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quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10268: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (55): Bula - A guerra das minas (5) - Um jogo de "apanhadinha"

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 8 de Agosto de 2012:

Amigo Carlos
Envio-te mais um troço de “Viagem…”que, como sempre, foca e retrata o mais fielmente possível a realidade de momentos e pormenores talvez subjectivos, que não foram e julgo não serão esquecidos, neste caso talvez não tanto pelo acontecimento em si mas pelo insólito (?) das envolventes. Costuma dizer-se que …”não lembra (va) ao diabo”? Pois neste caso… pelo visto, lembrou!

Como julgo que andas por “férias aos bocados” como eu, cá te mando o meu abraço com amizade e votos de saúde e bem-estar.
Para a Rapaziada atabancada um outro abraço e tudo de bom.
Luís Faria


Vista parcial do Quartel de Bula

Viagem à volta das minhas memórias (55)

Bula - guerra das minas (5)

Um jogo de “apanhadinha”

Creio que nenhum dos “Eleitos” gostava e muito menos queria, abandonar a procura de uma mina e dá-la como detonada ou perdida sem esgotar, em seu entender, todas as hipóteses viáveis de a encontrar e neutralizar. Muitas vezes acontecia andar-se tempos infindos à procura de um desses engenhos deslocalizado, situação potencialmente perigosa que obrigava a redobrados cuidados e domínio sobre emoções. Nesse espaço de tempo podia ser relativamente fácil acontecerem estados de espírito que iam do desânimo ao eufórico. A meu ver, nestas e noutras situações o autocontrolo e descanso eram essenciais na ajuda à prevenção do desastre.

Disse no (P9850 de 4 de Maio) …Nos ”cú de boi” era bom tomarem-se estas precauções preventivas, eu tomava-as, pois uma das coisas passíveis de acontecer e que não queria, seria por exemplo, exasperado pelo esforço e ao mesmo tempo contente por ter conseguido encontrá-la e levantá-la, agarrar na mina e “fungá-la” no chão ou no caixote de recolha acompanhada talvez dum “cabrona f.d.p.” ainda por cima sem antes a neutralizar, ou pinchar em cima dela a chamar-lhe nomes feios, dar-lhe uma biqueirada à guarda-redes… exagero o que digo ?… pois será, mas aconteceu!

Estávamos ao que me parece recordar, já para finais do campo quando num jogo de “apanhadinha” andavam uma “italiana” fugida e escondida e atrás dela procurando-a sem descanso e resultado, um Furriel “Eleito” que ia gastando o tempo, esgotando a paciência e julgo que a serenidade também. Expressões caserneiras na certa iam sendo sibiladas, maneira fácil e normal de aliviar alguma tensão acumulada, enquanto a busca continuava e se ia prolongando pelo tempo.

A dada altura é bem audível a quem trabalhava nas proximidades, manifestações de entusiasmo e regozijo fazendo com que “vizinhos” como eu desviassem o olhar e atenção para o que se estava a passar e lhe visse na mão a “italiana” finalmente apanhada e a expressão de contentamento vitorioso e de “dever cumprido” estampada no rosto.

Sol de pouca dura para este amante da bola, escalabitano e por isso mesmo alcunhado de Santarém, já que de imediato e surpreendentemente, atira a mina ao ar e acompanhado de algo como um “cabrona” bem sonoro, desfere-lhe uma biqueirada à guarda-redes!

O “BUMM …” é em simultâneo e o Santarém cai por terra.

A mina era de sopro, plástica e não teria sido neutralizada . A pouca sorte ajudou, dadas e a meu ver , as poucas (?) probabilidades de acertar no percutor, como julguei ter acontecido. Ninguém mais se feriu, a não ser psicologicamente.

Ajudo a levá-lo para a estrada para receber os primeiros cuidados médicos. A perna estraçalhada daquele jeito não é bom nem fácil de se ver. Os odores misturam-se e as moscas vindas do nada e atraídas aparecem como que a querer coreografar pela negativa mais uma tragédia em cena.

Lívido e calmo pelo menos aparentemente, não se lhe ouve praticamente um queixume, um gemido. A dada altura diz com serenidade e com um meio sorriso que recordo, como que aceitando sem revolta o resultado de um acto da sua e só sua responsabilidade(?!):

(quase sic) “…nunca mais vou poder jogar futebol!...”

Interveniente no drama e talvez emocionado perante o espectáculo, o Enfermeiro pareceu-me hesitar na procura do melhor sitio na perna onde espetar a agulha para administrar a injecção (morfina?) e julgando que ele estava com receio de causar dor(?) falo-lhe, à minha maneira, mais ou menos assim:
- Espete em qualquer sitio… ele não vai sentir nada!

É evacuado com destino ao aquartelamento donde seguirá para Bissau. Acompanho-o na ambulância, o que virá a influenciar e alterar o meu dia-a-dia durante tempo e levará a fazer-me uma pergunta que até hoje continua, e na certa continuará, sem resposta! Talvez me venha a referir a este assunto mais tarde, a ver vamos!

Nunca mais soube nada deste homem de têmpera, espero que a vida lhe tenha sorrido e que possa ter dado e ainda dar umas biqueiradas na bola, jogo de que ele gostava!

Luís Faria

Foto: © Victor Garcia  (2009). Todos os direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10117: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (54): Bula - A guerra das minas (4) - Imprevistos

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10117: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (54): Bula - A guerra das minas (4) - Imprevistos

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 1 de Julho de 2012:

Amigo Carlos Vinhal
Como deverás estar a ir de férias e para que descanses um pouco da “fazedura” das malas e te entretenhas (?!), cá vai mais um troço de “Viagem…” que mandarás para a valeta, assim o julgues.

À rapaziada que à falta de melhor faz (ia dizer goza, mas se calha era chato!!) férias… saúde, boa viagem, boa estadia, bom descanso e DIVIRTAM-SE

Abraços
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (53)

Bula - guerra das minas (4)

Imprevistos

Logo aos primeiros dias no campo minado, estou em crer não estar muito errado ao dizer terceiro, um “Eleito” não esfacela um membro mas é crivado por estilhaços na cara.

Mais BUMMM… iriam acontecer por aqueles dias de inferno e altura houve em que a incerteza e o receio provocados pelas dificuldades na detecção de muitas minas começou a fazer com que a moralização que animava(?) o grupo “mineiro” praticamente caísse por terra para muitos, acabando por acontecer um “Briefing” com o Comandante e os “Eleitos”, onde se tentou ajuizar dos porquês e procurou arranjar uma solução de modo a serem minimizados os danos. O maior problema eram as bastantes e pequenas minas plásticas italianas que estavam deslocalizadas à toa e muitas das vezes difíceis de encontrar dada a sua dimensão e só serem detectáveis pela pica ou pelo pezinho, sendo claro que neste ultima situação relativamente fácil de acontecer, perdoem a ironia, se economizava tempo e trabalho na sua neutralização !!

É bom de ver que a reunião não passou de uma sessão de “psícola” não se encontrando solução alguma ou por outra, como “perguntar não ofende (?)” ainda aventei, santa ingenuidade a minha, da possibilidade de um veículo rebenta – minas, aquele do género bulldozer com correntes rotativas que já à altura existiam, pelo menos noutros exércitos e que poderia ser usado na maior parte do campo. É claro que fui logo perguntado “você está maluco…?” para propor uma tal solução e em pensamento na certa, se era parvo ou imbecil! Para além de não ter achado graça nenhuma, fiquei foi com a impressão de que o homem me “tirou o azimute”! A ver iria.

Perante a resposta e o tom, deduzi que a nossa Engenharia não tinha essa maquinaria nem outra, que um brinquedo desses seria muito caro e como tal, havia substitutos bem mais baratos tais como a nossa cabecinha pensante, as nossas mãozinhas c’as picas e facas em conjugação c’os nossos pezinhos, à mesma eficientes na resolução do problema, mas de manutenção e eventual “oficina” talvez bem mais em conta! A relação custo – benefício era (é?) normalmente decisora da opção.

Pelo meio de BUMM… e mais BUMM, sinónimos de estropiação e mais estropiação, situações que não tenciono abordar à excepção de uma, por a meu ver ser inédita, lá fomos carpindo e digerindo muito mal os dias negros que nos iam assolando. Mais não aconteceram por, sei lá, até porque para alem das contingências “normais", imprevistos potenciadores de desastre aconteciam. Um que hoje recordo e tentarei descrever, pode talvez fazer rir ou pelo menos sorrir ao imaginar-se a cena, mas à altura… podia bem ter descambado em tragédia, bem grande se a dimensão fosse outra.

No meio do campo minado e em dia acalorado andam os “Eleitos” atarefados nas suas lides. Por lá me encontro também, armado com faca e pica e ataviado só com calção e as omnipresentes nessas situações, botas em couro de meio cano alto.

Em pé e peganhento de suor olho para o céu limpo, talvez num daqueles descansos em que era useiro para descompressão, quando dou por uma “formação” de abelhinhas logo ali, que velozmente se aproximam.

