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domingo, 14 de outubro de 2012

Guiné 63/74 – P10531: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (21): Operação Outra Vez, objectivo: Iracunda

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 11 de Outubro de 2012:

Caríssimos Luís, Vinhal e M. Ribeiro.O que sai logo à ideia é enviar-vos um grande abraço, e este mail encontrar-vos em plena boa saúde.
Aqui vai mais uma página “ arrancada” do meu caderno de memórias “ Páginas negras com Salpicos cor-de-rosa”.

Passem bem
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

- 22 de Junho de 1965 (quase 1 mês de Guiné) -

IRACUNDA 
(ainda hoje, ao falar, há ainda uma residual sensação)

Foi o batismo de fogo da 816: mais de 20 minutos de fogachada em Iracunda. Julgo que toda a espécie de arma que o inimigo usava na altura em toda a Guiné, estava toda ali.
Não foi a minha primeira vez no mato mas lá que foi a primeira vez que chamei a Nossa Senhora lá isso foi!
Iracunda ao tempo era o verdadeiro braço armado da base de Morés, no OIO.

Localização de Iracunda, estrada Bissorã-Mansabá, a sul do Olossato e a NW do Morés, bastião do PAIGC no Oio. 
Vd. carta da Província da Guiné.
Legenda de CV

Certo dia então chegou a ordem para os 2.º e 3.º Grupos de combate prepararem-se para saírem para o Olossato. Não sabíamos, mesmo nós os Sargentos, qual seria o objetivo. Se bem que não estranhássemos (?) a falta de dados, uma vez que sabíamos que na guerra o sigilo tem toda a importância, ficamos na desusada expectativa quanto ao que nos estava reservado com a Operação Olossato. A ordem veio lacónica embora concisa, à boa maneira militar. Sem fazermos qualquer objeção (pudera!) ou simples pergunta (pr’a quê?), embora a nossa curiosidade nos incitasse a tal, vestimos uma vez mais o camuflado, armamo-nos como de costume e abalamos rumo às viaturas que se encontravam já alinhadas, à saída do aquartelamento de Bissorã, na direção da estrada para o Olossato, ali bem perto do edifício civil da Administração de Bissorã e da rotunda com um pequeno monumento no meio. O centro de Bissorã, afinal.

Encarávamos o trajeto com certo pessimismo, (periquitices) pois a estrada que liga Bissorã a Olossato tinha fama de aparecerem muitas emboscadas, principalmente na zona da “carreira-de-tiro”, nome que a tropa deu e que ficava sensivelmente a meio caminho até Maqué e que atravessava um local de capim muito denso, mesmo propício a uma cilada. Também nesta estrada era frequente aparecerem minas e fornilhos, dizia-se. Sabíamos também que era uma zona batida pelos terroristas da fortíssima base de Morés e que a estrada passava por Maqué, a meio caminho, onde algures também existia uma casa-de-mato.

No entanto, uma vez que esta nossa saída foi rodeada do maior segredo (o que até em Bissorã parecia não funcionar muito bem), havia toda a possibilidade de os não termos à perna, o que não queria dizer que, pelo menos, não tivéssemos de depararmo-nos com minas e outras quaisquer armadilhas. Assim, e como era de contar com isto, a estrada foi picada por uma secção e à vez. Porque a coluna levava à frente homens apeados - os picadores -, obrigava a uma progressão lenta, embora segura, quanto a minas.

Os cerca de 15 quilómetros que separavam Bissorã do Olossato, ou melhor até Maqué (~8-9 Kms.) , percorridos de tal forma, pareciam não ter fim. As secções alternavam-se à frente na picagem da estrada, e quando essa mudança acontecia, havia uma longa paragem da coluna, o que fazia ainda mais enervar.

O trajeto, o primeiro que fazíamos naquela estrada, que tão badalada era - já em Bissau, quando passamos por Brá, ouvíamos falar dela, pelos seus perigos -, foi feita no clima da maior “suspense” e expetativa. Os “longos” quilómetros foram-se então calcorreando até que chegamos a Maqué sem qualquer novidade.

