Mostrar mensagens com a etiqueta Mueda. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Mueda. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19886: Bibliografia de uma guerra (96): "Capital Mueda", por Jorge Ribeiro; Unicepe (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
No que tange à literatura da guerra colonial, convindo distinguir o que é peculiar a cada um dos teatros de operações, há igualmente que saber pôr a nível horizontal o que une todas as experiências vividas, entre o Atlântico e o Índico, e aí podemos contar, inequivocamente, com peças de grande nível como este "Capital Mueda", de Jorge Ribeiro.
Reportagem simultaneamente hiperbólica e crua, entremeia o rasteiro, o extremamente brutal e o onírico. Peça, creio eu, que um dia constará na antologia das melhores páginas com que esmaltámos este subgénero literário.

Um abraço do
Mário


Capital Mueda, uma viagem alucinante de Mueda a Nangololo

Beja Santos

Capital Mueda, por Jorge Ribeiro, nas suas duas primeiras edições, datadas de fevereiro e maio de 1993, respetivamente, é um trabalho jornalístico na feição de reportagem, caraterizado por um tom hiperbólico e barroco pouco usual, descreve uma coluna de má memória que sai de Mueda em direção a Nangololo, um registo diário de alguém que faz cinema e fotografia e irá repertoriar, na experiência de todos aqueles infortúnios que pôde observar como protagonista. Ia para filmar e viu um dos lados mais horrendos que a guerra permite. Coisas que a censura, como é óbvio, não permitiria que aparecessem na televisão ou por meio escrito.

Estamos a 3 de fevereiro, não se sabe em que ano. Sabemos, sim, que há uma Companhia com dez secções de combate, três pelotões de sapadores, doze Berliets, quatro baterias de morteiros, dois granadeiros, duas Panhard, uma Fox, dez Unimogs, dois Caterpillas, outra Companhia completa de atiradores para rendição, e um número calculado em cerca de trinta camiões “civis”. Uma longa serpente verde escura, pronta a arrastar-se por aquele mato de Cabo Delgado.

Aquele fotocine vai escolher o camião dos sapadores, posiciona-se em quarto lugar, antes ao rebenta-minas, uma Berliet, uma secção de atiradores. O fotocine leva por obrigação uma G-3, a sua arma, no entanto, é uma máquina de filmar que custa tanto como um BMW. Encaixa-se no camião com as bobines de Gevapan, os canhões das objetivas, a utilíssima Pan-Cinor.

O que têm pela frente, em termos de viagem até Mangololo, é mais do que temível, não se anda por este itinerário há mais de um ano. A coluna começa a mover-se, morosamente. Fica-se a saber que no primeiro dia não se devem ter afastado de Mueda mais de três quilómetros, havia que desbastar o mato, afastar troncos da picada, silvas entrelaçadas. Regista lamentações, casquinadas de caserna, o dia passa em limpeza da estrada, mais uma noite a dormir debaixo da Berliet, há quem insista em ouvir Jimmy Hendrix. A Frelimo anuncia-se com descargas de morteiros, há feridos, muito trabalho para o enfermeiro.
O cronista acorda de manhã cedo e dá a notícia:  
“Vejo todo o pessoal empoleirado nos carros, nus. Uns sacodem os camuflados, outros catam as cuecas e as meias. Todos proferem asneirolas. Principalmente aqueles que imploram para que alguém lhes arranque da pele as cabeças de talaca. Talaca é a designação local de uma formiga gigantesca, que possui a particularidade de nunca mais largar a presa onde uma vez enterrou as mandíbulas. A estas térmitas assustadoras, negras e corpulentas, quando se lhes puxa o corpo, deixam lá ficar a cabeça. A noite passada dormimos sobre um ninho de talaca”.