Aviso mas não sei se alguém me ouve já que de imediato a minha plena atenção se fixa na visita indesejada de todas ou pelo menos uma parte delas, que começam a passear-se umas pela cabeça e tronco a nú, outras esvoaçando e zunindo em prevenção e algumas fazendo explorações mais alongadas. Destas, uma mais militante, talvez com óculos de visão nocturna ou sensibilizada por qualquer odor atractivo (?) resolve inspeccionar mais a fundo e entra pelo parco e escuro(?) espaço entre o cano da bota e a canela.

Já tinha estado em situações idênticas, quer na minha terra como na Guiné em Capó (P-4031 de14 de Março de 2009) e conforme os ensinamentos adquiridos sabia bem que a hora era do ficar estático e “não pestanejar sequer” ou em gíria castrense “não mexe nem que um cara… lhe passe pela boca”(!) . Seria a única hipótese na tentativa de não sofrer ataque.

Concentrado ao máximo, um dos meus grandes problemas era conseguir ficar estático de modo a evitar que a “bendita que entrou pelo cano” fosse apertada e me brindasse com uma ferroada que em sequência provocasse um movimento instintivo que incitasse as outras ao ataque e aí podia estar feito, já que para alem das ferroadas, para o BUMM… era só preciso descontrolo e umas passadas ou nem tanto!

Após breve tempo que me pareceu infindo, as “queridas” deram às asas sem causar mossa, tendo a inspectora ainda ficado um pouco mais talvez a verificar algo de pormenor ou nauseada, obrigando-me a manter a postura de respeito submisso! Quanto aos “Eleitos” nada recordo mas creio que acabaram por não ser alvos e se calha ficaram a “gozar (!!) o prato”, digo eu !?

Imagine-se agora se o ataque tivesse sido em grande escala e múltiplo, como aconteceu em “Capó”, originando a debandada quase geral… podia causar um verdadeiro desastre. Felizmente assim não aconteceu e mais um dia que podia ter sido negro, foi ganho.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10006: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (53): Bula - A guerra das minas (3) - Acontecia... Bummm!!!

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10006: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (53): Bula - A guerra das minas (3) - Acontecia... Bummm!!!

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 3 de Junho de 2012:

Caro amigo Vinhal
Um abraço com desejo que a saúde e o bem-estar te assistam.
Por saber que o trabalho dá saúde e promove o bem-estar, espero contribuir para tal enviando-te mais um apontamento de “Viagem…”se calhar merecedor de “rodinha” para alguns eventuais leitores mais emocionáveis, talvez até “Eleitos” no mesmo ou noutros cenários e a quem desde já peço desculpa por eventualmente interferir em campos guardados na memória.

Saúde e um abraço para todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (53)

Bula - guerra das minas (3)

Acontecia

BUMMM!!!

O estrondo de um rebentamento ali muito próximo deixou-nos expectantes…

Os dias iam-se acumulando vagarosamente no depósito dos passados e no dos a ultra-passar, estes com recortes de dor e sofrimento para uns, de mágoas e tristezas para outros, de inseguranças e receios para uns outros, julgo de esperança para todos.

Eram dias encimados em dias, que se iam transpondo na fragilidade de um “arame suspenso” e em tensão de alto risco, esticado e sem rede de segurança por sobre uma arena também ela potenciada de riscos sérios.

A “barra de equilíbrio” usada para ir dando passos e conseguir transpor esse arame, era basicamente feita de serenidade, atenção e contenção, ingredientes que dada a natureza humana, nem sempre sendo conseguidos vinham a causar a perda de equilíbrio que provocava o desastre, podendo o mesmo também acontecer e sem se conhecer o porquê, ou pura e simplesmente o “arame” rebentar e sem aviso, o BUMMM… do rebentamento inesperado ali ao lado deixava-nos expectantes do e a quem tinha acontecido!

Os dias negros em que situações destas aconteciam, continuo a falar por mim, em que o estropiamento de um companheiro acontecia e nos marcava, tinham que ser arrumados não no depósito dos passados mas no dos a ultrapassar e fechados com as chaves da Fé e da Esperança, único modo de se ir conseguindo enfrentar e viver os vindouros.

A acontecer o desastre, esperava-se ao menos ficar com a articulação do joelho, de modo a acabar por do mal, o menos, poder andar sem muleta! Daí e nestas lides eu usar sempre as minhas botas em couro de meio cano alto e ajustadas, que acreditava poderem vir a contribuir na protecção e nesse sentido.

Botas que usava nas minas

Dizia-se até que na desdita (aos “felizardos” certamente) seriam aplicadas próteses na Alemanha, que imitavam a carne e que até permitiam correr e jogar futebol. Para as caneladas deveria ser óptimo, este incentivo de truz!!!!

Em confrontos nas matas daquela terra já tinha presenciado e vivido diversas situações em que companheiros ficaram feridos com gravidade e de morte. Foram momentos difíceis que houve que ultrapassar mas que se não esquecem e ficam para sempre na memória pormenores (?) subjectivos gravados com nitidez, de imagens que se vão esbatendo ao longo do tempo.

Honestamente, por maior que fosse o choque sentido não era de me deixar abater e de deixar transparecer emoções ou constrangimentos na presença dos feridos, fosse qual fosse a sua gravidade. Achava e continuo a achar que esse tipo de reacções, naturais e comuns é certo, provocavam um efeito negativo no ferido e até em expectantes, podendo levar inclusive a laxismos e desorientações que não podiam ter lugar nessas ocasiões, pelo que e a meu ver, em especial quem exercia funções de comando deveria conseguir controlo sobre essas emoções

Nesses momentos de dor e incerteza para o ferido, julgo até que agravada de solidão em ausência da família, a hora deveria ser de tentar interromper esse estado de espírito, de incentivar não demonstrando preocupação em demasia, quiçá “chistando” até com o acontecido ou com as consequências.

Recordo a propósito uma “converseta” sic ou quase, com “eleito” estropiado:
- Oh Faria, dá-me água...
- Bai -te f…Queres água p’ ra quê? Entra-te pela boca e sai-te pela perna…”!??! (segundo o que parecia saber, naquelas situações não deveriam beber?)

Usei-o a meu ver com resultados positivos. Se o ferido fosse eu, não gostaria de sentir a meu lado a imagem do “carpidor” que olhava o desgraçadinho do coitado, do que pena, do que está f…! Quereria era sentir iniciativa, confiança, segurança, naturalidade, despacho. Bom, mas como disse era assim que pensava e sentia e como tal adoptava esse tipo de conduta que poderia ser criticável, bem sei. Ainda hoje assim acontece.

À excepção da morte ocorrida no Balanguerez (P7172) provocada por um RPG directo, digo com sinceridade, o que sentia em presença dos feridos pelas minas era diferente, bastante diferente e mais intenso do que os acontecidos nas matas, em combate. Eram ferimentos ”feios” que impressionavam pelo estado e aspecto.

A vista do membro estraçalhado, à mistura com aquele odor a sangue e carne queimada a explosivo era realmente perturbador e continuo a falar por mim, difícil de encarar e esquecer, desencadeava um turbilhão de emoções. Na verdade para se conseguir controlar e manter o equilíbrio emocional em presença, havia que fazer um grande esforço de “alheamento” e contenção para não deixar transparecer essas emoções.

Posteriormente e a mais das vezes, podia-se extravasar toda essa contenção. O bar não fugia, a viola repousava pelo quarto, o abraço, palavras de amizade e apoio aconteciam!

No quartel a ambulância era esperada e recebida com ansiedade, curiosidade, comoção e até por descontrolo emocional causador de distúrbios psíquicos (?), como chegou a acontecer causando para a vida feridas nunca bem cicatrizadas.

Já o disse, para mim foram os tempos mais desgastantes e dos mais difíceis porque passei nessa guerra, que por Graça acabou por me poupar e ao que sinto até ver, não me deixou feridas mal cicatrizadas do corpo ou psicológicas.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9850: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (52): Bula - A guerra das minas (2) - Os "eleitos"

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9850: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (52): Bula - A guerra das minas (2) - Os "eleitos"

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 28 de Abril de 2012:

Olá amigo Carlos Vinhal,
Bom, acho que já te chega de folgas e comesainas, ao que parece bem animadas por sinal, nesse belo pedaço do ainda nosso Portugal.
É hora de trabalho para ti, que és um ”Mouro do mesmo” e de que estou certo, por norma gostas.
Como tal, cá vai mais um lanço de “Viagem…”que, já sabes, varres para a valeta se assim considerares.

Um abraço para ti e um outro para a”Juventude de outrora” e de agora que nos vai seguindo
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (52)

Bula – guerra das minas ( 2 ) Os “ Eleitos ”

Apeados dos Unimog, após a segurança estar montada e percorrida a pouca distancia até à zona de trabalho estabelecida no campo minado, os ”eleitos” munidos do equipamento preparavam-se para umas horas de trabalho de alto desgaste, onde a atenção e tensão seriam quase constantes, intervaladas por momentos de descanso e descompressão individuais e subjectivos na escolha do momento e duração, que só o próprio poderia e saberia determinar e quantificar.

