda hoje, lá no meu quintal, existem plantas dessas que ali aparecem sem serem semeadas. Até faz lembrar o alecrim. Nesse tempo, a “botica” (remédio de farmácia) tinha por ali pouca utilização; as pessoas vizinhas quando sofriam de determinadas mazelas vinham lá a casa pedir umas folhas de tabaco para curar as suas chagas; diziam que as folhas continham excelentes efeitos curativos.

O padre, como, à época, não podia deixar de ser, também foi convidado. Como era domingo e teria outros compromissos, enviou, em sua representação, a sua irmã que, até era uma solteirona de “profissão”. Bem tentou arranjar partido lá na terra mas não conseguiu.

Logo que nos sentámos à volta da mesa, ela tentou comandar as tropas o que não terá agradado a ninguém. Aí o Ribeiro fez com que ela desistisse da ideia e ela “perdeu o pio”.

Lembras-te, Ribeiro, da anedota que contaste e que a fez encabular? Esta tinha-nos sido narrada pelo Dr. Magalhães Lima, um excelente mestre de matemática do 3º ciclo.

Resumindo: uns anjos, lá no céu, participaram a Jesus que sua Mãe introduzia almas naquele paraíso celeste, clandestinamente, puxando-as por meio de uma corda com nós. Jesus perguntou:
- Sabeis que corda é essa?

E de seguida esclareceu, aquelas celestiais criações:
- É o terço! É através do rosário que as almas pecadoras podem ficar limpas (perdoadas) podendo assim entrar no Reino de Meu Pai!

A senhora Ana, (menina cinquentona), irmã do Padre e certamente conhecedora dos preceitos da Fé, não achou graça alguma ao que ouviu (não lhe chamou blasfémia)! Mas acabado o almoço… desapareceu!

O Reis Ferreira pediu à minha mãe que lhe arranjasse uma “assadura” (um pedaço de carne assada), grelhada nas brasas da lareira; alegou que adorava aquilo e já não comia havia muito tempo.

Iniciou-se o almoço:
1º Prato - cozido à portuguesa – hortaliça colhida no próprio dia e carnes bem frescas.
O meu avô presidia à mesa, ele adorava “passar rasteiras” à malta jovem. De maneira que todos ouvissem, ele avisou:
- Oh! Rapaziada! Isto é o que há! É o nosso almoço e não há mais nada! Cá em casa há só um prato, mas isto dá para todos!

Eu lembrei aos colegas, sem desdizer o meu avô – que participávamos duma rejoada… mas ninguém acreditou no que eu proferi: todos comeram o cozido que nem uns desalmados! Até parecia que no COA se comia mal! Mas aquele cozido era mesmo do outro mundo! Estaria mesmo divinal!

2º Prato – massa meada guisada com carne.
Perante este prato ninguém se alarmou porque… era massa e, como de costume, ninguém apreciava aquilo.

3º Prato – rojões de lombo, arroz do forno, batatas assadas e salada.
O Reis Ferreira foi “aos arames” e comentou descoroçoado:
- Nunca na minha vida fui enganado por um velho, senão hoje! Sinto-me ludibriado; furibundo!

O meu avô adorou aquela brincadeira! Ria-se a bandeiras despregadas, porque tinha enganado os estudantes; durante muito tempo, sempre que se lembrava, comentava comigo aquela “tirada” do Reis Ferreira. Tornou-se célebre! Na verdade, os alunos quase não provaram os rojões, o prato principal que dava o nome ao repasto pois tinham enchido os “bandulhos” com o espetacular cozido.

De seguida colocaram sobre a mesa, à frente do Reis Ferreira, a tal assadura, um bom pedaço de suculenta carne, perfeitamente tostada, doirada, nas brasas da lareira. O jovem Reis Ferreira ficou envergonhado, pois não conseguia comer o que tão delicadamente havia solicitado. No seu estômago não havia lugar para mais… nem uma “assadura” tão desejada.

Todos colaboraram comendo um naco cada um para tirar o Reis Ferreira daquela dificuldade.
Ele sentiu um grande aperto no estômago, mas daquela… lá o safámos.

Já agora a sobremesa também tem de ser citada: castanhas assadas e fruta da época.

Assim terminou um almoço muito diferente do habitual, porque foi servido fora do ambiente colegial e porque, já naquele tempo, a carne dos animais criados em casa era bastante melhor que a carne do talho.

Os porcos abatidos lá em casa tinham sempre mais de um ano e meio quase sempre pesavam mais de 180Kg (limpos) cada; eram umas bestas avantajadas!

Foi um domingo bem passado… em plena liberdade… sem o Correia… nem diretores, professores ou quejandos!

Saudações colegiais
Fevereiro 2013
B T
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11135: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (38): O Carinhas

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11135: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (38): O Carinhas

1. Em mensagem do dia 6 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

38 - O Carinhas

(1ª parte)

Algumas figuras mais ou menos castiças passaram pelo COA, como não poderia deixar de ser. Existem casos semelhantes em todos os estabelecimentos de ensino; o nosso não foi exceção – não podia sê-lo.

Hoje, o Carinhas, de seu nome completo, Adelino Carinhas Pinto, é o alvo escolhido da nossa escrita. Não nos move qualquer outra intenção que não seja narrar assuntos verídicos ocorridos, durante alguns anos. Nenhum, entre tantos alunos, poderia pretender ser “levado” ao colo durante a sua permanência no COA, pois não haveria braços (nem abraços) para todos – absolutamente impossível!

O Carinhas não terá frequentado o COA durante mais de três anos (creio) mas é certamente um elemento marcante, até pelo seu nome pouco ou nada vulgar; não é, porém, do seu nome que vamos tratar.

O pai do Carinhas era natural de Sever do Vouga e era ali que o Adelino passava alguns fins-de-semana e as férias em casa da tia, irmã de seu pai, durante os anos em que frequentou o COA, e terá continuado.

O progenitor terá “emigrado” para Angola, onde casou com uma senhora nativa. Notava-se claramente que nas veias do Carinhas corria um pouco de “sangue quente” africano; a avaliar pela aparência, a mãe, no entanto, não seria mulata, talvez até nem fosse mesmo uma “cabrita pura”. A sua débil ascendência africana não era tão notória assim.

Quem estudou as “leis de Mendel” – creio que na Biologia do então 3º ciclo – poderá fornecer uma achega mais abalizada (que não a minha) que não enveredei por essa via.

O Carinhas era alto, um tanto esguio, sempre pronto, pelo menos quando acompanhado e desafiado, a entrar pela mini asneira; resposta sempre pronta na ponta da língua, (o pobre podia ir sem esmola, mas não ia sem resposta); era um brincalhão nato; apesar de tudo não deixava de ser um bom rapaz, amigo do seu amigo e também um bom aluno (bem acima da média), pois no 2º ano dispensou de oral e não foi tangencialmente.

Terá entrado no COA em 1955, e no ano seguinte concluiu o 2º ano, integrado numa célebre turma em que 54% dos alunos dispensaram da oral - caso extraordinário. É a prova evidente da elevada qualidade daqueles alunos, mas acima de tudo, da superior eficácia do ensino ministrado no COA já que, nesse ano, a média nacional de dispensados rondou os 20%. A ninguém poderá restar dúvidas!

Terá abandonado o COA no fim do 3º ano, transferindo-se, vá lá saber-se porquê, para o Colégio de Albergaria-a-Velha, vila um pouco a sul de Oliveira de Azeméis, onde continuou os estudos por mais algum tempo – não sei até quando. Consta que teve uma abundante sequência de empregos; que eu saiba, passou pelos CTT, jornalismo, taxista, entre outros, mas parece que nunca terá ocupado por largo tempo qualquer dos cargos.

A história que hoje vamos narrar ocorreu num domingo ao fim da tarde; o Tó Zé e/ou Zé Beto, os filhos dos nossos saudosos diretores, poderão dar, certamente, uma prestante ajuda, pois, o que vai ser contado, ocorreu no dia em os seus avós de Santiago, os pais do Sr. Almeida, comemoraram 50 anos de casados, as bodas de ouro; o banquete teve lugar no COA, mais precisamente, no recém-construído ginásio. Creio que era um dia de inverno e havia por ali muitos convidados, gente estranha para nós. Posso mesmo afirmar que havia no ginásio muitos lugares sentados, segundo tive oportunidade de observar pessoalmente, in loco, como mais à frente se verá.

Durante a tarde desse dia (Domingo) alguns alunos internos saíram do COA, dirigindo-se ao jardim da Vila, para mudar de ares, lavar os olhos e dar umas voltas, vulgo “fazer picadeiro”! A dado momento, o grupo de que o Carinhas fazia parte cruzou com outro grupo – rapazes e raparigas – que não seriam, pelo menos na sua maioria, alunos do COA; uma das moças ia com certeza “bem acompanhada” por um rapaz que os alunos do COA desconheciam. Sem que ninguém se apercebesse que algo de anormal acontecera, o Carinhas caiu desamparado no solo como se fulminado por um violento raio… do qual ninguém se deu conta e que não deixou qualquer rasto… pois o hipotético raio não existiu mesmo.

O Carinhas ficou inanimado no meio daquela rapaziada abismada e atónita; ninguém vislumbrou uma saída prática para pôr termo àquela situação embaraçosa e até potencialmente perigosa. Houve a costumeira confusão própria de casos semelhantes; todos se empurravam para dar uma olhadela ao sinistrado mas ninguém se lembrou sequer de chamar os bombeiros… do nosso caríssimo professor Santos.

Entre os alunos ali presentes havia dois jovens severenses: Eugénio Bastos e Valdemar Coutinho. Por serem conterrâneos, colegas e bons amigos do “sinistrado”, deliberadamente assumiram o encargo (fardo bastante pesado) de “levar” o Carinhas para o COA. Solícitos e corajosos, levantaram a custo “aquele corpo morto” (salvo seja), apoiaram os braços do “doente” sobre os seus robustos ombros jovens e, literalmente arrastaram-no” para o colégio.

Recordo aquela imagem meio caricata, quase cómica, se o caso não fosse sério. O Carinhas era bem mais alto que os acólicos e os pés dele rojavam mais de 1 metro atrás dos amigos auxiliadores. O Carinhas sem prestar qualquer ajuda aos amigos e voluntários (continuava a não dar visíveis sinais de vida) para diminuir o esforço inaudito dos dois companheiros, permitia, inconscientemente, que o arrastassem para lugar seguro.

Assim entraram, já extenuados, no salão de estudo. Os alunos ali presentes rodearam-no, ansiosos por informações sobre o acidentado e acerca do que tinha acontecido. O doente ficou estendido no estrado; havia ali um sobretudo velho e sem dono que, à falta de melhor, serviu de almofada àquela “cabecinha tonta”.

De repente, o Carinhas abocanhou aquele casacão (que lhe servia para apoiar a cabeça) e, agitando freneticamente a cabeça para um e outro lado, fez o dito casacão voar sobre si como se dum delicado lenço se tratasse. De vez em quando, autenticamente “urrava” como qualquer animal feroz.

Alguém se apressou a descer até ao ginásio para avisar os nossos diretores do que estava a passar-se; ali se comemoravam as bodas de ouro dos pais do Sr. Almeida. O Sr. Dr. Matos, o nosso médico, era uma dos convivas e, logo que foi informado, galgou as escadas até ao salão onde se encontrava o “doente” para prestar rápida assistência médica e medicamentosa ao nosso colega que de vez em quando, dava sinais de profunda agitação. Tirou da sua maleta uma seringa e logo lhe aplicou uma daquelas injeções milagrosas. Em breve, o Carinhas deu sinais claros de acalmia mas logo, ainda inconsciente, tinha novos acessos de fúria, ficando profundamente agitado, qual parida leoa à qual “roubaram os filhos enquanto ela alimento lhes buscara”.

A srª Dª Maria Adília, sempre atenta e cuidadosa, ouvido o parecer do médico, ordenou que o paciente fosse transportado para um quarto na zona dos seus aposentos.

Mais uma tarefa complicada de executar que foi conseguida com sucesso total devido à solícita colaboração de vários alunos. A Srª Diretora entendeu que o Carinhas necessitava de acompanhamento que na camarata não poderia ter. Não sei como nem porquê (nunca soube) o Armando Figueiredo e eu fomos incumbidos de acompanhar, vigiar e apoiar o Carinhas naquele quarto por tempo indeterminado; entendeu-se que, no mínimo, ali permaneceríamos até ao fim da festa.

