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quinta-feira, 5 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16054: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (23): Religiosos de primeira e pobres (crentes) de segunda (Recordações de infância)

1. Em mensagem do dia 26 de Abril de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), mandou-nos mais estes excelentes apontamentos para a sua série "Outras Memórias da Minha Guerra".


Outras memórias  da minha guerra

22 - Religiosos de primeira e pobres (crentes) de segunda 
(Recordações de infância) 

Corria mais uma manhã daqueles primeiros dias de Maio de 1950. O céu completamente limpo iria proporcionar, por certo, mais um belo dia, com temperaturas já elevadas para a época primaveril. A rua que atravessa a povoação é conhecida por Estrada Real. Foi a via principal que nos ligava a Roma: a sul, por Conimbriga ou Scallabis a Emerita Augusta e, pelo norte, através de Calem, Portucale, Bracara Augusta e Astúrica Augusta.


Por ela passaram militares, de soldados a generais, eremitas e peregrinos, padres e bispos, noviças e freiras, criados e fidalgos, reis e rainhas. Enfim, digamos que por ali passou todo o mundo. Tudo, nos outros tempos, porque no meu tempo, só passávamos nós, a pé e descalços, passavam outros de socos ou chancas e alguns em carros de bois. Também passava o gado para a Feira dos 10 e 28 e, em rebanhos, por altura do S. João do Porto.

Mais tarde, em 1970, conheci um empreiteiro em Angola que havia ido para lá há cerca de 40 anos e que nunca mais voltara à Metrópole, alegando que “não o fez porque lá não se esquecera de nada”. Este senhor, de nome Claudino, era muito crítico em relação à miséria que conhecia bem de a ter vivido no norte, lá para os lados da Beira Alta. Então, falava sempre com sarcasmo nos êxitos do Salazar. E dizia:
- É um dos homens mais inteligentes do mundo. O exemplo mais flagrante que conhecemos é o da criação e desenvolvimento da máquina “carro de bois”. Imaginem só, o emprego que dá a tantas pessoas.

E explicava:
- Na frente, vai a filha do empresário, de vara ao ombro, agarrada aos arreios que ligam os bois;
- Logo atrás, do lado direito, vai o empresário sentado junto ao cu do boi. Leva também uma vara para orientar a marcha da viatura;
- Do lado esquerdo vai o moço, para ajudar nas cargas e descargas e vigiar o garrafão e o cesto do apoio logístico;
- Atrás, de lata pendurada numa mão e pincel de trapos na outra, segue o aprendiz de moço, que vai untando o eixo das rodas;
- Mais atrás, segue uma mulher de giga à cabeça, acompanhada pela filha que, de pá na mão, vai aguardando que caia a bosta dos bois.

Pois eu também me recordava bem de ver essa “máquina”. E vi outras coisas nessa rua de Imperador Romano onde, como criança, vivi com as pessoas mais humildes que então conheci.

Apesar daquelas pedras enormes, solidamente assentes e agarradas entre si, não sei porquê, existiam clareiras de terra batida, onde jogávamos à bola de trapos, ao pião, à bogalhinha, ao pica-pau, à tocha do ar, à malha, ao eixo e à macaca. O pior era a conjugação da utilização desse parque de jogos. É que, quando as mães regressavam do monte, onde iam ao moliço (caruma de pinheiro) e à carqueja, precisavam de espaço para a seca desses combustíveis biológicos, a fim de os entregar bem secos nas padarias.




De viaturas, lembro-me de as ver passar por ocasião de dois casamentos: um, o da filha da Senhora Micas, que casou com um “venezuelano” e o outro, o do filho do Senhor Quintana, negociante de sucesso, com a fama de vender bem o gado doente, para os talhos da Malveira. Num e noutro caso, parávamos o jogo de futebol e, como os carros tinham que andar devagar, aproveitávamos para saltar para cima deles em andamento.

Também me lembro de um dia ter ficado aterrado de medo, quando passaram uns carros de combate, com o primo Neca, filho da tia Amélia Tabareda, dentro de um deles. Ele chorava ao ouvir a mãe desesperada, a gritar:
- Ai, o meu rico filho que vai para a guerra!
- Ai, o meu querido filho que vai morrer!

Eu ainda não tinha 5 anos, seguramente. Porém, dado o choque que senti, ainda hoje tenho fixadas na mente essas imagens. Penso que terá sido no Verão de 1947 e se tratava de manobras militares, ainda muito influenciadas pela II Grande Guerra.

************

Pois quando a manhã desse dia de Maio não ia além das 8h30, já toda a gente andava ocupada. Os homens tinham ido para as fábricas, os filhos para as escolas e as mulheres para o monte. Toda a rua estava deserta. A excepção surgiu, vinda do outro extremo da vila. Entraram pelo lado do caminho do Souto. Uma senhora, de chapéu de palha e de vestes claras, bem apresentável para os seus cinquenta e tal anos, de sombrinha fechada, que servia de bengala, bem ornada pela sua pega de prata, onde sobressaia uma pequena escultura de um crucifixo em forma estilizada. Também se lhe destacavam um vistoso terço ao pescoço com um medalhão da Senhora de Lourdes e uma concha de Santiago de Compostela e, ainda, um enorme broche ao peito, com a imagem da Virgem Maria. Logo atrás, seguia uma senhora de aspecto humilde, descalça, de giga à cabeça, aparentando cerca de sessenta e cinco anos. Naquela carga volumosa, apertada por uma escassa toalha, é bem visível um saco de batatas, panela, tacho, fogareiro a petróleo e ainda a asa de um garrafão. Com ela, a Felismina Estaca, vinha também um miúdo descalço, de cerca de 7 anos, com um saco de pano às costas. Era o seu neto Jeremias que vinha, para ficar em casa da sobrinha Conceição, durante esta sua deslocação a Fátima.

Bateu na porta dos Margaridos, com o referido cristo de prata, surgiu a Dona Juliana, que logo manifestou a sua relação afectiva com a visitante:
- Então, prima Joaquina, que andas por aqui a fazer? Bem dizias que ias a Fátima, outra vez.
- Sim, já te tinha dito que ia. Olha, com esta, é a vigésima sexta vez que lá vou. Já lá fui mais vezes do que tu. Enquanto Jesus Cristo quiser e a sua mãe Virgem Santíssima me ajudar, lá irei.

A Juliana interrompeu-a:
- Sabes lá o que custou ter criado um filho padre e aturar um marido fidalgo. Bem gostaria de te fazer companhia. Espero que Deus Nosso Senhor não se esqueça da minha penitência, quando chegada a hora de partir.

Voltou a Joaquina:
- É por isso que eu, apesar de não ter um filho padre, também espero que todas as minhas rezas e peregrinações contem para um bom lugar na vida eterna, à direita de Deus Nosso Senhor. Eu sei que me falta ir à Terra Santa, mas devo ir lá brevemente, custe o que custar. Mas, já disse, quando eu morrer, não quero que ponham nada na lápide no cemitério a lembrar as minhas peregrinações, como fizeram no jazigo da Baptistinha.

- Não queres entrar? A minha mãe já se levantou. Hoje quer ir à missa do meu Sebastião, que a vai celebrar na Capela da Senhora das Dores. Ela tem muito orgulho neste neto.
- Só a vou cumprimentar. Não posso demorar porque quero juntar-me ao primo da Mala-Posta que já deve estar à minha espera.

Então o Sebastião sempre vai para Roma?
- Nem me fales nisso. Se soubesses o que temos passado, a mexer os cordelinhos. Olha que não é por falta de devoção à Virgem Maria nem por falta de ódio ao comunismo. Sabes bem que além da devoção ao Santo Padre Pio XII e ao nosso Cardeal Cerejeira, temos muito respeito pelo nosso Salazar. O meu homem, que é da União Nacional, vai conseguir.

De volta, a Joaquina, vinha acompanhada da Juliana, que lhe pedia:
- Não te esqueças de vir cá pelas festas do Corpo de Cristo, para acertarmos a ida aos banhos.

************

Logo ali, mais acima, havia um pequeno largo, onde se agrupavam habitações, algumas delas adaptadas de celeiros e de outros barracões. Numa delas vivia o Serafim do Canto, viúvo de Lurdes do Estaca, com sua filha única, a Conceição. Ele era serrador e havia ficado bastante ferido de uma perna num acidente. Enviuvou cedo e ficou com esta filha a cuidar dele. Viviam praticamente de esmolas. A rapariga era bastante frágil e tinha dificuldade em fazer trabalhos remunerados. O pouco que ganhava era a fazer bilros. No entanto, dada a sua dedicação religiosa, acabou por se destacar a ensinar a doutrina para a Comunhão Solene. Por isso, era tratada por “Soramestra”. Era analfabeta mas os seus alunos apareciam nos exames como autênticos papagaios. Eram sempre os melhores. Todavia, dos seus alunos nunca algum foi escolhido para fazer discurso no dia da Comunhão Solene. Possivelmente porque essa vaidade estava mais reservada para os descendentes de famílias mais importantes.

Nunca se ouviu dizer que a Conceição teve qualquer namorico. Esquelética, escanzelada e pouco atraente, não parecia entusiasmar quem quer que fosse. Por outro lado, a obrigação de ajudar o pai, aliada à sua religiosidade, anularia, por certo, qualquer tentativa amorosa.

O Senhor Serafim também ajudava, através dos serviços que prestava como curandeiro. Para mim, que em criança vivia por perto, ele era um homem ponderado, muito experiente e muito respeitado. Dava gosto, ouvi-lo contar as suas histórias incríveis, mesmo quando nos faziam perder o sono. Com ele, ficávamos crentes em benzeduras, rezas, espíritos, maleitas e bruxedos.

Recordo, mais tarde, já moço, ter levado à letra uma regra sagrada:
- Quando aparecer uma “coisa ruim”, não se pode recuar e mudar de caminho, porque a “coisa ruim” volta a aparecer.

E sempre que eu passava a altas horas, por um dos dois caminhos que ligavam ao centro da vila, ambos interrompidos por locais escuros e medonhos, vinha-me à memória aquela história que ele contava, do caixão iluminado por velas, a atrancar o caminho de tal forma, que ele teve que passar por cima das silvas e que ficara todo arranhado.

Pois eu, um dia, ou melhor, numa noite, já depois de ter passado as Alminhas dos Três Caminhos, sempre iluminada por uma lamparina de azeite, quando entrei na zona escura, entre o pinhal do Monte de Souto, comecei a ouvir uma voz cavernosa que pausadamente repetia:
- Se veeennns porrrr beeemm,….aaannnda!!!

Instintivamente, quase fiquei estático. De repente, não sabia que fazer. Apetecia-me ir para trás e fugir pelo caminho da Carreira Funda mas, logo me veio à cabeça a profecia do velho Serafim. Não podia fugir.