Mentalização feita, azimutes tirados, zona de actuação definida e localização primária conseguida, era chegada a altura de a atenção não se dispersar. Depois e em seguimento do “lançamento” da “vara-medida” que deveria localizar o engenho ou a sua proximidade, a pica ligeira de verga de aço começava a funcionar com sensibilidade e moderação de força - de modo a não provocar inadvertidamente um eventual rebentamento caso acertasse em espoleta mais sensível (como veio a acontecer) - explorando a faixa de terreno que íamos pisar no curto trajecto até consumar a localização do engenho, dando então lugar à actuação da faca.

Com a atenção no máximo e tensão controlada em função da menor ou maior dificuldade do que se nos parecia apresentar, começava o manuseamento da faca (a minha tinha-a comprado na “Casa Barral”- Porto), uma espécie de “arte” que deveria ser executado com respeito e desapaixonadamente, com sensibilidade, sem facilidades e aplicando os saberes adquiridos, “desbagando” os cachos em quadrado com “AUPS” nos vértices e uma portuguesa ao centro, enfileirados e sequenciais.

Disposição das minas e dos cachos 
(parece-me ser o posicionamento dos cachos)

Sendo que grande parte das minas estava localizada nos locais previstos ou na proximidade, muitas havia no entanto em situação para todos os gostos: umas afastadas e completamente a descoberto, outras com camadas de terra encimada e difíceis de detectar, outras desviadas q.b., outras enterrados de viés (bem perigosas por sinal) muitas enraizadas em tufos e arbustos, outras incorporadas em formigueiros … enfim, tornando-se variadíssimas vezes um trabalho “cú de boi” encontrá-las, desactiva-las e levantá-las.

Os intervalos de descanso para esticar o corpo e aliviar as costas, falo por mim, faziam-se quando se achasse mas eram por norma de pouca duração, tempo de uma golada de água e uma cigarrada enquanto o pensamento esvoaçava por outras bandas. O trabalho tinha que ser feito.

Quando um desses “cú de boi” aparecia, bom aí podia acontecer que a paciência se começava a esgotar, os suores davam para alagar, os palavrões sucediam-se, a atenção começava a querer dispersar-se, o desânimo ameaçava rondar, o facilitismo começava espreitar. Era chegado o momento de espairecer, de descomprimir e travar tendências negativas para aquela função onde o perigo estava sempre à espreita. Demorasse o tempo que demorasse, só nós próprios é que podíamos sentir e saber o momento de recomeçar a labuta, não podendo haver lugar a pressões e muito menos a imposições. Éramos, continuo a falar por mim, os decisores em causa própria e não devia nem podia ser de outra maneira, sob pena de acontecimento grave.

Nos ”cú de boi” era bom tomarem-se estas precauções preventivas, eu tomava-as,  pois uma das coisas passíveis de acontecer e que não queria, seria por exemplo, exasperado pelo esforço e ao mesmo tempo contente por ter conseguido encontra-la e levanta-la, agarrar na mina e “fungá-la” no chão ou no caixote de recolha acompanhada talvez dum “cabrona f.d.p.” ainda por cima sem antes a neutralizar, ou pinchar em cima dela a chamar-lhe nomes feios, dar-lhe uma biqueirada à guarda-redes… exagero o que digo?… pois será, mas aconteceu!

Devíamos dar o nosso melhor contributo para a nossa própria segurança e para isso também era, sempre o soube e pratiquei, indispensável manter o equilíbrio físico e mental em todos os momentos, na tentativa de minimizar os riscos de um trabalho extenuante por ser em contínuo, num campo de minas com aquela dimensão e densidade. Daí e a meu ver, a importância dos descansos autónomos.


Deitados, acocorados ou de joelho no chão conforme as situações, os “mineiros encartados” iam avançando com e ao seu ritmo, “lavrando” os seus terrenos com minúcia e destreza por norma consciente, descobrindo e colhendo uma a uma as sementes de mutilação, neutralizando-as de imediato, ao que me parece recordar apondo-lhes as protecções de segurança, tampas nas plásticas, cavilhas nas metálicas portuguesas retirando-lhes depois o sistema de detonação e acomodando-as de seguida e separadamente em recipientes de recolha próprios .

Esta espécie de rotina, que não deveria ser rotineira, sucedia-se mina a mina, cacho a cacho durante horas a fio até final da jorna, altura em que se regressava às viaturas que nos levariam de regresso ao quartel onde a tarde e a noite eram nossas, pois tínhamo-las ganho e bem ganho. Era chegada a hora dum belo “banho à Nharro”(sem ofensa), duns bons canecos, talvez do dedilhar na viola, de escrever um “bate-estradas”, duma bela sorna com leitura à mistura e à fresca do ar movimentado pela ventoinha… pois na manhã seguinte teríamos que estar recuperados e frescos para mais do mesmo, tendo sido esta a nossa vida durante dias e mais dias nos finais de uma comissão que já não tinha sido fácil.

Faca de mato em acção e mais uma "AUPS" recuperada

© Foto de Carlos Vinhal

No dia a dia renovava-se a esperança de que não houvesse qualquer acidente, o que nem sempre aconteceu. Logo nos primeiros dias do início, inadvertidamente o primeiro desastre aconteceu e infelizmente mais se seguiriam ao longa daquela ”caminhada” não ocorrendo outros por… sabe-se lá porquê!

Sorte, destino? Cá por mim acredito que por Graça Divina.
Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9690: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (51): Bula - A guerra das minas

domingo, 1 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9690: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (51): Bula - A guerra das minas

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 22 de Março de 2012:

Olá Vinhal
Saúde boa, disposição em cima, força que baste? Óptimo.

Segue novo “lanço” na “Viagem…” que a vai aproximando do final que, é uso dizer-se ser normalmente “o mais difícil de esfolar”. Assim também aconteceu na ”viagem real “, por lá.

Um abraço , saúde e boa disposição para todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (51)

Bula – A guerra das minas

Pela fresca da manhã os “eleitos” preparam-se para montar nas viaturas escoltadas rumo à nova guerra onde o IN eram uns engenhos diabólicos montados por nós (NT), camuflados em quilómetros de terrenos muitas vezes adulterados pela pluviosidade e diferente bicheza autóctone, fazendo com que por vezes a sinalética mapeada transformasse a sua localização correcta em verdadeira “caça ao tesouro” por tentativas, raramente infrutíferas mas vezes demais extremamente dolorosas!

 (Google) Estrada Bula - Pta S Vicente - Ingoré 

Ao que tenho na ideia, este “campo de mutilação” que tínhamos que enfrentar nascia pelo quilómetro oito, alongando-se para Norte por uns bons quilómetros (creio que seis?) ao longo da lateral Leste da estrada Bula – S. Vicente (onde se fazia a travessia do rio Cacheu para Ingoré). Era constituído por uns largos milhares de minas plásticas (“encriers” devido à sua forma de tinteiro) e portuguesas (metálicas de fragmentação) na proporção de quatro para uma, ao que lembro dispostas em cachos orientados e compostos por quatro plásticas em quadrado e uma portuguesa ao centro, afastadas entre elas o suficiente para não estourarem por simpatia. Já não recordo se era uma ou duas filas paralelas de cachos. Não encontro essa nota, mas tenho ideia de que seriam umas dez mil minas (?), a passar.

Para enfrentar este desafio demoníaco o equipamento base do pequeno grupo de “eleitos” era simples e fiável: pica em verga de aço, bússola, mapa, croquis de implantação e claro está faca de mato. Ah, convém não esquecer a “vara-medida” com 1,5 ou 2 metros de comprimento (já não recordo mas era da medida que distava entre a central portuguesa e as exteriores), instrumento muito útil que simplificava a localização aproximada dos engenhos desde que detectado o principal, a mina metálica. Tínhamos também à disposição um detector de metais que se necessário usávamos na detecção destas minas portuguesas de fragmentação extremamente perigosas. Para alem deste equipamento havia quem lhe acrescesse outros que julgasse conveniente para segurança e até quaisquer amuletos que acreditasse protectores e da sorte! Pelo que me tocava havia três ou quatro coisas que faziam parte integrante do equipamento: pistola no coldre, a, para mim fundamental, bota de fuzileiro e o lencito vermelho usado ao pescoço, este sim uma espécie de talismã mas também útil! Não posso esquecer a varinha de vime ou o pingalim de tiras de couro entrelaçadas l!

Tinha uma explicação para o uso destes “complementos”que passo a expor o mais concretamente possível: - Pistola “Walter” – não estorvava e podia vir a ser útil em defesa ou mesmo resolutiva noutro tipo de situação! - Botas tipo Fuzileiro - em couro, de meio cano-alto ajustado por fivelas laterais, que acreditava darem-me uma certa protecção à extensão dos “estragos” em caso de pisar um engenho. Não convinha nada que a perna tivesse que ser amputada acima do joelho!!! - Pequeno lenço vermelho - tinha-me sido oferecido no “Puto”e usava-o muitas vezes em operações, amarrado ao cano da G3 ou ao pescoço. Era uma espécie de amuleto e que podia ser útil pelo menos com os suores. - Varinha / pingalim – preênsil nos dedos, usada(o) para ajudar a detectar eventuais arames de tropeçar interpostos pelo IN no acesso ao “campo de trabalho”.