Um pouco mais tarde, o Carinhas, devidamente bem aconchegado na sua nova cama, com a voz ainda muito “arrastada”, tartamudeou, compassadamente: luz!... Luz!

Logo um de nós se abeirou do interruptor e... Fez-se luz!

Ele repetiu: luz!... Luz! Um de nós desligou imediatamente a corrente elétrica!

O Carinhas, porém, com iluminação ou às escuras, com a língua entaramelada, ia repetindo: luz!... Luz!…

O Dr. Matos compareceu no local para se certificar da evolução do estado do “doente”; permaneceu ali durante largos minutos e aconselhou que a iluminação continuasse desligada pelo menos até o Carinhas ficar suficientemente calmo.

Entretanto, alguns colegas passaram também pelo local a fim de colher informação sobre a evolução do estado do companheiro e amigo; estavam todos preocupados… e não era para menos.

Na conversa com as visitas (alunos) recebemos certas informações que se manifestaram cruciais para “ligar as pontas” da estória que se desenrolaria à volta do eixo principal – entendíamos nós – que seria aquele pedido insistente de “luz” quer as lâmpadas estivessem acesas ou apagadas.

Entretanto passou a hora do jantar e ninguém se preocupou se nós, os vigilantes de serviço, estávamos ou não devidamente alimentados; nós éramos jovens de muito alimento – eu falo por mim! Nós porém não nos inquietámos: em primeiro lugar, porque o jantar, como de costume, seria massa de meada guisada com carne, e por tradição ou qualquer outro motivo, ninguém caía de amores por aquele prato; em segundo lugar porque entretanto descortinámos uma saída airosa para saciar o nosso apetite de jovens.

Sem colocar em causa a vigilância ao doente, um de cada vez descia ao piso de baixo onde a funcionava uma cozinha “improvisada” para a festa daquele dia e solicitámos encarecidamente ao pessoal de serviço que nos aconchegasse a “barriguinha”.

Cada um comia no local que lhe era apresentado e levava alimento, também para o outro que continuava de atalaia, no tal aposento.

Com os estômagos minimamente bem compostos – a quantidade, qualidade e variedade dos alimentos ingeridos superavam largamente a quantidade usualmente necessária para satisfazer os nossos estômagos sempre ávidos de alimento – iniciámos a exploração do “filão” que nos havia sido proporcionado pelas informações soltas e desconexas que nos haviam sido prestadas pelos nossos colegas que por ali passaram.

Muito calmamente iniciámos uma profícua conversa com o nosso “doente”. Meio adormecido e com a língua, ainda encortiçada, o Carinhas foi taramelando palavras mais ou menos soltas e que nós fomos encadeando entre si e as informações de que já dispúnhamos, com maior ou menor dificuldade; continuámos a arrancar dele palavras a saca-rolhas, autenticamente, e assim apanhámos o enredo completo do que tinha acontecido e que havia causado aquele atroz sofrimento ao Carinhas e enorme preocupação aos colegas e diretores.

Com a necessária segurança – e pequena margem de erro – concluímos: o Carinhas caiu de amores – paixão puramente platónica – por uma moça que vivia do outro lado da avenida, num prédio em cujo rés-do-chão havia uma oficina onde reparavam, vendiam e alugavam velocípedes (o tal veículo em que a besta puxa sentada!). Segundo apurámos, a tal moça chamava-se Maria da Luz e não tinha conhecimento da tal paixão tão “assolapada” no jovem coração avantajado do Carinhas. Eis o motivo por que ele clamava, tão insistentemente por Luz! (Aqui já era Luz!).

O Carinhas logo que viu, inesperadamente a sua “amada” idolatrada, no jardim “pendurada “num outro rapaz (que não ele próprio) ficou desvairado… caiu desamparado no solo como se fulminado por um raio. A Maria da Luz não sabia que era o alvo de tão profunda e doentia paixão. Já depois da meia-noite, o Carinhas dormia repousadamente como qualquer anjo papudo; apareceu a Srª Dª Maria Adília que logo quis saber novidades sobre o estado do “doente”… e se tínhamos jantado.

À 2ª pergunta logo respondemos negativamente; quanto à 1ª narrámos, com os pormenores possíveis, o que, com paciência de santo, havíamos “decifrado”.

Ela manifestou o seu contentamento pelo nosso trabalho “detectivesco” e convidou-nos a segui-la até ao ginásio; já não havia lá qualquer convidado. “Descobriu” algumas mesas, baixando as pontas das toalhas e ordenou que comêssemos o que quiséssemos de tudo o que ali havia – e eram muitas a iguarias ali à mão de semear.

Bem comidos e bem bebidos – naqueles bons velhos tempos, os jovens até bebiam vinho, e nós tivemos direito, também a espumante – a srª diretora continuava ávida por mais minudências; agradeceu a nossa proveitosa e exaustiva colaboração e decidiu que não nos levantássemos às 6h30, como os outros alunos; apenas devíamos comparecer ao pequeno-almoço – às 8:45 – a que se seguiam as habituais aulas.

Um inesquecível fim de domingo!


(2ª Parte) 

 Como atrás foi dito, o Carinhas transferiu-se para o Colégio de Albergaria-a-Velha, provavelmente no fim do 3º ano. Um amigo comum (meu conterrâneo) que o acompanhou na nova escola contou-me algumas peripécias mais ou menos disparatadas, um pouco trágicas ou cómicas, segundo o ponto de vista dos intervenientes em que o Carinhas, por vontade própria, tomou parte.

Alguns companheiros falavam de cortes de cabelo à “Rosa Coutinho”; o Carinhas, logo se manifestou disponível para rapar a cabeça, com navalha de barba, caso os colegas lhe entregassem uma determinada quantia em dinheiro vivo. Os colegas conseguiram juntar as moedas solicitadas (não sei qual o montante) e de seguida o Carinhas “barbeou” a cabeça. Dada a sua estatura, as feições e a cor de pele, o Carinhas ficou com ares de autêntico palhaço ou mesmo pior que isso. Na noite seguinte, os colegas que perderam a aposta decidiram tornar a situação ainda mais cómica – era a hora da vingança, que sempre se serve… fria.

Comparam um frasco de tintura de iodo e, munidos de penas de galinha para servirem de pincel, enquanto o Carinhas dormia a sono solto, besuntaram a sua cabeça já descabelada; ele ficou com um aspeto quase pavoroso – terrível vingança!

Os alunos internos deslocaram-se às instalações sanitárias para a higiene matinal. Ao verem o Carinhas naquele estado deplorável, todos riram desalmadamente da nova e real aparência do colega. Quando se apercebeu que era ele próprio o alvo de tanta chacota, o Carinhas espumava de raiva; urrava furiosamente; virou fera! Comentou o meu informador: “se, naquela hora, ele imaginasse quem tinham sido os autores de tão severa “vingança” (foram vários), o Carinhas mataria um, tal era o seu estado de fúria; ele parecia um touro indómito, bramando! Saudações colegiais!

PS – há meses que tenho tentado contactar o Carinhas Pinto por telemóvel, mas ele nunca atende. Não sei o paradeiro dele; o telefone chama mas ninguém atende.

Saudações Colegiais
Belmiro Tavares
Fevereiro 2013
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 18 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11113: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (37): A "ida ao toco"

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11113: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (37): A "ida ao toco"

1. Em mensagem do dia 28 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

37 - A “ida ao toco”

No COA, tal como noutras boas escolas, também havia algumas tradições, ainda não profundamente enraizadas, visto tratar-se, àquela data, de uma escola jovem. Falamos da “ida ao toco”.

Creio que inicialmente, se praticava apenas entre alunos internos; com o tempo ter-se-á estendido a todos os alunos e, de vez em quando, aquela prática lá se ia renovando, mas… a tradição a certa altura... deixou de ser o que era!

Creio que não havia data pré-determinada para esta operação; bastava que um pequeno grupo tomasse tal decisão e … um de cada vez, todos eram levados ao “toco”. Quando tal acontecia, normalmente não escapava ninguém – nem os mais velhos!

A tal operação praticava-se do seguinte modo: quatro ou mais alunos (de acordo com o peso e a força de cada um dos visados) principalmente os mais velhos, pegavam uns nos braços e outros nas pernas da “vítima”, conduziam-na até junto do local próprio, e batiam três vezes com o traseiro do aluno no poste de madeira, já carcomida que suportava uma obsoleta e única tabela de basquetebol existente no recreio dos rapazes junto à parede do edifício principal. Esta tabela desapareceu aquando da construção do ginásio.

Significa que, em tempo idos, se praticou basquetebol no COA. Recordo um rapaz de nome Palmares ou Palmaz que visitou o COA algumas vezes no meu tempo. Dizia-se que fora um exímio praticante de basquetebol. Vi-o pegar numa bola de volei e lançá-la à tabela introduzindo-a no aro metálico, pois a rede já não existia. Naquela época o Palmares(?) estava na Base de S. Jacinto.

Poderia dizer-se que “morto o bicho, morta a peçonha” mas tal não aconteceu, pelo menos de imediato; teve de se arranjar substituto para a já desgastada tabela.

Passou, então a utilizar-se para tal fim, os pilares de ferro que suportavam o telhado do alpendre à frente, da garagem onde o Sr. Almeida guardava o(s) seu(s) carro(s) e que cobria também o bebedouro na outra extremidade. Creio que nesta altura, o costume se estendeu a todos os alunos e, de vez em quando, lá se ia renovando a tradição, embora não fosse tão generalizada como quando se tratava só de alunos internos. Questões de números

Quando entrei no Colégio havia pouco mais de trinta alunos internos e todos eram levados ao toco quando tal era decidido; nem os mais velhos escapavam! Os dois casos mais complicados de que me lembro:

a) Um tal Cipriano, natural de Cepelos, fez o 7º ano quando eu fiz o 1º; foi o último da série; exerceu toda a sua força descomunal (em relação à dos miúdos) e agilidade para evitar ir ao “castigo” ; a luta foi dura mas, com a indispensável ajuda prestimosa dos mais velhos, cumpriu-se a “lei”;

) Um jovem, nascido lá para as bandas de Oliveira de Frades, distrito de Viseu, tinha acabado de chegar, como interno; frequentou ali apenas o 5º, 6º e 7º anos. Não recordo se ele ajudou a levar alguns jovens a “ao toco”, mas quando chegou a sua vez, esforçou-se ao máximo para que o mesmo não lhe acontecesse. Muito contrariado, democraticamente, foi obrigado a bater três vezes com o dito no poste. Quando se sentiu livre, sacou do bolso um quase inofensivo canivete (próprio, pela dimensão, para castrar grilos) e ameaçou esfaquear tudo e todos – era só fumaça!

Felizmente não passou à prática! O bom senso imperou! E a vida não acabou ali.

Creio que nos fins dos anos cinquenta do século passado tal uso… terá caído em desuso!

Tradição… já era!

Saudações colegiais
Janeiro 2013
BT
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 7 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11069: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (36): Juramento de Honra

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11069: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (36): Juramento de Honra

1. Em mensagem do dia 28 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

36 - Juramento de Honra

No Coa, por incrível que pareça, também havia destas coisas – não se brincava em serviço. Faziam-se juramentos… e não eram só de amor eterno; havia outros … afinal!

Três bons rapazes – teriam de ser bons cachopos, pois eu era um deles – frequentavam o 5º ano; depois, certamente de alguns considerandos, mais ou menos alargados, de livre e espontânea vontade e de comum acordo, os três bons malandros decidiram que “nenhum deles cortaria a barba antes do início das férias da Páscoa”. Esta ousada decisão terá sido alinhavada na sequência das férias do Carnaval; o ambiente carnavalesco era forte e convidativo a tais deliberações.

A direção do COA, porém, também não brincava em serviço; a disciplina era levada muito a sério – não era palavra vã. Mas, se os alunos -  mesmo apenas três – decidiram... está decidido! Cumpra-se!
Aqueles três galfarros entenderam também que só conversa não era suficiente! Palavras leva-as o vento! Vai daí... escreveram para que constasse!

O assunto ia mesmo passar ao papel! Pegaram numa vulgaríssima folha de sebenta (comezinho bloco de apontamentos com folhas  pardacentas, não pautadas) e nela escreveram um texto bem (ou mal ) alinhavado pelos três artistas, mais ou menos, como se segue: “Nós, F, F1, F2, abaixo assinados deliberámos e juramos pela honra, uns dos outros, que não cortaremos a barba antes do início das férias da Páscoa”.