Logo divisei do lado oposto e do outro lado do pontão (ponto de encontro) uma auto-metralhadora e alguns soldados de camuflado já muito coçado, muito queimados (era a velhice). Rostos queimados do impiedoso sol, grandes barbas e/ou bigodes, tudo aquilo denunciador de velhos amigos daquelas paragens. Eram elementos da Companhia de Artilharia n.º 566, a Companhia que estava sediada no Olossato. Tinham picado a estrada do lado deles e portanto dali para a frente já ninguém foi apeado, pelo que a marcha foi imposta pela velocidade das viaturas.

Alguns quilómetros volvidos, deparam-se então as primeiras moranças, outras mais, mais ainda e eis que nos aparece o aquartelamento de Olossato. Troncos de palmeiras já muito gastos a fazerem de paliçada em toda a volta do aquartelamento; abrigos de sentinela cilíndricos e em cone no teto nos 4 cantos do quadrado da fortificação. Tudo no entanto bem arrumadinho e cuidado. Troncos de palmeiras, chapa dos bidões da gasolina e barro da Guiné para encher, eram os materiais utilizados. Na ponta de um mastro, já bem dentro do quartel, bem alto, ondulava a bandeira portuguesa, orgulho nosso e a chama do nosso valor e coragem. Numa alisada chapa de bidão logo sobre a “Porta d’armas”, podia-se ler em letras e números bem grandes, pintados à mão e com relativa habilidade: “C. ART. 566”. Esta chapa estava bem ao alto e logo à entrada do quartel. Eram ali que moravam os “velhinhos” da 566, Companhia que tinha muita fama pelo valor evidenciado através de êxitos e mais êxitos por aquela temerosa zona do Oio.

Tive mais tarde ocasião de o assim constatar, ao trabalhar com eles no mato.

Poucos meses atrás, pouco antes de virmos para a Guiné, tinham eles tido um formidável êxito na base de Morés. Aprisionaram entre 2 a 3 toneladas de material de guerra entre ele diversas e valiosas metralhadoras pesadas.

Aquele cenário no Olossato fez-me lembrar logo os filmes de cow-boys do western americano: muros construídos com trocos de palmeiras, cavalo-de-frisa e arame farpado a embrulhar tudo, e homens armados de carabina (diga-se G3) e em tronco nu e bem queimados; barbas, barbichas e exóticos bigodes e muita descontração; chão vermelho e poeirento também.

Olhei em redor a ver se encontrava por ali algum conhecido, mas não encontrei ninguém. Ouvi então risos e palmadas nas costas, mesmo atrás de mim. Virei-me e era o Zé Baião que tinha encontrado um seu conterrâneo eborense e amigo. Este era o Furriel Martins. Conversaram, riram, mas não era preciso haver conhecimentos, pois ficávamos logo em família sempre que se davam estes encontros. O Martins usava um chapéu à cow-boy, mais um dado característico dentro daquela encenação.

Receberam-nos muito bem e logo se aprontaram a arranjarem-nos comer na messe deles. Embora fosse da praxe, os visitantes serem bem recebidos pelos seus anfitriões, o certo é que os camaradas da 566 foram inexcedíveis em gentilezas, pelo que, viríamos a manifestar o nosso reconhecimento com grande ênfase. Ficamos desde o primeiro minuto a gostar daquela maralha e, diga-se de passagem, que também conquistamos a simpatia deles. Almoçamos então em clima de grande confraternização e depois de contarmos, e principalmente ouvirmos as aventuras da malta ali na Guiné, fizemos uma partida de futebol na parte da tarde.

O pequeno campo de futebol dentro do aquartelamento do Olossato que ficava junto às messes quer dos Oficiais quer dos Sargentos onde, antes umas horas de irmos à base de Iracunda, jogamos à bola com a malta da 566. A casa atrás da baliza seria mais tarde a secretaria da 816 onde estava o saudoso 1.º Rodrigues (falecido cá e já com alguma idade - paz à sua alma) e o desenfiado do “Boavista”, sempre com o Primeiro a perguntar-nos onde andava este, …na bola quase sempre. A casa do lado direito, já civil, e fora do aquartelamento, julgo ser a casa do Sr. Fodé, nativo,vendedor de panos e outras miudezas e apetências nativas.