Foi detetada qualquer coisa muito grande em plena picada. O sapador vai estudar a situação e informa: “Eles agora põem três ou quatro no correr. Só que a primeira é de efeito retardado; para além de serem anticarro. Pode regular-se para o segundo, terceiro ou quatro rodado que lhe passar por cima. Há um dispositivo para andares que só à segunda, terceira ou quarta calcadela faz soltar a mola, que por sua vez dispara o percutor sobre a mina”.

O sapador começa a trabalhar quando desata uma grande emboscada. O rebenta-minas foi à vida com a bazucada que levou no motor, com o anoitecer a Berliet assume um aspeto fantasmagórico. Já estamos no quinto dia, as conversas são cada vez mais desencontradas, tanto se fala de comida como de sexo, há queixumes de todos os formatos. Procuram provocar o fotocine, perguntam-lhe onde arranjou o tacho e ele responde: “Foi o médico. Receitou-me emoções fortes, as auras dos grandes espaços, respirar oxigénio puro do mato, reforçar a saúde em revigorantes operações e colunas”. Os batedores flanqueiam as bermas da picada, quem ouvia Jimmy Hendrix ouve agora Jim Morrison.

As minas antipessoais vão fazendo os seus estragos, nem sempre há condições para o helicóptero descer em segurança, o sofrimento ribomba naquela coluna sem fim. Palmilha-se lentamente as distâncias, rebentam minas, rebenta imenso tiroteio, a coluna encontra-se envolta numa grande nuvem de fumo, polvorenta. O cenário é patético: “Distinguem-se agora os gemidos dos baleados, nas pernas, nos braços. Há histerias incontroláveis de batismo de fogo. Alguns jerricãs foram alvejados e estão a arder. Correrias, de um lado. E vejo gente do outro, a esvair-se, caída para fora da picada”.

A saga parece ter acabado quando chegou a tropa de Nangololo, faz-se o balanço dos carros desfeitos, dos mortos e feridos. O repórter dá conta:
“Passamos por mais um marco da administração territorial portuguesa. Para trás ficou o histórico Posto 15 do caminho Mueda-Nangololo. Há quem defenda que foi aqui que tudo começou, com o assassinato, pela PIDE, em agosto de 1964, do padre Boorman, missionário branco defensor dos direitos dos negros”.
Chega novo helicóptero para recolher feridos, no céu ouve-se o roncar de dois T-6, dois pontos negros. Duas horas foi o tempo gasto para cortar o tronco maior, um enorme abatis já a caminho da pista de Nangololo. Chega-se ao destacamento, há militares que se reconhecem, entre os que estão e os que chegam. E o fotocine descobre para além dos mantimentos, o essencial da coluna é material de construção para o novo teto da igreja. Alguém barafusta: “A tropa vive aqui sem condições, como animais. Mas eles decidiram defender a igreja”.

E assim termina a atribulada e sanguinolenta coluna entre Mueda e Nangololo:
“Um telhado para a igreja. Um telhado para a igreja. Um telhado para a igreja. Tenho eco dentro da minha cabeça.
Sento-me na terra. Estendo a vista e o pensamento para longe, muito longe daqui. Fixo para sempre na retina o admirável matiz de um pôr-de-sol no planalto. Em Nangololo.”

O trabalho de Jorge Ribeiro conheceria novas edições aumentadas. Deverá muito do seu sucesso ao tão coloquial, ao dantesco quanto baste, à verosimilhança de uma coluna em terreno áspero, muitíssimo áspero. Um documento fora de série, poucas vezes referenciado como peça maior da literatura da guerra, de toda ela.


Ao adquirir o livrinho dei conta que Jorge Ribeiro ofereceu um exemplar ao Dr. Raul Rêgo, que foi diretor do jornal República, ministro da Comunicação Social do I Governo Provisório, historiador e político.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19860: Bibliografia de uma guerra (95): Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC, por António Duarte Silva em Cadernos de Estudos Africanos (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3346: Bibliografia de uma guerra (36): Cacimbados, de Manuel Correia Bastos. Moçambique.