Teremos certamente acrescentado: “aconteça o que acontecer”, ou ainda “nem que a burra tussa”! Apusemos local e data e as três assinaturas. Só faltou reconhecer as assinaturas no tabelião, que, à época, já era notário. Utilizando como base um reles papel;… nós éramos pessoas (adolescentes) confiáveis e prescindimos do reconhecimentos… até porque esta atuação implicava o pagamento de determinada verba… e o dinheiro não abundava nos nossos bolsos. A decisão acima citada pode parecer caricata aos olhos dos jovens de hoje porque estão habituados ao regabofe que prolifera nas escolas da atualidade; naqueles tempos, tudo era diferente! Havia DISCIPLINA e como ela era ali geralmente dura. Mas isso são contas de outro rosário!

Passadas (não mais de) duas semanas – creio -  surgiram as primeiras dificuldades que iriam fazer ruir o nosso juramento,  um a um, apesar de a nossa barba não crescer tanto assim que se notasse a olho nu, ao fim duma semana,

O primeiro visado foi, parece-me, o Armando Figueiredo, natural de S. Vicente de Pereira, lá para as bandas de Ovar; a Sr.ª Dª Mª Adília não permitiu que ele entrasse na sala de aula (seria, certamente, Geografia de Portugal) “sem lavar a cara”.

Para não começar a somar faltas, sempre perigosas, o Armando houve por bem cortar a barba. Foi a 1ª baixa! Uns dias mais tarde (não recordo  qual o motivo) o Arlindo desligou-se também, unilateralmente, do citado juramento, barbeando-se.

Eu era então o último (único) resistente. Acontecia que eu tinha, como soe dizer-se, “as costas quentes”
A primeira vez que fui a casa, depois de tal promessa rigorosamente escrita, tive o especial cuidado de perguntar ao meu pai se podia deixar crescer a barba; ele respondeu afirmativamente; entendi, não corretamente, que isso seria suficiente para salvaguardar a minha imunidade. Acontecia que a vontade de meu pai não imperava entre as severas paredes do COA! Ali, graças a Deus, imperava a vontade da Direção... e o resto era conversa!

Todos os sábados, durante o estudo da manhã, o Sr. Correia elaborava cuidadosamente uma lista com os nomes dos alunos internos que pretendiam ir passar o fim-de-semana a casa. Pretender ir não era sinónimo de... ser autorizado a ir. Entre uma coisa e outra havia um longo e árduo caminho a percorrer e,  de vez em quando, surgia uma cilada.

O Sr. Almeida, com a citada lista na mão, entrou no refeitório e a cada um ia dizendo se podia ou não sair do COA, nessa tarde; tinha por base as informações sobre o comportamento e/ou aproveitamento escolar. Chegada a minha vez, ele informou em tom (mais) autoritário:
- “vais a casa, mas cortas a barba durante o fim-de-semana”!
- Se não se importa, Sr. Almeida, eu corto-a no início da próxima semana, quando voltar ao Colégio; – comentei eu – era mais um pedido que outra coisa.
- Está bem! Mas não te esqueças! Proferiu o chefe, encerrando o assunto com a sua reconhecida autoridade.

Foi deste modo que o tal juramento – a nossa nobre decisão – redigida e ratificada numa mísera folha de sebenta, foi ao ar. E tudo o vento levou!

Respeito é bonito! Não havia juramento que resistisse à superior e decisória vontade do Sr. António Almeida, o Homem forte daquela casa!

Saudações colegiais,
Janeiro 2013
BT
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 1 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11039: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (35): O perfeito, senhor Correia

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11039: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (35): O perfeito, senhor Correia

1. Em mensagem do dia 22 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (35)

Manuel Correia

O prefeito, Sr. Correia, era uma figura algo carismática, trágico-cómica, incontornável, meio caricata etc. etc. que passou vários anos no COA. Chegou lá na primeira metade da década de cinquenta do século passado, muito provavelmente no princípio de 1954; vindo de Santo Tirso, donde era natural; era um adepto indefectível do Clube Futebol da sua terra; veio ocupar o lugar deixado vago por um tal Sr. Fernandes que – não sei o motivo – deixou o COA naquela época.

Uns tempos depois, devido ao aumento do número de alunos, teve como ajudante, um rapaz – cujo nome “já se me varreu” - que seria filho dum GNR e creio que era ex-seminarista; não aqueceu o lugar; sentiu que a “barra” era pesada, pôs o chapéu… e foi-se.

O segundo auxiliar e aprendiz de prefeito foi um tal Areal; era alto e jovem, com ares de cinéfilo também oriundo de Santo Tirso. Embora ali permanecesse algum tempo mais que o anterior, a sua passagem pelo COA foi também efémera. Digno de registo, recordo apenas uma briga – troca de murros – entre ele e o Castanheira II (o Francisco?), no “beco” que conduzia ao internato.

Eis que de seguida surge o sr. Pinheiro, talvez da mesma idade do Sr. Correia, mas mais alto e menos corpulento. Aguentou-se ali pouco tempo, também.

Dele recordo que, durante um “estudo” da manhã, o Sr. Correia não estava presente no salão; o Sr. Pinheiro foi, automaticamente, promovido a chefe, assumindo o comando das operações; ele “passeava” calado por entre duas filas de carteiras duma ponta à outra do salão. Lentamente, o sussurro foi aumentando, chegando à barulheira; antes que se tornasse infernal, o Sr. Pinheiro tomou lugar sobre o estrado e, daquele “púlpito” emitiu, sem preliminares, o seu elevado pensamento matinal:
- Dizem os filósofos que o estudo da manhã é o melhor; e um estudo mais “profique”!

Talvez o “profique” fosse fruto da imaginação dos alunos; este dito foi parafraseado pelo Abrantes no nosso sarau.
Houve gargalhada geral! O homem perdeu o pio!

Os alunos estavam habituados aos berros (autênticos urros) e às agressões verbais – e também muitas vezes corporais – do Sr. Correia e não acataram aquele paleio meio pilhérico logo ao amanhecer. Em breve pôs-se na alheta.

O Sr. Correia aguentou-se no colégio durante vários anos, porque era um “democrata” e usava métodos bem ... convincentes. Passei pelo COA, várias vezes, em 1962 e ele ainda andava por lá. Era uma figura castiça, autoritário q.b. (mais do que isso); era cumpridor, em absoluto, das ordens emanadas da Direção. Para não deixar transparecer que apenas cumpria ordens, frequentemente, afirmava, categórico:
- Não é assim, porque, nós, a direção, decidimos que…

Adorava que os alunos reconhecessem a sua autoridade e agissem de acordo com a sua vontade. Que os alunos, sempre que lhe pediam o que quer que fosse, agissem com reverência ou mesmo com subserviência, mesmo quando pretendiam infringir as regras; ele bem conversado (engraxado) até colaborava, colocando em risco o seu lugar.

Sempre que eu pretendia dar uma volta pela vila, ouvir no exterior (na pastelaria do outro lado da Avenida), o relato de um jogo internacional de hóquei patinado, ou mais tarde, em 1961, ver na TV, o jogo do Benfica, na extraordinária final de Berna, eu solicitava “reverentemente” ao Sr. Correia que me autorizasse a sair e ele logo me facultava a chave do portão secundário, o do pequeno jardim que separava o internato da avenida, recomendando apenas: cuidado! Que o Senhor Almeida não te apanhe! Eu respondia eu sei onde ele se encontra (na leitaria); se houver azar... eu saltei o muro. Todas as minhas saídas foram sempre bem sucedidas, porque eram bem planeadas

Provavelmente, era eu quem lhe preparava mais judiarias, mas ele sempre nutriu muita consideração por mim.

Se um aluno lhe solicitava algo que ele não autorizava e o aluno apresentava argumentos, ele punha termo à conversa, sempre do mesmo modo:
- Faz o que te mando e conta ao diabo o que sabes!

Usava, segundo a situação, outras frases igualmente “convincentes”:
- Levas uma bofetada que até engoles os dentes da frente”!; “Levas uma sova que te mijas todo!”; “falta pouco para que faças o pino sem apoiar as mãos no chão!”

O homem sofria de hemorróidas! Dizem tratar-se duma complicação altamente dolorosa! “Altamente” encaixa bem no texto! É advérbio que usava a todas as horas.

Muitas vezes, antes de se deitar ouvíamo-lo gemer com dores na casa de banho; enchia o bidé com água fria e assentava lá o traseiro (era o vulgar banho de assento) e ali ficava durante meia hora ou mais, pelo menos até que o frio lhe atenuasse as complicadas dores

Quando se sentia aliviado daquelas dores impertinentes, dirigia-se à camarata. Sentava-se na cama e, por vezes, esta desarticulava-se… por obra e graça de determinado aluno que a “armadilhava”; outras vezes não conseguia estender as pernas, porque um dos lençóis estava cuidadosamente dobrado – Cama à francesa. Ele proferia, logo ali, umas tantas baboseiras e, com a ajuda dum qualquer aluno ainda acordado, rearmava a cama ou estendia o lençol para… dormir o sono dos anjos.

No salão de estudo, sempre que a “crise” (então não havia Troika) apertava, ele estendia o tronco sobre a secretária, mantendo os pés no chão; levantava a cabeça, esbugalhava os olhos grandes, salientes e escuros para ver o que se passava na sala e, com gritos de dor e raiva, mantinha a rapaziada em silêncio; ali permanecia naquela posição caricata durante quase duas horas ameaçando a terra, o mar e o mundo, usando (e abusando) algumas das frase já citadas. À sorrelfa, alguém sussurrava, cautelosamente:
- Foi assim que a Alemanha perdeu a guerr”!

Se, durante uma hora de estudo, um aluno, com uma requisição na mão, lhe pedia para ir à secretaria, ele replicava: -“fora no intervalo”! – Posso pedir um lápis? – “ Pedira no intervalo!”

O Alcides S. Costa e o Leonel C. Nunes, dois cómicos irreverentes (mais cómico o primeiro e mais irreverente o segundo) criaram a seguinte frase, alegando que o Sr. Correia era o autor: - “iria no intervalo, porque agora já não vara!” ele não foi certamente o pai de tal dito: foi invenção daqueles alunos, mas...

Nos primeiros tempos em que esteve no COA, ao domingo à tarde, ele acompanhava os alunos mais novos na visita a uma aldeia próxima; entrava numa tasca e bebia dois copos… os outros já não eram contados - estava embriagado.

O Tirsense estava colocado quase no topo a tabela classificativa da 2ª divisão (correspondia à Divisão de Honra dos dias de hoje); se ganhasse, no estádio Carlos Osório, o terreno da U.D.O, subiria à 1ª divisão. Perdeu! O Sr. Correia encontrou conterrâneos e bebeu uns copos... para afogar as mágoas; chegou enxaropado, cambaleante, ao COA; falava pelos cotovelos:
- A Oliveirense jogou alta e poderosamente; só assim conseguiria vencer a temida e possante equipa de Santo Tirso!

Quando tinha nas veias tanto álcool como sangue (o que a princípio era vulgar) ele cantarolava a seguinte quadra:

Se aquilo que a gente sente
Cá dentro tivesse voz...
Muita gente… toda a gente
Teria pena de nós!

Era um poeta… qual E.A. Poe! Sem Ofensa ao americano... nem ao Sr. Correia

Num dos últimos anos da década de cinquenta entrou para a primária (ou para o 1º ano?) um aluno de cujo nome já não me lembro; sei que era natural de Arrancada do Vouga (região de Águeda); bom conversador (para a idade), simpático, extrovertido e bom argumentador. Tinha uma pecha: todas as noites urinava na cama!

O Sr. Correia tinha o supremo cuidado de o acordar de madrugada mas quase sempre... já era tarde! Ele zurzia-o desalmadamente (creio que chegou a usar cinto dobrado) e obrigava-o, àquela hora, a tomar banho de água fria – autêntica barbaridade! Outra vítima era um miúdo escuro, creio que venezuelano; o Sr. Correia batizou-o de Matateu. Sofreu a bom sofrer mas, pela calada, dava resposta adquada.

Penteava o cabelo para trás com uma risca sensivelmente ao meio. Se durante o dia, o pêlo desalinhava, ele cuspia abundante e “higienicamente”, nas mãos e esfregava-as na cabeça ; de seguida usava o pente para alinhar o cabelo. Era o seu fixador... eficiente e barato!

