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segunda-feira, 5 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13100: Notas de leitura (586): "O Tráfico de Escravos nos Rios da Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)", por António Carreira e "Mário Soares e a Revolução", por David Castaño (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2013:

Queridos amigos,
António Carreira é um nome incontornável de toda a historiografia da Guiné portuguesa.
Neste seu trabalho publicado em 1981, de forma esquemática dá-nos um quadro das últimas décadas do comércio negreiro, e quando chegou o seu termo qual foi o profundo impacto que teve nas economias de Cabo Verde e dos rios da Guiné.
Com base nestes elementos, pode igualmente estender-se o estudo às consequências do “povoamento” cabo-verdiano no espaço guineense, agora direcionado para a economia agrícola.

E sugere-se a leitura de um livro que adapta a tese de doutoramento de David Castaño para se ter uma visão integrada, do lado português, do conjunto de vicissitudes em que decorreu o processo de reconhecimento da independência da Guiné-Bissau onde Mário Soares teve um papel de indiscutível relevo.

Um abraço do
Mário


O tráfico de escravos nos rios da Guiné na 1ª metade do século XIX

Beja Santos

Devemos a António Carreira algumas das mais significativas peças da historiografia envolvendo a Guiné Portuguesa bem como Cabo Verde. No seu trabalho “O trafico de escravos nos rios de Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)”, edição do Centro de Estudos de Antropologia Cultural da Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1981, que Carreira chama subsídios ou sucintas notas que possam contribuir para o esclarecimento de alguns dos variados e complexos problemas do tráfico negreiro na área geográfica situada entre o rio Senegal e a Serra Leoa, revelam-se algumas surpresas que os estudiosos não podem ignorar.

O proeminente investigador começa por recordar os pontos fundamentais da regulamentação do tráfico nos rios de Guiné e ilhas de Cabo Verde. Quando se fazia um contrato de arrendamento de uma área de tráfico ficava acordado que os navios que se dirigissem àquelas paragens teriam obrigatoriamente de registar a entrada na Alfândega de Ribeira Grande, de Santiago; e completada a carregação do navio, este era obrigado a voltar à Ribeira Grande, pagar os direitos devidos e depois seguir para os portos de destino. As autoridades das praças da Guiné ficavam, pois, limitadas a fiscalização e cobrança de propinas pela entrada de mercadorias, com este dinheiro pagavam-se os seus ordenados. Também deste modo se controlava a saída de escravos. A situação não era do agrado tanto das autoridades dos rios como dos traficantes, era uma operação morosa que agravava despesas e acarretava mortandade nos escravos. Mas a Coroa não transigia no papel da ilha de Santiago no apoio ao comércio dos rios. Com a Restauração, surgiu a ideia de se autorizar o despacho dos navios nos portos de carregamento, o que permitia o pagamento de direitos dos escravos em Cacheu destinados aos portos do Brasil. Esta medida concorreu para aumentar o tráfico clandestino que não era detetado pelas autoridades de Cacheu, Ziguinchor e Bissau, o resto era verdadeira “terra de ninguém”. A Praça de Cacheu recebeu um provedor da Fazenda e era obrigada a rigorosa escrituração. Traficantes sediados em Cabo Verde passaram a comprar escravos nos rios, levando-os para o arquipélago e depois exportando-os tanto para as Antilhas como para o Brasil. Acelerou a concorrência estrangeira, a legislação torna-se ineficaz, criou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde e assim se levou por diante a construção da fortaleza de Bissau. Carreira enuncia a cobrança de taxa por escravo e a sua evolução. Compulsada a documentação, Carreira chegou a números de escravos destinados ao Maranhão, ao Pará e outras paragens, no século XVIII Cabo Verde deixara de servir de entreposto à exportação de escravos.

Pelo Tratado de Viena de 22 de Setembro de 1815 decretou-se a proibição do tráfico de escravos ao norte do Equador. Em 1836, a legislação portuguesa decretava “proibida a exportação de escravos, seja por mar, seja por terra, em todos os domínios portugueses sem exceção, quer sejam situados ao norte, quer ao sul do Equador”. Mas no período intercalar havia taxa de direitos de entrada no Brasil oriundos dos rios da Guiné e Cabo Verde, o que significa que os acordos eram para inglês ver. O que Carreira observa é que se assistiu a um declínio do tráfico lícito e ao agravamento da crise económica e financeira na região dos rios da Guiné e o arquipélago de Cabo Verde. Cabo Verde assistia ao definhamento dos pequenos comerciantes, em 1772-1774 houve uma grande fome, uma hecatombe que inviabilizou a recuperação económica. A economia cabo-verdiana teve de se recentrar no apanho da urzela e na tecelagem de panos. As crises sucediam-se e a Corte declarou-se incapaz de acudir à crise de negócios nas ilhas.

Nos rios da Guiné também o comércio em geral decaia, os Djilas tornaram-se figuras de indiscutível importância. É neste contexto que os espanhóis que sempre tinham fugido a embrenhar-se diretamente no tráfico de escravos, passaram a fornecer mercadorias diversas e dinheiro aos traficantes cabo-verdianos – era a corrida ao abastecimento de Cuba. Escreve Carreira: “De 1835 a 1839 circulavam na área, afetos ao tráfico clandestino de escravos, 55 navios registados em nome de cabo-verdianos (…) A um mesmo tempo nos rios da Guiné os conflitos entre as diversas etnias do território, longe de se aplanarem, prolongar-se-iam até aos últimos anos do século XIX, com as inevitáveis repercussões nas relações comerciais e sociais entre as gentes do mato e as das praças e presídios. Entre 1820 e 1850 estes núcleos eram, no Norte (Cacheu e Ziguinchor), liderados por algumas famílias abastadas e em Geba e Bissau treze negociantes principais".

Carreira dá-nos um quadro da atuação do coronel Joaquim António de Matos e de Caetano José Nosolini, dois dos principais negociantes de escravos da época, fica com má imagem dos diferentes locais onde se iam abastecer e em que quantidades. Nosolini será protagonista das incursões inglesas em Bolama em tempos de grande tensão em que a Grã-Bretanha se julgava com direito absoluto sobre a ilha de Bolama.