As pernas pareciam andar por si e nem as sentia poisar o chão, os olhos arregalados sem verem nada, o couro cabeludo parecia encortiçado, o cabelo ficou encrespado e no cu não cabia um feijão fradinho. Parecia um autómato em direcção ao abismo. E a voz voltava:
- Se veeennns porrrr beeemm,…. aaannnda!!!

Já perto, esperava o pior. Ao passar de lado, noto os contornos de um indivíduo encostado a uma pequena ribanceira. Foi então que ouvi, agora em voz baixa e em jeito de resmungão:
- Pelo meeennos, a salvaçããoo,dááá-se!

Sem parar, e já uns passos à frente, respondi:
- Então, boa noite.

************

Pobres entre os mais pobres, beneficiavam da entreajuda dos vizinhos e também da caridade do senhorio.
Ao aproximar-se do pequeno largo, a Felismina disse:
- D. Joaquina, por favor, vá andando que eu vou levar o Jeremias à minha sobrinha e já sigo.

Momentos depois, ouvia-se a Conceição:
- Fique descansada, o Jeremias fica bem. Sabe que não precisava de me dar nada. Que Deus lhe pague, tia, porque você também bem precisa. Olhe que tem de se poupar porque isso de ir de carrego a Fátima tantas vezes no ano, não pode aguentar sempre.
- Eu sei, rapariga – respondeu a tia – logo que o Jeremias vá trabalhar, nunca mais faço isto. Que Deus me perdoe, mas já estou farta de Fátima até aos cabelos.

Poucos metros ao lado, entre umas divisórias de madeira, ouvia-se o martelar do sapateiro Neca da Fonte, ao mesmo tempo que esticava com a turquês o cabedal sobre a forma (molde) de madeira e o ia pregando progressivamente. Ele, vizinho de porta com porta, sabia tudo que se passava naquela “ilha”. Compreendia a devoção da Conceição, mas não deixava de exprimir a sua opinião de descrença nos exageros da religião ou nas suas acentuadas contradições. Apesar de analfabeto, dizia coisas que me pareciam sábias. Foi dele que ouvi dizer que Deus, para ser entendido por todos, somente precisava de nos ensinar a diferenciar a prática do bem ou do mal. E que isso era muito simples. Caso contrário, a prática do bem não pode estar condicionada a muitos estudos ou a opulências materiais. Também dizia que os simples ou pobres, sabiam bem distinguir o bem do mal e que os outros, os do poder e do saber, de tudo eram capazes para se valorizarem e inocentarem.
Ele gostava muito de se afirmar através dessas suas certezas.  Quase todos os dias, erguia a voz para que se ouvisse dizer este poema, de autor desconhecido:

Levando uma criança pela mão 
Entrava uma senhora na igreja 
Onde foi rezar com devoção 
Só o reino de Deus, ela deseja. 

Sentado à porta estava 
Um pobre cego que lhe pediu esmola p’ra comer. 
E ela respondeu com desprezo: 
- Perdoai-me Senhor, não pode ser. 

Depois de rezar se confessou 
E numa caixinha foi deitar 
Dinheiro que da bolsinha tirou. 

Ao ver o gesto dela, seu filhinho 
Dizia para a mãe em voz baixa: 
- Porque não deste esmola ao ceguinho, 
E foste deitá-la naquela caixa? 

É para azeite, filho, aqueles cobres 
Para iluminar nosso Senhor 
Antes dar a Deus, do que dar aos pobres 
Foi o que disse há pouco o bom prior.
 
- Mãezinha, no prior não acredito, 
Dizia o garotinho com desdém 
- Dar esmola ao ceguinho é mais bonito 
Porque o ceguinho tem fome, e Deus não tem.

Sempre mantive algum relacionamento com o Jeremias. Convivemos em criança quando vinha para casa da tia, a Soramestra e, mais tarde, através do grupo da JOC. Posteriormente, pouco tempo depois da chegada da Guiné, encontrei-o num velório. Falámos de várias coisas, especialmente da Guiné e dos tempos de criança. Da Guiné, salientava as Operações efectuadas na zona norte, onde sofrera várias emboscadas. Quase nos encontrámos naquela zona, porque veio pouco tempo antes de eu lá chegar.

Sobre os tempos de criança, passados comigo, lá na Estrada Real, ele valorizava imenso aqueles dias de brincadeira. Lembrou-me daquela história da D. Guidinha, mãe da D. Juliana e avó do Padre Sebastião, quando trouxe para junto do seu portão, uma giga de maçãs podres e nos chamou:
- Canalhada, vinde aqui às maçãs!

Corremos para ela, cheios de entusiasmo e quando estávamos ao seu redor, ela atirou as maças para o chão e desatou a rir às gargalhadas.
Os miúdos atropelavam-se a apanhar as maças. Algumas delas ficavam enfiadas nos dedos, todas esborrachadas.
E como me recusei àquele espectáculo, o Jeremias lembrou que, a partir dali, passámos a ir directa e perigosamente às árvores, “roubar” a melhor fruta dos Margaridos.

O Jeremias quase não se relacionava com a mãe. Nem sabia quem era o pai. Ele era fruto de um descuido profissional da mãe, prostituta. Ela perdera cedo a virgindade e cedo se dedicara a essa actividade. Fugiu para o Porto, onde era vista amiúde na zona do Cimo de Vila, precisamente onde chegavam os autocarros da aldeia. Aliás, ela fazia questão de ter muita “clientela” da sua terra natal.

Contrariamente ao que seria espectável, o Jeremias era rapaz humilde, cordato, crente e simpático. Logo que fez a 4.ª classe foi trabalhar para uma fábrica de calçado, onde se manteve fielmente até à reforma. Ajudou, exemplarmente, a avó que o criou, enquanto foi viva. Ela faleceu quando ele estava na Guiné.
Logo que chegou, casou com a namorada que o esperou durante esse tempo de guerra. Ambos, são fervorosos católicos praticantes. Todos os anos vão a Fátima, a pé, no cumprimento da promessa que fizeram juntos, antes de ele partir para a Guiné. Têm dois filhos e três netos a quem têm dedicado toda a sua vida.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15836: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (22): O “Galã de Nhacra” e “Conquistador de Guimarães”

quarta-feira, 9 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15836: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (22): O “Galã de Nhacra” e “Conquistador de Guimarães”


Quartel de Nhacra




1. Em mensagem do dia 23 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), mandou-nos mais uma das suas excelentes histórias para a sua série "Outras Memórias da Minha Guerra". Para quando o prometido livro?


Outras memórias da minha guerra

21 - O “Galã de Nhacra” e “Conquistador de Guimarães”

Entre os camaradas daquela Companhia, era voz corrente que o Furriel Martins era oriundo de família rica, muito ligada à indústria têxtil. Dizia o maqueiro Soares, de Guimarães, que se lembrava bem de ver um MG vermelho, descapotável, a passear pela cidade, e a acelerar por perto do Toural e, também, junto do Liceu de Guimarães.
Também quem se lembrava bem do Martins, era o Furriel Moura, que estava “sediado” em Mansoa. É que, além de o ter conhecido nas Caldas da Rainha, também o acompanhou em Tavira. Enquanto nas Caldas quase passou despercebido, já o mesmo não se pode dizer do tempo em que esteve em Tavira. Aqueles meses quentes de Junho e Julho proporcionaram-lhe várias exibições pelas praias mais próximas.

Tudo levava a crer que o Martins seria um conquistador nato, mas o certo é que poucos o viram acompanhado de miúdas, a não ser com a Marilu, uma jovem bastante conhecida, naquele ambiente castrense, por “Miss Punheta”. Por outro lado, pouco mais dele se sabia, já que o Martins não gostava de conviver com os demais camaradas.

Na Guiné, o Martins mantinha aquele ar petulante de superioridade, especialmente diante de subalternos. Aliás, esse complexo de superioridade provocou os seus custos: de gozo, por uns e de aversão, de outros.

Quem não podia com ele era o Moreira, o Cabo Cripto que, mercê de um certo à-vontade, de uma evidente popularidade e de uma boa aparência física, lhe causava alguma inveja e muita antipatia.
Por coincidência, um e outro optaram pelos serviços da mesma lavadeira, que, por sinal, era uma miúda bastante gira, corpo curvilíneo, mama firme, cabelos esticados e de feições arredondadas. Por experiência, sabemos que, com tais predicados nas lavadeiras, a roupa raramente regressa bem lavada e com a mesma cor de origem. Porém, os “galãs”, pareciam perdoar tudo para merecer as atenções da melhor miúda de Nhacra.

Aparentemente, o Moreira adiantou-se rapidamente, uma vez que, ao fim de pouco tempo, já ia para a tabanca da Sami, passar os serões.

Por sua vez, o Furriel Martins, julgando-se seguro da sua importância, quando soube que o Cabo Moreira estava na tabanca, foi lá para o deitar abaixo. E, logo que o viu junto da Sami, interpelou-o em voz alta:
- Ouça lá, ó nosso Cabo, que anda por aqui a fazer?
- Vim aqui à lavadeira, procurar uma camisa. - Justificou-se o Moreira.
- Qual camisa, qual caralho! Não sais de trás dela.

E continuou:
- Vieste incomodar a Sami, a esta hora? Deixa-a em paz e desaparece. Vai para o quartel, de onde não devias ter saído.
- Mas ainda não tocou a recolher. Posso estar cá fora. - Respondeu o Moreira.

Irritado, o Furriel Martins gritou:
- Podes, o caralho! Põe-te a andar! É uma ordem! Ouviste bem? É uma ordem!

Ferido no seu orgulho, o Moreira dirigiu-se directamente para a caserna do 1.º Pelotão. Como não tinha arma distribuída, agarrou numa G3 que estava pendurada pela bandoleira nos ferros de uma das primeiras camas. Rapidamente regressou à parada e aproximou-se da porta de armas.

O Furriel Martins acabava de entrar e o Moreira, que já o esperava, apontou-lhe a arma.
- Ouve lá, ó Galã de Merda, eu vou ficar cá mas tu, vais co caralho, seu grande filho da puta!!!! .

Puxou o gatilho e ouviu um estalido. Insistiu e o som repetiu-se. Nessa altura, já o sentinela gritava:
- Acudam! Acudam! Estes gajos estão malucos! Querem matar-se!


Quartel de Nhacra

Desesperado, o Cabo Moreira atirou-se ao Furriel a murro e a pontapé, até que chegou o Oficial Dia, Alferes Bastos e o levou para a Casa da Guarda. Não levou muito tempo para aparecer o Capitão Alves, que indicou o seu gabinete e logo perguntou:

- Então Bastos, que é que se passou?
- O Cabo Cripto puxou de G3 para matar o Furriel Martins. A sorte é que não havia bala na câmara. O Martins pensa que é tudo dele e ficou fodido de ver o Cabo Cripto na tabanca, junto da lavadeira, uma boazona que anda por aí.