Ao fim desta, fomos então, nós os da 816, chamados ao nosso Capitão (não foi preciso lembrar-nos que não fomos ali para jogar futebol) e por ele fomos postos ao corrente da nossa missão, agora com a informação em detalhe. O objetivo era para nós desconhecido, mas que lá ia ficar bem no nosso conhecimento lá isso ficou. Os velhinhos da 566 já o conheciam, e bem o notei logo no olhar apreensivo dos que iam alinhar com a gente, que tal refúgio não era nenhuma pera doce. Diante de um mapa estendido sobre uma mesa, fomos então elucidados pelo Alferes Victor da 566 coadjuvado pelo nosso Capitão, quanto ao efetivo do inimigo, seu armamento, quantidade e posição dos sentinelas, dispositivo que nós íamos adotar, etc., etc. A hora de saída do aquartelamento foi fixada para a 1 hora da madrugada. Objetivo: IRACUNDA!

Nada nos dizia (a nós os da 816), mas, só até lá chegar…

Depois da operação ficamos com a certeza que na verdade Iracunda era uma grande base terrorista, talvez até mais bem operacional do que a de Morés, isto dito também pelos da 566 e pelo chinfrim que houve também.

As lavadeiras do Olossato evidenciavam bem como a Guiné era muito fértil em boa fruta

Por gentileza de um colega Furriel da 566, dormitei um pouco na cama dele, acumulando energias, até à hora da partida. O jogo da bola tinha sido um grande desgaste, mas como havia o maior segredo, esse desgaste não foi poupado. Nesta altura, calmamente e com tempo, foi-me preparando. Peguei na minha G3, verifiquei o funcionamento da culatra, apalpei os carregadores nas cartucheiras, fixei bem a fivela do cinto do camuflado e fui beber um pouco de café. Um pouco de bagaço também para aquecer e a malta foi aparecendo. A noite estava com um intenso luar. A coluna foi-se formando no maior dos silêncios e, como autómatos, depois de tudo verificado, guarnições de “bazooka” e de morteiro, pessoal indígena carregador de granadas, nativos voluntários (de Mauser”!!) etc., fomos deixando Olossato no sentido oposto aquele pelo qual tínhamos vindo de manhã de Bissorã. A operação Iracunda tinha-se iniciado.

Olossato ia ficando para trás e a sua iluminação ia-se assim reduzindo para dar lugar às trevas. Como sempre, calculávamos o tempo de maneira que chegássemos às imediações do objetivo (refúgio) algumas dezenas de minutos antes da hora previamente combinada para o assalto. Servia tal interregno para nos refazermos um pouco da caminhada e ultimarmos também pormenores (se necessário), sobre o assalto. O facto de na maior parte das vezes chegarmos muito cedo às proximidades do objetivo devia-se também à progressão ter sido feita sem sobressaltos, nomeadamente do guia não nos ter feito andar às voltas, como não raras vezes acontecia, e que o tempo previsto também contemplava estes tipos de atraso mais ou menos previsíveis. Com o dito descanso, recuperávamos da caminhada e as nossas condições quer físicas quer psicológicas (sem nos vermos livres do nervoso miudinho, contudo), eram bem melhores. Até que chegamos junto de uma zona mais ou menos descoberta mas com folhagem suficiente para nos encobrir e camuflar uma vez sentados ou deitados. Estávamos ao longo de uma sebe e a escuridão da noite fazia o resto. Teríamos os cantares dos variadíssimos pássaros em breve a denunciar o nascer do dia.

(A descrição seguinte, em itálico, que faz parte integrante da narração desta operação “tirei-a” para introito do livro das minhas memórias - “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”- e nessa qualidade já saiu no Blogue (post 1809). Para aqueles que não gostam de ver coisas repetidas, as minhas desculpas)

"Eram 4 horas e meia da madrugada quando paramos. Fazia noite, noite escura. Já tínhamos andado um bom par de quilómetros.

Olhares que se interrogam e… era a espera.

Era aquele terrível espaço de tempo que se repetia sempre em todas as operações de “Golpes de mão”. Era aquela inquietante altura do tempo que nos punha na maior tensão e ansiedade. Era o aguardar da hora H, a hora do assalto ao refúgio inimigo e era ao mesmo tempo o retempero das energias gastas ao longo da caminhada.

Algumas dezenas de metros mais adiante estava o inimigo, oculto, algures acoitado naquela densa e emaranhada mata. A obscuridade dava às árvores e à sua folhagem feições de figuras fantasmagóricas e assustadoras. Estávamos todos reunidos, uns sentados, outros deitados, outros ainda nas posições que mais lhes apeteciam. Havia o maior silêncio, apenas cortado por um ou outro pigarrear inevitável ou pelo estalar de folhas secas provocadas pela mudança de posição deste ou daquele.