Por último, uma palavra sobre o combate ao tráfico a cargo dos cruzeiros britânicos e o aprisionamento de navios e de escravos. De 1835 a 1839, com escravos a bordo foram referenciados 36 armadores com um total de 55 navios, 39 foram condenados a penas de multa, com ou sem confisco do casco e carga; do conjunto de navios, 15 eram espanhóis e 40 portugueses. Havia também navios considerados “suspeitos” já que transportavam apenas mercadorias destinadas ao “negócio da escravatura” (aguardente, pólvora, espingardas, terçados, barras de ferro, tabaco, vinho…). Para além destas mercadorias, também estavam sujeitos a apresamento os navios que tivessem escotilhas com grades abertas; gargalheiras, algemas, anjinhos, cadeias ou outros instrumentos de contenção, quantidade extraordinária de selhas, gamelas ou bandejas para a distribuição do rancho, quantidade extraordinária de comida, etc. A confiar na documentação existente, o comércio de escravos reduziu-se bastante a partir de 1841 devido à vigilância dos cruzeiros britânicos. Carreira considera que encontrou uma reduzida documentação, deparou-se com lacunas nas fontes de informação e foi forçado a desistir do propósito do seu estudo.

Imagem retirada do site Revista de História.com.br, com a devida vénia

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Leitura recomendada: "Mário Soares e a Revolução", por David Castaño

“Este livro procura responder a uma simples questão: ao conseguir traçar o seu próprio destino terá Mário Soares contribuído para condicionar e alterar o destino coletivo?”.
Com base na sua tese de doutoramento, o historiador David Castaño procura apresentar um retrato rigoroso e objetivo da afirmação política de Mário Soares nos anos decisivos da revolução de Abril. Trata-se do livro “Mário Soares e a Revolução”, por David Castaño, Publicações Dom Quixote, 2013.

Em síntese, e exclusivamente para os propósitos desta nota, Castaño começa por descrever a formação ideológica de Soares, a sua passagem pelo PCP, as principais etapas da sua oposição ao Estado Novo, a formação da Ação Socialista (embrião do PS), o seu exílio em Paris, o regresso em 28 de Abril de 1974, momento em que se encontra pela primeira vez com Spínola que imediatamente lhe pede apoio para publicitar os propósitos do levantamento militar junto de instâncias internacionais, com relevo para os partidos da Internacional Socialista. É nessa ocasião que Soares pede a Spínola um esclarecimento que reputa de fundamental, quer conhecer o seu desenvolvimento, direito ou indireto, no assassinato de Amílcar Cabral. Spínola responde-lhe prontamente que não teve qualquer comprometimento com a morte de Cabral.

Soares começa o primeiro périplo europeu como enviado da Junta de Salvação Nacional. Após a formação do primeiro governo provisório inicia-se o processo que conduzirá à descolonização. Recomenda-se a todos os interessados por conhecer o enquadramento das diligências que levaram aos acordos de Argel e ao reconhecimento do PAIGC pelo Estado português que consultem esta obra entre as páginas 115 e 168, está aqui o registo das conversações, das tensões entre Spínola e Soares e as manobras diplomáticas desenvolvidas em vários continentes.

É indiscutivelmente uma súmula de factos que dão a visão do lado português desses momentos cruciais que conduziram de facto à independência da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13081: Notas de leitura (585): "O Pano Artesanal na República da Guiné-Bissau", por Isabel Borges Pereira Mesquitela (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12688: Notas de leitura (560): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 1 de 4 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Setembro de 2013:

Queridos amigos,
Ao longo de anos, foram-se reunindo vários painéis sobre a descolonização da Guiné nos conceituados encontros da Arrábida.
Como se pretende, dentro das nossas modestas possibilidades, fazer um arquivo do que de essencial se tem escrito sobre a Guiné, a sua guerra, a sua história, a sua cultura, e até a sua descolonização, não teria sentido deixar de dar a voz a diferentes protagonistas e aos seus depoimentos por vezes muito relevantes.
Faz-se aqui a síntese do painel de Agosto de 1995, em breve se dará seguimento aos outros que tiveram lugar naquela idílica serra da Arrábida.

Um abraço do
Mário



A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas (1)

Beja Santos

No site que se indica (http://www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/guine.htm) o confrade tem acesso a sucessivas jornadas de trabalho promovidas no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida dedicadas à descolonização portuguesa. A Guiné foi alvo de várias jornadas de trabalho, aqui se sintetiza a primeira, pelo adiante se resumirão as posteriores. Em 29 de Agosto de 1995, depuseram o general Mateus da Silva (membro do MFA e Encarregado do Governo da Guiné depois do 25 de Abril) coronel Carlos de Matos Gomes, Oficial dos Comandos, que pertenceu à primeira Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné e é o conhecido escritor Carlos Vale Ferraz, José Manuel Barroso, jornalista, capitão miliciano na Guiné e membro do MFA da Guiné e coronel Florindo Morais que foi o último comandante do Batalhão dos Comandos Africanos na Guiné.

O general Mateus da Silva referiu a atmosfera de uma quase contestação aberta dos militares a que se seguiu uma consciencialização política. Exemplificou com a revista ZOE que circulava desde Agosto de 1972 em todas as unidades do território com uma linha editorial que veladamente criticava a política do regime; e as reuniões realizadas na messe de oficiais de Bissau e no agrupamento de transmissões, em Agosto e Setembro de 1973, onde se falava já abertamente no derrube do regime. Na Guiné se foi construindo um ambiente específico que justificou ali um golpe de Estado em 26 de Abril, assinalou a contestação ao Congresso dos Combatentes, o facto da maior parte dos militares que veio a participar no 25 de Abril ter passado pela Guiné. E observou:
“A Guiné era a única colónia onde o MFA estava organizado antes do 25 de Abril; por duas vezes, antes do 25 de Abril, se encarou localmente a hipótese de iniciar a revolução. A Guiné foi o único território onde o MFA tomou a iniciativa de acompanhar o 25 de Abril com um golpe que destituiu o poder político-militar no território”.