O Capitão interrogou de novo:
- Não me diga que é a Sami? Olha o engatatão! Por sinal ela também me lava umas coisas.

E continuou:
- Realmente ela é jeitosa mas, como lavadeira é muito fraquinha. Esse Furriel é um merdas, parece que ninguém gosta dele.
- Pois é Capitão, mas agora estou fodido. É que já meti o rapaz na cadeia e agora nem sei como me safar. Ele é de lá, da Povoa, é vizinho da minha mulher, até andou a estudar com ela. E a mãe, que tanto me pediu que olhasse por ele!

E continuou:
- É educado e bom moço. Nunca se mete com ninguém, mas é um bocado casmurro e ficou pior desde que o pai morreu num acidente. Foi à inspecção, não deu as habilitações porque não queria responsabilidades de chefia. Agora acontece isto e tinha que ser eu a condená-lo.

O Capitão levantou-se, pousou a mão no ombro do Alferes e disse:
- Não faça qualquer participação. Deixe o Cabo passar lá a noite, mas deixe a porta aberta. Deixe-o sentir a responsabilidade do que fez e amanhã eu trato disso. Entretanto, mande avisar o Furriel, para que se apresente aqui às 9 horas.


Quartel de Nhacra

Numa das vezes que visitei o Cemitério de Nespereira, a dois quilómetros de Guimarães, quando estava a olhar a foto do Faria (Furriel Enfermeiro da nossa CART 1689), colocada sobre um jazigo, lá ao fundo, do lado direito, ao mesmo tempo que recordava, em catadupa, grandes momentos vividos juntos na Guiné, ouço uma voz:

- O senhor não é de cá, pois não? Conheceu o Domingos Faria?
- Fomos muito amigos, lá na Guiné. Devo-lhe muito do que de melhor lá passei. Quando chegámos, fomos uns para cada lado e mortos por esquecer aqueles dois anos de guerra. Só ao fim de cerca10 anos é que sentimos necessidade de nos revermos nesse primeiro encontro,que veio a ser realizado no Restaurante D. Sancho, em Anadia. Foi um choque muito grande quando, todo entusiasmado, o fui convidar para esse primeiro encontro da nossa Companhia, então, soube que ele havia falecido.

O senhor voltou a falar:
- Era muito bom rapaz, muito alegre e um grande técnico de debuxo. Trabalhei junto dele e sinto muito a sua falta.

E eu, acrescentei:
- Sim, era do melhor! Tinha um coração de oiro! Era Enfermeiro, mas até lhe chamavam doutor. Estava sempre disponível para ajudar. Ele fazia milagres. Por isso, para os civis, ele era considerado um santo.


Junto à Campa do Domingos Faria

O senhor, emocionado, limpou os olhos e voltou:
- O filho mais novo do meu ex-patrão Martins, também esteve na Guiné. Esse safou-se lá, mas aqui tem passado das dele. Imagine, um rapaz a quem não faltava nada. Podia escolher a melhor moça da região e acabou por casar com uma galdéria que lhe fugiu, para Lisboa e lhe deixou um filho deficiente. Ele não era grande coisa mas tenho pena dele.

O Jorge, então com 12 anos, era o irmão mais novo de uma família de bons artistas de tecelagem. Quando, nos finais dos anos 50, se aperceberam dessa importância, aliada aos ventos favoráveis daquela indústria, no Vale do Ave, resolveram estabelecer-se. Cada um dos 4 irmãos ocupou a chefia de um sector e em pouco tempo, a empresa deu um salto enorme. Seguiram-se anos de ouro para a empresa. Em poucos anos, já todos os irmãos casados tinham boas moradias, bons carros e bons apartamentos de férias.

Agora o Jorginho vivia nas nuvens com o seu descapotável. Ainda não tinha feito os 18 anos e já andava na Escola de Condução e como chumbou 2 vezes, foi comprar a carta à Ilha da Madeira. E se ia mal nos estudos, pior ficou, porque começou a sentir vergonha de se ver ultrapassado pelo seu sobrinho José, filho da Celeste, a irmã mais velha. Já não ia às aulas. Só se via a passear de descapotável pelas ruas movimentadas de Guimarães e à saída das miúdas do Liceu. Apesar do fracasso como estudante, ele vincava bem a sua superioridade económica, capaz de provocar desejos e invejas na generalidade da juventude.
Foi à inspecção militar e ficou apurado. A família ainda pensou livrá-lo, mesmo que ele tivesse que viver uns tempos lá fora. Porém, ele recusou e armou-se em patriota.

O Jorge Martins regressou da guerra em princípios de 1973. Com o estatuto de guerreiro e possuidor de grandes histórias de valentia. Agora, era mimado não só pelos familiares e amigos mas também por uma variedade de jovens casadoiras. Digamos que ele se tornou num partido bastante disputado.

Experimentou vários namoros mas nenhum lhe despertou a chama da paixão. Parecia que ainda não descobrira mulher que o merecesse. Até que um dia, por altura das festas Gualterianas (no início de Agosto), conheceu uma loiraça que lhe deu a volta à cabeça.

Sentado na esplanada do Largo da Oliveira, ali no coração da cidade berço da nossa nacionalidade, o Martins assistia desinteressadamente a mais uma discussão, sobre a verdadeira identidade do D. Afonso Henriques. Um garantia que Afonso era o filho enfezado da D. Teresa de Leão e de D. Henrique de Borgonha e o outro, alegava que o verdadeiro Afonso era filho de Egas Moniz, um rico fidalgo de Entre Douro e Minho, sediado em Cinfães, a quem incumbiram de cuidar e educar o príncipe, que logo ficou órfão de pai e afastado da mãe, que se relacionara amorosamente com o galego Conde Fernão Peres de Trava. No Mosteiro de Cárquere, na encosta norte da Serra de Montemuro, por cima das famosas Caldas de Aregos e ao lado do Rio Cabrum, bem conhecido pelas suas águas límpidas e pelas suas trutas, conta-se a história baseada num milagre.

Ali se mostra e se conta que o menino Afonso, deficiente das pernas, então com cerca de 5 anos de idade, entrou ao colo, por uma porta lateral da Igreja, directamente para uma sala de adoração. Poisado sobre uma pedra altar, foi rodeado de velas que acesas, se foram gastando enquanto se rezava pedindo um milagre. Os oradores acabaram por adormecer enquanto as velas se consumiram e atearam um incêndio. O menino Afonso, desesperado, levantou-se e saiu a fugir pela porta principal. Ora, ali pelas terras de Cinfães e de Resende também é voz corrente, reforçada e bem apoiada por documentos, a garantir que não houve milagre algum e houve sim, uma troca dos miúdos, sobressaindo desde então, o Afonso forte e robusto que se notabilizou pelas suas conquistas na fundação e expansão do Reino de Portugal.


Mosteiro de Cárquere

Sempre com os olhos atentos ao desfile de beldades que ali passeavam, o Martins fitou uma jovem loira bem atraente, quer pelas suas formas esbeltas, quer pelas suas vestes leves e insinuantes. Logo que ela se começou a afastar, parece que foi atingido por um relâmpago. Levantou-se de repelão e foi atrás dela. Por sinal, o carro dela estava perto do seu, e isso proporcionou o início de uma conversa baseada nas características desses bons carros. A loira, aquele monumento de mulher, deixou-o preso pelo beicinho. Deu-lhe o endereço de Lisboa, da casa onde vivia com um tio que a levara de Trancoso, para estudar em Lisboa e para o ajudar nas suas empresas ligadas ao ramo hoteleiro.

Pouco tempo depois, já ela o contactava pelo telefone. Ele, ansioso, lançou-se para Lisboa e acabou por dar largas à sua paixão. Com a abertura dela (Joana) e com as disponibilidades dele, rapidamente o namoro se desenvolveu. O Jorginho ficou doido com o ambiente lisboeta que ela lhe mostrou. Que grandes noitadas! Tudo era fácil e tudo parecia amor. A família Martins compreendeu esse namoro e tudo fez para que o Jorginho se enquadrasse rapidamente na gestão da empresa e trouxesse a Joana para o norte.


 Igreja e Largo da Nossa Senhora da Oliveira - Guimarães

Estava tudo bem encaminhado para casar. Somente se mantinha o tal problema: a Joana não tinha muita vontade de sair de Lisboa. Porém, como já engravidara, nada podia travar esse casamento, fosse o que fosse. Foi montada uma boa moradia nas encostas da Penha e a mãe do Jorginho cedeu-lhe a Margarida, uma empregada da casa. E fez-se um casamento em grande.

A Joana cultivava muito a sua beleza e tinha receio de a perder com a gravidez. Ainda chegou a falar em provocar um aborto. Porém, foi contrariada quer pelo Jorge, quer pelos seus familiares. O Carlinhos nasceu um bebé lindo e aparentava boa saúde. Veio na melhor altura. Veio preencher um certo vazio da Joana, que acusava bastante as suas saudades de Lisboa. Também ajudou a unir a família Martins, que vinha acusando algumas fissuras.

Enquanto o negócio da empresa foi prosperando, tudo parecia perfeito. Nem aquele período de greves e reivindicações do pós-25 de Abril, parecia ter alguma influência nociva na sua estabilidade. Mas, o pior estava para vir: as alterações políticas nas nossas Províncias Ultramarinas. Para além de serem os nossos grandes clientes (com a protecção do governo central), era deles que recebíamos o algodão. Este foi rareando de tal forma que implicou na redução drástica da produção (normalmente a trabalhar em três turnos), vindo a provocar a derrapagem no financiamento das máquinas, adquiridas com a previsão de elevados valores de produção. Por outro lado, os novos países africanos, a troco de alegados prejuízos com a colonização de Portugal, negavam-se a pagar os produtos já recebidos. Agora, libertos, passaram a comprar produtos oriundos directamente da Índia e Paquistão, a preços das matérias-primas. E, enquanto os portugueses esperavam soluções financeiras e políticas, os juros bancários acumulavam-se e estrangulavam essas empresas.

Os tempos seguintes foram aterradores. A empresa Martins veio a ter problemas de sustentabilidade financeira, entrando em situações litigiosas com bancos, Finanças e Segurança Social. E as acções judiciais começaram a confiscar os bens e os valores, comprometidos com a empresa. A dimensão da empresa estava agora reduzida a poucos encargos de laboração, mas com responsabilidades financeiras muito elevadas. Coube ao Jorge e ao Elísio, seu irmão mais próximo, agora com as quotas dos irmãos, lutarem até a exaustão. O sogro do Elísio ajudou-os financeiramente, mas segurou-se por forma a poder vir a beneficiar de qualquer descontrolo mais indesejável. O Carlinhos não se desenvolvia e veio a acusar uma doença degenerativa que o levaria em poucos anos. Valeu-lhe o carinho da avó, uma vez que a mãe se afastava cada vez mais. Agora, sem a folga financeira de outrora, sem segurança quanto ao futuro, a saúde do filho (já condenado) e sempre afastada da sua Lisboa, resolveu desaparecer.