Podemos dizer, certamente: Paz à sua alma! Que a terra lhe seja leve! E que perdoe as minhas macaquices!

Janeiro de 2013
BT
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 29 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11023: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (34): Exame do 5.º ano, problema de matemática

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11023: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (34): Exame do 5.º ano, problema de matemática

1. Em mensagem do dia 22 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (34)

Exame do 5º ano 
Problema de Matemática

Na prova escrita de Matemática do meu 5º ano, na Álgebra, havia um problema – a questão mais valorizada do exame – com o seguinte enunciado resumido: largado num plano inclinado, que velocidade atinge um carro ao fim do tempo tal e com a aceleração tal?

Determinado examinando, entendeu que aquela questão, devido, provavelmente, a descontrolo do “fazedor” da prova, estaria no local errado… àquela hora. Entendeu que se tratava muito simplesmente de um problema de Física, que, por lapso, aterrara na prova de Matemática.

O aluno, em absoluto, não se lembrou das “sucessões numéricas”. Assim sendo aplicou a fórmula que havia aprendido nas aulas de física: ; creio que a fórmula era mesmo esta; o resultado foi, fisicamente, correto – 1800m/m.

Acabada a prova, os alunos iam saindo para o corredor; como habitualmente o Sr. Almeida, mestre daquela disciplina, encontrava-se no local e a cada um dos seus alunos que aparecia, ia perguntando qual era o resultado do problema.

Chegada a sua vez, o tal aluno respondeu convicto: - 1800 metros por minuto.

- Está certo! Comentou o Sr. Almeida.

O mestre não imaginava qual havida sido a fórmula utilizada – erradamente – para atingir aquela conclusão cujos números eram corretos; de acordo com o velho rifão: atingiu o resultado certo… por linhas tortas.

O sr. Almeida, ao proferir o seu comentário, não imaginou – nem podia – qual havia sido a fórmula usada (erradamente naquele caso) para chegar a uma conclusão que até estava certa. Temos de concluir que a Física também é uma ciência de precisão.

O mestre nunca recebeu, mesmo a posteriori, tal informação; ele poderia reagir – reagiria mesmo – imprevisivelmente.

Mais vale prevenir… nunca se sabe o que podia acontecer em tal situação.

Janeiro 2013
BT

P.S a quem não se apercebeu, informo que o tal examinando... é o autor do texto
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 24 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10994: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (33): A pior turma em cada ano lectivo

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10994: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (33): A pior turma em cada ano lectivo

1. Em mensagem do dia 18 de Janeiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (33)

A pior turma em cada ano letivo

O Sr. Almeida afirmava, frequentemente, que, em cada ano letivo, a turma do 4º ano – turma única àquela época – era sempre a pior de todas do ponto de vista disciplinar, e até, também quanto ao aproveitamento. Estes alunos já não eram os “putos” do 2º ano mas também não eram ainda adultos. Por outro lado, era o 2º ano consecutivo sem exame, o que provocaria uma certa inconsciência e também algum uso e/ou abuso das facilidades com que deparavam.

O meu 4º ano de acordo com as palavras do Sr. Almeida, não fugiu à regra. Não recordo se ainda no 1º período ou se logo no início do segundo, ocorreram umas tantas anomalias; cada uma por si não teria grande importância, até poderia passar quase despercebida; todas juntas, porém, estragaram totalmente o ambiente, já de si muito perturbado.

Primeiro caso:
Talvez no início do ano letivo “alguém” colocou uma “punaise” por baixo do assento da cadeira do professor com o bico ligeiramente saliente na face superior; passados uns meses, sem que ninguém se apercebesse da anomalia, “alguém” terá pressionado mais a dita “punaise” e o bico ficou mais saliente.

No dia seguinte o Dr. Pinto, professor de Inglês (o tal que usava o diapasão para nos ensinar a cantar) sentou-se na cadeira para escrever o sumário; sentiu a picada de uma agulha, naquela parte onde as costas mudam de nome; levantou-se velozmente – parecia ter sido impulsionado por uma forte mola – e averiguou o que lhe tinha provocado aquela dor tão aguda; apercebendo-se que havia ali um “prego fininho”, autenticamente, gritou pelo chefe de turma:
- Cândido! Arranja-me já um martelo!

Assim foi descoberta a primeira anomalia.

Alguns professores queixaram-se que as suas calças apareceram estragadas e só poderia ter sido ali; a Dª Maria Adília foi naquele ano, nossa professora de francês, durante umas semanas, apenas, e teria ali esfiapado algumas saias; o próprio senhor Almeida lamentava ter danificado a sua característica samarra espanhola, também naquela maldosa ou maldita cadeira. Os alfaiates agradeciam! Não consta que algum aluno tenha sido subornado pelos artistas do fabrico de vestuário.

Segundo caso:
Um dia, creio que numa aula de Geografia, o professor Santos fez determinada pergunta à Maria Antónia. Esta aluna era natural de Cesar, filha e neta de “endireitas” (curiosos digo eu) de ortopedia, (espero sinceramente que a Antónia não me leve a mal), prima do nosso colega António Cândido (Fajões por ser natural desta terra) e casou mais tarde, com o médico António O.P. Vasconcelos, também de Cesar; à época ele era também aluno do COA, um pouco mais adiantado que nós.

À pergunta do professor Santos a Antónia respondeu: Sr. Dr. Santos, eu não sei essa matéria porque não assisti à última aula!

O Alcides Costa, um cómico do caraças, ouvindo aquele argumento, logo comentou, parafraseando uma tirada “característica” do Sr. Correia, o prefeito:
- Assistira no intervalo!

A Antónia não terá gostado da piada como se de jocosidade se tratasse, que a tomasse como alvo; fez queixa, creio que à Dª Urraca (que por mero acaso era Idalina) que por sua vez a passou à Direção, mas já deturpada; no percurso, como geralmente acontece, a notícia foi aviltada – a cada conto acrescenta-se sempre um ponto. Muitas vezes, como neste caso, a situação tornava-se muito mais gravosa do que seria a intenção do seu “autor”.

Terceiro caso:
Os alunos daquela turma (todos ou quase) com as “pratas” dos maços de tabaco e/ou dos chocolates elaboraram uma série de “taças” de base larga e aberta onde colocavam papel de sebenta “mastigado”, lançando-as contra o teto da sala que pouco depois estava pejado daqueles objetos. Era uma autêntica porcaria (mascar papel de sebenta), mas na verdade, o teto ficou… enfeitado, para o bem ou para o mal.

A estas juntaram-se mais umas ocorrências de pequena monta; seria fastidioso, e sem interesse, enumerá-las e a memória... já não é o que era. Estes casos “fermentaram” durante uns dias sem que os visados (autores) se apercebessem; o segredo foi sempre a alma do negócio.

Certo dia, depois do jantar o Sr. Almeida ordenou que eu comparecesse na sala onde, habitualmente, ele tomava as refeições, no internato masculino. Fiquei apavorado, pois eu não vislumbrava ter praticado qualquer asneira tão grave que merecesse tal atitude; alem disso era a 1ª vez que tal me acontecia, o que me obrigava a fazer... contas de cabeça.

O Sr. Almeida mandou-me sentar; estávamos sós: ele e eu. O silêncio era... ensurdecedor! O ambiente era pesado... de cortar à faca! Breves considerandos introdutórios e…

1ª Pergunta: 
- Quem colocou a “punaise” na cadeira do professor da sala do 4º ano?
- Eu não sei quem fez isso! Só tomei conhecimento do caso (o mesmo aconteceu com os outros alunos) quando o Dr. Pinto, em altos berros, pediu um martelo. Aquilo já estaria ali há muito tempo sem que ninguém se apercebesse. Já falámos bastante sobre o assunto e ninguém mostrou ter conhecimento do caso. Terá sido ali colocada por alguém estranho à nossa turma ou até mesmo no ano anterior.

Houve mais considerandos, mas sem evolução e sem interesse.

2ª Pergunta:
- Quem disse que a Antónia “já era assistida há muito”?

Aí eu fiquei profundamente surpreendido, pois o Alcides não pronunciara tais palavras nem seria capaz de se afoitar a tanto.

- Ninguém disse isso! O que todos nós ouvimos – e isto é absolutamente verdade – foi o seguinte: “Assistira no intervalo”!
O Alcides pretendeu apenas parodiar, imitando o Sr. Correia que, quase a toda a hora, usa o mais-que-perfeito, em expressões como: “fora no intervalo”, “pedira no intervalo”, fizera no intervalo etc.
O Sr. Santos fez uma pergunta à Antónia e ela respondeu que não sabia, porque “não tinha assistido” à última aula; o Alcides apenas disse: “Assistira no intervalo!” O que contaram ao Sr. Almeida é uma profunda deturpação… talvez até intencional, e malévola o que é inadmissível. Haverá quem tenha prazer em deturpar? Pretende-se apenas denegrir uma imagem que não merece tal tratamento.

3ª Pergunta:
Quem colou no teto da sala aquela quantidade de “pratas”? E como conseguiram ir lá “colá-las”?
- Eu sei como se faz! Já fiz e vi fazer! Naquela sala, não fiz, não ajudei nem vi fazer! Aquilo prepara-se enrolando uma “prata” estrangulando-a no meio, enchendo dum lado com uma pasta que se obtém mascando um bocado de papel de sebenta; comprime-se bem aquela pasta, joga-se com força ao teto e ela fica ali colada, dando aquele efeito. De qualquer modo, não vi ninguém fazer. Tenho a certeza que não foi ninguém da nossa turma.

Tratava-se, neste caso, de uma “mentira dita piedosa”; na verdade todos os rapazes daquela turma colaboraram naquele ato absurdo e nada higiénico. É verdade que cada um tentou colocar no teto mais taças (de boca para baixo) do que o outro. No dia seguinte juntámo-nos todos e eu contei pormenorizadamente a minha conversa com o Sr. Almeida. Se ele chamasse outros alunos, todos ficaram a saber até onde podiam ir.

O Sr. Almeida aceitou (creio eu, pelo menos não falou mais no assunto) o meu depoimento como verdadeiro e “enterrou” os casos… no negro vaso da água do esquecimento.

Na verdade, agindo daquela maneira, nós pretendíamos apenas dar razão ao Sr. Almeida – “a pior turma é sempre a do 4º ano” Dixit

Janeiro de 2013
Saudações colegiais
BT
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10797: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (32): Uma cobra na sala de aula

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10797: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (32): Uma cobra na sala de aula

1. Em mensagem do dia 10 de Dezembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante, desta vez lembrando o seu professor Santos:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (32)

Uma cobra na sala de aula 

Frequentávamos o 4º ano!

A nossa sala de aula ficava à entrada do corredor que se iniciava no recreio dos rapazes, na porta da sineta, e terminava no recreio das moças; era a primeira porta à direita. Aquela sala tinha outra porta, larga e envidraçada, que raramente podíamos utilizar e que dava para o exterior em frente ao velho “bebedouro”, no recreio dos rapazes, próximo do portão principal.

Num fim-de-semana em que fui a casa, apanhei, no campo, à mão, uma enorme cobra descomunal (mediria entre 20 e 30cm de comprimento). Consegui uma caixa de cartão, fiz uns pequenos furos nas faces laterais e na parte superior e guardei lá o referido réptil peçonhento; pelos furos ela podia respirar o suficiente para não morrer asfixiada.

Antes de introduzir a bicha na improvisada prisão, com a minha naifa, cortei-lhe a língua, para que não ferisse alguém que tentasse capturá-la depois de eu a devolver à liberdade em local apropriado.

Na 2.ª feira de manhã tínhamos uma aula com o professor Santos – História ou Geografia. Eu gostava imenso deste professor; respeitava-o muito e admirei-o pela vida fora, pelo seu saber, pela maneira fácil e eficiente como comunicava com os alunos (fazia-se entender perfeitamente o que nem todos conseguiam); era quase o exemplo acabado do “self made man”!

Eu estava na última carteira com o Cândido (vulgo Fajões) na fila ao lado da janela; portanto na esquina diagonalmente oposta ao professor. Quando entendi ser oportuno, abri a “porta” daquela cómoda prisão e a “bicha”, cheirando de novo a liberdade, correu desnorteada pela sala com a cabeça levantada, ameaçando tudo e todos.

Alguém gritou:
- Ai! Uma cobra!