A chegada do tenente-coronel Carlos Fabião, em 7 de Maio, veio reforçar a linha do MFA: reunia-se todos os fins de tarde com os quatro elementos da Comissão Central do MFA. Em 24 de Maio Fabião emitiu uma diretiva: “A partir desta data todos os militares que estão na Guiné pertencem ao MFA”. Repertoriou as múltiplas reuniões havidas na Guiné antes do 25 de Abril. Depois do 16 de Março, houve que estabelecer uma organização mais sólida para o levantamento e requereram-se apoios à Guiné. Aos poucos, constituiu-se na Guiné a direção da conspiração em que tomaram lugar o comandante do Batalhão de Comandos, os comandantes do Batalhão de Paraquedistas, o comandante da Polícia Militar, o comandante das Transmissões, o comandante da Engenharia e o comandante da Artilharia. Na manhã de 26 de Abril, o general Bethencourt Rodrigues foi detido na Amura, seguiu para Cabo Verde e daqui para Lisboa. Mateus da Silva, por decisão do MFA da Guiné, tomou posse como encarregado de Governo. As manifestações populares surgiram logo no dia 27, anulou-se a PIDE/DGS, libertaram-se os presos da Ilha das Galinhas. A grande instabilidade surgiu do Batalhão de Comandos, Spínola dissera repetidamente:
“Nunca o PAIGC tomará conta disto porque em último caso, se nós sairmos, vão ser vocês os líderes da futura Guiné”. A população agitava-se nas ruas, os Comandos entraram numa grande instabilidade.

Em 12 de Maio, Mário Soares reuniu-se com Aristides Pereira em Dakar, Senghor estava de visita à China, foram recebidos pelo primeiro-ministro Abdou Diouf, terminada a reunião em privado, todos se lançaram nos braços uns dos outros, a confraternizar como irmãos desavindos que finalmente se tinham reencontrado.

O coronel Matos Gomes debruçou-se sobre vários contextos: as linhas étnicas que atravessavam a composição do Batalhão de Comandos; o facto de que os mísseis implicaram uma resposta para os contrariar mas tornavam claro que aquela guerra estava de facto perdida, esclarecendo que tinha sido na Guiné que surgiram praticamente todos os oficiais que vão desempenhar um papel decisivo no MFA, reforçando a ideia de que o que se passara na Guiné em 26 de Abril foi um golpe autónomo onde não participaram os spinolistas. Num clima já de debate, foi discutido o documento “A Situação Político-Social na Guiné”, documento de apoio a uma reunião que foi feita em Bissau, em Setembro de 1973.

José Manuel Barroso debruçou-se sobre a perspetiva militar que ele pôde observar desde 1972 em que era ponte assente que os militares não permitiriam que a Guiné não se transformasse numa segunda Índia, mesmo que tivessem de atuar contra a metrópole. Descreveu a rede de contactos montada por Spínola com figuras de oposição, financeiros e importantes jornalistas. Por exemplo, Spínola estabeleceu relações privilegiadas com o diretor da República, Raul Rego. No seu depoimento, Barroso contou uma conversa havida com Spínola logo a seguir ao assassinato de Amílcar Cabral: “Isto é um perfeito disparate. Apesar de tudo, o Amílcar era um tipo com fortes raízes portuguesas, era um interlocutor, agora não sei quem é que vem. Apesar de todas as asneiras que nós possamos ter feito para trás, hoje, o assassinato do Amílcar é um erro”.
Mais adiante observou que a continuada negociação do governo de Marcello Caetano para a obtenção de novas armas (mísseis red eye) era uma tentativa de ganhar tempo para que as forças portuguesas na Guiné dispusessem de alguns recursos militares que aumentassem a sua capacidade de defesa. Baseava esta observação em conversas havidas com altos dirigentes políticos do Estado Novo que lhe confirmaram que era preciso encontrar uma forma de negociar numa posição de muito mais força, aquelas novas armas não dariam superioridade militar às forças portuguesas, eram uma antecipação a meios aéreos que o PAIGC viesse a ter, eram meios de defesa, era mísseis antiaéreos.

Na mesa redonda abordaram-se alguns assuntos delicados como os militares do Batalhão de Comandos terem, na sua esmagadora maioria, recusado a proposta de virem para Portugal e serem integrados nas Forças Armadas Portuguesas, preferiram receber vencimentos até Dezembro de 1974; falou-se de pouco significado que teve a agitação dos movimentos esquerdistas polarizado pelo Movimento para a Paz que aspiravam para um regresso imediato irresponsável a Portugal; referiu-se como o potencial humano militar estava praticamente esgotado no 25 de Abril, uma percentagem esmagadora das subunidades importantes na quadrícula, que eram as companhias, eram em cerca de 90 % comandadas por milicianos, de um modo geral impreparados; exprimiu-se também a situação altamente sensível de que se estava a transferir poder, já não era um reconhecimento de Portugal da independência da Guiné-Bissau, o que eles asseguraram fazer e não cumpriram e os fuzilamentos e outras malfeitorias praticadas só a Guiné-Bissau pode responder perante a comunidade internacional, as autoridades na Guiné cumpriram estritamente o que foi assinado nos acordos de Argel.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12669: Notas de leitura (559): "Guerra Colonial - Uma História por contar", edição da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, Externato Infante D. Henrique (Mário Beja Santos)

sábado, 31 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2907: A guerra estava militarmente perdida? (12): Vítor Junqueira.


Pombal , 28 de Abril de 2007. No decorrer do nosso IIº Encontro, o Vitor Junqueira, o Luís Graça e o Ten Cor A. Marques Lopes (em 2º plano).