Cacimbados
Novo livro sobre a Guerra Colonial.

Manuel Correia de Bastos nasceu na vila de Aguim, no concelho de Anadia, em 1950.
Foi mobilizado para ex-colónia de Moçambique onde cumpriu o serviço militar obrigatório, incorporado na CArt 3503.
Esta companhia chegou a Mueda, em Cabo Delgado, no Norte de Moçambique, no 12 de Fevereiro de 1972 com 153 militares; teve 6 comandantes, combateu a FRELIMO durante 26 meses e sofreu 58 baixas, de entre as quais 5 mortos, 1 desaparecido e 52 feridos, 16 dos quais muito graves, na maioria com deficiências permanentes.
Manuel Bastos foi gravemente ferido em combate em virtude da deflagração de uma mina anti-pessoal e deu baixa ao Hospital Militar Principal para convalescer da amputação de uma perna.
Tem escrito crónicas sobre a guerra colonial especialmente no Jornal da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, e mantém desde 2003 um dos mais antigos Blogues sobre a Guerra Colonial, O
Cacimbo.

O Título do blog remete para o nome que o povo chamava aos ex-combatentes da Guerra Colonial, "Cacimbados", por atribuírem ironicamente ao clima de África os distúrbios provocados pelos traumas da guerra.
O conteúdo do blog é composto principalmente por textos e fotos que narram as memórias dos dias passados na Guerra Colonial, e das experiências do pós-guerra dos ex-combatentes com deficiências físicas e traumas de guerra, misturando a ficção com a verdade crua dos factos.

O Cacimbo inicia com esta dedicatória:

A todos os homens com coragem para lutar
A todos os homens com coragem para desertar
A todas as mulheres com coragem para perdoar a ambos




Cacimbados é um romance composto pelas pequenas histórias de um soldado que fez a guerra colonial no Norte de Moçambique, através das quais são apresentadas aos leitores as situações que caracterizavam a vida dos militares no final da guerra em Mueda.

A apresentação do livro terá lugar no dia 15/11/08, das 16:00 às 18:00, na Casa Municipal da Cultura de Coimbra, na R. Pedro Monteiro.

Ao mesmo tempo o Cacimbo completará 5 anos de existência, o que faz dele provavelmente o mais antigo blogue dedicado à Guerra Colonial.
Dele extraímos a


A Prenda de Natal
O soldado abraça a G3, enquanto caminha pela picada, como se fosse um ícone sagrado ou um amuleto. Era, bem vistas as coisas, o único objecto de valor que transportava consigo. Quanto custaria uma G3? Provavelmente não possuía nada de seu com um preço superior ao de uma G3.
Lembrava-se de, quando criança, ter pedido um triciclo pelo Natal e de os seus pais lhe terem dito que o menino Jesus não dava prendas tão caras. Apesar disso nunca pôde deixar de formular o desejo de receber uma prenda que fosse provocatoriamente superior ao orçamento do seu menino Jesus, embora soubesse que a realidade no sapatinho haveria de ser bem mais modesta.Nunca a realidade lhe ultrapassou o sonho.
O soldado avança, o agoiro da mina escaldando-lhe os pés, ora abraçando a arma ora atravessando-a, como uma canga, em cima do cachaço e descansando os braços sobre ela, parecendo um crucifixo ambulante. Que pode um soldado assim crucificado na própria arma desejar para o Natal?