De olhos extasiados, circunspectos e de músculos contraídos, entreolhávamo-nos e parecia interrogarmo-nos: Como vai ser?..., Haverá surpresa?..., Conseguiremos o objetivo?, ou estarão eles já alertados e à nossa espera com uma emboscada montada?

Eram estas as pertinentes interrogações que nos martelavam o cérebro numa expectativa profundamente emocional. Que pesadelo!!... Não, naquela altura não éramos seres humanos, sentíamos e pensávamos como irracionais, quais animais selvagens prontos a atacar a presa.

Estávamos ali para matar, sim, matar, matar o semelhante, só que este tratava-se do inimigo, que, também… nos queria matar.

…E chegou a hora!!

O dia começou a nascer. Era na semi-obscuridade a altura ideal para atacar. Em pé e como autómatos tomamos as posições iniciais de fila indiana e a coluna retomou a marcha. Os cuidados agora redobravam-se. Era a etapa final, a curta etapa que precedia o ataque. As armas foram tomando nas mãos a posição adequada e os cuidados de progressão cingiram-se ao máximo.

De repente, inesperadamente, soa um tiro!... e foi o começo! Foi como que uma gigantesca trovoada então entoasse no silêncio da madrugada. As rajadas ouviam-se incessantemente; o matraquear da metralhadora pesada inimiga fazia-se destacar com as suas fortes detonações; os rebentamentos de granadas de “bazooka” e lança-“rockets” faziam-se aqui e acolá; o fogo era pleno… de parte a parte. A nossa reação, como que impelida por uma mola, foi imediata. Vi os soldados de dentes cerrados e feições crispadas apertarem com raiva os gatilhos, e trocarem os carregadores em movimentos nervosos mas calculados.

Foram 25 minutos de fogo cerrado e ininterrupto, e… embora lentamente, o inimigo foi cedendo… cedendo….

A peito descoberto e ainda debaixo de fogo, avançamos em “leque” em passos firmes e decididos na direção do refúgio inimigo que, entretanto, se põe em debandada, mas sem, no entanto deixar de atirar na nossa direção, com rajadas cada vez mais esporádicas e cada vez também mais distantes.

E o refúgio de Iracunda deu então lugar a gigantescas chamas que reduziram a cinzas aquela importante e estratégica base inimiga algures no Oio, zona de grande poderio e concentração inimiga.

O inimigo reagiu, e, de que maneira! Reagiu forte e decididamente!

Aliás foi o primeiro a atacar, pois tinha-se gorado o fator surpresa que contávamos, o que aliás acontecia em grande parte das vezes, e então emboscou-se aguardando a nossa aproximação.

O tal tiro era o sinal para abrir fogo.

Deram bem a noção da sua força, quer humana quer bélica. Tinham-nos também escapado, mas o seu tributo não tinha deixado de ali ser pago e de forma implacável: no chão, jaziam os corpos de três inimigos; três corpos despedaçados, por, presumivelmente, granadas das nossas “bazookas” ou dos nossos morteiros".

Foi uma terrível emboscada junto àquela base, e a atestar essa força, viu-se no que alguém da 566 nos disse já no regresso: “Eu já sabia que isto era assim, mas não convinha vos dizer”. Compreensivelmente aquiesci.

Depois do inimigo desbaratado e destruído completamente o seu refúgio, começamos a reagrupar as respetivas Secções. O intenso e demorado tiroteio tinha-nos tirado parte da lucidez e por momentos a malta viu-se desorganizada. O Capitão Riquito e o Alferes Castro tiveram mesmo que gritar para que a malta começasse a andar e ao mesmo tempo a reorganizar-se. As casas-de-mato mais importantes na Guiné (julgo) tinham também uma escola. A de Iracunda tinha a sua. Deu bem para ver. Os djubinhos das tabancas adjacentes não andavam ao Deus dará, não. Escola limpa, bem arrumada e asseada que indiciava muita disciplina e ordenação e que me ficou na retina.

Uma escola do PAIGC algures nas matas da Guiné. A que presenciei em Iracunda não fazia muita diferença no ordenamento, mas era mais simples e artesanal. Ao legítimo proprietário da foto a minha vénia pela reprodução aqui feita por mim.