"Num gesto de grande simbolismo e beleza, o Vitor - verdadeira caixinha de surpresas - fez questão de ser condecorado por dois dos seus camaradas de Guiné: o A. Marques Lopes, o mais graduado de todos nós, coronel DFA na reforma, e que foi gravemente ferido em combate na zona leste; e eu, próprio, Luís Graça, na qualidade de fundador e editor do blogue...

A condecoração, sobre a qual ele foi lacónico, teria a ver com a sua brilhante folha de serviços como militar, ou seja, como oficial miliciano. Foi-lhe atribuído, segundo percebi, pelo Chefe do Estado Maior do Exército e era para lhe ser entregue no 10 de Junho de 1974, não fora o conflito com outra data, o 25 de Abril de 1974, que veio mudar o curso dos acontecimentos.A cerimónia acabou por ser adiada trinta e três anos... Simbolicamente, a medalha por bons serviços foi-lhe entregue no dia 28 de Abril de 2007, por dois camaradas seus, na sua terra, na terra que ele muito ama... Um gesto bonito num dia bonito, em que realizámos, mais uma vez, o sentido da palavra camarada... Estes fotos, mandou-mas o Xico Allen. Estavam à espera de uma boa oportunidade para aparecerem no blogue (que nem sempre é do nosso contentamento)... Vitor, sei que as vai pôr no teu álbum, com muito orgulho. Obrigado, Xico, pelo teu gesto.


Luís Graça.
Fotos: © Xico Allen (2007). Direitos reservados.

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Mensagem do Vítor Junqueira, de 28 de Maio

Amigos Luís Graça, Carlos Vinhal e Virgínio Briote,


Espero que estejam a passar uma boa noite, caso ainda estejam acordados e ao computador! Se não for esse o caso, então a noite até pode estar a ser excelente ...Mando-vos mais um escrito que gostaria de ver publicado, logo que possível para não se perder o contexto.


Obrigado e um abraço,
Vítor Junqueira

A guerra (na Guiné) estava militarmente perdida?



Cap. I



Um pouco de verdade, um pouco de especulação, um pouco de história ou como se misturam alhos com bugalhos …


I - "Quem vai à guerra dá e leva" (pop.).
Mas atenção, eu não quero bulhas com ninguém! Não desejo controvérsias nem tão pouco contribuir para alimentar uma "boa polémica" (post 2872).

Bem sei que palavra puxa palavra e, quando se contestam teorias enraizadas, há sempre o risco de ferir orgulhos e vaidades. Assim se pode resvalar para uma espécie de guerrilha de pontos de vista, sempre desagradável, senão mesmo nefasta para a saúde. Vejam o que esteve para acontecer ao Galileo! E se não está no meu íntimo fugir a uma galharda discussão, façam-me o favor de acreditar que de momento não estou para aí inclinado. Quanto a outras guerras … depois de eu abraçar e ter sido abraçado por quem me quis limpar o sebo, vou agora pelejar com quem?

À tertúlia, ofereço este (desa) bafo, gizado em tarde chuvosa, a puxar para a melancolia e lanzeirice (não está no dicionário).

Após leitura atenta do último post da autoria do Graça Abreu, dei comigo a assobiar aquela cantiga que todos conhecem:

Eu gosto muito de ouvir cantar a quem aprendeu, se houvera quem me ensinara quem aprendia era eu.

Fiquei a matutar na coisa … se houvera quem me ensinara, quem aprendia era eu! Esclarecer os ignorantes é mandamento cristão. Quem quererá ensinar-me? Mas por amor de Deus, não me mandem estudar! Já vivi o tempo suficiente para saber que burro velho não toma ensino e o papel de que são feitos os livros, aceita o que nele quiserem pôr. E o que poderia eu aprender através de uma certa produção literária e artística, prolixa e bem ao jeito do status quo, daqueles que descobriram o eldorado da guerra colonial para fazer umas massitas, esquecendo-se de convidar para a mesa de trabalho, a verdade e o rigor histórico dos factos como parece demonstrar o post nº2889, da autoria do Mário Dias?

Jornalistas, políticos, diplomatas, embaixadores e outros doutores, há-os sérios e escrupulosos. Sem dúvida. Mas são tantos aqueles que a quatro mil e quinhentos quilómetros de distância continuam a discorrer sobre a guerra e seus horrores, sem nada saberem daquilo que se passava no terreno! Ou sabem, por ouvir dizer, mas a quem? Aos do costume, naturalmente. Porque quem não se apresenta inequivocamente como curador do sistema ou não age como tal, não encontra audiência em lado nenhum. Essa é que é a verdade desde há pelo menos oitenta e dois anos (48+34).

O pobre do ouvinte, leitor ou espectador comum, não tendo parâmetros para avaliar a credibilidade da informação que lhe é oferecida, que em muitos casos não vale o peido de um caracol, está tramado. E lá vai mais um para o rebanho!
Falando de credibilidade, quem não se lembra de um alto responsável doméstico (ou domesticado?), afirmar a pés juntos que tinha visto com os próprios olhos, documentação que comprovava a existência de armas de destruição massiva no Iraque, e que não tinha dúvidas sobre as ligações de Saddam Hussein à Al-Qaeda? Repetia acriticamente, como um papagaio, a argumentação do seu master. Por mera ingenuidade? Quis ou conveio-lhe ser enganado?
E porque hão-de merecer mais crédito aqueles que há perto de quarenta anos se dedicavam em ou a partir de Lisboa, à proveitosa arte da manigância política, do golpe conspirativo, da boataria mesquinha?