Cada passo é um lance de roleta russa.
Quando se ouve o estampido, mais no estômago do que nos ouvidos; quando se segue um instante de silêncio em que todo o som parece ter sido sugado para um buraco; quando sentimos o bafo fétido da morte que nos traz, num segundo apenas, uma eternidade de medo; então experimentamos um, ainda que brevíssimo alívio; mas tão grande que não cabe nas palavras, pois que, quando somos nós a calcar a mina não se ouve nada, não se sente nada; tudo se apaga simplesmente.
E o soldado acordou. Nem dor, nem angústia, nem medo - só um lento despertar. Uma dilacerante suspeita de não estar a acordar de um simples pesadelo, de cujos contornos não se recordasse bem, uma obstinada recusa em aceitar a estúpida realidade, crua e descarnada diante dos olhos, e o desejo, desta vez tão modesto, mas tão irrealista como sempre, de receber, como prenda de Natal, ao menos o corpo inteiro dentro das botas.
E o Manuel Bastos, oferece à Tabanca Grande o ainda inédito
Os Sapatos do Major

Pôr um pé à frente do outro; o resto é milagre. Pouca gente está consciente disto: estar de pé e caminhar é uma coisa prodigiosa, aparentemente improvável; sobretudo se for observada de uma cadeira de rodas. É maravilhosa a estabilidade de uma pessoa a caminhar, sem precisar de efectuar cálculos constantemente; para fazer com que a projecção do seu centro de gravidade caia infalivelmente dentro do imaginário polígono de sustentação de geometria extremamente variável, à medida que caminha. Bastam algumas semanas sem podermos caminhar para recearmos que esse dom nos venha a ser retirado para sempre.
Há muito pouca diferença entre caminhar normalmente e voar, na perspectiva de um paraplégico. Só a consciência disso me permitia aceitar o sorriso condescendente das senhoras do Movimento Nacional Feminino que me tratavam como um privilegiado, por me saberem por pouco tempo confinado às limitações da cadeira de rodas.
As senhoras do Movimento Nacional Feminino achavam que nenhuma desgraça era suficientemente grande para um homem, e que os males que nos corrompiam eram apenas dádivas que devíamos agradecer à Divina Providência.
Devíamos agradecer por sermos amputados, pois bem poderíamos ser paraplégicos, e estes deveriam estar gratos por não serem tetraplégicos, porém estes últimos só por uma grande ingratidão não se sentiriam felizes por não terem morrido. Mas não se pense que os mortos estavam livres de demonstrar gratidão, pois que se tinham livrado de uma vida de limitações e sofrimento.
Não sejamos injustos com as senhoras do Movimento Nacional Feminino por elas não entenderem que basta uma erupção de acne na ponta do nariz, para um jovem se sentir um mutilado de guerra; é que elas afinal viviam no mesmo país do que nós, tinham o mesmo governo, liam os mesmos jornais, e não me custa admitir que fossem chamadas a frequentar algum curso de caridade cristã onde tudo se resumisse a convencê-las de que nos deveriam fazer sentir gratos por Deus não ter decidido tirar-nos mais alguma coisa, para além do que a guerra já nos tinha tirado.
Quando voltei a ver o mundo olhando por cima da cabeça dos outros, como já me tinha habituado havia muitos anos, começava para mim um novo problema: substituir a perna, que a cobarde mina anti-pessoal me tinha tirado à má fila, por um par de canadianas que prolongavam os meus braços até ao chão e que me transformavam numa periclitante tripeça à beira do colapso.
Há um ditado italiano que diz que não há maior felicidade do que termos companhia no infortúnio; se isso é verdade, devo ter sido muito feliz no Hospital de Lourenço Marques, pois não conheço outro lugar no mundo com tanto perneta para me fazer companhia.