Sobre esta estória da varinha explico: Um belo dia, antes deste trabalho mas creio que por causa dele também, fui incumbido de verificar, desarmar e levantar várias armadilhas por mim montadas e “croquisadas” ano e tal antes, lá para a frente da zona da “curva do café” onde se pensava ser zona de atravessamento do IN e onde, para além disso, havia por baixo da estrada uma conduta pluvial (?) larga que a atravessava e que se queria não viesse a ser aproveitado pelo IN para quaisquer utilizações bélicas. Por essa área tinha montado uma dezena, talvez mais, de armadilhas a meu ver bem “engendradas” e para “vários gostos”! Como tal deveriam também ser bem descritas e sinalizadas em “croquis” fiéis, com referência a pontos considerados seguros e de difícil mutação, o que facilitaria uma posterior desactivação das mesmas.

No dia aprazado, dirijo-me para a zona, acompanhado como não podia deixar de ser por segurança que tomou posição do outro lado da estrada. Pés ao caminho, munido dos apetrechos necessários e do croqui por mim feito anteriormente, vou desactivando os engenhos, concentrado mas sem dificuldades de maior até que a dada altura e em local não referenciado, ao dar um passo senti no tacão da bota atrasada uma resistência que me inquietou. Não podia ser?! O chamado “sexto sentido” terá feito o automatismo funcionar preventivamente e à contagem “um - dois” estava aterrado e espalmado no chão um pouco mais adiante! O estouro não se fez esperar.

Afinal sempre era, sendo que a “geringonça” não era nossa e sim uma intrusa, posteriormente confirmado por contagem. Mais uma vez por Graça, e talvez um pouco por Lamego (onde colados ao terreno detonámos granadas que pousávamos à distancia de um braço) nada me aconteceu, para além do valente susto. Coisa para não esquecer! O que aconteceu fez-me pensar que tinha que tentar prevenir situações semelhantes. O engenho a par da nossa bela “arte do desenrasca” veio ao de cima : a solução seria uma fina e lisa varinha, pênsil dos polegar e indicador que, ao quase varrer o chão dianteiro sinalizaria e faria investigar qualquer resistência anormal ou entrave à sua progressão. Também cheguei a usar o meu ”chicote” de tiras de couro entrelaçado, mais cómodo e à mesma sem peso suficiente para descavilhar qualquer engenho munido de arame de tropeçar.

Algumas vezes parei para investigar mas felizmente foram alarmes falsos. Chegados à zona de apeamento e após a segurança estar montada em proximidade não intrusiva, os “eleitos” dirigiam-se, creio que em equipas para os locais determinados, dando início a uma luta em que facilitar era potenciar o risco de rebentamento e suas consequências nefastas. Acabou por ser uma batalha que se ganhou, mas infelizmente e quase logo de início à custa de sangue, dor e em que o esforço e sofrimento ao que sei não foram agradecidos ou reconhecidos, muito menos louvados ou premiados e onde até o prometido (pelo menos a mim) não foi sequer cumprido, antes pelo contrário. Creio que também ninguém estava a contar com quaisquer “honrarias” mas, falo por mim, esperava que o prometido fosse cumprido! Apesar dos alguns “briefings” havidos com o Comando, o que não permitia evocar “desconhecimento” dos acontecimentos, os “mandantes” andavam de certeza absorvidos e distraídos com outras coisas de maior interesse próprio naqueles finais de comissão!

Bom… é sabido que havia Comandantes e comandantes por aquelas guerras!

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9536: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (50): Bula, uma nova missão

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9536: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (50): Bula, uma nova missão

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 22 de Fevereiro de 2012:

Amigo Carlos Vinhal
Cá vai mais um passo na “Viagem…” acompanhado pelo meu agradecimento ao teu labor disponibilidade e amizade.

Ouvi um destes dias na TV, que finalmente a Guiné tinha ficado expurgada das minas malditas, ainda bem, fico muito satisfeito. Não de propósito mas curiosamente ao mesmo tempo que a minha ”Viagem…” chega até elas!!

Será que as plantadas pelas NT foram todas levantadas ao tempo ou a saída à pressa, pressionada ou não, inviabilizou de todo essa missão? Gostava na verdade de saber.

Pela parte que nos (me) toca, nesse grandíssimo campo em que trabalhamos não terá ficado uma única dessas miseráveis armas cegas, no mínimo estropiadoras e desmoralizadoras! Custou e de que maneira, mas foi conseguido.

Para ti e para todos um abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (50)

Bula – uma nova missão

A canícula de finais de época das chuvas aperta. De pé e talvez a fumar uma cigarrada para descomprimir observo o céu e o meu olhar fica preso num “jagudi” que volteia, talvez a “tirar azimute” a um qualquer petisco cá em baixo na planura. Qual T6 (?) a certa altura lança-se em voo picado e segundos depois, nas proximidades uma explosão atroa nos ares. O meu grito de “foi abutre”, já foi em destempo.

Estava em Bula e já nos “finalmente” da estadia por aquelas terras rubras e verdes de África, cores de sangue e de esperança.
Sem que minimamente o imaginasse são-me trocadas as voltas ao libertarem-me das noitadas aliciantes ao mosquito em emboscadas nocturnas e das longas e cansativas passeatas em grupo, por aquelas matas movimentadas pela concorrência.

Talvez como prémio pelo anterior desempenho, são-me oferecidos descanso aos fins-de-semana e folga nas tardes da semana. Fixe e talvez de meter inveja a muitos, só que e em contrapartida teria de começar a aplicar os conhecimentos adquiridos em aprendizagem anterior e reconhecidos em curso diplomado de nota razoável!

Assim a minha actividade recai de novo no extenso campo de minas, legado do antecessor BCAV 2868 e acrescentado ano e meio antes em cerca de 2 quilómetros (se não erro) pelo nosso BCAÇ 2928. Enquanto que da primeira vez por lá andei a plantá-las, agora a tarefa seria a inversa e “cú-de-boi”: levantá-las!

Nessas lides andei – integrando um pequeno grupo de Alferes e Furriéis “eleitos”, escolhidos não sei com que critério – até antevésperas do final da comissão, altura em que rumei ao Cumeré (de que pouco recordo) e onde há já umas semanas estava estacionada a “FORÇA”, aguardando embarque para regresso à Metrópole num “Boeing” dos TAM.

Para mim e julgo que para todos os “eleitos”, esta fase da desminagem foi talvez a mais desgastante por que passei em toda a comissão. E não era “piegas”como agora se ousa dizer!!! Nem eu nem os que por lá escorrermos suor e dor a que alguns, infelizmente muitos, acrescentaram sangue e partes do seu corpo, da “Razão” e até da Alma!

Tanto e tanto sacrifício para, ao que julgo saber, atrás de nós virem a montar novo campo!

Diz-se e julgava eu que este tipo de campos se passavam, como aconteceu para nós. Isso não aconteceu, talvez por validade ou segurança, não sei. Três ou quatro anos pelo menos, são bastante tempo na verdade, ainda para mais naquelas condições climatéricas e animais passíveis de alterar a morfologia do terreno, podendo deslocalizar por vezes significativamente os engenhos. Pessoalmente tive disso a prova nesse e em especial num outro campo de muito menor dimensão, nas proximidades do rio Cacheu (talvez a contar mais tarde, não sei!)

Nunca me passou pela cabeça que o Comando fosse capaz de nos envolver numa operação dessas, ainda para mais nos finais de comissão, sem forte motivo para tal, sabendo na certa que baixas iriam ser contabilizadas! Foram…e não poucas!!

A propósito veio-me à lembrança um “briefing” a que assisti no Comando do CAOP 1 aquando da preparação de uma operação (em que o comando do GCOMB seria meu). A dada altura ouço, dito de maneira natural pela “hierarquia mandante”, que eram expectáveis DOIS MORTOS nessa operação!!! Recordo que fiquei”gelado” e a pensar no valor que se atribuía a uma vida! Era (é) uma permuta contabilística no jogo das guerras: vidas por objectivos! Graças a Deus não se confirmou o expectável!

Tínhamos passado por muitos apertos, alguns dos quais bem “apertados” onde o receio e medo que se pudesse sentir, era dominado. Honestamente não seria talvez de morrer que sentia medo mas, isso sim, de ficar estropiado e dependente de terceiros, situação que não suportaria nem suporto… era esse o meu “medo real”, que por vezes aflorava em especial antes de saídas e que tinha de controlar e ultrapassar.

No levantamento das minas, em principio a morte não seria tão expectável mas em contrapartida, o estropiamento estava por norma latente e à espera da menor falha, distracção, facilitismo, euforismo, cansaço... até por vezes a reacção instintiva a umas abelhinhas ou um “meter os cornos no chão” ao som de um qualquer rebentamento ou tiro de proximidade relativa devia ser dominado, não fosse uma”maldita ferrar-nos”. Assisti a algumas situações que só por Graça não descambaram em desastre!

Ora como atrás referi, o insuportável para mim e na certa comum, era o estropiamento que me deixasse dependente. Talvez esse receio, esse medo me tenha feito actuar sempre, mas sempre mesmo com extremo cuidado, calma, concentração, segurança e autodomínio nos manuseamentos, aplicando o conhecimento adquirido, não facilitando e abstraindo-me por completo do que me rodeava nesses momentos.