Na minha opinião, nem mais nem menos. São peixe da mesma canastra. Para nós, desvalidos peões, torna-se vital exercer sobre estes passarocos apertada vigilância e sobretudo, nunca abdicar do princípio da dúvida sistemática quanto ao que fazem, dizem ou escrevem. Para não voltarmos a ser intrujados.
E já agora, permitam-me os camaradas introduzir aqui um texto recente de Mário Soares, que muitos consideram o pai da democracia portuguesa:

"O tempo passa a correr … Há cinco anos … realizou-se nos Açores a chamada Cimeira da Vergonha, em que … o homem mais poderoso da terra e três primeiros ministros europeus … decidiram unilateralmente, com falsos argumentos, intencionalmente forjados, invadir o Iraque … Porque razão – ou razões – o fizeram? A história está por fazer. Mas será feita … Quanto aos europeus, o que os moveu foi principalmente a subserviência perante o patrão americano e o deslumbramento … Mas para que lhe serviu? Que respondam os mortos no seu silêncio … e os vivos que aí estão para contar, os crimes, os assassinatos, a tortura as destruições, as pilhagens, os atentados aos Direitos Humanos, que se fizeram à sombra da arrogância e da ganância … Talvez um dia – quem sabe? – o Tribunal Penal Internacional, se lembre de os julgar pelo mal que fizeram à Humanidade."

In “cinco anos depois”, textos de Mário Soares, Lisboa, 14 de Março de 2008.

A este resumo acrescento eu um pequeno léxico:

1 – Guantanamo

2 – Abu Grahib

3 – Rendição de prisioneiros

4 – Guerra preventiva

5 – Prisões secretas

6 – Voos secretos

7 – Harsh interrogations

8 – Waterboarding

9 – Eixo do Mal

10 – Danos colaterais

…e é melhor ficar-me por aqui, porque como diz a publicidade os acidentes são reais!

A reflexão do Dr. M. Soares suscita-me outras questões.


Pergunto:

- Quem foram os grandes mentores de Saddam e dos estudantes corânicos?

- Quem armou e guiou a mão do UÇK com o objectivo último de encontrar um pretexto para intervir, arrasar e desmembrar a Jugoslávia?

- Quem bombardeou escolas, pontes, infantários, maternidades, estações de televisão, comboios, colunas de autocarros e tractores apinhados com camponeses em fuga, arraiais, festas de casamento e funerais?

Os aviões e os canhões da gloriosa Nato, claro!

Tem sido assim, já lá vai quase uma década. No Iraque, no Afeganistão, nos Balcãs.
E é a estas bandalheiras dos grandes do mundo, que as forças armadas do Portugal democrático estão a dar cobertura!?
Ou não estarão a sancionar com a sua presença, como quem assina de cruz, alguns dos crimes mais bárbaros e hediondos cometidos contra seres humanos, desde que a humanidade existe? Partem por consciência do dever, apenas, ou porque existe, dizem, um forte estímulo financeiro?

É que já me contaram algo que só pode ser boato: a primeira comissão daria uma boa entrada para um apartamento, a segunda, paga os tarecos e a terceira o automóvel. Será que a tal História de que fala Mário Soares, os vai contemplar também? Tantas dúvidas.

Ou, de outra maneira, o burro sou eu?

E que diferença de tratamento camaradas, relativamente aos ex combatentes do ultramar! Enquanto sobre os expedicionários dos tempos modernos assentam os holofotes encomiantes da comunicação social e as palmadinhas nas costas das altas patentes, alguns (muitos?) dos nossos, os mais vulneráveis, vão tentando sobreviver a todos os tipos de desprezo a que foram votados por quem pode e manda. Para já não falar de campanhas mais ou menos encapotadas, visando a honra e dignidade daqueles que serviram a Pátria nas ex-colónias.
Chegaram a ser olhados com suspeição, quase como um perigo para a estabilidade da democracia.
Perderam os apparatchiks, porque ainda que tarde, a verdade e a justiça sempre prevalecem.

Os ex-combatentes não querem mordomias, apenas exigem ser tratados com o respeito que lhes é devido, inclusive, por aqueles que dizem ter sido seus camaradas de armas. E não me acusem de ser demagogo, porque não tenho estudos para isso!


II - Diz o pagode que quem sabe da tenda é o tendeiro.

O camarada António Graça Abreu, não só sabe da tenda, como parece disposto a ensinar a quem quiser aprender. Não me repugnaria nada reconhecer a outros, uma visão igualmente abrangente e fundamentada da situação militar – capacidade operacional, êxitos no terreno, etc. – das forças em confronto no CTI da Guiné nos já longínquos anos da década de setenta.

Mas, como já disse e até o escrevi neste Blog, dadas as funções que desempenhou nos CAOPs (norte, centro e sul), parece-me razoável considerar o Graça Abreu, um profundo conhecedor nesta matéria.
Não ouso por isso acrescentar ou retirar um ponto que seja ao que escreveu. E também não me parece que entre os Tertulianos venha a perfilar-se alguém com mais autoridade do que ele para se pronunciar sobre factos. Porque em matéria de pressupostos, suposições, conjecturas e arte de adivinhação, não faltam ingenhêros.
Mas se existe por aí alguém com mais bagagem, faça o favor de dar o marcial passo em frente.
No entanto, acho que seria bem mais interessante e certamente esclarecedora, uma apreciação pessoal sobre a tese da guerra militarmente perdida feita pelas centenas de camaradas que compõem este operacionalíssimo Comando Bloggista!

E como na carta de princípios desta comunidade se pode ler "Não deixes que sejam outros a contar por ti, a tua história", torna-se imperativo, acho eu, que todos contribuam com a sua perspectiva para que se faça luz sobre esta matéria, e acima de tudo, que a mesma seja menos monocromática e mais do tipo caleidoscópico.

Se cada um de nós se pronunciar sobre a situação concreta na ZA da respectiva unidade e, existindo no nosso seio elementos representativos da dispersão das forças portuguesas por todo o TO da Guiné, como eu julgo, devemos ter uma visão global do que lá se passava.

Fica aqui o desafio.
Formulo a seguir algumas hipóteses de trabalho, frisando bem que não se trata de nenhum questionário. São meros exemplos das questões que cada um poderá colocar a si próprio.

- É verdade ou não que existiam áreas libertadas, verdadeiros santuários do PAIGC, onde a tropa portuguesa não conseguia entrar?


- Tens conhecimento de alguma aldeia, lugar ou sítio que o PAIGC tenha subtraído militarmente ao controlo das NT?