Os alunos levantaram-se, afastando-se daquele monstro que não parava de correr; algumas moças subiram corajosamente para os assentos das carteiras; outras, mais “ousadas” colocaram-se em segurança na parte superior da carteira.

O animalejo continuava a correr procurando insistentemente um qualquer orifício por onde pudesse entrar, recuperando assim a sua “ampla liberdade” – como ainda estava longe o tempo dito das “amplas liberdades.

Antes que o animal desaparecesse, eu perguntei:
- Onde está a cobra?!

Caminhei para ela e, sem dificuldade, recapturei-a e voltei, calmamente, para o meu lugar com a cobra a saracotear na minha mão.

O Dr. Vide havia-nos ensinado como apanhar uma cobra ou um lagarto sem correr perigo de ser picado ou mordido.

Acabada a balbúrdia, todos olhavam insistentemente para mim procurando saber onde eu guardaria aquela cobra; coloquei-a cuidadosamente na “habitação” que eu preparara para ela. Acabou a festa.

Fui talvez o ultimo aluno a sair da sala de aula; o professor Santos, apercebeu-se que eu não trazia a cobra na mão; perguntou que caixa era aquela; não ocultei que se tratava da nova “casa” da cobrinha. Ainda hoje não compreendo por que não fui mimoseado com um par de tabefes… bem merecidos.

 **********

O professor Santos era realmente extraordinário, profundo conhecedor de História e Geografia e extremamente eficiente.

As aulas dele eram divertidíssimas, sem dúvida…, mas aprendíamos. Era muito bom comunicador.

Ele considerava que História ou Geografia sem mapa seria coisa aberrante; quando não havia mapa ele… desenhava-o no quadro:
- “Aqui fica Portugal… a boca do Tejo… os arquinhos de Espanha, a perna da Itália, com a bota, a dar um pontapé na Sicília; junto ao tacão fica o Golfo de Tarento, etc. Depois carregando no giz com força “abria” uma autêntica estrada por onde os Hunos se deslocavam para invadir a velha Europa; - “aí vêm os Hunos… mas em tal parte estava F, à espera deles e deu-lhes na tromba, obrigando-os a retroceder em direção às suas estepes centro-asiáticas”

**********

Corria o nosso 3.º ano! Estudávamos a Grécia. Numa 2.ª feira, poucos alunos teriam estudado convenientemente a lição; como era habitual, na primeira meia hora, o professor Santos fazia perguntas sobre o tema da aula anterior; seguidamente, explicava a matéria para a aula seguinte. Cada aluno que ia sendo chamado pouco ou nada sabia sobre a 2.ª invasão dos persas (guerras médicas) que esbarraram no desfiladeiro das Termópilas onde 300 ousados Espartanos impediram com sucesso (inicial) a passagem de milhares de Persas. O pastor Efialtes (traidor) ensinou-lhes outro caminho e os Espartanos foram trucidados (feitos em postas).

O Ribeirito (Manuel Coutinho Ribeiro ainda hoje só o bigode está a mais, em relação àquela época) não tendo tempo de memorizar o nome do desfiladeiro, respondia apenas: “Termo”…”Termo”… o Professor Santos dando-lhe uma ligeira sapatada na cabeça, acrescentou: “pilas”, pá “pilas”!

************

Já que falamos no Ribeirito… aí vai uma bem” fresquinha” (leia-se recente).
No almoço dos ex-alunos do COA, em 9 de Junho de 2012, em Ul, na antiga estação, o Ribeiro demorou, anormalmente, a escorrer as “castanhas” (vulgo urinar); estava meio mundo à espera de vez para fazer o mesmo; o nosso amigo, prazenteiro, com brilho nos olhos, comentou:
- Ainda não tenho grandes complicações para urinar… mas tenho dificuldade em encontrá-“la”!

É caso para dizer, ri-te, ri-te… o diabo vem pelo caminho

************

Quem saberá explicar o motivo pelo qual as nossas colegas aprendiam razoavelmente bem, a lição de Geografia, mas sentiam grandes dificuldades em localizar, no mapa, a cidade e até o país que acabavam de citar.

Mas era verdade!

O professor Santos perguntava a uma moça: qual é a capital de tal país. A aluna respondia corretamente o nome da cidade… mas sentia-se confusa para a localizar.

Aí, ele gritava:
- Sua galinheira!

Colocava a mão naquela parte onde as costas mudam de nome; levantava-a, juntando as pontas dos dedos, acrescentando jocosamente:
- Cócóró có có… um ovo!

O dedo deve ter uma luz na ponta para guiá-lo até à cidade ou país que citamos.

Sempre que um rapaz falhava uma resposta ele com a mão fazia o gesto de “cortar o pescoço”; simulava pegar no cabelo baixando-se até tocar o solo; passava frente ao nariz fazendo sinal de mau cheiro e colocava-a sobre o tronco, simulando colar o pescoço.
Isto significava:  - cortar o pescoço, pegar pelo cabelo e meter na fossa (ou retrete); como ficava a cheirar mal, colava-a no sitio onde estava.

**********

Um dia a minha mãe enviou-me um cesto com belas cerejas suculentas; enchi os bolsos do casaco e fui para a aula de História (5.º ano), na sala quase em frente à secretaria a qual tinha uma janela e uma porta voltadas para o quintal.

O meu companheiro de carteira era o Arlindo (Escariz); enrolei uma folha de papel em forma de cone (era em embalagens deste género que os merceeiros, da época, nos vendiam uns míseros quinze tostões de café); coloquei-o no buraco do tinteiro, depositando ali os caroços e os pés das cerejas. Nós éramos uns rapazinhos pouco atilados mas tudo fazíamos para ser limpinhos (só não reciclávamos).

Estávamos muito entretidos a saborear displicentemente as deliciosas cerejas, mas muito atentos ao que o professor transmitia…, eis que o Sr. Santos me surpreendeu com a boca … na botija – não, não havia bebida!... apenas cerejas! Por pouco não me escalpou!... mas tenho a certeza que fiquei com menos umas dúzias de aloirados cabelos – castigo mais que merecido! E quando assim é… está tudo dito!
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10765: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (31): Dr. Abel Gandra

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10765: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (31): Dr. Abel Gandra

1. Em mensagem do dia 30 de Novembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas memórias do seu tempo de estudante, desta vez lembrando o seu professor Abel Gandra:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (31)

Dr. Abel Gandra

O insigne mestre, Dr. Abel Gandra, era natural de Moçambique, região de Lourenço Marques, hoje Maputo; o pai era europeu e a mãe africana, de etnia Landim.
Era um professor extremamente culto; dava aulas e/ou explicações sobre todas ou quase todas as cadeiras do 7º ano e de todas as alíneas daquela época. Explicava cada matéria com precisão e saber, fazendo-se entender perfeitamente pelos alunos, o que nem sempre acontece. Era um grande psicólogo; a sua maior pecha era não ser tão bom disciplinador como era ensinador: não conseguia dar um “murro em cima da mesa”, sempre que um aluno descarrilava no seu comportamento durante a aula, pondo em causa o bom aproveitamento dos colegas bem comportados e predispostos a cultivar-se.

Perante uma turma de alunos disciplinados com vontade firme de assimilar sempre mais e mais, ele era uma máquina bem lubrificada a ensinar, a elogiar, a encaminhar, a incentivar os alunos para que conseguissem ir sempre mais além e mais acima.

Este nosso ilustre mestre concluiu o ensino liceal em Moçambique; veio de seguida para a chamada Metrópole, a mãe do Império, para frequentar os estudos superiores. Como cadeira opcional, creio que no Instituto dos Estudos Ultramarinos, escolheu o dialeto Landim, sem nunca manifestar que era oriundo dessa etnia. Na prova oral, o examinador cumprimentou-o em andim; ele ”gaguejou“ propositadamente, um pouco como se tentasse escolher cuidadosamente as palavras uma a uma. Aí o professor entrou a pés juntos (ou de “chancas”)! Perante uma nova resposta desenvolta e precisa do examinando, o mestre perguntou-lhe:
- De que raça provém?
- Landim! - Respondeu o jovem Gandra, secamente.
- Acabou o seu exame! Pode seguir. - Concluiu o avaliador.

Provavelmente terá sido neste exame que adquiriu aquele gosto especial de ver um aluno “enrolar” (ou tentar) um professor! Na universidade tornou-se um “profissional do estudo”: concluia um curso e iniciava logo outro.

O pai não gostou! Saturou-se de gastar tanto dinheiro nos estudos sem fim de seu filho e decidiu fechar definitivamente a torneira.

Vendo-se sem dinheiro para “alimentar” seu vício… de estudar, avançou como voluntário para a Guerra Civil de Espanha. Fechadas as portas da guerra, voltou à Pátria e começou a ganhar a vida no ensino, tendo sido colocado no Liceu Camões, em Lisboa.

Um dia, num exame oral história, do 7º ano, ele fazia parte do júri mas não era o examinador. Apareceu um aluno que fez uma prova “bombástica”, “anormal”, (anormal para cima, pela positiva, como afirmava jocosamente o saudoso Leonel Castro Nunes).
O examinador perguntou aos colegas de júri:
- Que nota hei-de atribuir a este aluno?

O Dr. Abel Gandra respondeu curto e grosso:
- Vinte! Não há mais!
-Vinte é para o professor! Comentou o examinador.
- E se o aluno souber mais que o mestre?! - Replicou o Dr. Gandra

Não sei qual foi a nota final atribuída àquela dita “bisarma” mas o mote estava lançado.

Um dia teve conhecimento que a Penitenciária de Lisboa pedia professores para ensinar naquele Estabelecimento Prisional; ele concorreu e foi selecionado. Combinaram a matéria a lecionar, o salário e o horário a praticar. No dia e hora aprazados ele compareceu no local para ministrar a sua primeira aula a presidiários. Pretenderam, logo à chegada, colocar-lhe à volta do cós das calças um cinturão com uma pistola pendurada e verdadeiramente municiada; ele recusou, terminantemente, dar aulas armado.
Alegaram que era altamente perigoso andar desarmado entre prisioneiros tão perigosos. Não se deixou convencer e iniciou o seu novo trabalho… sem arma à cintura..

O pessoal da segurança deve (?) ter-se colocado, estrategicamente, espingarda em riste, de modo a poder proteger eficientemente o mestre em caso de emergência.
Vale mais prevenir… que remediar – segurança acima de tudo!
Nada de mal aconteceu!

Passados uns meses ele comunicou a um dos encarcerados que gostaria de conversar com ele no fim da aula. No momento oportuno o mestre perguntou:
- O que é que o senhor mais gostaria que lhe acontecesse nesta época de Natal que se aproxima?
- O que eu mais adorava, na vida, Sr. Doutor, era passar a noite de Natal com a minha mulher e os meus filhos!

No fim de mais uma aula, na ante-véspera de Natal, chamou junto de si o mesmo prisioneiro. Conversaram durante largos minutos até que os mestre lhe transmitiu, com pompa e circunstância:
- O senhor cai trocar de roupa comigo; seguidamente sai com os meus livros debaixo do braço e vai passar a noite de Natal com a sua família.

No dia X, antes da hora de início da aula, o senhor entra calmamemnte na Penitenciária, com a minha roupa vestida e os mesmos livros debaixo do braço como se viesse dar a “sua aula”. Tudo vai correr bem, espero!
- Esteja descansado, doutor, que eu cumprirei com a minha parte da melhor maneira possível! Acredite! Só tenho uma palavra! Nunca “roí a corda”!

O prisioneiro saiu da sala, passou pelos guardas sem qualquer complicação… e reentrou no dia e hora aprazados. Aconteceu tudo como fora concebido!
Encarcerado pode ser (terá sido) criminoso e até perigoso… mas este não deixou de ser honesto, cumpridor e reconhecido!

O Dr. Gamba foi contratado para dar aulas no C.O.A. à volta do ano de 1959. Foi meu professor de História no 7º ano; a turma era pequena e todos o admirávamos muito. Éramos todos bons rapazes! Assim tinha de ser!

Uma ou duas vezes por semana ele perguntava-nos:
- Amanhã, a que horas?