O Jorge, que fizera constar que ela fora ver o tio doente, não aceitou a decisão e foi procurá-la a Lisboa. Quando se encontrou com o tio da Joana, foi esclarecido de que ela queria lá ficar e que, até, já estava a trabalhar. Abriu-se mais um pouco e confessou-lhe que ela regressara ao seu ambiente e à profissão que mais gostava. Além disso, justificou que ela ganhava bem nessa actividade, com futuro e que o casamento rico não passara de uma grande ilusão.

Passaram-se alguns meses. A empresa sobrecarregada de compromissos financeiros, continuava sem as encomendas e sem os pagamentos, necessários para a recuperação. A sua aparente sobrevivência devia-se ao apoio financeiro do sogro do irmão Elísio que, cada vez mais, parecia assumir-se como o principal credor dos haveres ainda disponíveis.

Em finais de Março de 2013, trinta anos depois da sua chegada, a Companhia reuniu na Mealhada para assinalar o evento. O Bastos (ex-Alferes) aproveitou a boleia do Moreira (ex-Cabo Cripto) e lá foram acompanhados das respectivas esposas. Durante a viagem, o Moreira indagou:
- Ouve lá, que será feito daquele Furriel engatatão, conhecido por “Galã de Nhacra”?
- Nunca mais o vi. Mas há uns 10 anos, encontrei o Sousa de Santo Tirso que me disse algumas merdas sobre ele. – Respondeu o Bastos.
- Creio que nunca veio aos encontros da Companhia. – Disse o Moreira, que continuou:
- Nunca me falaste disso, penso eu.

O Bastos esclareceu:
- Talvez tenha evitado mexer no assunto ou terei esquecido. Parece que a vida lhe correu mal, que ficou na miséria e que a mulher o deixou e foi lá para Lisboa. Ele até disse que ela era uma profissional da noite e que trabalhava nos bares de alterne.
- Foda-se, isso não pode ser verdade. Deve ser o desejo de alguns que o conheciam. – Disse o Moreira.

Chegados à Mealhada, foram directamente para o Restaurante dos Leitões. Tal como nos outros encontros, a malta dispersa-se em abraços e mais abraços, deixando as respectivas mulheres entregues à sua sorte, ou melhor, entregues umas às outras. No topo do salão, junto do balcão, entre alguns camaradas, sobressaía uma jovem senhora, bastante bela e de formas atraentes. Com gestos compassados, puxava do seu cigarro extralongo, enquanto intervalava com um scotch de aperitivo.
O Moreira, mal se apercebeu desse monumento, arregalou os olhos e encaminhou-se nessa direcção.

Valeu-lhe o Bastos que se intrometeu a tempo de o desviar e de lhe dizer:
- Ó meu caralho, olha que lá na Guiné, safei-te mas, aqui, nem a tua mulher te salva.

Nota final - Segundo o Sousa, de Santo Tirso, com quem conversámos, o Martins, depois de ter perdido mulher e filho e de ter falido, ficou a trabalhar, parcialmente, para o sogro do seu irmão Elísio. Perdeu os pais e ficou a viver com a empregada Margarida, que bem o conhecia desde miúdo e que sempre o acarinhou. Todavia, mantém ainda algum do orgulho que sempre o caracterizou. Por isso, sempre que pode, refugia-se em boites e, por vezes, aparece a exibir-se com alguma conquista de ocasião. Está na miséria, mas gosta de mostrar que ainda é um galã.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15678: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (21): Amores e Desamores

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15678: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (21): Amores e Desamores

1. Em mensagem do dia 15 de Janeiro de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), mandou-nos uma excelente história para a sua série "Outras Memórias da Minha Guerra".


Outras memórias da minha guerra

20 - Amores e Desamores

Quando entrei no Destacamento do Quartel de Santarém (Escola Prática de Cavalaria), faltavam menos de 15 minutos para o limite máximo de entrada. Num dos bancos de jardim, instalados ali na frente, já havia escrito a alguns amigos, manifestando o meu estado de espírito, carregadinho de incertezas.
Ainda hoje me custa aceitar que eu tenha merecido 7 punições durante as primeiras 5 semanas de recruta. Aliás, só à 5.ª semana consegui licença para ir a casa. Lembrei-me então de pedir ao CMDT de Esquadrão para me deixar participar nos Fiéis Defuntos, alegando o facto de ser órfão e, como irmão mais velho, querer acompanhar a família nessa dolorosa função.

Foi durante esse período de fins-de-semana cortados que tive a oportunidade de conhecer e conviver mais de perto com o Diogo Carvalho que, por opção, também não ia a casa. Inicialmente pareceu-me evidente o seu temperamento emotivo e revoltado quase com tudo o que o rodeava. Depois, após vários dias de convívio restrito, constatei que se tratava de um indivíduo maduro, já bastante espremido pela vida e pelos seus azares.

- Então, também voltaste a não ir de fim-de-semana? – perguntei.
- Não, nem tenho interesse em ir. Já há uns meses que decidi afastar-me da terra.
Perguntei:
- Estás chateado ou magoado com algo muito importante?
- Não gosto de falar disso, mas tens razão.

Após uns momentos de silêncio, abeirou-se um pouco mais, olhou-me frontalmente, de forma a falar só para mim.
- Ofereci-me como voluntário para a tropa para fugir de lá. Ainda pensei em emigrar, mas ponderei as consequências e optei por antecipar o serviço militar. Depois, se há-de ver o que virá.

Contou coisas que muito o marcaram, tais como a morte da mãe, que ainda era jovem, a do avô pouco tempo depois e, ainda, mais tarde, o comportamento do pai, que engravidou uma jovem casada, que trabalhava lá em casa.
Enfim, o Diogo, apesar da sua juventude, já acumulara um sem número de acontecimentos pessoais que o tornaram, precocemente, num homem maduro. Porém, o que mais mexeu com ele foi o desfecho de uma paixoneta por uma vizinha rica.

Viviam da lavoura. Tanto o pai, Laurindo Carvalho, como o avô paterno, Augusto Carvalho, destacavam-se na criação do gado arouquês, o que lhes trazia fonte de rendimento suficiente para pagar as rendas aos senhorios Morgados e ainda desfrutarem de algumas possibilidades na boa criação do Diogo, o único descendente.

Desde menino que o Diogo se destacava entre os seus amigos. Tinha bom aspecto, era inteligente, muito educado e irradiava alegria permanente. Por isso, entre o grupo da JOC (Juventude Operária Católica), ele era o mais admirado.

As miúdas também lhe dedicavam muita simpatia. Porém, em criança, já ele parecia mais focado na Guidinha dos Morgados, a bisneta do Comendador Afonso e sobrinha do Padre Benjamim Morgado. Embora desfasassem quase um ano de idade (ele era mais velho), frequentavam a mesma classe, vinham da escola primária quase sempre juntos, acompanhados pela criada Manuela, porque os Morgados a mandavam ir buscar a miúda.

Este relacionamento era normal, uma vez que viviam na mesma zona da aldeia: ela no Casal dos Morgados e ele, logo mais abaixo, perto da Casa do Feitor, na casa do Senhor Augusto. Além disso, há muitos anos que a família do Diogo estava ligada aos Morgados não só por questões de boa vizinhança mas também por boas relações pessoais e interesses laborais. O Diogo era querido pelos Morgados, especialmente pelos pais da Guidinha.

Durante o tempo da escola primária, havia um relacionamento quase fraternal. Quando a criada Manuela os ia buscar, procurava passar perto do seu namorado, Alcino, que trabalhava na Casa do Brandão.
Por vezes, ela ficava com ele e deixava o Diogo e a Guidinha irem para a beira do Rio Arda. Num dia de calor, a Manuela ficou aflita ao vê-los nus, a aprender a nadar. Todavia, como não os podia acusar dessa ousadia, teve que os tolerar mais vezes. Noutras vezes, já eles andavam na 4.ª Classe, a Manuela encontrou-os a brincar aos beliscões e apalpadelas.

A Guidinha não queria estudar. Gostava muito da família, da natureza e daquele ambiente rural. Por outro lado, temia muito afastar-se dali. Os pais não se preocupavam muito com isso, até porque, ali, não era tradição a continuação dos estudos por parte das mulheres. Além disso, como herdeira de um elevado património, não sentia necessidade de se sacrificar por qualquer outra valorização profissional.

Ele, o Diogo, enquanto pôde, estudou no Colégio dos Carvalhos. Nesse período, os contactos com a Guidinha resumiam-se às actividades de fim-de-semana, ligadas à igreja. O relacionamento de amizade manteve-se bastante próximo.

Logo que faleceu o avô Augusto, o Diogo teve que ir para casa. O pai que já havia entrado em depressão com a falta da jovem mulher, inesperadamente falecida por doença cancerosa, sentia, agora, grandes dificuldades em aguentar o habitual trabalho agrário. Com menos de 17 anos, o Diogo era, então, um jovem sobrecarregado de trabalho nas lides da terra e do gado, obrigado a ajudar o sustento da família, bem como os seus compromissos.
Nesta fase, o jovem Diogo era merecedor dos maiores elogios e de simpatia generalizada. Em pouco tempo, o Diogo fez-se homem. Além disso, ele era solicitado, frequentemente, para colaborar nas responsabilidades das actividades da JOC.

Foi nessa altura que, após as cerimónias do Corpo de Deus, os dois, quando regressavam a casa, se viram junto ao Rio Arda, nos mesmos locais onde desfrutaram de grandes momentos de alegria e de pura convivência. Recordaram aqueles tempos, riram-se de situações inesperadas e brincaram com alusões ao aspecto físico de cada um. Sentados na berma do rio, descalçaram-se para usufruírem da frescura das águas límpidas, naquele dia de grande calor. De repente, estavam no rio a lançar água um ao outro, como faziam nos tempos de crianças. Passaram para a outra margem, acessível só pelo lado do rio, e foram secar as roupas molhadas.
Ao tirar a folgada blusa branca, a Guidinha expôs um bom par de mamas, devidamente sustentadas por um apertado soutien, de cor carnal. Por sinal, era também a cor da calcinha sedosa que cobria o encontro de duas coxas, bem torneadas e bastante atractivas.