Aos domingos uma parte da população vinha visitar os militares feridos em combate, e procurava saber coisas do Norte; era a parte da população que tinha consciência de que algo estava prestes a mudar. Conheci uma outra parte da população: a que achava que a guerra era uma coisa que se passava no distante Cabo Delgado entre a malta de Lisboa e os pretos; nada que uma matança a sério, e depois um apartheid à portuguesa não resolvesse. E depois…
E depois havia as senhoras do Movimento Nacional Feminino. Havia qualquer coisa de patético nas senhoras do Movimento Nacional Feminino; qualquer coisa com sabor àquela doce degradação, só detectável no olhar de paciente mortificação das prostitutas dos bares de má fama da periferia das grandes cidades. Olhavam-nos com a distraída simpatia de quem tem por profissão distribuir calor humano em doses calculadas.
Sinto uma certa relutância em confessá-lo, mas era isso justamente que me fascinava nelas. Imaginava-as chegando a casa, cansadas de terem distribuído simulacros de simpatia, arremedos de afecto e até algum carinho bem imitado, e uma vez chegadas a casa, terem dificuldade em exercer as suas relações íntimas com autenticidade; pois que a alternância entre o afecto profissional e o afecto verdadeiro devia traí-las e fazer com que se confundissem, como acontece decerto com as prostitutas em relação aos utentes dos seus serviços e aos seus amantes verdadeiros.
Em momentos de maior pendor para o drama, imaginava-as a entregarem-se à realidade das suas insípidas vidas afectivas em que também não recebiam mais do que esse embuste de sentimentos, das pessoas de quem verdadeiramente gostavam, e apetecia-me pegar-lhes fraternalmente nas mãos, o que imaginava ser o correspondente a beijar uma prostituta; algo que subvertesse a relação profissional e criasse um incontrolável contacto humano.

A esposa do Major era suficientemente feia para garantir que um contacto humano, por mais incontrolável que pudesse ser, não viesse jamais a incendiar tentações; mas era muito carente; tinha uma tal soma de carências por aquele corpo abaixo, que isso não a deixou entender aquele meu gesto romântico. E aqueles segundos em excesso durante os quais a minha mão pegou na dela, e que pretendiam passar por um acto paternalista, com uma dose certa de indulgência machista, tipo Hemingway num bar de prostitutas em Havana, foram tomados como um sinal inequívoco de um macho em ebulição hormonal, atormentado pelo primário instinto de acasalamento.
Por essa altura, eu já via o mundo de novo por cima das cabeças dos outros, embora a minha figura de canadianas se assemelhasse a um orangotango desengonçado que caminhava erecto, mas com a ajuda dos longos braços; e que um pijama curtíssimo, e o cônjuge sobrevivo do meu par de botas da tropa, faziam parecer um orangotango, mas com aptidão para a arte circense.

Enquanto tentava iludir a dança de acasalamento da esposa do Major, convenci o Herculano a levarmos a cabo um peditório para adquirir um par de sapatos; um único par, que nós éramos pernetas simétricos e calçávamos o mesmo número; esforço que ele não compreendia, dado que a esposa do Major repetia amiudadas vezes que me poderia ser mais útil do que eu imaginava.
Ao fim de uma semana já não parecia que houvesse uma alma naquele hospital a quem não tivéssemos pedido pelo menos duas vezes para o par de sapatos e a colecta não chegava nem a metade do necessário. Considerei seriamente a prostituição. Sem um sapato eu não poderia sair do hospital, e a utilidade da esposa do Major era seguramente menor que a minha imaginação.

O dia seguinte amanheceu normal, nenhuma alteração climática veio alterar o curso dos acontecimentos, nenhuma notícia sobre a guerra veio interferir no meu estado de espírito, e eu preparei-me para a visita das senhoras do Movimento Nacional Feminino. As senhoras vieram, mas a esposa do Major não veio. Veio o cabo enfermeiro.
– Ó Furriel Bastos, o Herculano saiu de fim-de-semana mas pediu-me para lhe dar isto. Uma caixa. Um envelope. Uma mensagem.
"Espero que gostes. Felizmente o Major calça o mesmo número que nós. Um abraço. Herculano".
Manuel Correia Bastos
__________
Nota: artigos relacionados em

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1928: História de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)

Moçambique > Mueda > Cart 2369 (1968/69) > 4º Grupo de Combate > A suite dos barões...


Moçambique > Mueda > CART 2369 (1968/70) > O 2º sargento miliciano Sérgio Neves junto a um mural onde se lê: "Em Mueda, os cordeiros que entram, são lobos que saiem. Adeus checas". Recorde-se que o checa, em Moçambique, era o nosso pira ou periquito.