- Na tua zona, a actuação das forças inimigas indiciava qualquer estratégia de controlo territorial ou era mais do tipo bate-e-foge para a segurança das linhas de fronteira?

- Nas operações em que participaste, a força a que pertencias foi alguma vez obrigada a retirar antes de iniciar, ou sem concluir a missão?

- Nas acções da iniciativa do IN, tipo emboscada, quem retirava e quem explorava o êxito, o adversário ou a tua força?
- Como se manifestava no terreno a (propalada) superioridade armamentista das forças inimigas?


- É verdade que os guerrilheiros se apresentavam de uma maneira geral mais bem treinados e aguerridos do que as NT?

- As flagelações ao teu aquartelamento produziram estragos e perdas humanas importantes do nosso lado (mortos, feridos), ou eram na maioria das vezes aleatórias e inconsequentes?

- Durante a tua comissão houve alguma tentativa do In para tomar de assalto as instalações da tua unidade?

- Ouviste dizer que tenha havido alguma, antes ou depois de teres passado à peluda?
- Tiveste problemas com os reabastecimentos, recolha de lenha, abastecimento de água etc. devido ao aumento da pressão do In sobre o itinerário das colunas?

- No período em que permaneceste no mato, qual é o teu sentimento quanto à situação das NT no terreno: evoluiu para melhor, piorou ou manteve-se inalterada?

III - E para exemplificar, vou abrir estas pacíficas hostilidades relatando o ocorrido na área que foi adjudicada à minha Compª, à qual foi determinada, como a tantas outras, a obrigação de "eliminar ou pelo menos expulsar da sua zona de acção qualquer elemento do IN …etc., etc.", isto é: manter a casa limpa e arrumada.

Trata-se de um modesto testemunho, restrito no espaço (Mansabá, Bironque, Madina Fula, K3 e regiões limítrofes), e limitado no tempo (1970 a 1972).
Fiquem os camaradas descansados que não vou aborrecer-vos com a descrição de operações com nomes exóticos.

Sou um homem de coração mole, não gosto que me falem de mortos e feridos, emboscadas explosões e ferros, comandantes espavoridos aos berros, relatadas ao pormenor, como um jogo de futebol.
Estava então em curso, a reabertura de uma importante via de comunicação que ligava a capital ao norte do Território (e não Província, para que não dê um treco nos mais puristas).


A estrada Mansabá-Farim em Fev. 1971.
Foto de Carlos Vinhal.

Segundo ouvi da boca dos altos responsáveis militares daquela altura com quem tive o privilégio de dialogar, ir de Mansabá a Farim por via terrestre, era coisa que não acontecia havia pelo menos uns cinco anos. E não vale a pena contrariarem-me, porque o que encontrei comprova-o. Da estrada, apenas existiam escassos vestígios, já que a mesma havia sido totalmente engolida pela floresta.

Minada e sob a mira constante das armas do IN que por ali possuía alguns coutos mais ou menos permanentes e certo controlo sobre populações dispersas pelo mato, era impraticável para as nossas FA. A seu lado, corriam os trilhos logísticos que dando seguimento aos carreiros de Sitató e Lamel, permitiam a ligação entre as bases do PAIGC situadas no sul do Senegal e as dos meus vizinhos do Oio e do Morés.

Pois bem, entre Novembro de 1970 e Março de 71, a estrada foi reconstruída, devidamente asfaltada ainda hoje lá está que se pode ver. Nos meses seguintes, a região foi limpa no que se refere a estruturas permanentes do IN, e a circulação rodoviária começou a fazer-se com todo o conforto e segurança entre Bissau e Farim. As populações passaram a deslocar-se sempre que o desejavam …

E a tropa beneficiou também, com uma qualidade de vida quase faustosa, já que as colunas de reabastecimento deixaram de ser problema. Aquilo não era o paraíso mas andava lá perto. (Piada!)
Quanto aos papões do Oio e Morés, só posso dizer-vos que os comandos africanos iam lá sempre que desejável, geralmente apoiados pela nossa tropa mais especializada mas, os "arre-macho" também participavam, chegava para todos. Invariavelmente, o resultado era manga de ronco.
Este vosso amigo passeou-se lá pelas barbas e teve oportunidade de fazer uns trabalhitos com sucesso. E assim foi aumentando o nosso grau de confiança (e segurança …) até ao adeus às armas em Julho de 1972.

Eis a minha história, em tamanho reduzido, da qual cada um extrairá as conclusões que lhe aprouver. Fico a aguardar impacientemente que a vossa chegue na volta do correio. Isto é como nos casamentos, quem quiser falar que o faça agora ou cale-se para sempre! (mais uma laracha)

Cap. II

"A guerra não estava militarmente perdida, a rapaziada é que estava farta daquilo"

Apesar da busca exaustiva a que me entreguei, não consegui identificar o autor destas palavras que li há poucos dias no Blog.

Acho que quando passei os olhos por cima da frase não a valorizei como devia, certamente por achar óbvio o seu significado. Hoje venho reconhecer que são palavras sábias que dizem muito mais do que a semântica pode exprimir. Elas são o retrato a muitos milhões de pixéis de um estado de alma generalizado.

Em "a rapaziada é que estava farta daquilo"… está tudo dito.

Nesta reflexão tão simples e ao mesmo tempo tão profunda, podemos encontrar a resposta à polémica questão de saber para qual dos lados os ventos da guerra sopravam de feição.

E quem era a rapaziada?

1
- Em primeiro lugar, parece-me de elementar justiça citar sem contudo nomear ninguém em particular, muita gente honesta e inteligente que no regime pré-democrático serviu o Pais da forma que pôde e o melhor que soube, e nunca se serviu do regime em proveito próprio como viria a torna-se moda. Alguns ainda hoje estão entre nós, felizmente, prestando relevantes serviços à Nação. Eram gente culta e politicamente bem formada, que foi capaz de antecipar a tomada de consciência colectiva de que descolonizar era preciso. Tinham plena consciência de que perigoso seria continuar a navegar a contra-corrente da História.