Quando o Diogo, de costas, “ameaçou” tirar as calças, já ela se estendia sobre as ervas tenras do pequeno verdeiro. Olhou-a e estremeceu. Foi um momento ímpar. De repente sentiu que toda a pureza daquele relacionamento se esfumara e que outro o amedrontava. Agora via ali disponível a mulher que desejava, aquela formosa rapariga de olhos negros e cabelos lisos e retintos. Deitados ao sol, quase nus, aproximaram-se e encostaram-se.
Beijaram-se sem experiência, agarraram-se com volúpia e murmuraram algumas palavras de amor. A Guidinha, entusiasmada, expôs-se abertamente, entregou-se e desejou tudo do Diogo. Ele procurou satisfazê-la pudicamente com beijos e algumas massagens, sem que tivesse que a desflorar. Assaltaram-lhe os pensamentos que já há muito tempo o vinham condicionando: a diferença social abismal que os separava. Aliás, sabia que se a desflorasse seria considerado e condenado como um oportunista sem perdão. Ele estava convencido de que ela o amaria mais com estas reservas inibidoras, imbuídas do maior respeito. Assim lho deu a entender:
- Guidinha, és a única rapariga que quero. Vamos ter calma. Somos menores, temos que esperar mais algum tempo e pensar melhor no nosso futuro.
Porém, ela parecia insaciável e esperava uma satisfação maior. E respondeu:
- Se me queres, temos a oportunidade de nos amarmos totalmente. Não vou aguentar ficar à espera. Nada receies. Ninguém nos vai chatear. Eu é que sei da minha vida.

Ela agarrou-o e prendeu-o em cima de si. De pernas abertas, já sem cuequinha, soltou-lhe o pénis e puxou-o para junto da vagina, entre um basto e negro púbis. Quase instintivamente, ele moveu-se cautelosamente, de forma a não a penetrar, mas roçar, continuamente, o clítoris e os lábios vaginais. Rapidamente, ela, ofegante, exultava de satisfação e soltava gritinhos de prazer.

Apesar do seu relacionamento, desde crianças, o Diogo e a Guidinha nunca foram apontados como presumíveis namorados.
Eram vistos como vizinhos, muito amigos e de famílias bem distintas. Ninguém, ou quase, pensaria ser possível que eles viessem a assumir um namoro oficial.
Porém, ele ficou bastante preocupado com o encontro recente e, agora, não sabia o que fazer. Não tinha dúvidas quanto ao amor da Guidinha, mas sentia-se apreensivo quanto ao desfecho desta relação que lhe veio avolumar um mar de pressões.

Uns dias depois, a Guidinha, a pretexto de visitar o Feitor, entrou em casa do Senhor Augusto e procurou o Diogo. Entrou à vontade, como era seu hábito desde criança. Logo que pôde agarrou-se a ele e beijaram-se.
Sentiram aproximação de alguém e esconderam-se no quarto. Enquanto ele, atento, escutava o ruído dos movimentos que se afastavam, ela abriu a blusa e deixou cair a saia. Ele voltou-se e, meio surpreendido, não sabia que dizer nem o que fazer. Sentada na cama,puxou-o pela cintura, desapertou-lhe as calças e as cuecas e puxou-as para baixo num movimento brusco. Com o pénis na frente dos olhos, contemplou-o enquanto dizia:
- Sempre que te imaginava nu, via-te tal como eras; sem pelos e com a aquela pillinha.
Acariciouo e agarrou-o, ao mesmo tempo que murmurava:
- Jesus, como cresceu! Tens que o meter no meu pipi. Ele anda zangado, porque ainda não o fizeste.

Ele sentou-se ao seu lado e enquanto lhe acariciava os cabelos, dizia:
- Calma Guidinha, por favor, tem calma. Não podemos cair nessa tentação. Bem gostaria mas, por agora, não posso, nem quero, ser responsável por isso.
Ela agarrou-o com força e puxou-o para trás, por forma a ficarem deitados sobre a cama e murmurou-lhe:
- És um tolo. Será que tens outra e me estás a evitar?
Ele abraçou-a, acariciou-a e beijou-a. De seguida, perguntou-lhe:
- Já imaginaste o que diriam os teus pais quando soubessem deste tipo de relacionamento?
- Os meus pais gostam de ti e vais ver que não haverá problemas. O que eles querem é que eu seja feliz.

Em silêncio, aproveitaram o momento e continuaram a usufruir dos impulsos desta paixão. Valeu o autocontrolo do Diogo que conseguiu de novo evitar o desfloramento.

Aquele Verão sequeiro obrigou a um trabalho extraordinário. Todos andavam mais ocupados nas regas e nas pastagens contínuas. Apesar disso, o Diogo achou um pouco estranho deixar de ver a Guidinha. Ainda passou por perto do Casal dos Morgados, mas não se apercebeu de nada. Ainda pensou que estivesse a gozar férias mas já lá iam cerca de 2 meses sem que a tivesse visto.

Chegaram as festas da S.ª da Mó, que se realizam a 7 e 8 de Setembro. Ali se juntam as famílias e muitos emigrantes. No parque das merendas existem muitas mesas de pedra que são usadas para as abundantes comezainas. O Diogo passou o tempo a olhar para a mesa onde, normalmente, se via a família dos Morgados. Logo após a procissão, viu a criada Manuela dirigir-se para lá. Porém, as pessoas que a seguiram eram seus familiares e amigos. Quando se apercebeu de que os Morgados não viriam, foi-se aproximando. A Manuela quando o viu, convidou-o para comer alguma coisa. Ele reagiu dizendo:
- Vim à missa e à procissão e tenho que ir já para baixo, porque estamos com muito trabalho.
Ela logo respondeu:
- Eu não. Os patrões nem vieram à Sra. da Mó. Devem andar pelo estrangeiro ou estão no Porto, na casa do Padre Benjamim. Nem sei o que vai acontecer agora.
- Mas, porquê? Perguntou o Diogo.
- Não digas nada a ninguém mas, houve lá discussão, por causa da menina Guidinha. Querem que ela vá estudar para junto do Pe. Benjamim e ela não quer ir.
E continuou:
- Tenho pena dela. Andava tão contente. Lá em casa, parecia que estava tudo bem e de repente, tudo mudou. Saíram de cá ainda antes do mês de Julho começar.

Passou o Verão, passou o S. Miguel e chegou o Fiéis Defuntos sem que a Guidinha aparecesse. No Cemitério, ao passar junto do Jazigo dos Morgados, o Diogo achou estranho que os pais da Guidinha o tivessem evitado e se concentrassem tanto na foto do Comendador.
De regresso a casa, o Diogo, que já andava a matutar há tanto tempo, pareceu ter encontrado a justificação. Então imaginou que ela, na ânsia de evoluir a sua relação amorosa, inocentemente e na mais pura das intenções, terá sondado a opinião da sua mãe, sobre uma hipotética atracção por si. Sim, de certeza que foi isso. E continuou a imaginar: os pais discutiram o assunto e optaram por a afastar de imediato dali, levando-a para perto do Padre Benjamim.

Agora que tudo lhe parecia claro, uma dúvida lhe assaltava: Se ela continuasse a apostar nele, já teria deixado algum recado ou teria enviado alguma carta. Todavia, acalentava a esperança de que isso ainda iria acontecer.

Passaram as festas de Natal, sem que se tivesse visto mais a Guidinha. Sem ela, silencioso e pouco iluminado, o Casal dos Morgados parecia abandonado. Foi na noite de Reis, quando recebeu um grupo que cantava as Janeiras, que ouviu um dos elementos do grupo dizer:
- Estivemos no Casal dos Morgados, mas eles não estavam. Disseram-nos que agora estão mais tempo lá pelo Porto. Parece que a miúda foi para o convento do tio.

Entre as pessoas que costumavam trabalhar lá em casa, havia a Carolina, a mulher do Francisco Queirós, que tinha emigrado para a França. Mal casaram, ele seguiu com a ambição de obter melhores condições de trabalho e a promessa de a chamar para junto de si. Menos de um ano depois, em Agosto, o Francisco veio de férias. Queria levar a mulher mas ela disse-lhe que era melhor aguentar mais algum tempo.

A Carolina engravidou. Tudo levava a crer que tinha sido durante a vinda do marido, nas férias de Agosto. Foi trabalhando lá em casa dos Carvalhos mas, em Março, teve um robusto menino, alegadamente com cerca de sete meses de gestação. Tudo normal, tudo na paz do Senhor. Poucos tempos depois do parto, a Carolina trazia a criança lá para casa, enquanto trabalhava. A avó do Diogo, que já acusava sintomas de Alzheimer, gostava de cuidar da criança. Numa das vezes que o Diogo pegou no miúdo, mexeu-lhe no cabelo e verificou que, por coincidência, ele tinha uma pequena mancha rosada igualzinha à sua e à do seu pai. Só depois disso é que se apercebeu de alguma intimidade na relação de seu pai com a Carolina. Sempre pensou que isso não passava de um certo carinho paternal.
O Diogo enfrentou o pai, que não assumiu o caso, e confessou que não podia lá continuar. Ainda bem que em breve iria para a tropa.

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Em 1967 embarquei como a minha Companhia para a Guiné.

Em princípios de Janeiro de 1968, quando regressei às aulas de condução, interrompidas pelo chumbo de Abril anterior, encontrei lá, na Escola de Condução, em Bissau, o Diogo, que fora buscar a carta. Tinha terminado a comissão e regressaria uns dias depois. Falou-me que tivera muita sorte durante a missão da PSICO em apoio aos nativos e que conseguira tempo e disponibilidade para estudar. Tencionava dedicar-se exclusivamente aos estudos, aproveitando as facilidades que tinham sido criadas para os ex-combatentes, proporcionando-lhes exames, sempre que os requeressem.

Durante a nossa conversa, acabamos por falar de novo na sua paixoneta. Perguntei:
- Então, já esqueceste a tua vizinha rica?
- Quase. Olha, endureci de tal maneira que agora receio não conseguir voltar a apaixonar-me. Fiquei marcado por esta não me ter comunicado qualquer justificação.
E continuou:
- Soube que ela está num convento. Imagina, aquela gaja tão quente e tão rica, feita freira!
- E o teu velhote?
- Recebi uma carta dele há pouco tempo. Diz que quer que eu vá para lá, que precisa de mim, que está muito só e, até, que a Carolina foi para França, etc., etc.
- E não vais? Perguntei.
- Devo ir, mas estou decidido a fugir de lá. Quero ver a minha avó, que já não conhece as pessoas, mas o objectivo é ir para Coimbra.