Os cigarros “Português Suave” sem filtro, por vezes fumados de seguida, eram a minha panaceia nos momentos em que precisava de descontrair, de descomprimir até sentir de novo que estava em condições de continuar o trabalho. Só nós próprios podíamos sentir esse estado de espírito, não deixando lugar a influências, pressões e muito menos a imposições! Esta era a verdade, pelo menos a minha verdade!

Muito estava em jogo e não queria fazer parte do “espectável”, justamente agora em final de tempo dessa “jogatina de vida” que se arrastava há quase dois anos!

O “jagudi”, avistado mais à frente no campo, jazia estraçalhado. Prenúncios?!

Luís Faria

Uma equipa de Minas e Armadilhas da CART 2732 neutralizando uma mina anticarro no Bironque
Foto de Carlos Vinhal
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Nota de CV.

Vd. último poste da série de 13 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9478: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (49): Bula - Um acto de coragem

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9478: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (49): Bula - Um acto de coragem

1. Em mensagem do dia 12 de Fevereiro de 2012, o nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), enviou-nos mais mais uma viagem à volta das suas memórias.



Viagem à volta das minhas memórias (49)


Bula – um acto de Coragem

Desde sempre tive e continuo a ter para mim que a situação e o momento podem fazer o herói, o covarde, o assassino.

Por Bula andávamos, tentando enganar o tempo da melhor forma que conseguíssemos, resguardando-nos o melhor possível numa tentativa de evitar ou pelo menos minimizar quaisquer atribulações que pudessem vir a inviabilizar um regresso a casa escorreito e em tempo.

Mobilizados para a guerra, no meu conceito sempre considerei negativo correrem-se riscos escusados, que pudessem colocar a integridade física ou psicológica em causa por meros momentos de usufruto mal pensados ou impensados, nascidos de muitas e diversas razões. Por inerência, não poucos riscos faziam já parte do nosso trabalho quotidiano.

É facto que não podíamos nem seria possível vivermos como reféns dum princípio desses, enclausurados numa redoma anti-risco a ver a vida passar do lado de fora. Claro que não, não era possível.

A vida devia seguir a sua normalidade - dentro da anormalidade imposta ou não - com os seus condimentos, os seus sabores, as suas cores… os seus dislates e extravasamentos… em salvaguarda da sanidade mental, mas com conta peso e medida, o que de todo nem sempre era conseguido.

Éramos à mesma animais sociais, só que parte integrante de um grupo a que foram acometidos deveres acrescidos diferentes que, bem ou mal, aceitamos e juramos cumprir o melhor possível, pese à custa de quaisquer sacrifícios. A Sociedade envolvente por quem devíamos zelar, isso esperava de nós.

Melhor ou pior tínhamos sido minimamente preparados física e psicologicamente para assumir esse papel do grupo e individual e colectivamente íamo-lo assimilando, mais ou menos natural e enraizadamente com maior ou menor intensidade, acabando por se tornar de certo modo instintivo em momentos de tensão e risco.

Na rua principal e frente à porta de armas em Bula, havia a bomba de combustível onde os veículos militares se abasteciam sempre que necessário. Um Unimog 404 (grande) estava a ser abastecido por um condutor da “Força”.

Empunhando a mangueira de abastecimento, se a memória me não falha, o Lamas abastecia o veículo com a gasolina e a dada altura - julgou-se que devido a uma descarga de electricidade estática - chamas irrompem do bocal da mangueira. O liquido vertido incendiado pega fogo ao pneu traseiro da viatura e avivando-se começa a alastrar sem controlo, por ela e pelo chão.

Apercebendo-se da iminência de um possível desastre causado pela eventual explosão dos depósitos, o pessoal nas proximidades não está de modas e dá às pernas para local mais “confortável”.

O Lamas, ao perceber o perigo iminente e alheando-se duma provável explosão, monta-se na viatura e arranca o mais velozmente possível com o rodado a arder, conseguindo fazer com que a deslocação do ar não permitisse que o fogo alastrasse ao depósito e acabasse por se extinguir.

Tudo bem quando acaba bem!

Os meus olhos tinham presenciado um momento que a meu ver fez um Herói, ainda que e ao que sei, sem o reconhecimento merecido, como tantos! Ficou isso sim, na memória de muitos o acto de altruísmo e coragem que aqui descrevo o mais fielmente que recordo, lamentando verdadeiramente a não certeza do nome do actor.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9354: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (48): Bula - estória de uma foto

sábado, 14 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9354: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (48): Bula - estória de uma foto

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 11 de Janeiro de 2012:

Amigo Carlos Vinhal
Segue mais uma estória de “Viagem…” que poderá trazer às lembranças Camaradas que em dado momento se voluntariaram em nome de uma ou outra razão, assumindo riscos que lhes não caberiam. Devo dizer que me merecem todo o respeito.

Que 2012 seja ultrapassado com saúde e que as amizades se fortaleçam.
É o meu desejo para ti e para todos

Abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (48)

Bula – estória de uma foto

Companheiros de guerra havia - julgo que em especial daqueles que pertenciam aos serviços e se encontravam integrados em Batalhões ou Companhias estacionados em centros populacionais mais importantes - que não queriam regressar a casa no final da comissão sem terem saído pelo menos uma vez para o mato.

Uma fotografia carrega (va) com ela uma dessas estórias. Estou cansado de a procurar… não aparece! Sinceramente gostava muito de a encontrar. Na certa não havia (há) outra no mundo… será única esta fotografia original, tirada julgo no terceiro terço de 1972.
Preservei-a religiosamente durante trinta e tal anos … ficou até ver desaparecida, esquecida ou “surripiada” há bem pouco tempo, talvez numa qualquer mostra em reuniões nossas.
Tenho pena que tenha acontecido, pois como disse, carrega (va) com ela uma estória comum a alguns, talvez até a muitos Companheiros da guerra.

Por Bula íamos avançando nas semanas, intervalando ócio e lazer com emboscadas, operações, patrulhamentos e serviços, ansiando pela rendição que parecia não mais acontecer, mas que a cada dia ganho se ia aproximando.

Acontece que, sendo a “FORÇA” uma Companhia de intervenção, mas estacionada num aquartelamento sede de Batalhão, à altura pouco atreito a ataques, havia rapaziada dos serviços que nunca tinha saído para o mato em operações e como tal achariam talvez não terem ainda sentido verdadeiramente aquela guerra.

Assim, um ou outro não querendo acabar a comissão e regressar a casa sem ter minimamente vivido e usufruído dessa experiência, de modo a saberem e sentirem como era, para os finais de comissão e quando sabiam de saída para operações, pediam-nos para integrar o grupo, o que era consentido ou não, dependendo do risco do objectivo, da pessoa e da autorização do Capitão.
Claro que se tentava demovê-los e só o consentíamos se considerávamos o objectivo de pouca probabilidade de confronto, sendo que de qualquer modo o risco existia sempre.

É neste contexto que numa saída para Ponta Matar se apresenta o Lourenço, Fur. Transmissões (o “Metralha”), equipado a preceito e qual “repórter de guerra”, acompanhado da sua quase inseparável “Asai Pentax”(?) pendurada ao pescoço. Instruo-o de que o lugar dele será atrás de mim, que deverá fazer tudo o que me vir fazer, sem despega.

O grupo arranca e lá vamos pela noite cumprindo a missão destinada, que se antevia calma e sem incidentes. A manhã encontra-nos deambulando em plena mata com o Lourenço procedendo como combinado e a assentir que tudo estava bem com ele. O tempo vai passando e registos fotográficos para memória futura, vão ficando na maquineta.

Sem mais nem para quê o tiroteio rebenta. O amigo Lourenço havia ganho a aposta e a experiência desejada, ainda por cima com “picante”que não se antevia.

Dias mais tarde, são-me mostradas as fotografias tiradas, e no lote havia a tal de que falo e anda desaparecida, que a pedido me foi oferecida na altura. Gostava mesmo de a vos poder mostrar, contudo, na impossibilidade actual espero ter a arte e o engenho para a descrever de molde a que possam observá-la como se à estampa tivesse sido dada.

É uma foto de grande nitidez e originalidade, tirada nas matas de Ponta Matar. Não regista nem uma nesga de chão, nem uma árvore, nem uma pessoa, nem qualquer objecto… nada a não ser uma única haste de capim focada em grande - plano até meia altura do rectângulo fotográfico, majestosa e erecta, perfeitamente centrada na foto e tendo o céu como fundo.

O Lourenço atirando-se para o chão tinha feito o que eu na certa fiz e a foto única e original, talvez inesperada e tirada debaixo de fogo em ângulo superior a 45º… aconteceu.

Luís Faria

Foto LF
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9237: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (47): O fugitivo

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9237: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (47): O fugitivo

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 16 de Dezembro de 2011:

Amigo Carlos Vinhal
Cá vai um apontamento de “Viagem…” mais uma vez vivido na primeira pessoa e que traduz em certas situações o despoletar de comportamentos humanos por vezes potencialmente perigosos.
Como já sabes, publicarás se achares com um mínimo de interesse.