Ele pretendia saber a que horas da “madrugada” estávamos disponíveis para ele dar mais uma longa aula extra a toda a turma; normalmente sugeríamos que estaríamos prontos às 6 horas. Àquela hora ele lá estava, ledo e fagueiro. Juntávamo-nos no terraço do ginásio e andávamos ali ás voltas durante cerca de 3 horas. Ele explicava a matéria, e fazia perguntas; e assim se aprendia história.
Ele afirmava que nós (mestre e alunos) éramos os peripatéticos do século XX! Reeditávamos os “passeios” de Pitágoras e seus aprendizes no jardim de Academo, proximo de Atenas
Cumpre informar que estas aulas não eram remuneradas: nem nós nem pelo Colégio; pagavam o que quer que fosse por este trabalho; pelo menos para nós ele trabalhava gratuitamente.

Numa das primeiras aulas, informámos o mestre que nos exames do ano anterior, o Dr. José Bento, professor do Liceu de Aveiro, havia “enrolado” todos os examinandos do C.O.A. com determinado tipo de perguntassempre idênticas: - Quais os costumes dos Lusitanos? Cortavam o cabelo? O que comiam? De que se ocupavam no dia-a-dia?
Fazia o mesmo tipo de inquirição sobre os Gregos, os Romanos e outros povos. Ninguém soube responder a tais perguntas, cujo conteúdo não constava dos calhamaços por onde os alunos tinham estudado. O Dr. Abel Gandra colocou logo à nossa disposição uns volumes da História Universal da autoria do francês Mâle, onde o Dr. José Bento “teria bebido” aquele tipo de informação .

Lembro-me que acerca dos costumes dos gregos o autor advogava que eles “costumavam repousar e conversar, deitados sobre uma espécie de cama/cadeira, chamado de triclínio, apoiados sobre o cotovelo esquerdo, comendo bolos de cevada/aveia temperados com cebola e alho e saboreando uma bebida “fermentada” que estaria, provavelmente, na origem da cerveja”.

O Dr. José Bento veio de novo ao C.O.A. examinar os alunos da nossa turma de História. O primeiro a ser interrogado foi o Ângelo Carvalho – creio que era um ex-seminarista e que entrou no C.O.A. apenas no 7º ano. O examinador iniciou o interrogatório, tal como no ano anterior:
- Fale-me sobre os costumes dos Romanos!

O Ângelo “desbobinou” quase uma página do Mâle; o professor mudou de assunto e não fez tais perguntas a nenhum dos outros alunos, mas algo havia de acontecer para pôr em pé os já poucos cabelos do Dr. José Bento.

O Dr. Gandra incitava-nos imenso; apregoava que eu “estava obrigado” a “esticar” aquele examinador.
Quando respondíamos a uma pergunta do Dr. José Bento “com palavras da nossa lavra” mesmo que devidamente enquadradas, normalmente ele replicava: “no livro (único) não está bem assim!

Ele também gostava que nós aprendêssemos a lição “de carreirinha”. Mas no 7º ano não havia livro único! Que falta - digo eu - ele (livro) faz nestes tempos conturbados imensa falta para tonar os calhamaços mais baratos e o ensino mais uniforme em todas as escolas!

Era permitido estudar pelas obras de um ou vários autores e podíamos justificar qualquer resposta nossa apresentando a versão de determinado mestre. Quando fui chamado para a prova oral, logo o nosso Abel Gandra colocou “descaradamente” sobre a carteira que se encontrava atrás de mim, vários “alfarrábios” de História para que, com eles, eu pudesse (abalizadamente), fundamentar qualquer divergência que, casualmente, surgisse.

1ª Pergunta: - Como foram colonizadas as ilhas do Atlântico?
Ele não permitiu que eu dissertasse sobre o tema, exigindo que eu respondesse diretamente à pergunta.
Assim teve de ser! - As Ilhas dos Açores e da Madeira foram colonizadas por meio de capitânias.
- Esse sistema foi utilizado noutra parte.
- Mais tarde foi abundantemente, utilizado no Brasil, mas foi primeiramente experimentado nas Ilhas do Atlântico que foram divididas em capitanias e confiadas aos descobridores.

Passou à frente com nova pergunta: - Quais eram as classes sociais em Atenas?
- Segundo uns autores: Eupátridas, Zeugitas e Tetas; outros incluem também os Hipeis; segundo outros ainda, temos: Pentacosiomedimnienses , Triacosiomedimnienses, Zeugitas e Tetas.

De seguida pretendi explicar o que significava cada um destes “palavrões” mas ele não permitiu; passou a outra pergunta: - Quem foram os representantes na Conferência de Berlim?
- Citei uns três ou quatro nomes e acrescentei: - “e, voltando a página, o cardeal Bembo.”
- Acabou o seu exame! Replicou o Dr. José Bento

Ao fundo da sala (aquela onde o Arqº José Alberto (Betinho) filho segundo dos donos do C. O.A nos mostrou o vídeo, interesantissímo sobre o Colégio, no dia 9 de Junhos de 2012), o Dr. Gandra delirava… por todos os poros; desfez-se em elogios. “É o corolário dum longo mas eficaz ano de trabalho árduo”, apregoava ele eufórico.
Nunca o vi tão exuberante! Tão entusiasmado.

O sr. Almeida transportava, os professores de Aveiro para o Colégio e vice-versa, no seu ”boca de sapo”; durante a viagem, o Dr. José Bento contou ao nosso Diretor:
- O nº 7, Belmiro, sabia pouco de Filosofia e pouco também de Organização Política… mas sabe muito de História!

O dr. Gandra foi também nosso professor de História da Literatura; explicava-nos eficientemente qualquer parte daquela disciplina um tanto diversificada e complicada.
Antes do início duma aula conversávamos displicentemente sobre religiões; o Dr. Gandra pretendeu ser apenas mediador ou mesmo apaziguador (quando o ambiente aquecia “lançava” água na fervura); hoje chamar-lhe-íamos moderador.
Ouviu opiniões mais ou menos diversas e até, certamente disparatadas; a dado momento pôs termo à conversa do seguinte modo:
- Todas as religiões são boas! Nenhuma manda praticar o mal! Mas também são muito complexas! Umas mais que outras prestam-se a interpretações mais díspares! Uns prosélitos são mais acérrimos, mais intransigentes (hoje fundamentalistas) mas, seja como for, somos levados a concluir, sabiamente, que “não há religião melhor que a nossa!”

Mais tarde soubemos que ele, afinal, não era católico, como todos os alunos ali presentes; nunca nos manifestou que religião professava!

Um dia ordenou que escrevêssemos um texto (não uma curta redação como acontecia em anos anteriores) sobre o seguinte tema: “ Cada dia que passa é um passo para a morte!”

Quase todos os alunos emitiram opiniões mais ou menos diversas, mas todos concluíam que era difícil, complicadíssimo, trágico até, escrever sobre tema tão verdadeiro mas incomum e incómodo.

Perante uma objeção mais arrojada do Tó Zé Almeida (o filho mais velho dos diretores), o Dr. Gandra insistiu na veracidade do tema.
O Tó Zé redarguiu:
- Isso nem sempre é verdade, Sr. Doutor!
- Oh António José! Não me diga que hoje o senhor não está mais perto da morte do que ontem?!
- Eu estarei, certamente! Mas continuo a defender que isso nem sempre é verdade!
- Não entendo o seu raciocínio, mas… explique-se!
- Ontem Caryl Chessman estava mais perto da morte que hoje!

Obs: Caryl Chessman era um presumido criminoso (assassino), o “lanterna vermelha”, que havia sido condenado à morte pela Justiça Americana; nunca aceitou ter sido tal personagem (lanterna vermelha) e conseguiu adiar a execução algumas vezes. Entretanto, enquanto aguardava a execução ou a comutação da pena, escreveu (ou alguém o terá feito por si) a obra: “2455 – Cela da Morte”.

Ouvindo tal justificação, o Dr. Gandra ficou pasmado, mudou de cor (passou a ser branco por breves instantes) mas logo recuperou e encontrou a seguinte saída salvadora:
- Na verdade, somos levados a aceitar que, não há regra sem exceção!

O Dr. Abel Gandra terá sido, em meu modesto entendimento, um dos melhores – talvez mesmo o melhor e mais completo – professor que passou pelo COA, no meu tempo.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10692: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (30): Colégio de Oliveira de Azeméis (3) (Belmiro Tavares)

domingo, 18 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10692: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (30): Colégio de Oliveira de Azeméis (3): Parte II (2)

1. Em mensagem do dia 13 de Novembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos a segunda parte das suas aventuras no Colégio de Oliveira de Azeméis de que se publica hoje o segundo poste:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (30) 

Colégio de Oliveira de Azeméis C.O.A.

Parte II (2)

Visita “permitida” ao internato feminino 

Era um domingo, ao fim da manhã! Eu frequentava o 7º ano; estávamos num período, sempre complicado, entre as escritas e as orais. Depois da missa e de seguida a uma breve passagem pelo jardim, os alunos internos estavam agarrados aos livros, no salão de estudo. Solicitei ao Sr. Correia que me autorizasse estudar no recreio – pretensão logo autorizada! Ele sancionava tudo o que eu, respeitosamente, lhe pedia!

Eu sabia que os diretores não estavam no colégio. A srª Dª Maria Adília tinha ido a Aveiro acompanhar uma aluna, filha de um juiz que vivera do outro lado da avenida; ela ia juntar-se ao pai que, entretanto fora colocado em Lisboa. Soube há dias que aquela aluna veio a casar com um tal Basílio Horta, que todos, certamente, conhecem.

A hora era propícia! Atravessei o quintal e fiz uma visita ao recreio das alunas. Encontrei a perfeita, menina Rosa; dois dedos de conversa… e as portas do internato foram-me franqueadas. Autêntica anedota! De seguida, fui autorizado a subir às camaratas. As “pequenas” nem acreditavam no que viam. Conversámos a esmo, descontraidamente, durante algum tempo! Só generalidades e… culatras! Apercebi-me que no quintal do vizinho (creio que pertencia à família Guedes, donos da ourivesaria) havia uma pereira cujas peras atraentes chamavam por mim; saltei o muro e trouxe boa quantidade de suculentos frutos e saboreámo-los irmãmente.

Ninguém viu! Quem acreditaria que as educadas meninas do COA ousassem saltar o muro para roubar fruta? Que disparate! Eis que, na porta de entrada do internato feminino, ouvimos alguém chamar, altos brados, pela menina Rosa! Era a voz da Srª Dª Adília que entretanto regressara de Aveiro. A perfeita loira aconselhou que me escondesse e desceu logo ao encontro da Diretora. Esconder-me? Nem pensar! Passei para a varanda (a mesma onde tempos antes as meninas se refugiaram aquando do “assalto” ao internato) pendurei-me nas grades e saltei para o quintal; corri em direção do muro que o separava do nosso recreio, passei por cima e disse para comigo: desta já e safaste! Mas cuidado! O teu anjo da guarda, um dia, pode cochilar!


A “fuga” do 5º ano 

Em época de exames, entre as escritas e a saída das notas, os alunos andavam, regra geral, muito nervosos… em pulgas. Eu estava no 7º ano! Saturado de estar no salão de estudo, sem saber bem o que fazer, pedi ao Sr. Correia autorização para dar, mais uma vez, uma volta pela vila; era essencial mudar de ares e ver pessoas diferentes, acima de tudo, sem livros na mão. Ele passou-me logo a chave do portão do jardim que separava o internato masculino da avenida. Única recomendação já minha velha conhecida:
- Cautela para que o Senhor Almeida não te apanhe!
- Eu sei onde ele está! Na pior das hipóteses eu saltei o muro!

Quando cheguei ao jardim da vila apercebi-me que muitos alunos do 5º ano corriam, em puro desnorte, sem saber bem para onde nem porquê. Nenhum sabia aproveitar convenientemente, aqueles momentos de liberdade! Tinham saltado os muros do colégio mais pelo prazer efémero de infringir as regras, do que por qualquer outro motivo; chegados à rua, não sabiam como aproveitar o tempo. Ao ver aquele triste “espetáculo”, pensei logo nas funestas consequências que poderiam advir daquela atitude coletiva e desconexa.

Voltei ao Colégio e fiquei a estudar no terraço do ginásio. Apareceu o Sr. Almeida! Procurava os alunos do 5º ano para ministrar mais uma aula de Matemática. Perguntou-me se eu sabia por onde andava aquela rapaziada. - Há cerca de meia hora - respondi – uns tantos alunos estavam no salão de estudo! Outros andavam por aí! Mas nenhum aluno do 5º ano se encontrava intramuros! O diretor chamou o perfeito e, sem delongas, sentenciou, decidido e furioso:
- Se algum aluno do 5º ano entrar no Colégio sem ser acompanhado pelo pai ou pelo encarregado de educação, o senhor pegue logo nas suas malas e saia!