Durante vários anos, passei por Arouca, em direcção a Covelo de Paivó, onde fiz muitas pescarias à truta. A paisagem é maravilhosa e as poucas pessoas que lá vivem são adoráveis. Muitas das vezes, não chegava a pescar. Sempre que encontrava alguém disposto a conversar, perdia-me fascinado a ouvir aquela gente. Falava-se mais do antigamente, da abundância, da fuga das pessoas após o encerramento das Minas de Regoufe e da actual ausência de jovens. Havia gente que não conhecia o mar.
Mas o que mais adorava ver, além daquelas águas límpidas do Rio Paivó, afluente do Rio Paiva, serpenteando entre pedras arredondadas pela sua erosão, era a chegada dos cabritos, ao fim da tarde. Vinham da montanha em rebanho e entravam pelo lado norte, enchendo a rua principal da povoação, “alcatroada” de excrementos secos. Ao cruzarem as pequenas ruelas com os cancelos abertos, iam entrando nas casas de seus donos. Nenhum se enganava e os últimos cabritos chegavam à última casa lá ao fundo, no altinho, por um caminho empedrado há séculos, que nos leva a Regoufe.

Todos os dias, a tarefa se repete. Dois pastores acompanham o rebanho, de forma alternada e democrática. No regresso, perdíamo-nos a petiscar nas adegas abertas, na baixa de Arouca. A carne arouquesa é excelente e o presunto também. Todavia, nunca perdia o salpicão de vinhad’alho nem o bucho, acompanhados do tinto da região.

Nunca encontrei o Diogo. Mas, recentemente tive essa agradável surpresa. Um cliente meu, da Beira Alta, sportinguista ferrenho, contactou-me para lhe fazer um favor: arranjar dois bilhetes para poder assistir ao Arouca-Sporting, que se realizava no Domingo seguinte e que não conseguira através da net.

Andavam numa azáfama, lá na sede do FC Arouca, quando entrei e disse o que desejava. Senti então um toque no ombro, vindo trás:
- Por aqui, Silva?
Voltei-me, olhei: era o Diogo. Reagi logo:
- É verdade. Tanta vez passei por aqui e sempre a procurar encontrar-te e hoje, sem o contar, apareceste. Como me conheceste?
- É fácil porque tens uma voz inconfundível. Mas, pelo aspecto, estás já um bocado gasto, desculpa lá. Vamos tomar qualquer coisa.
- Por acaso era para voltar para trás. Mas, já que te encontrei, podemos ir à baixa petiscar. Conheço ali umas tasquinhas que são uma maravilha.

Armado em cicerone, encaminhei-o para a “tasca da viúva”. Mal entrámos, ouvimos:
- O Senhor Doutor Juiz está cá hoje?
O Diogo respondeu:
- Só vim tirar bilhete para ver o jogo. Não se fala noutra coisa: o nosso Arouca a jogar com o Sporting! Olhe, arranje aí qualquer coisa para petiscarmos.
- Então, Silva, que fizeste nestes anos todos?

Falei-lhe resumidamente destes 40 anos de vida, desde a presença civil em Angola, de 70 a 74, casamento, filhos, canoagem, até aos nossos dias. Seguidamente:
- Agora fala tu, até porque sinto muita curiosidade.

O Diogo explanou também a sua vida, começando pela sua licenciatura, obtida em Coimbra e a carreira na magistratura. Casou em Vila Real e vive no Porto. Tem duas filhas, ambas casadas, uma delas a viver em Matosinhos e a outra em Aveiro. Passa muito do seu tempo junto delas e dos 5 netos que já tem.
A determinada altura, sem que o tivesse perguntado, diz-me:
- Lembraste daquela história da minha paixão? A miúda sempre seguiu para freira. Chegou a directora de Colégio. Recentemente, quando faleceu o tio Padre Benjamim, houve um funeral especial, que teve muito impacto aqui na região. Por curiosidade, quis ver a Guidinha durante o velório.

Contou o que sentiu enquanto não a viu. Imaginava-a ainda uma morenaça boazona, encoberta pelas vestes sagradas. De repente, pôs-se a pensar: e se encetar conversa com ela? Que tipo de conversa teremos? E se ela confessar que não teve culpa do seu afastamento? Gostaria de lhe perguntar se ainda está virgem. Se nunca mais se agarrou a outro homem e como conseguiu resistir a isso tudo. Enfim, chegou a pensar que lhe daria imenso prazer fodê-la, mesmo com aquelas vestes.

Abeirou-se do velório, olhou o morto de longe e esperou ver a Guidinha no meio daquelas velhas feiosas, a rezarem a seu lado. Ficou decepcionado por não a ver.
Não se apercebeu que a Guidinha era uma delas.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de agosto de 2015 Guiné 63/74 - P15023: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (20): História de paz com (muita) guerra atrás

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15023: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (20): História de paz com (muita) guerra atrás

1. Em mensagem do dia 10 de Agosto de 2015 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), manda-nos mais uma história, das que só ele sabe contar, para a sua série "Outras Memórias da Minha Guerra".


Outras memórias da minha guerra

19 - História de paz com (muita) guerra atrás

O Cláudio Reis é um dos meus maiores amigos no mundo dos ex-combatentes. Vive aqui perto de Crestuma - que visita frequentemente - e alinha em quase todos os convívios e patuscadas dessa malta grisalha. Falamos de tudo, com destaque para a nossa vivência da guerra da Guiné, onde ambos estivemos a actuar em larga escala. Eu, porque pertenci a uma Companhia de Intervenção e ele, porque fazia parte dos Pára-quedistas. Chegámos a participar em simultâneo numa OP na zona do Cantanhez.

Posteriormente, enquanto eu me dedicava ao desporto da Canoagem, ele seguia a sua paixão pela prática do Pára-quedismo. Sentados na esplanada do Bar do Clube Náutico de Crestuma, após uma breve olhada sobre algumas fotos de destaque, colocadas no hall de entrada da sede, falávamos desta vez da Canoagem, das Astúrias e do Descenso del Sella, a prova mais popular do Mundo.

https://www.google.pt/search?q=descenso+del+sella&espv=2&biw=1366&bih=667&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ved=0CB4QsARqFQoTCML84riQl8cCFQyb2wodoWAAzA

Realiza-se desde 1930, entre Arriondas e Ribadesella. O seu fundador foi um tal D. Dionísio de la Huerta, um ricaço catalão que costumava vir passar férias naquela estância balnear. Primeiramente, desceu o rio só com os seus amigos, mas logo provocou o entusiasmo dos aventureiros da canoagem. Devido à guerra civil, o evento foi interrompido de 1936 a 1942. Desde então, teve uma evolução acentuada, assumindo-se como “La Fiesta de las Piráguas”.
Gente de todo o Mundo vem ocupar aquelas duas pequenas cidades, durante vários dias, por forma a participar, dentro ou fora d’água, no primeiro Sábado do mês de Agosto. São mais mil canoas e “kayaks” a cobrir as águas do Rio Sella.

Os portugueses, cuja Federação só viria a ser fundada em 10.3.1979, já participavam desde 1951, através de uma representação da Escola de Remo da Mocidade Portuguesa do Porto.
Desde 1981, ano da sua fundação, que o Clube Náutico de Crestuma participa nesta prova. Acresce dizer que, até o ano de 2015, a competição só uma vez foi ganha por portugueses. Foi no ano de 1995, pelo K2 de dois Crestumenses: José Silva e João Gomes. Recentemente acompanhei estes campeões a mostrarem aos filhos a lápide de bronze com os seus nomes, assente no Hall da Fama, junto à ponte da meta, em Arriondas.


 José Silva e João Gomes, ontem e hoje

Enquanto pôde, quem fez de Juiz Árbitro, durante cerca de 60 anos, foi D. Jacinto Regueira Alonso. Figura de grande prestígio internacional, no mundo da Canoagem, foi o promotor dos primeiros árbitros portugueses, vindo a ser homenageado em 1987 como Sócio Honorário da Federação Portuguesa de Canoagem. Foi também Juiz Árbitro da Maratona Internacional de Crestuma.
D. Jacinto Regueira foi meu amigo, meu professor e meu conselheiro. Era conhecido também como D. Jacinto Incorruptível e D. Jacinto Regulamentos. Foi das pessoas mais fascinantes que conheci. Era um senhor. Educado e formal, mas também divertido.

Todavia, ele não gostava de falar sobre a sua vida privada. Um dia, em minha casa, na véspera de mais uma Maratona de Crestuma, após o jantar, ficámos os dois a conversar muito para além do habitual. Dizia ele:
- Ferreira, não fazes a mais pequena ideia do que é uma guerra civil. Por muito que se queira contar, não há hipóteses de transmitir os horrores que se praticam entre amigos, vizinhos e a própria família. A guerra civil é uma coisa tão absurda e tão estúpida que até me custa falar nela.

Lembrei-lhe que eu estivera na guerra e em combate mas que não havia sentido esse tipo de horrores.

Guernica, painel pintado por Pablo Picasso em 1937

- Quando iniciou a guerra civil de Espanha eu era Inspector Escolar no País Basco. Fui perseguido e preso por ser da Galiza, terra do Juan Franco. Estive para ser executado mais de uma vez.
Um dia, num grupo de prisioneiros, foram chamando um de cada vez, para ser executado. Ouviam-se os disparos e logo vinham buscar outro, para nova execução. Não sei o que se terá passado que fiquei sozinho à espera que me viessem buscar.

Emocionado, continuou:
- O meu irmão que era oficial da Marinha, veio atacar Oviedo onde vivia a nossa mãe com a sua mulher e filho menino. O seu Comandante insistiu na orientação do fogo dos canhões para atingir também esse bairro. Felizmente, a casa não sofreu nada.

Após alguns momentos de silêncio, ele voltou-se para mim:
- E queres saber o que me aconteceu no fim da guerra? Regressei logo para a Galiza, para Ferrol, minha terra natal. Mas, como vinha da zona controlada pelos antifranquistas, fui de novo perseguido e preso por desconfiança e retaliação. Passei tempos difíceis e muito magoado, à espera que me devolvessem o trabalho de ensino escolar.
- Impressionante! - Dizia o Cláudio que se mostrava atento a tanta narrativa.