Aproveito para desejar a todos um BOM NATAL
Um Abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (47)

O fugitivo

Se bem me recordo, poucas para não dizer raríssimas, foram as vezes em que estive escalado para serviço do dia, durante a minha passagem pela Guiné. Talvez pela antiguidade ou por a actividade operacional não o permitir. Já não sei!

Uma dessas excepções aconteceu em Bula onde estive de Sargento de Dia ou da Guarda. Creio que de Dia, já também não recordo, o que não tem importância alguma hoje mas poderia ter tido à época, deixando de ser recordação de uma passagem hoje chistosa, para mim e talvez para quem se possa recordar dela.

Nessas funções chega-se a hora do jantar e dirijo-me para o refeitório dos Praças, exercendo uma das minhas atribuições. A noite é escura, o refeitório está cheio com o Pessoal do Batalhão e vou cirandando por lá! A janta decorria com a algazarra normal e em ordem até que de repente se ouve, vindo do exterior próximo mergulhado na noite, algo do género: ”O fdp do turra fugiu…”

O sossego acabou. Havia na verdade um (pelo menos) prisioneiro turra na cadeia e ao que se ouviu tinha tido o desplante e arte de se pirar da “pildra” mesmo ali quase ao lado!

Alguns Rapazes saem a terreno em penumbra e ao avistarem um vulto começam-se a ouvir os incentivos do género “está ali… é ele, vai p´ro arame… agarra que ele foge… apanha o cabrão…”,  fazendo com que esses alguns se transforme de imediato numa mole de seguidores que em atropelo abandonam o refeitório para o lado pouco iluminado adjacente, sem dar tempo a nada.

Toda aquela massa humana, incendiada por estes apelos corre no escuro atrás do vulto avistado, que com algum avanço começou a parecer voar.

Saio do refeitório para o lado da parada, talvez para procurar informação do que se estava a passar, também já não recordo. Recordo isso sim, de momentos depois ver o perseguido logo seguido do maralhal a sair das sombras por detrás do dormitório (?) em direcção ao local onde eu estava. Saquei a pistola e grito-lhe ordem de parar, apostado em o deter antes que ele fugisse ou o maralhal lhe deitasse a mão.

O homem ofegante pára à minha beira, a rapaziada também e à luz constata-se o erro que poderia ter trazido consequências graves e irreversíveis. Não era senão um Soldado (?) ou Milícia (?)!!

Alguém tinha avistado uma silhueta na escuridão a sair das imediações da prisão e julgando ser o “turra” gritou o alerta. Por sua vez a silhueta ao ouvir e ao ver o maralhal começar a ir na sua direcção, em vez de parar, assustou-se e deu às de “viladiogo” ganhando asas nos pés e na certa “borrado de medo “(imaginem!), só parando à minha ordem e junto a mim.

Ainda bem que esta passagem pode ser recordada hoje com certa piada, por mim ou por outros que nela tenham sido actores, ou até por quem consiga imaginar a cena e o cagaço que deve ter apanhado o “fujão”. Talvez até, quem sabe, ele venha a ler isto e nos possa contar de viva voz o que sentiu!

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9147: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (46): A velhice em Bula

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9147: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (46): A velhice em Bula

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 4 de Dezembro de 2011:

Olá amigo Vinhal
Segue mais um pouco de “Viagem…” que, em traços gerais vai enquadrar já em Bula a “Velhinha” CCAÇ 2791 nos meses finais de comissão e até à sua saída para o Cumeré onde aguardaria o regresso à Metrópole.
Deste intervalo de tempo, algumas passagens que retenho por me terem marcado, continuarão a ser-te enviadas de modo a cumprir contigo a “Viagem à volta das minhas memórias”.

Um grande abraço para ti e votos de saúde e Paz.
Um outro abraço para o “Pessoal atabancado”, também com votos de saúde e Paz

Para todos um Bom Natal comedido (?) e um Novo Ano …vivendo!
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (46)

A “Velhice” em Bula - Generalidades

Se a memória e os tópicos me não atraiçoam, Abril acaba-se com a 2791 ainda em serviço nos destacamentos, tendo logo no inicio de Maio o meu 2.º GRCOMB arrancado para Bula onde vai recomeçar a actividade operacional, desenvolvendo emboscadas na estrada Bula - S. Vicente a par de operações de contra-penetração basicamente nas zonas de Ponta Matar, para além de patrulhamentos defensivos e de protecção às obras na estrada de Bula - Binar, que a breve trecho viria a ser inaugurada pelo Sr. Ministro.

Ao final de Junho a “Força” sai dos destacamentos e reúne-se dando continuidade à actividade desenvolvida, enquanto se aguardava a rendição. Com esta reunião e para meu contentamento, regressa ao comando o Cap. Branco.

O Julho acaba com novo desmembramento em que o 4.º GRCOMB é destacado para Nhamate para colaborar em acções de defesa a Bissau, enquanto os restantes continuam no seu quotidiano, aguardando a rendição esperada mas que tardava e que acabaria por só chegar nos finais de Agosto, personificada na Rapaziada da 3.ª CAÇ/BCAV 8320. Até que enfim!

Se tínhamos aguentado até ali, havia que fazer tudo por tudo para evitar complicações e problemas. Achava que devíamos jogar o mais possível com a segurança e não nos deixar levar por exibicionismos aventureiristas de “Velhice” que pudessem redundar em desastre.

De um modo geral julgo que este período de Maio até final da comissão, foi vivido com esperança e sensatez, o que terá contribuído para evitar problemas de maior nas situações que fomos obrigados a enfrentar. Ainda bem, já que o Pessoal entrou neste período em 15 operações, algumas delas com recontros mas sem danos de maior.

À minha parte estava destinado um final de comissão “cú de boi”, já que fui “promovido” em parceria com “privilegiados” de outras Companhias, a levantador de minas no extenso campo que se desenvolvia pelo lado Leste da estrada Bula - S. Vicente e onde já tinha andado a “plantá-las” ano e meio atrás. Foi na verdade um bom “biscate” donde uma, julgo até que a grande maioria dos escolhidos e éramos bastantes, não saiu ilesa infelizmente!

Nesta missão, valiam a Fé, o conhecimento, a serenidade, a atenção, o cuidado, a precaução, a certeza, a não rotina, a sorte… Não valiam a ansiedade, o cansaço, a distracção, o facilitismo, a confiança rotineira, a pressa, o eufórico…

As evacuações sucediam-se, o moral baixava, os trabalhos eram suspensos e de novo recomeçavam. Eram manhãs somadas e contínuas de desgaste intenso, físico e psicológico em especial, onde nunca se tinha certeza alguma se o momento seguinte nos seria fatídico ou nos estropiaria, atirando-nos para uma eventual dependência de terceiros que, pelo menos para mim, não era suportável.

Foram na verdade manhãs - só se “trabalhava” até à hora de almoço - intensas, vividas muito intensamente. Ao mesmo tempo e falo por mim, também havia momentos de certo modo libertadores em que nós próprios nos confrontávamos e interrogávamos, nos ficávamos a conhecer melhor, nos sentíamos em paz interior, talvez mais próximos de Deus, o que creio nos ajudava a ultrapassar serenamente os medos e receios que vivíamos.

As tardes, claro, eram para descanso e extravasamentos de variada natureza de molde a reequilibrar o espírito pois que… na manhã seguinte havia mais!

Luís Faria

Salta "Pira”

A “Velhice” do meu 2.º Grupo de Combate

Furriéis da “FORÇA”

Fonte de Bula e as belas lavadeiras

Fotos © Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9032: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (45): Destacamentos - Pedaços

sábado, 12 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9032: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (45): Destacamentos - Pedaços

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 10 de Novembro de 2011 com mais uma viagem à volta das suas memórias:

Olá Vinhal
Saúde e força para nos aturar?
Apostado que sim, cá te mando uns pedaços de lembrança que , já o sabes usarás se assim o achares.
Um grande abraço para ti e um outro para todos "atabancados"
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (45)

Destacamentos - Pedaços

Os dias nos destacamentos continuavam a passar com a sua morosidade, sem quaisquer problemas em especial e talvez por isso mesmo com poucos registos de memória, para além de um ou outro, isolados e até desenquadrados eventualmente no tempo.

Destacamento de João Landim – visto da estrada

De Mato Dingal, parece-me, recordo uns tiraços em noite escura, reacção de sentinelas devidamente acordados no seu posto de vigília, zelando pela segurança e bem estar dos companheiros adormecidos que se levantam em sobressalto e desembestam, estou em crer, para os locais de defesa para, sem mais tiros repelir o ataque aventureiro e traiçoeiro perpetrado por “turras” que tiveram a desfaçatez e ousadia de importunar a nossa paz e sossego - que tínhamos merecido, - e que afinal não eram senão… uma vaca, creio.