 Moçambique > Mueda > CART 2369 > Sérgio Neves, posando junto aos símbolos da sua unidade

A caminho da Guiné, em 1964, num navio mercante (que não sabemos qual é). Pessoal da CCAÇ 674, Fajonquito, 1964/66) (presume-se). Sentado à mesa, o Sérgio está ao centro, é o 4º. a contar da esquerda.

Guiné > Zona Leste > Fajonquito > 1964 > CCAÇ 674 > O Fur Mil Neves

Fotos: © Tino Neves (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem enviada, em 13 de Fevereiro último, pelo Tino Neves, ex-1º Cabo Escriturário, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego (Gabu), 1969/71:


Camarada Luís Graça:

Por ter voltado a focar as fotos de meu irmão, junto dos Monumentos da Guiné, Bagabaga e Poilão, e na altura do seu envio não as ter comentado, como sendo do meu irmão como militar (Furriel Mecânico Auto) em Fajunquito, em 1964 (1), passo agora a fazer um pequeno comentário sobre quem foi ele:

Há falta de dados sobre ele porque tanto a correspondência como a sua Caderneta Militar que estavam em poder da minha mãe, se extraviaram. Ficaram simplesmente algumas fotos, das quais nada consta escrito no seu verso (data ou local onde foram tiradas). Ele não tinha esse costume.

Portanto, não tenho qualquer indicação sobre o Batalhão ou a Companhia pertencia, mas pesquisei através dum ficheiro em excel cedido pelo Pedro Santos, quando do nosso Encontro da Ameira. Pesquisei pelo ano do fim de comissão, unidade de mobilização (Évora) e nome do Capitão (José Rosado Castela Rio)... Fiquei com a noção de que seria a Companhia de Caçadores 674, que esteve em Fajonquito, região de Bafatá. A ser verdade, o período da comissão será 1964/1966.

Para que algum camarada de sua companhia o venha a conhecer junto algumas fotos desse tempo .


O seu Nome:

SÉRGIO FAUSTINO DAS NEVES
Furriel Miliciano Mecânico Auto
Natural de Luzde Tavira
Residia em Cova da Piedade – Almada


Ele fez mais uma comissão de serviço em Moçambique, como 2º Sargento Miliciano,
de 1968/1970, tendo passado por Lourenço Marques, Mueda, Vila Cabral , Nampula e Meponda - Lago de Niassa . Não sei exactamente por que ordem.

Camarada Luís Graça:

Vou-lhe pedir desculpa, e ao mesmo tempo um favor, apesar do blogue ser de ex-Combatentes da Guiné, gostaria que fizesse referência a este facto de Moçambique, pois é possível algum dos camaradas dele, de Moçambique, lerem o nosso blogue, e me contactarem, o que me deixaria muito feliz.

Vou contar um pouco o historial do meu irmão em Moçambique, porque da Guiné pouco sei. Só me contei alguma coisa quando eu estava na Guiné e ele em Moçambique. Um dia disse-me para ir a Bafatá a um Café, que ele frequentava muito quando lá ia, porque o dono também se chamava Neves. Fui lá mas o proprietário desse café já não era o mesmo, e não me souberam dizer para onde o senhor Neves tinha ido.

O meu irmão era da Construção Naval (Arsenal do Alfeite) e, depois da Comissão da Guiné, emigrou para França (Grenoble), tendo ido trabalhar para um Estaleiro Naval como soldador. Enquanto lá esteve, para além do frio e neve que apanhou, estava muito só e sem dinheiro. Mas escrevia-se com camaradas da recruta que lhe diziam muito bem de Moçambique, tendo lá ficado como colonos, no fim da Comissão. O Estado dei-lhes terras para se fixarem lá e eles estavam muito bem.