Costumava dizer-se: “o Sr. Almeida não brinca em serviço”. Decisão curta e grossa! Alguém levou aquela nova severa e preocupante aos “fugitivos”. Logo, os alunos em pequenos grupos, começaram a abeirar-se dos muros; o Sr. Correia, qual cão de fila, vigiava atentamente tudo e a todos ia transmitindo a ordem irrevogável da direção:
- Só podem entrar acompanhados pelos pais ou encarregados de educação!

Esperaram pela hora do jantar… mas a ordem fatídica não foi alterada. Pensaram que às 22 horas, hora de recolher às camaratas, seriam autorizados a entrar, mesmo que levando alguns açoites. Mas as contas saíram furadas, mais uma vez; o Sr. Almeida continuou implacável. O Karl Eberl, natural de Angola, como atrás foi referido, foi o único autorizado a reentrar no colégio… porque o Sr. Almeida era seu encarregado de educação. Constou que alguns dos desertores dormiram nos bancos do jardim; outros pediram agasalho aos colegas que viviam na vila.

No dia seguinte, pela manhã, os alunos começaram a entrar no Colégio… acompanhados pelos pais que ali se deslocaram para esse fim. Constou na época que apenas o pai do Álvaro Oliveira, natural de Cesar, barafustou (discutiu) seriamente com o Diretor, lamentando e repudiando aquela decisão tão drástica. Tudo acabou bem… sem complicações maiores, principalmente em relação aos exames.


A equipa de “Económicas” – futebol 

No ano letivo de 1959/60 (ou terá sido no ano seguinte?) organizou-se um célebre campeonato interno de futebol entre os alunos do 5º, 6º e 7º ano. Havia três equipas do 5º ano, duas do 6º ano e três do 7º ano. Uma das equipas do 7º ano incluía apenas alunos de Direito, Germânicas e Economia; era sobejamente conhecida como a equipe de “Económicas”. Na verdade éramos económicos (parcos) em qualidade e habilidade mas nós não “economizávamos” os pontapés e pisadelas nos adversários; o lema dos nossos defesas (principalmente) era: “só pode passar um: o jogador ou a bola”; os dois nunca!

No nosso grupo apenas dois “sabiam jogar” à bola: o Ameixieira, bom guarda-redes (o melhor do campeonato), ex-seminarista, mais velho que os outros (já tinha cumprido o serviço militar) e o J.M. Frias Mendes, ex-júnior da Académica e também já tinha cumprido o serviço militar; os restantes elementos da equipa (Armando Figueiredo, Castanheira, Belmiro e havia outro que não recordo o nome) eram apenas os “sarrafeiros, autênticos toscos, rebenta canelas”!

A equipe do 5ºA, a mais temida, era constituída por jovens muito habilidosos, especialmente o Poças que era um malabarista da bola, um “brinca na areia” e dono de um pontapé fortíssimo e normalmente bem colocado. Jogava-se ali uma espécie de futebol de onze (as mesmas regras) mas apenas com cinco ou seis jogadores; o “campo” era a cobertura do ginásio que não comportava mais jogadores. O último jogo daquele campeonato disputadíssimo, ia ser discutido entre o 5º A e “Económicas” e decidia-se ali o vencedor do certame – os campeões colegiais. À equipa de Económicas bastava o empate – tínhamos mais um ponto que eles – mas o 5ºA era um “osso duro de roer”, tremendamente duro; mas nós os rijos, valentes, ousados, corajosos, aguerridos – podem inventar outros atributos dentro desta linha de pensamento – jogávamos com um amor imenso pela nossa camisola e isso fazia diferença.

Mas camisola não havia! Jogávamos de camisa, calças e… botas! No dia aprazado, o nosso goleiro não compareceu – e que falta que ele nos fazia! – e só havia um suplente se jogássemos cinco contra cinco. Decidiu-se que o lateral direito (eu) ocuparia o lugar do Ameixieira. Embora nos bastasse o empate para erguermos a “taça”, a nossa tarefa era enorme, não só pela falta do guardião titular (era o único) mas também porque o adversário merecia todo o nosso respeito – mas não subserviência. Mesmo desfalcados fomos aguentando o jogo sem golos.

A tática escolhida visava economia de esforços: atacavam todos… sem descurar a defesa! Esta tática veio a ser explanada e aplicada no Boavista, pelo Jaime Pacheco: todos ao ataque… cá atrás. Quando já aguardávamos ansiosamente o toque salvador da sineta que marcava o início das aulas (neste caso também o fim do jogo) eis que árbitro (um ladrão desavergonhado, um filho da… mãe dele, subornado, bandido e outros atributos que não cito aqui para não abandalhar, ainda mais, o ambiente) assinalou uma grande penalidade contra a equipa de Económicas… sem respeito algum pela economia (tal como aconteceu por cá em tempos recentes).

Tratava-se, apenas, de um ligeiro toque de “mão na bola” inofensivo, involuntário, sem consequências (a não ser a famigerada grande penalidade)… mas a decisão do árbitro não se alterou. Cumpre informar os hipotéticos leitores, aqui e agora, que nos nossos jogos não havia árbitro – os próprios jogadores, a bem ou a mal, decidiam se era falta ou não; por vezes pedia-se a opinião da assistência. Portanto não houve qualquer insulto ao árbitro… porque não havia! Informo, também que não havia nem grande nem pequena área – decidia-se a olho; o centro do terreno ficava na junta de dilatação do terraço. As balizas não tinham travessão; a altura da baliza variava segundo a altura do goleiro.

Chegou a hora fatídica da marcação do penalti contra a “Economia”; um simples golo naquele momento dava o título ao 5º A. O Poças, o melhor dos adversários, já tinha jogado nos juvenis do Porto, mas foi “emprestado” ao 5º A, ia ser o carrasco. Apavorado, eu estava desamparado naquela baliza que ficava na vedação do lado do quintal do Arq. Gaspar. O Poças chutou a meia altura, com força mas quase à figura. Eu meti o pé direito à bola (o esquerdo servia apenas para caminhar e “pisar” o adversário); para jogar era totalmente cego e inábil) com tal gana e coragem que a bola sobrevoou o “estádio” anichando-se na baliza contrária. Feito inédito!

Na defesa de uma grande penalidade, marcar na baliza do adversário é coisa do outro mundo! Muito se discutiu se o golo era válido; este caso não estava previsto nos alfarrábios da bola… mas à equipa de “Económicas” pouco interessava, se era golo a sério ou não. O empate já era suficiente e, acabado o jogo, já ninguém nos tirava o título de campeões – só o título! Depois de alargada discussão inútil entre os nossos “sábios da bola” concluiu-se que aquele golo, quase fantasmagórico, nunca antes visto, era mesmo válido… porque o “guardião não tocou na bola com a mão”. Foi um acontecimento inédito, invulgar! Mas fomos campeões! Algum de vós já marcou um golo assim? Duvido! (olha a modéstia!) só um predestinado da bola – como eu, claro – podia ser o autor de tal façanha! Lamenta-se que não haja sequer uma fotografia! E a televisão chegou tarde de mais!


A Dr.ª Celina

A professora de inglês e alemão, a Dr.ª Celina era natural da Covilhã, filha de um industrial de lanifícios, era jovem, simpática, boa mestra, acessível e divertida. Naquele ano os finalistas organizaram um sarau; o programa era variado, longo e interessante; preparámos sátiras a alguns professores e não só como convinha. A Dr.ª Celina não escapou, mas ela até colaborou emprestando o seu casaco comprido, muito característico em tons de vermelho e branco (mais aquele do que este) que ela usava durante grande parte do ano. O Castro Lopes (José Manuel) que agora vive no Canadá, muito bem casado com a colega Maria do Céu (Micéu), era o irmão mais velho e de uma série de oito irmãos que frequentaram o Colégio, foi encarregado deste escárnio. Vestiu o casaco emprestado pela professora visada, sentou-se muito à vontade na cadeira atrás da secretária (uma mesa vulgar sem proteção na frente baixa) e voltado para o público iniciou o seu monólogo em inglês “macarrónico”:
- Oh Covilha city! Covilha city! (O Zé espreguiçava-se e bocejava assiduamente) -There is no other city like Covilha!

Aconteceu que o Zé com toda a exuberância dramática e naturalidade esqueceu-se que naquele momento não usava calças e que a secretária permitia que lhe vissem longamente as pernas; estava tão entusiasmado que até mostrou as cuecas. Creio bem que esta amostragem não foi intencional… mas aconteceu! Não fazia parte do programa. A drª Celina, um tanto incrédula, assistia àquela cena com o noivo a seu lado. Constou que ele não teria gostado daquela brincadeira – falta de sensibilidade ou sensibilidade em demasia; os extremos tocam-se! Mas o namoro continuou e cerca de cinco anos mais tarde o então já marido da drª Celina trabalhava em Sever do Vouga numa chamada Experiência Agrícola patrocinada pela Shell. Ela além de continuar a lecionar no COA, creio que dava aulas também no colégio de Sever do Vouga.

Um dia, já em 1966, após a minha chegada da Guiné, encontrei aquela mestra na vila; estava sentada no carro, de porta aberta e os pés assentes no asfalto. Fui logo ao seu encontro e cumprimentei-a com muito respeito, como ela merecia; conversávamos havia uns minutos quando ela admirada, comentou:
- Mas você caminha normalmente!
- E então… não deveria caminhar com normalidade?
- Então… não lhe amputaram uma perna?! Isso foi voz corrente em Oliveira! E não só!

Eu puxei as calças um pouco para cima, exibindo as tíbias e esclareci:
-Como vê, são iguais, são ambas de origem e são minhas há 26 anos.

Ela acrescentou que no COA correra a notícia – agora boato - que me havia sido amputada uma perna devido a ferimentos, em combate, na Guiné. Soube que na mesma época constou – só boato, Graças a Deus – que eu tinha sido morto em combate. Esta inventiva foi da autoria involuntária de uma aluna do COA, natural de Sever do Vouga (irmã da Dirce e da Manuela Bastos). Em Dezembro de 1965 foi amplamente noticiado na rádio e na TV – então canal único – que eu havia sido galardoado com o Prémio Governador da Guiné, por feitos em combate, e em consequência viria passar o Natal a casa com a família. Ela ouviu a notícia, só a parte final, apercebeu-se do meu nome e Guiné; depreendeu logo que, tratando-se daquele “palco” só poderia ser por morte ou – que bom! – No mínimo uma amputação.

No Verão desse ano, encontrei o Arlindo (Escariz) em Espinho. Ao vê-lo gritei pelo seu nome, e caminhei na sua direção. Ele, assustado, começou a recuar e gaguejando, exclamou:
- És tu, pá? Mas… tu não morreste na guerra?!

Assim se desfez mais um boato.


Curto-circuito no internato 

Tirar o corpo da cama às 6h30 da “madrugada” em noites de breu, frio e chuva era um sacrifício enorme. O Sr. Correia entrava esbaforido em cada uma das três camaratas (naquela altura ainda não havia sido construído o ultimo piso de camaratas), acendia as luzes, batia as palmas, acordando todos os alunos.

Um dia, alguém desapertou as lâmpadas de uma camarata; além disso prendeu um cordel entre duas camas. Vendo que não havia luz, apenas naquela camarata, o perfeito entrou decidido no corredor entre as duas fiadas de camas para apertar as lâmpadas; tropeçou no barbante (a armadilha funcionou devidamente), reapertou as lâmpadas e… fez-se luz! Pouco depois, enquanto se barbeava, o sr. Correia comentava furioso:
- Eu magoei-me! Mas se me aleijava…, alguém já teria engolido os dentes da frente!

Se à hora da “alvorada” não havia luz podíamos dormir descansadamente sem que o perfeito nos incomodasse até que fosse possível ler com luz natural. Tornava-se, pois, imperioso provocar a falta de eletricidade, de vez em quando, para que não fossemos obrigados a levantar tão cedo. Um aluno (adivinhem quem!) retirou uma lâmpada incandescente do respetivo suporte, colocou uma moeda de 20 centavos (semelhante à atual 2 cêntimos) sobre a dita lâmpada, enroscou-a cuidadosamente provocando de imediato um curto-circuito (contacto entre os dois polos); o internato ficou às escuras e dormimos até mais tarde.