De seguida abordámos o conhecimento daquela região lindíssima de Galiza, Astúrias e Cantábria. E, aqui, foi a vez do Cláudio falar da sua “guerra” mais recente.
- Tenho uma história incrível, passada lá nas Astúrias, mais concretamente em Gijon.
Como sabes, depois que saí da guerra continuei no pára-quedismo. Aliás, segui de instrutor durante os anos que pratiquei, enquanto solteiro.
Todos os anos se disputava ali o Torneo de Pára-quedismo Principe de Asturias. Foi lá que conheci uma rapariga excepcional. A Sarita (Sara Martinez) era uma “rapaza” morenaça, jeitosa e a mais competente naquela actividade de saltos de pára-quedas. Todos os homens lhe deitavam o olho. No entanto, a presença de um português, “expert” nessa matéria do “bem saltar”, criou uma empatia reciproca, de efeitos quase imediatos. Foram dias de grande convívio e de relações intensas.
Terminado o Torneo, senti que o relacionamento com a Sarita não podia ficar assim. No convívio do encerramento, estreitámos mais a relação e, envolvidos naquele ambiente de festa e de despedida, acabámos por prolongar essa relação no hotel. A Sarita mostrou algum incómodo, sempre que acentuava a sua excitação erótica. Pensei que isso era natural, uma vez que compreendia a sua suposta condição de mulher virgem. Confortava-a, acalmava-a e transmitia-lhe o carinho e a compreensão que ela precisava. Na cama, ela pediu-me que reduzisse a luz e meteu-se debaixo do lençol. Nos preliminares ela evitou que lhe acariciasse a vagina e facilitou que a penetrasse pelo lado de trás. Como não consegui, forcei a mudança de posição e coloquei-me por cima, na posição mais natural e mais propícia ao desfloramento. Quando apontei o pénis à vagina, senti algo maior que um clítoris. Perdi logo a erecção e ela começou a chorar. O “incidente” provocado pela presença daquele clítoris, transformado em pequena “pollahermafrodita”, proporcionou-nos um prolongado diálogo com lamentos mas também com muita compreensão e muita franqueza, seguidos de acentuado reconforto. Calmamente, com amor, carícias e muito carinho, assumimos a situação com normalidade.
E foi assim que após termos vivido todos esses momentos de entrega, o pleno prazer se consumou. Já passava das onze horas da manhã. A satisfação foi evidente e recíproca. Descansámos e dormimos, prolongando os prazeres de um sonho inesquecível.

Passados mais de 15 anos, levei as minhas mulher e filha a passear por aquela zona. Convenci-as a ir ver também o Torneo que estava a decorrer. Deixei a mulher e a filha no bar e aproximei-me do local de concentração e enquanto me embrenhava na azáfama dos participantes, ouvi chamar:
- Cláudio, Cláudio, como estás?
Voltei-me naquela direcção e, surpreso, enfrento a Sarita que se aproximou. Sarita, estás boa? Que andas por aqui a fazer?
- Tenho vindo cá todos os anos e sempre pensei encontrar-te.
Fez uma pausa, olhou-me nos olhos, acusando alguma emoção e continuou:
- Precisava de te ver e de te dar uma palavrita. Estou bem e feliz. Casei, tenho dois filhos maravilhosos e um homem encantador. Todavia, sinto uma enorme gratidão pelo que fizeste por mim. Foste tu que alteraste a minha vida e me abriste a porta para a felicidade. E isso eu nunca poderia esquecer. Deixa-me abraçar-te.

Silva da CART 1689
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Nota do editor

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sábado, 1 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14958: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (19): Samuel e os amores desfasados

1. Em mensagem do dia 27 de Julho de 2015 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), reaparece com uma bonita história de amor para a sua série "Outras Memórias da Minha Guerra".

Caro amigo Vinhal
Aí vai mais uma história. Possivelmente a última para o livro.
Agradeço mais uma vez a tua colaboração no arranjo dos trabalhos

Grande abraço
JF Silva da Cart 1689


Outras memórias da minha guerra

18 - Samuel e os amores desfasados

Em Maio de 1968 conheci o pára-quedista Luís Samuel. Eu estava de regresso (de férias), esperando transporte para Catió e ele contava regressar a Vila Nova de Gaia dentro de poucos dias. Ali, na baixa de Bissau, bebemos umas cervejolas, convivemos e falámos da nossa proximidade geográfica, partindo do princípio de que eu estava destinado a vir a ser seu conterrâneo, lá para o interior leste do concelho de Gaia.
Com ele andava sempre o colega Martins, de Rio Tinto, formando uma dupla de amizade indiscutível. Tive a oportunidade de ir com eles aos Bijagós, à boleia de amigos marinheiros e dar uns mergulhos espectaculares.
Enquanto eu matutava sobre os riscos do regresso à guerra, eles falavam muito sobre o seu futuro próximo. O Martins estava determinado a ir para a Venezuela, onde contava com o apoio de um vizinho e o Samuel parecia mais inclinado para retomar os estudos.


***

Há cerca de cinco anos, com a minha adesão ao Facebook, retomei contactos interessantes com ex-combatentes, com quem tenho convivido frequentemente.
Num desses convívios encontrei o Samuel. Já pouco se lembrava de mim. Todavia, foi fácil reatar um relacionamento, que potenciava alguma empatia. Falámos várias vezes sobre estes quarenta e tal anos passados desde aqueles dias vividos em Bissau. No entanto, só numa recente deslocação a Lisboa tivemos tempo suficiente para ouvir a sua interessante história.

***

Quando o Samuel regressou da Guiné, arranjou emprego facilmente, talvez porque, conforme se verificava naquele tempo, muitos dos seus amigos estavam ausentes: uns na guerra e outros emigrados. Como empregado de escritório, entendeu que deveria frequentar o Instituto de Contabilidade. Depois meteu-se no negócio do imobiliário e chegou a ter uma vida financeira bastante folgada. Casou e fez-se pai de 2 filhos.

***

No dia 23 de Maio de 1984, dia da “Festa dos Páras”, em Tancos, o Samuel encontrou o Martins. Estava acompanhado da mulher e da filha.
- Então, como tens passado, que não te vejo há tanto tempo?
- Vim matar saudades. Cheguei ontem da Madeira e tenciono ir lá a cima, a Rio Tinto, passar uns dias. Ia procurar-te, para pormos a escrita em dia.
- Madeira?
- Sim, estou na Venezuela, casei com esta madeirense, a Conceição. Vou ver os meus velhotes que vêm de férias de França e convencê-los a irem à Madeira, passar uns dias. Praticamente já não tenho família em Rio Tinto, porque o meu irmão também está lá para a França, para onde levou os meus pais.
E adiantou:
- Antes do mais, dá-me o teu telelé, para não te perder mais.

Foto, com a devida vénia a Pára-Quedistas casa mãe BETP

Dois dias depois, o Samuel apresentou-lhe a sua família, em ambiente familiar e bastante amistoso. Por sua vez, o Martins abriu-se e falou da sua vida.
- Estou muito bem na Venezuela. A minha mulher é filha única. Trabalhámos nas duas padarias dos meus sogros e temos ganho umas coroas. Aquilo está a mudar e nós não queremos lá ficar. Estou inclinado para regressar às origens, embora não seja essa a vontade da Conceição. Mas, o que mais nos preocupa, é esta filhota. A Naíde já está com 12 anos e aquilo não é o ambiente que lhe desejamos. E ela é tudo para nós.

De tempos a tempos, estes dois amigos contactavam-se telefonicamente, especialmente por altura das festas anuais.

Dois ou três anos depois, voltaram para deixar a Naíde num colégio de uma ordem religiosa, como aluna interna. Regressaram deixando tudo acertado, inclusive o apoio da família do Samuel.
O apoio foi tal que a miúda confessou que, apesar da ausência dos pais e da disciplina religiosa no colégio, se sentia muito bem aqui, no Porto.
Sempre que saía do colégio era para acompanhar a família do Samuel. E foi assim que conheceu bem não só o Porto como outros pontos importantes do norte de Portugal.

***

A Naíde tornara-se uma jovem simpática, bastante formosa, de cabelos lisos aloirados e muito bonita.
Feito o Liceu, passou a frequentar as aulas da Faculdade de Economia e, quando terminavam, regressava ao seu ambiente austero de interna no Colégio Central.
Foi nessa altura que conheceu um rapaz, saído do seminário, que frequentava também a mesma Faculdade, mas com um ano de avanço.
O Aníbal era um jovem de bela figura. Andava sempre asseado, bem barbeado e bem penteado. Para as meninas de bem (e suas mães), que o viam, regularmente, a sair da igreja do Salvador, ele era o partido desejado. No entanto, também se aperceberam de que, ele e a Naíde, pareciam formar o par perfeito.

Quando casaram, ela foi viver para Lisboa, onde ele trabalhava.
Pouco tempo depois, a Naíde enviava fotos do pequeno Joel, fruto do seu matrimónio.
Entretanto, nesses últimos 10 anos o Martins, já sem sogros, vinha investindo no Porto, na compra de imóveis, com a colaboração do Samuel. No ano de 2000, tinha já quatro apartamentos, quatro lojas e duas moradias gémeas.
Porém, a situação política e económica na Venezuela começou a piorar, pararam os investimentos e o Martins preparou-se para regressar a Portugal. O Samuel tratava de gerir os bens. A filha, mantinha-se em Lisboa, com o marido.

O Martins já estava a viver na Madeira quando teve um AVC e apagou-se em poucos dias. A mulher, presa aos haveres herdados na Madeira, decidiu por lá ficar.
Por essa altura a Naíde acentua os contactos com o Samuel e manifesta desejo de viver no Porto. Confessa que não consegue adaptar-se àquele ambiente social cosmopolita, tão do agrado do marido. Ele apaixonara-se por Lisboa e ela não troca o Porto nem pela Madeira.
Com a crise do sector imobiliário, o Samuel entrou num período financeiro bastante difícil. A desvalorização repentina dos imóveis, a escassez de construção e as dificuldades nas vendas, provocaram o incumprimento das obrigações bancárias. Em pouco tempo, as hipotecas foram accionadas e o Samuel entrou em falência.
Os filhos já bem arrumados não tinham carências. Porém, a mulher, habituada a uma vida “à larga”, não aceitou a situação e martirizava-o, culpando-o e chamando-o incompetente. Na hora em que mais apoio precisava, ela massacrou-o, afastou-se dele e divorciou-se. Hoje ele confessa que essa desgraça teve o condão de o fazer entender muita coisa que nunca imaginara.
Passou a concentrar-se na sua actividade de Contabilista, assumindo uma atitude que o fez recuperar a estabilidade. Mais liberto, passou a dedicar-se mais ao para-quedismo, sua grande paixão, onde se destacara como Instrutor. Voltou a visitar e participar em vários eventos, alguns de nível internacional.

Em 2004 foi diagnosticado ao Samuel um tumor na bexiga. Dado como incurável, entregou-se com toda a força a um regime especial de tratamento difícil e muito controlado. Ele, que tanto sofrera e que tanto de mal já experimentara, não aceitava perder a vida aos 60 anos. Antes pelo contrário, ele sente que tem, ainda, muito por fazer e muitíssima vontade para viver.