Imagino que tenham utilizado toda a sua capacidade de persuasão e ascendente sobre os timoneiros no sentido de os levar a mudar de rumo.

Ora, como é sabido, a teimosia de uns é o desespero de outros e estas pessoas que estavam verdadeiramente na cabeça do boi, e como tal, fartas de levar cornadas dos seus homólogos nas instâncias internacionais, mais não podiam fazer do que limitar os danos.

2
– Os militares do QP. Dissipados os fervores patrióticos dos primeiros anos da guerra do ultramar (ou colonial, como vos aprouver…), alguns já iam na enésima expedição a África; muitos com família a reboque e filhos em idade escolar, saltitavam de comissão em comissão, e o fadário não tinha fim à vista.
A título de exemplo, Manuel Monge já ia na quarta comissão! Estavam fartos! Sinal do mal estar que grassava no seu seio, foi o protesto em Maio de 73 contra o apoio das FA ao governo através do Congresso dos Combatentes realizado no Porto entre os dias 1 e 3 de Junho do mesmo ano.

Fartérrimos ficaram, quando em 13/7/1973 é publicado o D.L. nº 353/73 – que permite aos oficiais do Quadro Especial de Oficiais e outros oficiais oriundos do Quadro de Complemento o acesso ao Quadro Permanente após um curso intensivo de dois semestres lectivos consecutivos na Academia Militar, em condições substancialmente diferentes das que até então regiam esse acesso.
Permite, além disso, rever o posicionamento na escala de antiguidades de oficiais oriundos do Quadro de Complemento já com o curso da Academia Militar e, portanto, oficiais do Quadro Permanente. (Centro de documentação 25 de Abril).

Aí, a malta do QP de origem não gostou nada de ser passada para trás por estes paisanos fardados. E ainda bem, porque este descontentamento irá dar origem à primeira reunião clandestina, realizada a 20/7/1973 em Bissau, embrião do que viria a ser o:Movimento dos Capitães – Movimento surgido em Agosto de 1973 no seio das Forças Armadas e protagonizado pelos oficiais intermédios e subalternos que visava inicialmente a mera satisfação de reivindicações de carácter corporativo.
Em breve se transformou num movimento de clara contestação política que culminou com o derrube do regime em 25 de Abril de 1974. (Wikipédia).
Foi o percursor do MFA, nascido de gestação a termo a 9/7/1973 no Monte Sobral – Alcáçovas e do cortejo de coisas boas (e algumas menos boas) que nos trouxe.

3 – Fartíssimos estavam os oficiais e sargentos milicianos. Oriundos na sua maioria da pequena burguesia nacional (que tinha meios para lhes pagar os estudos), imagine-se o que é que sentiam quando viam o seu nome no edital da senhora câmara ou junta de freguesia a convocá-los para irem batê-las!

Lá estava a indicação da data e local de incorporação, instruções quanto a guias de transporte etc., tudo bem explicadinho. Deixavam para trás um certo dolce far niente próprio da vida académica, o bem-bom da casa paterna ou a alcova da namorada e, os mais afortunados, o carocha ou spitfire, as romagens à Foz ou ao Guincho para assistir ao pôr do sol (e não só …), a frequência de lugares idílicos como Galeto, Portugália, Past. Ceuta e outros de que só ouvi falar quando já era Zé cadete.

Os estudos, na melhor das hipóteses, ficavam adiados, porque a possibilidade de apanhar um balázio e assim terminar precocemente a licenciatura, era bem real.
Note-se que os stocks de pessoal do quadro se encontravam completamente exauridos dado que, das centenas de admissões anuais à Academia Militar, se passou para as poucas dezenas no princípio da década de setenta.

Pelo que, o fardo das operações de combate recaía em grande parte sobre estes militares. Não obstante o esforço que todos fizemos para conservar o pêlo e a pele, o facto é que muitos, "velhas mulas" (mulicianos), fortemente endoutrinados por ideologias de esquerda que floresciam nas escolas como cogumelos, combatiam numa guerra que no fundo não desejavam vencer. Há que reconhecê-lo.

4 – Soldados e cabos, o povo fardado.

De tão fartos que estavam, começaram a dar sinais de congestão! Prova disso, foram as manifestações populares contra "a guerra colonial" ocorridas em Lisboa a 21de Janeiro de 1973.

Vaga após vaga, tinham sido já centenas de milhar os jovens retirados às famílias de que eram o único amparo, alguns casados e com filhos. Imolava-se a economia familiar num país pobre, essencialmente rural, onde uma agricultura atrasada a exigir o labor de muitos braços, se ressentia fortemente.
Partiam para as Áfricas para combater numa guerra que ao fim de 13 anos lhes era completamente alheia, tanto ao coração como à razão.

Se a guerra tem durado mais três ou quatro anos, a Pátria teria assistido à mobilização dos filhos dos veteranos mais antigos.


Não haveria povo que aguentasse por muito mais tempo tal provação, digo eu, em total sintonia com o pensamento de Vasco Gonçalves* quando afirma: "Os militares aperceberam-se que nem eles nem o povo português queriam a continuação da guerra" (O Militante nº 239), mesmo sabendo que "Não há sucesso sem grandes privações", (Sófocles, (496 – 406 aC).

*Força, força companheiro Vasco, nós seremos a muralha de aço…, cantou Carlos Alberto Moniz.


5 - Significa isto que a guerra estava militarmente perdida ou que estaríamos à beira de uma derrota militar, como gostam de apregoar os propagandistas do sistema?

Não, de maneira nenhuma. Eu voto no empate técnico! Reconhecendo contudo, que uma derrota política é sempre muito mais gravosa do que uma derrota militar.

E a derrota política, essa sim, estava em vias de consumar-se, mas aqui em casa, mais precisamente na capital do império, onde um clima de permanente guerrilha conspirativa ao mais alto nível do poder político-militar, as bem orquestradas campanhas de desinformação e contra-informação, a mesquinhês de gente pequena de uma sociedade aburguesada e corporativista, levaram Mário Soares a prever numa prosa que enviou para o "Le Monde" que há "algo de novo em Portugal e que a guerra está em risco de se perder na própria Metrópole".