Folhas de papel impressas, soltas (algumas podem ser vistas em reprodução de seguida) que recolhi para recordação (!!) que serviam para ensinar as crianças a escrever e a ler. As folhas que ensinavam o A E I O U e nas “entrelinhas” o incentivo ao combate aos colonialistas e à independência do povo nativo. Muito pedagógicas em todo o sentido.


Entretanto aqueles minutos de hesitação e desorganização permitiram ao inimigo o seu reagrupamento e o ensejo de fazerem ainda algum fogo bem dirigido àquilo que fora o seu refúgio e onde nos encontrávamos agora nós. Imediatamente ripostamos, embora que com poucas armas, pois estávamos desorganizados e até de algum modo desprevenidos. Ficamos a saber que era assim, quando o inimigo era desalojado reagrupava-se adiante umas dezenas de metros e agora disparava sobre os novos locatários do refúgio. Isto deveu-se mais à falta de experiência do que a outra coisa, pois se para o meu Grupo de combate era ainda o segundo contacto com o inimigo, para o 2.º Grupo era mesmo o primeiro. O inimigo “calou-se” então, se bem que tornasse a fazer-se ouvir através de tiros isolados e de muito longe, mais a querer dizer “até logo”. Começamos então a andar rumo à origem: Olossato.

Dada a resistência inimiga e às possibilidades de reagrupamento do mesmo, e uma vez que o nosso abandono do refúgio foi demorado, contávamos com emboscadas por o caminho. No entanto, e ao contrário do que era de supor, o inimigo não se emboscou, razão a que não foi alheia, concerteza, a impressão que lhe causamos com o destemido assalto ao refúgio ainda debaixo de fogo. E por vezes também haviam erros de cálculo. Talvez isto. Terá acontecido isso.

No regresso fomos queimando, sistematicamente, as tabancas e moranças que nos iam aparecendo, aliás como era habitual em análogas circunstâncias. Ao chegarmos a elas e como também invariavelmente acontecia, encontrávamo-las com um aspeto de recentemente abandonadas, portanto numa ação denunciadora de que ali habitavam terroristas ou pró-terroristas.

Completamente extenuados física e psicologicamente, chegamos junto do cruzamento, local, que como tinha ficado combinado, nos encontrávamos com as viaturas. Pousei o capacete no chão e deixei-me cair, deitando-me um pouco. Naquelas alturas que se lixe a guerra. O desgaste físico e psicológico fazia-nos olhar para o céu de forma absorta e descontraidamente. A segurança, se bem que em caso algum era de descuidar, não seria muito pertinente, pois estávamos muito perto do Olossato. E às vezes que se lixe a segurança também; queríamos era o chão para as costas e a lembrança: “Oh(!) Rui olha a nossa cervejinha à espera”, como me dizia muitas vezes no mato o meu amigo, Furriel também, o açoriano Vieira, falecido recentemente - paz à sua alma.

Iracunda tinha então ficado bem conhecida da 816. Chegados ao Olossato logo tratamos de regressar a Bissorã. Uma vez chegados aqui fomos logo “assaltados” por os colegas que ali tinham ficado, que nos “metralharam” com perguntas e mais perguntas, satisfazendo assim a sua curiosidade e o conhecimento de causa. Afinal a 816 tinha andado aos tiros pela primeira vez.

Compreensivelmente, fomos respondendo com maior ou menor humor, se bem que o que mais me apetecia era sentir o mais depressa possível a água a jorrar pelo corpo abaixo e de seguida abocanhar o gargalo de uma garrafa de cerveja bem fresquinha. Estas duas coisas (banho logo seguido de uma cerveja fresca ou, ao contrário, a maior parte das vezes - haja paciência!- era o nosso prazer e a nossa alegria quando chegávamos do mato. A operação “Outra vez”, que curiosamente até era a primeira para a 816, a Iracunda, marcou-me indelevelmente para sempre e porquê: Saraivada de fogo durante longos e longos minutos a abrir a nossa operacionalidade. Só em ficção e em filme tinha visto daquilo. Armamento atualizado e estratégia poderosa do lado do inimigo.