Eram mais de 11 horas daquele dia cinzento de finais de Junho. O Samuel acabava de chegar do IPO. Vinha a pé. Saíra da Batalha em direcção a Gaia, passando pelo tabuleiro superior da Ponte D. Luís.
Sempre que podia, saboreava esse prazer de sentir as alturas, agora mais limitado à brisa marítima do alto da ponte. Já perto de casa, reconhece a Naíde.
- Ei, Princesa, por aqui?
Mal o Samuel a interpelou, ela aproximou-se e abraçou-o a chorar.
- Temos muito que falar e vamos aproveitar enquanto o Joel está a dormir no carro.
E continuou:
- Samuel, vou fazer 33 anos mas, tu que me conheces bem, diz-me que defeitos terei para ser rejeitada?
- Estás doida, rapariga? Toda a gente te vê como uma bela mulher. Uma mulher desejada por qualquer homem, por mais exigente que seja.
Agora, a balbuciar, a Naíde confessa:
- O meu marido… trocou-me. Eu… não lhe… agradava o suficiente… A culpa deve ser minha.
- Tem juízo, Naíde, deve haver confusão. O Aníbal não fazia isso. Onde é que ele ia arranjar uma mulher melhor que tu?
- Samuel, ontem como o Aníbal não atendia o telemóvel, quando fui buscar o miúdo ao Colégio, passei pelo Ginásio onde ele anda. Como o carro dele estava cá fora e já não se via ninguém, fui entrando. Quando empurrei uma das portas, encontrei o Aníbal, agarrado a outro homem, e a beijarem-se.
Após uma pausa, em que o Samuel ficou boquiaberto, continuou:
- Não quero ver mais esse homem nem quero que o meu filho esteja por perto dele.
O Samuel aconchegou-a, pediu-lhe calma e procurando atenuar a gravidade da situação, aconselhou:
- Vamos entrar, vamos descansar e vamos pensar o que fazer. Podes ficar aqui, se quiseres, ou ir para uma das vossas moradias que esteja vaga.

 Ponte Luiz I - Tabuleiro superior destinado a peões e Metro de superfície

Seguiram-se tempos de recuperação. Ela, porque ficara bastante afectada psicologicamente e ele, porque lutava pela superação do cancro da bexiga. Unidos na desgraça, experimentaram a evolução para melhores momentos. E mais estáveis.

A Naíde foi-se desligando do passado, foi-se ocupando a gerir os seus bens e a colaborar pontualmente na empresa de Contabilidade e Gestão do Samuel. Dentro das condicionantes criadas, as coisas iam correndo favoravelmente.
Por sua vez, o Samuel vivia momentos mais felizes, visto que parecia ter vencido o cancro. Lutava agora pela sua recuperação total e, muito em especial, pela sua capacidade na área sexual.
Viviam muito próximos. Para ele, ela era uma filha carente e merecedora de uma vida feliz. Para ela, ele era o pai ausente e, ao mesmo tempo, o pai que o filho precisava. O Samuel, sempre que podia, apresentava e proporcionava a Naíde possíveis namorados da sua confiança. Ele queria que ela perdesse a aparente relutância a qualquer novo relacionamento amoroso. Porém, quanto mais ele insistia na necessidade de ela se arrumar e de constituir família plena, mais ela parecia desvalorizar o assunto e acomodar-se à estabilidade presente.

Numa das deslocações à zona ribeirinha do Porto, para comer umas sardinhas, foram surpreendidos pelo Toni, um colega da Naíde, dos tempos da Faculdade, que viera ao Porto em rápida missão de serviço de Consultadoria. Foi um jantar agradável, onde se falou à vontade, sobre os seus passados recentes.
O Toni confessou que sempre se sentira atraído pela Naíde mas que ela não lhe havia dado hipóteses. Disse estar a viver bem em Paris mas que não tivera sorte no amor, e que já estava divorciado há uns anos. O Samuel pediu para se ausentar e levar o Joel para lhe comprar uma guloseima. E no dia seguinte o Samuel deixou-os à vontade.

Durante algumas semanas, a Naíde falou várias vezes do Toni. Por sua vez o Samuel aproveitava isso para promover algum interesse desse relacionamento. Porém, ela referia que o Toni ficara de telefonar e de voltar na semana seguinte, o que ainda não acontecera.
Uns dias depois, o Samuel interpelou a Naíde:
- Princesa, fui chamado a Paris para resolver um assunto de um cliente emigrado. Pensei que me poderias ajudar no assunto e aproveitarias para sair de casa.
E continuou:
- Podíamos levar o Joel à Disneyland. Teria muito gosto com a vossa companhia.

Logo que chegaram a Saint Denis, o Samuel, que já conhecia essa zona de Paris, procurou a casa de um amigo, conhecido desde a sua infância. Daí até à localização do Dr. Toni, um economista português bem referenciado entre os emigrantes, foi um rápido.
No dia seguinte, sem dizer nada à Naíde, o Samuel avançou por uma rua abaixo e parou mesmo junto de uma porta. Tocou à campainha e ninguém apareceu. Veio para o carro dizendo que a pessoa que procurava, não estava. Quando ia por o carro a trabalhar, apercebeu-se da chegada de uma senhora acompanhada por uma criança de uns 5 ou 6 anos. Foi ao seu encontro ainda a tempo de ela não fechar a porta.
- Minha senhora, desculpe. É aqui que vive o Dr. Toni?
- Oui, mais il est au Portugal. Je pense qu'il revient demain.
Respondeu o Samuel:
- Dommage. Nous allons retourner au Portugal. S'il vous plaît, dites-lui que nous sommes les amis avec qui il a dinné les sardines à Porto.
Ela voltou-se para a criança e disse:
- Dit un bonjour à les amis de papá.

Já com o carro a trabalhar, o Samuel olhou para a direita e vê a Naíde, muda, a olhar em frente e com as lágrimas a cair pelas faces. Nem um nem outro disseram uma palavra. Todavia, tudo estava perceptível: O Samuel pensava que ia fazer uma surpresa agradável à Naíde e as coisas correram mal e a Naíde ficou chocada com a situação esclarecedora sobre o Toni. Ao mesmo tempo, ficou espantada com a atitude do Samuel na insistente procura de lhe proporcionar a merecida felicidade.
Seguiram para a zona de Marne de la Valé, a caminho da Dieneyland.
A partir dali, direccionaram todas as atenções para o pequeno Joel, parecendo alhearem-se tacitamente da situação criada e, ao mesmo tempo, deixá-la amadurecer calmamente.
Mais tarde, o assunto foi bastante recordado, mas sem a carga emocional doutros tempos.

O tempo foi correndo e a ligação foi-se cimentando, como se se tratasse de uma família normal. Este relacionamento tornara-se cada vez mais íntimo. Um dia, sentados num banco do Parque de Serralves, após mais uma longa conversa sobre o mesmo assunto, a Naíde teve a coragem de dizer ao Samuel que seria muito difícil encontrar um homem como ele e que, caso ele a quisesse, poderiam viver juntos.
O Samuel reagiu, dizendo:
- Continuarei a fazer tudo que possa, para seres feliz. Sabes que gosto muito de ti, mas tens de ver a minha idade, a minha saúde e, até, o meu aspecto. Tu és uma mocetona e eu já não passo de um velhote.
A Naíde encostou-se a ele, abraçou-o, beijou-o e disse-lhe baixinho, ao ouvido:
- Podíamos experimentar. Por que não?

Dois dias depois, deixaram o filho Joel em casa de um amigo e resolveram dar um passeio pelo Minho. Visitaram Barcelos, Braga, Ponte da Barca e almoçaram o “arroz de sarrabulho” na Casa Encanada de Ponte de Lima. De tarde seguiram para Viana do Castelo e Monte de Sta. Luzia. Ela desafiou-o a subir o zimbório do Santuário e ele mostrou que, ainda, mantinha muita juventude. Lá em cima, maravilhados com a paisagem, percorriam com os olhos o brilho das águas límpidas do Rio Lima, para além de Darque e Sta. Marta de Portuzelo, com as suas ilhotas povoadas de vacas, a pastar. Mais ao longe e de fronte, a bela Praia de Moledo e a larga Foz do Lima. E do lado da cá, o Cais de Viana e o Castelo Fortaleza, de onde saíram muitos combatentes para a guerra. Mais a norte, para os lados de Areosa, um mar imenso limitado por praias extensas “manchadas” por lotes de sargaço a secar e por um grande tapete de parcelas de terrenos hortícolas, cada uma com a sua cor.

Monte de Santa Luzia - Viana do Castelo - Templo do Sagrado Coração de Jesus
Com a devida vénia a Portugal Tours

E foi lá nas alturas, onde a sensibilidade do Samuel mais se manifesta, que ele a acariciou de forma diferente. Inebriados pela paisagem, envolvidos pela suave brisa iodada e, talvez, abençoados pela proximidade do Céu, agarraram-se exteriorizando uma verdadeira paixão.
Quando se identificavam na recepção do Hotel, ela notou que ele tinha as calças molhadas abaixo da braguilha. Colocou-se na sua frente para disfarçar a situação até ao elevador.
A primeira reacção foi a de tirar as calças e pô-las a secar na varanda do quarto. O Samuel parecia afectado pela situação de incontinência motivada talvez por alguma pressão da bexiga. Todavia, a Naíde, conhecedora das suas possíveis limitações, reconfortava-o, desvalorizando o incidente, ao mesmo tempo que procurava criar ambiente de normalidade e de descontracção. Despiram-se, banharam-se e foram-se enrolando amorosamente e com prazer.

Perante aquela mulher tão bela e tão charmosa, o Samuel teria que sentir-se agradavelmente excitado. Confiante, fez questão de recuperar a sua condição de homem experiente, também em questões de amor. Tudo parecia correr pelo melhor. Porém, cedo se verificou que o pénis se tornara mole e insuficiente para a função desejada. Mesmo assim, ele procurava satisfazê-la o melhor possível. A Naíde não perdeu o entusiasmo e também fez tudo para que a boa relação se mantivesse. Aliás, a força da sua entrega parecia ter-se soltado de amarras muito antigas. Quando ele ficou deitado, virado para cima, ela encaixou a vagina sobre o pénis amolecido, onde se roçou a seu bel-prazer, durante largos minutos, vindo a atingir um prolongado e exuberante orgasmo.
Após um relaxante repouso, quando ele tentava culpar-se pelas suas forçadas incapacidades, ela não o deixou terminar. Aproximou-se mais e abraçando-o confessou baixinho:
- Queres saber uma coisa? Nunca senti tanto prazer numa relação sexual!

Nota:
Se um dia destes, ao viajares pela região do Porto, vires um casal um pouco atípico a caminhar calmamente, tendo ela cerca de 40 anos, discretamente bela e formosa (1,75) e ele (com cerca de 70 anos) mais baixo uns 10 centímetros, aparentando menos de 60 anos, podes estar a ver o Luís Samuel e a Naíde, sua mulher, e filha do seu grande amigo e colega pára-quedista, ambos heróis da Guerra da Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14478: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (18): Operação Bola de Fogo - Construção de Gandembel (O Inferno)