Ora ele começou a pensar nessa hipótese de também para lá ir. Assim o pensou e assim o fez. Escreveu para o Ministério da Guerra, a pedir para voltar para o Exército. Foi chamado e colocado nos Serviços Mecanográficos do Exército, e logo pediu para ir para Moçambique. Foi passados 8 meses para Lourenço Marques.

Em Lourenço Marques, passou por vários Serviços incluindo dar Instrução Militar aos Recrutas. E por último, em Lourenço Marques, foi para o Serviço de Intendência, Secção de Cargas, ou seja tratar das Comissões Liquidatárias das Companhias de Fim de Comissão.

Era bom, julgava eu, porque ele dizia-me que só se lembrava que era militar quando fazia de Sargento de Dia, porque na Secção dele era o único militar, e ele era o Chefe, e falava da esposa do Major Tal, da filha do Capitão tal, etc. etc.

Mas ele, como operário do ferro, para ele era um suplício a papelada e os problemas, problemas esses que, como vou contar, o fizeram sair dali.

A história começa com um Major de uma Companhia Independente que já tinha mandado regressar todos para a Metrópole, ficando ele sozinho a tratar de tudo o que dizia respeito à Comissão Liquidatária. Mas estava tudo muito atrasado, e o dito Major foi lá mandar vir junto do meu irmão, reclamando que já tinha a viagem marcada para o regresso, e que o meu irmão estava a demorar muito a dar o despacho, e por essa razão pediu para que o Comandante dos Serviços o atendesse, tendo este acedido ao seu pedido.

Sendo o meu irmão chamado ao gabinete do Comandante, mostrou-lhe todo o processo dessa tal Companhia. Conclusão: o dito Sr. Major tinha quase toda a carga da Companhia encaixotada, com a direcção de sua casa, sendo alguns dos objectos uma arca frigorífica, um barco pneumático e mais algumas coisas, todas sem valor nenhum, como devem calcular.

O meu irmão, em face disto, disse ao seu Comandante que queria ir para o mato, que aquilo não era para ele (ser cúmplice de todas aquelas roubalheiras).

O Comandante (não sei o seu nome, só sei que era muito amigo do meu irmão, segundo me dizia este), ante este pedido e tentando demovê-lo dessa intenção disse-lhe:
- Só para Mueda! - e ele respondeu-lhe:
- É para aí mesmo que eu quero ir! - ... E fizeram-lhe vontade.

Mueda era, para Moçambique, como Guileje era para a Guiné: para todos aqueles que fossem castigados, um dos castigos era serem transferidos para Mueda . E o meu irmão ofereceu-se para ir para lá, daí ficar com a alcunha de o Mercenário.




Francisco Daniel Roxo nasceu em Mogadouro, Trás-os Montes, em 1 de Fevereiro de 1933. Foi para Moçambique em 1951. Aprende a conhecer o território como ninguém, em especial o Niassa, no norte. Foi caçador profissional até 1962. Com a guerra, irá tornar-se, a partir de 1964, um lendário e temível comandante de um grupo de forças especiais de contra-guerrilha (30 homens da sua confiança), lutando contra a Frelimo, à margem das regras da guerra convencional. É conhecido como o diabo branco. Pelos seus feitos na contra-guerrilha, e embora não sendo militar, recebe das autoridades portuguesas duas cruzes de guerra e uma medalha de serviços distintos.

Depois da independência de Moçambique, e já com 41 anos, alista-se no exército da África do Sul. Faz parte de um grupo de operações especiais. Notabiliza-se na Operação Savana, no sul de Angola, na luta contra o exército angolano e os seus aliados cubanos, em Dezembro de 1975. É o primeiro estrangeiro a receber a Cruz de Honra da África do Sul (julgo que a mais alta das condecorações militares). Acabaria por morrer em 23 de Agosto de 1976, numa emboscada, no sul de Angola. Deixou uma viúva e seis filhos. Na foto acima, ele aparece com a farda do exército da África do Sul e o post de 1º sargento. Julgo que não chegou a ser militar do exército português, embora trabalhasse para (e em coordenação com) o exército português. Falta uma biografia, isenta, desta figura de português do tempo colonial que ainda hoje inflama a cabeça e o coração de muita gente que viveu em Moçambique (LG).