Ainda em Mato Dingal, creio, recordo uma cerimónia fúnebre a que assisti, não sei se convidado se de moto próprio. Foi algo que nunca tinha presenciado e não mais presenciei. Talvez fosse de Homem Grande, talvez Balanta, não lembro. Ao que me parece, foi enterrado embrulhado em pano (creio branco) tipo múmia, numa espécie de poço feito para o efeito na proximidade da morança (?) onde foi depositado na vertical. Na lateral do poço havia uma reentrância onde fora depositados objectos talvez de uso pessoal (?). Foi o que retive para além da ideia de ter havido alta e prolongada festa e de nos terem ofertado carnes.

Como estas recordações me são um bocado ”embrulhadas”, alguém que se queira pronunciar em esclarecimento, agradeço a atenção.

Também aconteceu lá em Mato Dingal, descobrir que o belíssimo forno não servia só para assar os leitões e outros… bem, o Jorge Fontinha que conte.

Os dias foram passando, os primeiros de Fevereiro vieram e com eles as férias e a ida ao “Puto”, desta vez e infelizmente sem patrocinador.

Da canícula guineense ao frio gelado e chuvoso da belíssima paisagem nortenha e ao calor de família, amores, amizades humana e canídeo, foi uma questão de horas e mais algumas para arrumar para um canto um pedaço de vida passada, embrulhado e resguardado o melhor possível.

Em contraposição agora os dias já de si curtos, passavam no “goss goss”como se a guerra tivesse urgência na minha presença! Os dias voaram.

Por aquela terra nortenha devem ter ficado as minhas pegadas na caça à passarada, acompanhadas pelas do “Pilim”, canídeo perdigueiro pintado de dálmata, que adorava abafar qualquer ave esvoaçante, mesmo doméstica galinha, pato, ou fraca, que se passeasse pelo terreiro, abocanhando-lhes a cabeça sem as ferir e indo-as depositar estendidas e inertes à porta de casa, para arrelia de minha Mãe – para quem essas aves eram uma delícia para o olhar – e gáudio de meu Pai que o afagava, como incentivo à persecução da eliminação de predadores de sementeiras, a par das arrozadas e assados que proporcionava! O meigo animal saltava de alegria.

Depressa chegou dia das saudades na certa e entre outras, talvez da lareira em óptima companhia e ao toque de um verdasco parceiro de um chouriço ou presunto e ao som de chuva possivelmente entremeada de farrapos brancos, esparramando-se nas vidraças quadriculadas de pequeno.

A par foi a hora em que houve que retirar o embrulho do canto em que estava arrumado, colocando de novo esse pedaço de vida resguardado, estendido e bem à vista de modo a que não esquecesse as lições nele apreendidas e que podiam contribuir para o aumentar, até ao despontar de um novo ciclo que sonhava e que julgava estar a breves meses de alcançar. Estava de novo em Augusto Barros.

Destacamento de João Landim

Por lá passei uma temporada, interrompida por uma estada substitutiva em João Landim, destacamento como Mato Dingal à face da estrada mas na proximidade do Mansoa. De recordação fiquei com a do João, elemento do 1.º GCOMB.

Este homem – sim à altura já todos tínhamos sido forçados a ser homens, feitos e marcados, bem marcados – simples e valente mas não sendo nenhum Einstein, havia ganho e merecido o direito de regressar a casa, esperavamos em Junho, o que ao que lembro não aconteceria se não fizesse creio que a 4.ª classe, talvez mais propriamente “saber ler e escrever”.

Ora o João, ao que me parece recordar, pouco ou nada sabia de escrever ou ler, pelo que fui nomeado seu “professor”. Em tão pouco tempo iria ser um trabalho dificil e paciente para ambos, impossível talvez.

O trabalho começou e diáriamente, com maiores ou menores esmorecimentos foi prosseguindo com o objectivo minimo de conseguir conhecer as letras, juntar algumas e lê-las, escrever o seu nome e pouco mais. O resto havia de se conseguir de qualquer jeito.

As “aulas”, dadas no espaço afundado parece-me à altura das camas e coberto da camarata, foram-se somando a par de pouca evolução académica. A motivação primeira era a “peluda” mas por vezes o combate ao desânimo do “aluno” era ineficaz, transformando-se a aula numa perda de tempo e paciência.

Um dia, estou a descer os três ou quatro degraus para dar mais uma aula e… o João aponta-me a G3 ameaçando que disparava se não me for embora !? Recordo ficar estáctico, receoso e sereno e falar… a tensão é muita… a arma baixa e fico-lhe com ela… chora, desânimo e nervos à flor da pele… destroçado pensa que está tudo perdido… não há queixas nem punições… o João alcança a “peluda”!

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8819: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (44): Destacamento de Mato Dingal, umas instalações seguras

domingo, 25 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8819: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (44): Destacamento de Mato Dingal, umas instalações seguras

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 21 de Setembro de 2011 com mais uma viagem à volta das suas memórias:

Olá Vinhal, um abraço
“Viagem à volta das minhas memórias” transporta-me destas vez a tempos vividos com certa tranquilidade e facilidade, em que e talvez por esse facto, a grande parte das lembranças que retenho são “flashes” intermitentes e sem sequência, não me permitindo com o mínimo de rigor situá-los em tempo e espaço ou enquadrá-los numa acção.
Talvez a 24 deste mês aquando da nossa reunião anual, surja alguma luz.

Um abraço a todos
Luís Faria

Viagem à volta das minhas memórias (44)

Destacamentos: Mato Dingal

Enquanto a passagem dos dias ia avançando morosamente, aproximando-me da partida para um mesito de descanso no “Puto”, recebo ordem para substituir em Mato Dingal o Alf Mil Gaspar que, creio foi de férias. Este era o primeiro destacamento que se encontrava na estrada asfaltada Bula – João Landim e onde estava estacionado o 4.º GCOMB.

Pequeno, aberto e simpático, confinava praticamente com o asfalto e se bem me recordo, atravessando-o entrava-se na tabanca habitada por uma população que rondaria as mil e duzentas almas, ao que lembro ordeira, fiel e prazenteira, talvez a que nos inspirava menos desconfiança.

Mato Dingal – neste buraco julgo que iria ser instalada a base do monumento

Aviso de “instalações seguras”

Se em Augusto Barros a vida não era má, por estas bandas era bem melhor. Eram tempos descansados, sem sobressaltos de especial e a proximidade e facilidade de chegar a Bula parecia-me fazer o tempo acelerar um pouco. Idas a Augusto Barros seriam as indispensáveis para abastecimento de géneros e poucas mais.

Não houve qualquer dificuldade em assumir de novo e temporariamente o comando do pessoal daquele destacamento. Rapaziada e eu conhecíamo-nos bem e entrosávamo-nos melhor! Daí tudo sair facilitado e não haver incidentes ou questiúnculas e a disciplina e segurança necessárias eram, digamos assim, adaptadas automaticamente.

Bons dias por lá passei e em boas companhias.

Exercer e promover a “psícola” era mais para os Furriéis Fontinha e Chaves (Obelix). Ao que recordo a tabanca era deles?! Nesse aspecto e pela minha parte como responsável pelo destacamento, resguardava-me um tanto, não me fragilizando para o caso de ter de exercer a autoridade que detinha, num qualquer diferendo que houvesse com a População. Que lembre só tive um, por causa de um leitão. Deu-me até umas dores de cabeça com o Comando, Coronel “dez para o meio-dia” que quase ficou com a cabeça no “meio-dia certo”, de tanto barafustar comigo.

Por aquelas bandas tive a oportunidade der usufruir de experiencias novas, talvez até inovadoras, de que recordo três:


A “Vagomestria”

Já não sei se inerente ao cargo se por moto próprio, assumir a função de Vagomestre foi uma delas, interessante e motivadora, que ainda hoje nos encontros é por vezes evocada com bocas “foleiras” e risos do tipo: - “Oh Faria… até ao dia vinte tirava-se a barriga de misérias, mas depois… era só “bianda” com “bianda”…! (claro que o vernáculo vem a seguir). “Perdoai-lhes deus (menor) pois não sabem o que dizem”!!!

Na verdade foi mais ou menos assim naqueles um ou dois meses (já não posso precisar) que por lá passei. Comia-se bastante bem em variedade, quantidade e qualidade, esta devida ao Cozinheiro que era espectacular. Só nos últimos dias do mês, com o “patacão “ dos frescos tão esgotado que nem dava para o meu maço de tabaco, contratualizado comigo mesmo, é que se comia “à quartel” !? (modo de dizer, sem ofensas nem juízos de valor).

Pois…, logo de início avisei o pessoal que se ia comer à maneira e que aquela trabalheira toda teria que dar para um maço de tabaco (Português Suave sem filtro) diário.

Já não estou certo se o “desvio”aconteceu ou não …talvez sim (?!) mas o que é facto e ao que sei, comia-se quase como num hotel, chegando a vir por vezes pessoal de outro destacamento ( João Landim) e até de Bula, saborear o repasto, à borla é claro.

Tenho ideia de fazerem parte da ementa o bacalhau com todos (inclusive meia lata de vagens para cada um) , leitão assado no forno; frango assado ou frito (meio para cada), bife com ovo, peixe frito e cozido… de sobremesas recordo as meias latas de fruta em calda para cada boca… acompanhamento de saladas …

Todos esses “pesos” que recebíamos para gerir em “frescos”, eram gastos em abastecimentos na tabanca, em Bula e Bissau. Julgo que seria normal, esperado e até incentivado, que boa parte deles fosse também utilizado em abastecimentos na Companhia. Claro que isso seria mais prático, mais cómodo e daria menos dor de cabeça ou trabalho. Mas connosco, não acontecia!