Ainda que o ouçamos frequentemente defender a tese, derrotista a meu ver, da guerra militarmente perdida. Sobre este tema, conto apresentar no próximo capítulo as minhas alegações finais, se para tal me for dada a oportunidade.

Até lá, cordiais saudações para toda a Tertúlia,

Vitor Junqueira

__________

Notas:

1. adaptação dos textos da responsabilidada de vb.
2. Artigos relacionados em

28 de Maio > Guiné 63/74 - P2893: A guerra estava militarmente perdida? (10): Que arma era aquela? Órgãos de Estaline? (Paulo Santiago)

27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2890: A guerra estava militarmente perdida? (9): Esclarecimentos sobre estradas e pistas asfaltadas (Antero Santos, 1972/74)

25 de Maio > Guiné 63/74 - P2883: A guerra estava militarmente perdida ? (8): Polémica: Colapso militar ou colapso político? (Beja Santos)

22 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2872: A guerra estava militarmente perdida ? (5): Uma boa polémica: Beja Santos e Graça de Abreu

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2845: A guerra estava militarmente perdida ? (4): Faço jus ao esforço extraordinário dos combatentes portugueses (Joaquim Mexia Alves)

13 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2838: A guerra estava militarmente perdida ? (3): Sabia-se em Lisboa o que representaria a entrada em cena dos MiG (Beja Santos)

30 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2803: A guerra estava militarmente perdida ? (2): Não, não estava, nós é que estávamos fartos da guerra (António Graça de Abreu)

17 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2767: A guerra estava militarmente perdida ? (1): Sobre este tema o António Graça de Abreu pode falar de cátedra (Vitor Junqueira)

sexta-feira, 21 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2670: Fez-se História em Guileje (Nelson Herbert)

Mário Soares, Presidente da República de então, presta a Homenagem de Portugal aos Militares do Exército Português caídos no solo guineense.

Foto: © Nelson Herbert (2008). Direitos reservados.

É de facto no culto dos seus mortos que as sociedades humanas, procuram tradicionalmente os mais delicados símbolos da sua coesão e identidade. Era assim entre os antigos gregos. Nas sociedades tradicionais africanas, a homenagem aos entes e antepassados mortos assume igualmente um notável destaque nas práticas rituais. A convicção de que os antepassados podem ter influência sobre a vida de gerações, constitui uma arreigada tradição nessas sociedades.


Cícero dizia que os antepassados quiseram que os homens que tivessem deixado esta vida fossem contados no número dos Deuses. Nesta perspectiva seria de facto natural que nas relações Estado-a-Estado, a maturidade dos homens, dos outrora inimigos, pudesse incluir com toda a dignidade, o culto dos respectivos mortos. Mas alguns episódios demonstram o quão de facto ínvio e difícil foram, por vezes, os trilhos dessa desejável catarse.


Mário Soares recebido à porta do cemitério de Bissau por uma manifestação pacífica e silenciosa de antigos combatentes da luta pela libertação da Guiné e integrada por outras igualmente vítimas dessa guerra, nomeadamente antigos soldados nativos que combateram sob a bandeira portuguesa.

Foto: © Nelson Herbert (2008). Direitos reservados.


Estes últimos, o mesmo grupo cujos direitos os governos portugueses teimam há décadas, a ignorar. "Render Homenagem aos criminosos da guerra colonial é ofender a dignidade dos Heróis guineenses e portugueses”, lê-se no cartaz.

Na foto é visivel o jornalista Nelson Herbert, a escassos passos da retaguarda da comitiva.



Ladeado pelo então secretário de Estado da Cooperação Durão Barroso e por representantes dos principais partidos portugueses, Mário Soares quis na altura dignificar esse capítulo da História comum, que alguns sectores, de um e outro lado das outroras diametralmente opostas trincheiras, teimavam em fazer calar na Memória colectiva dos dois Povos.

De facto, quando em 1953 Felicien Challaye escrevia "a colonização talvez seja a instituição que mais lágrimas fez correr", vinha ainda longe a Guerra na Guiné.

A guerra colonial ou de libertação teve no caso concreto da Guiné (eu catraio, na altura, indiferente e inocente aos acontecimentos) um dos seus cenários mais brutais e que acabou por deixar cicatrizes e, provavelmente, algumas cravadas na alma que só o tempo e a maturidade dos homens acabariam decerto por enjeitar.

E hoje, praticamente concluída que está a primeira fase do processo de exumação dos restos mortais dos militares portugueses de Guidaje (que consistia na definição dos limites das sepulturas, na identificação e exumação das ossadas com o apoio de técnicas geofisicas) e perante o eloquente sucesso que foi o Simpósio de Guiledje...de trincheiras irmanadas (a globalização estendendo também por aí os seus tentáculos?) curvo-me em reverência, para louvar a maturidade dos outrora inimigos.

E assim fez-se História!

Quartel da Amura, em Bissau > 7 de Março de 2008 > Guarda de honra a apresentar armas na homenagem dos antigos combatentes portugueses aos Heróis Nacionais da República da Guiné-Bissau, junto ao mausoléu de Amílcar Cabral.

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

__________

Notas de vb:

Texto de Nelson Herbert

Voice of America
Washington, DC

1. Notícia do Vítor Tavares:

Hoje regressam os técnicos que estiveram em Guidage, na exumação dos restos mortais dos nossos camaradas, que já se encontram em Bissau onde aguardam os exames periciais. Pelas escassas imformações que tenho correu tudo bem.

2. ver artigos de

16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2652: Guineenses da diáspora (3): Nelson Herbert, o nosso Correspondente nos EUA (Virgínio Briote)

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2639: O Simpósio de Guiledge na Voz da América (Virgínio Briote)

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2639: O Simpósio de Guiledge na Voz da América. (Virgínio Briote)