No internato só havia um quadro elétrico no rés-do-chão, portanto incessível ao perfeito. Isto foi acontecendo com certa frequência e o aventureiro (amigo dos alunos internos) nunca foi “apanhado”.


O tremoço… é uma arma! 

Como atrás se afirmou, no COA, naquele tempo, havia apenas uma turma por cada ano; no meu 5º ano, creio que pela primeira vez, fomos divididos em duas turmas mas, se bem me recordo, tal não aconteceu em todas as disciplinas. A Drª Maria José Mourão (irmã de um aluno) era professora de inglês de uma das turmas, a minha. Ao sábado, segundo o horário, tínhamos inglês às 9:00 horas. Ela combinou com a sua turma que ao sábado (quase todos) teríamos prova escrita das 8:00 horas às 9:50 horas.

Para os alunos internos não havia complicação; os externos teriam de fazer de tudo para chegar mais cedo ao Colégio, nesse dia. Ninguém arranjou desculpas incoerentes (esfarrapadas) até porque a professora, excelente docente, ótima educadora, não cobrava essa hora nem aos alunos nem ao Colégio. Imagina isto nos tempos que correm! Impossível! Às 8 horas, os internos comunicavam ao perfeito – o velho Correia – que tínhamos ponto de inglês e seguiam para a aula.

De vez em quando, havia um sábado em que não havia prova escrita, mas os internos por força do hábito, procediam do mesmo modo. Como o portão estava aberto até às 9 horas, nesses dias, os alunos aproveitavam para mudar de ares – lavar os lhos – foram dar uma volta pela vila. Alguns houveram por bem dar uma volta pelo mercado (praça) que, tal como hoje, ficava no topo norte do jardim central da povoação, ou praça José da Costa (creio que esse nome é recente). Um desses alunos comprou 50 centavos de tremoços – uma quantidade maluca!... um saco de tremoços e entretanto regressou ao Colégio.

No último tempo da manhã desse sábado, o 5º ano – turma única – tínhamos aula de Português, disciplina ministrada pelo Dr. Maurício; era o 1º ano que lecionava no COA. No dia da apresentação a esta turma, o Dr. Maurício entre outras coisas correntes (generalidades e culatras), informou, mais ou menos nestes termos:
- “Tenham cautela comigo, porque eu sou mau! O meu próprio nome diz que eu sou mau!”

Refastelado na sua carteira, ao lado do Escariz, na última fila, junto à janela com vista para o quintal, um aluno comentou divertidamente: - o “gajo” (desculpem o calão) chama-se Maurício? Não pode ser outro o seu nome? E não é que acertei? Retomemos o fio da meada!

Nesta altura do ano, o Dr. Maurício ensinava-nos a interpretar “Os Lusíadas”; nós entendíamos que ele inventava uns tantos complementos circunstanciais. Nós até “ajudávamos” nesta ideia, publicitando que ele teria dito que, na expressão: “a terra é lavrada pela charrua”, este utensílio era o “complemento circunstancial de ferramenta” – brincadeira nossa – que foi utilizada no sarau como sendo da sua autoria – em verdade não aconteceu! Reconheço, apesar de tudo, que se ainda sei interpretar cabalmente aquela obra-prima da nossa Literatura, e se adoro lê-la, porque amo o que é genuinamente português, ao Dr. Maurício o devo!

Quando parti para a Guiné, para uma comissão de dois anos, levei comigo apenas dois dicionários de alemão – porque me correspondia com uma garota alemã – e Os Lusíadas . durante anos, esta obra insigne foi o meu livro de cabeceira.

De pé, ao lado da secretária, o Dr. Maurício, ensinava-nos a interpretar Os Lusíadas. Foi quando um dos alunos, o tal que comprou os tremoços, começou a bombardear as alunas, disparando (comprimindo) aqueles projéteis. Depois de vários disparos… houve azar! Um dos tremoços atingiu o professor na cabeça (má… ou boa pontaria?). O tremoço de seguida caiu para o livro que o professor segurava na mão, rolou, depois sobre a secretária até cair desamparado no estrado – tremoço endiabrado!

O Dr. Maurício apenas terá comentado: “no fim da lição conversamos!”

O prevaricador esperou que todos os alunos saíssem para, a sós, se desculpar perante o mestre. Aproximou-se cabisbaixo, pesaroso (pelo menos na aparência) e apresentou as suas desculpas “sinceras” pelo sucedido. Alegou que não era sua intenção agredi-lo; apenas pretendia alvejar, com respeito, as alunas e sem qualquer indício de maldade. O professor respondeu secamente: “ é algo que não posso desculpar! Tenho de participar a ocorrência ao Sr. Almeida”. - “Se não pode desculpar” – respondeu o aluno – “nada mais tenho a alegar em minha defesa; já cumpri a minha obrigação”.

Na verdade, ele cumpriu com a promessa, informado o diretor. O Sr. Almeida, encontrando o faltoso no corredor de acesso à secretaria, perguntou-lhe pelo sucedido. - Eu já expliquei ao Dr. Maurício como tudo aconteceu e apresentei as minhas desculpas sinceras – respondeu o aluno. Decisão imediata do sr. António Almeida:
-Isso não é suficiente; amanhã, domingo, não sais do Colégio!

Acontece que o aluno já estava autorizado a ir passar o fim-de-semana à “santa terrinha”, não sofrendo assim, qualquer punição. Claro que o Sr. Almeida não se deve ter apercebido daquela situação; caso contrário teria agido de outro modo. Quem saberá como?!

O Dr. Maurício… chegou, viu e venceu! Mal chegou a Oliveira, encontrou uma “jovem” mais ou menos da sua idade (talvez fossem ambos quarentões ou perto disso) e à primeira vista… apaixonaram-se mutuamente, e juntaram o útil ao agradável. Ela era filha do Dr. Tomás. Chamava-se (chama-se ainda Graças a Deus e ao bom tratamento que o marido lhe dá) Mariazinha. Era giro vê-los no “picadeiro”; ela, creio que mais alta, colocava o braço esquerdo sobre os ombros do Dr. Maurício, ele poisava, acintosamente, a sua mão sobre o traseiro bastante saliente da namorada; assim andavam às voltas no jardim para gáudio da juventude académica. As idades não aconselhavam muitas demoras e, a breve trecho, casaram; da união nasceram duas “Mariazinhas”. Ainda vivem, felizes e contentes, na cidade de Oliveira de Azeméis.

O Dr. Maurício era também professor de filosofia no 6º e 7º anos. Em meu modesto entender as aulas do 6º ano (daquela disciplina) eram uma autêntica seca. Eu nunca consegui entender absolutamente nada daquela matéria; a culpa seria por certo muito mais minha do que do mestre – até porque os outros alunos aprenderam aquela matéria que para mim era impenetrável… aquela psicologia para mim… era o fim da picada.

Naquele ano eu entrei no colégio quase no fim de Outubro; os colegas já estavam enfronhados na matéria. Eu bem quero alijar o meu fardo mas não consigo. O Dr. Gandra, porém, entre a escrita e a oral, durante uns noventa minutos explicou-me um capítulo da matéria do 6º ano e eu compreendi e assimilei perfeitamente aquela parte da matéria. Com isso safei-me na oral como narrarei mais à frente. Entrei bem na matéria do 7º ano e aprendi aquilo quase na perfeição.

Fazia parte do programa – do 7º ano – um capítulo que tratava do objeto, conceito e método de algumas ciências, entre as quais História. O Dr. Gandra, enquanto mestre de História, ensinou-nos esse tema com tal minúcia e precisão que nós aprendemos muito para além do que era exigido no programa; e nós, alunos de História sabíamos aquele tema na ponta da língua. Um dia, o Dr. Maurício fez-me umas perguntas para o meu lugar (sem abandonar a minha carteira); à 2ª pergunta ele ordenou-me que falasse sobre: objeto, conceito e método da História. Àquela data, eu ainda não dominava aquele tema, na perfeição, como o Dr. Gandra nos ensinou; mas tinha os apontamentos em cima da carteira. Pouco falei do que constava no compêndio; segui o que tinha no rascunho. O Dr. Maurício deve ter-se apercebido (com certeza, mas não se manifestou), que eu olhava para o livro, mas o que eu ia transmitindo não vinha no compêndio. De soslaio eu ia lendo os tópicos no meu manuscrito e tudo saiu pelo melhor. Tocou a sineta, impondo o fim da aula; o Dr. Maurício comentou:
 - Se todos os alunos estudassem como o Belmiro, teríamos aqui uma turma excelente! Gostei!

Mal ele sabia que eu ia lendo os meus apontamentos! Chegou a hora do exame! Na escrita, não acertei uma única resposta sobre a matéria do 6º ano; só respondi a uma, lançando ao ar duas bolinhas de papel. Errei! Daquela vez, a sorte não protegeu o ignorante. Passei na escrita com nove – uma boa nota, tendo em conta que só respondi à matéria do 7º ano. Na oral safei-me com o 10 da ordem, porque já sabia um capítulo do 6º ano (apenas um), o tal que o Dr. Gandra me ensinou; foi precisamente esse tema que o Dr. José Bento escolheu para me metralhar. Na matéria do 7º ano eu estava à vontade!

Desta vez a sorte protegeu-me! Mais um problema resolvido!


A Guerra das Laranjas 
(Não confundir com a guerra luso-espanhola – invasão do Alentejo que culminou com a perda de Olivença). 

No quintal da Direção havia uma laranjeira que produzia umas laranjas excelentes (querias que fossem peras!?) que, quando surripiadas, eram ainda mais deliciosas. No ano em que o internato masculino foi aumentado – construção de mais um piso – os alunos internos passaram a dormir, temporariamente no ginásio; assim encontrávamo-nos mais perto do quintal. Alguns alunos, isoladamente ou em grupo, babavam-se ao ver tantas laranjas, ali tão perto a enfeitar a laranjeira que fora plantada no interior do galinheiro (ou este foi construído em redor da árvore).

De vez em quando, pela calada da noite, alguém aliviava aquela árvore que, na parte voltada para o quintal da Dª Dores, tinha imensa fruta a pedir carinhosamente para ser saboreada. O Sr. Almeida apercebendo-se que a quantidade de laranjas diminuía a olhos vistos, decidiu agir em defesa da fruta. Entrou no refeitório, à hora do almoço, e informou-nos que alguém andava a abarbatar-se com as suas apetitosas laranjas, e acrescentou:
- “Parto do princípio que não são os alunos a cometer tal asneira. Por isso, se eu me aperceber que alguém anda nas minhas laranjas, eu disparo sobre os larápios, sem dó nem piedade; se ouvirem alguém gemer ou gritar já sabem do que se trata!”

Numa das noites seguintes, o Leonel Castro Nunes e eu tomámos a decisão corajosa de enfrentar a ameaça irada do diretor. Partimos do princípio (credível) que ele sabia perfeitamente que os assaltantes eram mesmo os alunos e não ousaria disparar sobre nós; por outro lado, ele sabia que os chumbos danificariam não só as laranjas mas também a própria árvore.

Já tarde, saímos do ginásio, subimos o muro que separava os dois quintais… a lua iluminava tudo! E as laranjas estavam ao alcance das nossas mãos gulosas. Estávamos cuidadosamente a encher a sacola, quando ouvimos abrir uma janela, de guilhotina, nas instalações habitadas pela Direção. Nós pendurámo-nos nos ferros da latada da Dª Dores e encostámo-nos ao muro – uma boa proteção contra os chumbos. Nisto o Sr. Almeida perguntou, de forma bem audível:
-“Quem anda aí?”

O Sr. Almeida fez fogo – apenas um disparo – para o ar (não ouvimos o ruído do chumbo a bater no muro ou na árvore), fechou a janela e foi dormir. Não acreditávamos que ele se tivesse apercebido que alguém lhe surripiava laranjas, pois nós agimos no mais profundo silêncio; naquele momento, ele teria chegado do café (ele frequentava a chamada “Leitaria”, mais ou menos em frente ao café Guarani, hoje Hotel Dighton em memória da lápide com o mesmo nome), e lembrou-se de cumprir o aviso anunciado aos alunos.

Lestos, acabámos de encher o alforge e seguimos velozmente para a camarata. Tivemos fruta (não confundir com a fruta do PC) para vários dias. Laranjas deliciosas, divinais!
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10688: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (29): Colégio de Oliveira de Azeméis (Belmiro Tavares)