Quem não achava muita piada era o nosso Primeiro, já que era eu e só eu que escolhia o que queria dos produtos disponíveis da Companhia e não abdicava nem de um “peso” da dotação para o que se chamava “frescos”. Olhado de “ladegos” quando lá ia, era um “exemplo a não seguir”.


A minha “Obra prima”

Descobrir a “propensão“ para as “Artes plásticas” (?!), foi outra experiencia de excepção que me entusiasmou e que resolvi exercer em benefício estético visual das instalações (?!), do equilíbrio emocional (?!) e em prol da “coltura” um tanto ausente (?!)!

Correndo o risco de acabar por ser vaiado ou mesmo escorraçado por “elites” cépticas, tinha que meter cabeça e mãos ao trabalho.

Desde logo foi imperioso um pouco de tranquilidade e paz de espírito, que permitiu à sensibilidade criativa (?!) “atonar ”. Depois não foi fácil escolher e conseguir os materiais necessários à execução que se adaptassem e permitissem a livre expressão da Alma, convertida ao momento pelas mãos e perspectiva visual!?!

Tempo depois e muita concentração, uma obra que recordo acaba por ver a luz do dia. Prima para mim, nela usei toda a sensibilidade a par de muito e delicado manuseamento, compensado é certo pelo deleite que se usufruía consoante se ia mirando e sentindo. Era para mim, realmente prima !?! Prima de primeira, é bom não haver confusões. Nada de “Quanto mais prima, mais se lhe arrima!”

Como à altura não a queimaram nem houve críticos quezilentos ou desfavoráveis, quiçá por receio de represálias, por lá ficou em todo o seu esplendor à entrada da messe, ofertada e ao serviço da “coltura”, digo eu!? Resta-me a imagem que vou postar, para eventual deleite de quem a vier a mirar e sentir! É de nota o posicionamento do confortável “sofá”, de molde a melhor permitir que o apreciador se deixasse levar pelo sonho.



Obra Prima - “Procópio a cachimbar na canícula” (será o nome?)

Bem, mas nem só nas artes (Culinária e Plástica) se viveram novas experiencias, também no Desporto aconteceu, de modo efémero, é certo.


O jogo de “cacimbados”

À falta de “matrecos” e bilhar, só a bola constava no cardápio do desporto. Assim, uma “mente brilhante” gastou-se – depois deve ter-se agastado (não lembro) – na invenção de um jogo que permitisse campeonatos rápidos e musculados e ao mesmo tempo direccionado ao apaziguamento subtil da acção de quaisquer vapores etílicos acumulados anteriormente. Assim nasceu um jogo, viril e nada entediante, uma espécie caseira de “Air hóquei” (se bem lhe chamo), em que os instrumentos do jogo eram a mesa da messe, uma lata de coca – cola, os punhos dos adversários.

Com em todos os jogos, o objectivo era… ganhar. Creio que o tempo de jogo era definido (e pouco) e quem perdia (talvez uma cervejola) era o “atleta que sofresse mais golos ou desistisse antes de acabado o tempo. Assim podia acontecer que quem marcasse mais golos… perdesse. A coisa estava bem engendrada e como se poderá perceber, até final do tempo a vitória era uma incógnita, já que a resistência física e psicológica era crucial ao desempenho.

Assim, nos topos da mesa da messe (distanciados talvez uns dois metros passantes) abancavam os dois adversários e para os espectadores, caso houvesse, não havia lugares sentados! Tirada a sorte para ver quem abria a jogatana, uma lata de “Coca-Cola” cheia era-lhe colocada à frente e com uma murraça o jogador tentava que a “bola” saísse pelo topo da mesa contrário, onde também a murro (só eram permitidos murros) o adversário tentava defender, mandando-a de volta para o outro, agora a defender e assim sucessivamente até surgir o golo. Posta a “bola” de novo em campo, o flagelo continuava.

Como se compreenderá, os nós dos dedos é que sofriam ao aguentar o impacto da massa aumentada pela velocidade que a “bola“ atingia …enfim! Como pelos vistos não havia suficientes cacimbados masoquistas, este potencial belíssimo campeonato foi na verdade efémero.

Luís Faria

(Texto e Fotos: Luís Faria)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8546: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (43): Augusto Barros - Apontamentos

terça-feira, 12 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8546: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (43): Augusto Barros - Apontamentos


1. Em mensagem do dia 8 de Julho de 2011, o nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), conta-nos mais um pouco da viagem às suas memórias.


Viagem à volta das minhas memórias (43)

Augusto Barros - Apontamentos



Como já anteriormente disse ou dei a entender, neste destacamento a vida era uma espécie de pasmaceira, comparativamente ao que estávamos habituados. Basicamente só tínhamos que lutar contra o tempo, que corria a conta-gotas e para tentar contrariar essa baixa velocidade de passagem, usavam-se todo o tipo de estratagemas.

Para além das petiscadas e dos comedores de ostras, já mencionados em Poste anterior, havia os pequenos agricultores caseiros, que se ufanavam e ainda bem também para nós (os aproveitadores) consumidores (?!)

Nessa ”classe” o Furriel Almeida orgulhava-se do seu canteiro de alfaces, tomates (?) e outras hortícolas que ofertava e confeccionava com prazer e “superioridade” superintendente, gostando pouco que alguém mexesse na sua leira que dizia estar sempre a produzir e que o fazia ficar admirado com a pobreza agrícola daquelas gentes!

Detestava e com razão que alguém se apropriasse de qualquer folha que fosse, sem prévia licença. A pequena horta era a menina dos seus olhos, a que dedicava parte do seu tempo com prazer, orgulho e até, parecia-me, certa ternura. “Olha-me para isto… não é um espectáculo, pá ?!” dizia (mais ou menos). ”Esta terra está sempre a dar… não entendo… nem é preciso puxar por ela…!”

Era e é um Beirão de metas a atingir, exigente mas defensor do seu Pessoal, de nobres sentimentos e que acabou nos finais da comissão, por alturas do levantamento do campo de minas, por sofrer bastante psicologicamente, devido (creio) a constatar quase diariamente situações que foram graves para bastantes dos “contratados”, mas lhe eram alheias na medida em que não estava nelas envolvido e como tal não tinha controlo nem podia interferir. Disse “dos contratados” porque o “contrato” pelo menos comigo foi que, no final do levantamento podia ir de férias para qualquer parte da Guiné, até ao dia de embarque. Como ainda hoje… promessas leva-as o vento !!!

Aspecto de Augusto Barros (creio ser o refeitório em fundo)

Augusto Barros - Um treininho de bola

Depois… havia o “Capitão caçador” que arrancava noite adentro para terrenos pouco seguros, com um 412 ou 411 equipado com foco direccional e meia dúzia de “galfarros “ voluntários não para caçar, mas para eventualmente não ser “caçado”! Devo dizer que nunca fui e sempre me opus quanto e na medida em que me foi possível. Achava que os Rapazes corriam um grande risco a acrescentar ao já normal por aquelas paragens e já que se tinha conseguido chegar até ali, passando pelo que havíamos passado… era a meu ver (e ainda hoje) uma estupidez e uma irresponsabilidade que poderia ter afectado terceiros! Mas… era o Capitão “sazonal”.

Lá partia ele e “companhia”, faróis rasgando a noite com focos à mistura, à procura de olhos brilhantes no breu da escuridão que pudessem ser de alvo a abater. Que recorde, naquelas incursões só um gato-bravo teve esse azar.

Um belo dia soube-se que por um acaso da sorte, ”caçador” e companhia não viraram “caça” por uma questão de “horário”. Tinham falhado por pouco uma emboscada, “festa surpresa” especificamente preparada em sua honra! Ao que recordo, acabaram-se as caçadas e ainda bem, pois acabou por ninguém se “aleijar”.

A minha pessoa, que no entretanto tinha mudado de visual  (!?) com uma valente carecada auto-infligida, por lá se ia movimentando no tempo e espaço, gerindo e cumprindo o melhor possível com os deveres, prazeres e receios também.

Dessas andanças recordo idas a Bula montado na direita do pára-choques do 411, “bunda” assente no capô(t), arma abraçada e olhos que pretendia de águia a perscrutar os metros fronteiros de terreno de picada irregular e ressequida, percorridos vagarosamente na expectativa de vislumbrar um qualquer indício de remexida abusiva na terra ou outro qualquer sinal dissimulado, prenunciador de mina ou armadilha colocada após a picagem diária, especialmente em alguns locais mais vulneráveis. Não me perguntem porquê, mas sentia um certo prazer e ao mesmo tempo segurança ao assumir o risco previsto mas precavido.

Os dias iam-se escoando aproximando-me vagarosamente de umas novas férias no “Puto”. Isso era importante, muito importante para a sanidade mental.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8357: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (42): Destacamentos: Augusto Barros e o Grupo das Ostras