Fonte: Adaptado de In memory of three special forces and 32 Batallion soldiers (2005I.



Não sei se pela alcunha que tinha e ficar muito conhecido, quando foi para Meponda, zona do Lago Niassa, o meu irmão acabou por conhecer (e ficar muito amigo de) um senhor, muito mais conhecido em todo território de Moçambique. Era ele, nem mais nem menos , o famoso Comandante Roxo, o Daniel Roxo, mais tarde Sargento Daniel Roxo [do exército da África do Sul].

Eram tão amigos que, quando o Comandante Roxo ia para o mato, convidava o meu irmão para ir também, assim sem mais nem menos, como se fosse para beber um copo. E o meu irmão não se recusava, ia também, até que um dia, numa coluna militar, rebentou uma mina anticarro num Unimog, e ele foi projectado a 30 metros da viatura. Foi em Mocimboa da Praia, sendo depois transportado por helicóptero para Nampula, onde o Cmdt Roxo ia todos os dias visitá-lo. Porque, para além de ser muito amigo dele, também queria que ele (meu irmão) ficasse com o pelotão dele, pois já estava a ficar velho (dizia ele).

Pronto, fico por aqui, muitas outras estórias teria para contar.

O meu irmão faleceu em 25 de Junho de 1997, com um temor na cabeça.

Camarada e amigo Luís Graça, se achar que esta pequena estória do meu irmão em Moçambique está fora do contexto do nosso blogue (que é dedicado à Guiné), não a publique, pois só pensei no facto de algum militar de carreira que tenha estado em ambas (Guiné e Moçambique) possa ter conhecido o meu irmão. Se sim, gostava que muito me contactassem, pois também já pensei entrar em algum blogue de Moçambique.

Junto fotos da Guiné e Moçambique. Ccomo se vê nas fotos, o meu irmão Sérgio pertenceu em Mueda ao CART 2369. Junto também uma foto do Cmdt Daniel Roxo.

Um abraço
Tino Neves
Almada

2. Comentário: Tino, como é que eu te poderia recusar um pedido destes ? A guerra bateu à porta da tua família por três vezes... Tens todo o direito a contar a estória do teu mano, e procurar camaradas que o conheceram. Boa sorte nessa pesquisa. Ah, e desculpa o atraso na publicação do teu post...

De qualquer modo, seria interessante saberes mais sobre as relações do teu irmão com o Daniel Roxo que para uns era um herói e um patriota, para outros um mercenário e um criminoso de guerra... Há inúmeros sítios na Net sobre o Daniel Roxo, e quase todos de homenagem e de admiração... No mínimo, é uma figura controversa, mas que merece ser conhecida, analisada e estudada... A história (mesmo a petite histoire) da guerra colonial também passa por homens como ele...

Vê, portanto, se descobre mais coisas sobre o relacionamento entre o teu irmão e o Daniel Roxo... O teu irmão, como militar, participou em operações de contraguerrilha com o Daniel Roxo ? Ou as suas relações eram só de pura amizade ? Por que é que o teu irmão era alcunhado de Mercenário ? Desculpa lá estas perguntas um pouco incómodas para ti, que és irmão do Sérgio, mas já que te expões, contando um pouco da atribukada vida dele, tens de tentar responder, se souberes... De qulaquer modo, cuidado, camarada, que este é um dossiê que pode estar armadilhado... Pode ser uma verdadeira caixa de Pandora ... L.G.

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd post de 14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1367: Concurso O Melhor Bagabaga (3): Fajonquito (1964) (Tino Neves)