E carago(!), aquilo não era para brincar, vi que andava por ali muito quem me queria tirar o sarampo e sem me conhecer de lado nenhum e sem eu ter feito mal a alguém.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 – P10348: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (20): Um sapo com asas no Olossato

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Guiné 63/74 – P10348: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (20): Um sapo com asas no Olossato

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 3 de Setembro de 2012:

Para abrir nada mais apropriado e saudável do que saudar os amigos Luís, Vinhal e Magalhães Ribeiro e enviar-lhes um abraço.
Que estejam em boa forma, também, para manterem o Blogue sempre em fasquia alta.
E, para fechar, aqui vai um “Salpico” das minhas memórias.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

Um salpico!

- 22 de Julho a 10 de Agosto de 1965: A CCaç 816 vai para o Olossato (deixando Bissorã) para atividade operacional naquela zona, durante aquele período. No Olossato estava a residente 566 -

XX - UM SAPO COM ASAS

Estávamos no Olossato em comissão operacional de uns dias. Fomos lá para fazermos (soubemos só há noite na véspera da saída para a operação, claro) a limpeza de abatises na estrada que ligava o Olossato a Farim e que passava pelo K3.

Operação que acabou por ser muito bem sucedida, o que não surpreendeu muito a ninguém. Aquela estrada estava dada como interdita há muito tempo e não havia portanto qualquer movimento de viaturas. Assim, em completa surpresa, foi limpar e andar de princípio a fim. Os Unimogs com os seus potentes guinchos e a destreza do pessoal fizeram o trabalho sempre com o cuidado de uma previsível armadilha. Do inimigo, nem cheiro. A Companhia, no entanto, aguardaria mais algum tempo no Olossato. Iríamos continuar em ação naquela zona.

E a ação foi aquilo que parecia e que foi: aguardar pela reação inimiga que, como se adivinhava, foi só de colocar na estrada outra vez as abatises que tínhamos desviado e acrescentar mais algumas, até de maior porte, pois então.

Estrada Bissorã/Olossato/K3/Farim. Saliquinhedim, mais conhecida por K3 fica um pouco acima da bifurcação da estrada do Olossato com a de Mansabá/Farim

A malta, e aqui refiro-me particularmente aos Furriéis, comia na messe dos Sargentos (boa malta a da 566). Já o nosso alojamento tinha que ser noutro lado e o que se conseguiu era muito precário, pois era improvisado e muito mal. Eu, o Baião, o Piedade, o Belchior e o Silva ficamos numa rudimentar dependência da casa do Chefe de Posto do Olossato mas a algumas dezenas de metros desta e já bastante fora do aquartelamento.

As enxergas, colocadas diretamente no chão, que não era limpo “há séculos”, e pronto, ali dormíamos sobre um lençol, alguns nem este tinham, que de branco passou a negro em breve tempo. Dormíamos assim em muito más condições e sempre incomodados pelos sempre persistentes e sanguinários mosquitos. Foi um tal chupar, e de palhinha. Além disso e por aquela dependência ser vítima de uma falta de limpeza total, havia ali da mais variada fauna: uns residentes, outros de passagem. Aranhões para todos os tamanhos, borboletas de todos os feitios, moscas, moscões, etc., etc.. ah (!) e aqueles insetos de cores bem vivas, voadores, de asas bem largas e finíssimas que pareciam trazer uma bolsa pendurada um centímetro abaixo do abdómen, e que até parecia um trem de aterragem? Que raio!

O que tinha mais mau dormir, por causa sobretudo desta clientela, era o Belchior, pois era o que menos aceitava aquela companhia e então ia relatando a entrada, a residência ou a saída deste ou daquele bicharoco.

Mas, afinal…, os intrusos até parecíamos nós.

A casa do Chefe de Posto do Olossato. Por coincidência apareço de bicicleta, de passeio até ao Morés

Até aí os personagens que entravam ou que apareciam de passagem em cena não eram assim tão incomodativos, e a indiferença era grande a não ser o tal de Anopheles, até que…

Uma das noites, diz o Belchior a gaguejar, como era de sua natureza, e quando alguns já estavam nos primeiros acordes do sono:
- Ó…Ó…ag…o…ra en…entrou um …um mo…mo…morcego!

Então à voz de morcego (e se é um vampiro?) todos se levantaram de um salto, mesmo os mais ensonados.

O Baião, habitual “inspetor” nestas coisas, levantou-se, contrariado, já se vê, e deu então uma volta pelo exíguo compartimento.

- Queres ver que este viu entrar um sapo com asas! Diz que viu entrar um morcego a voar e afinal o que eu vejo aqui é um sapo - Diz, em sotaque alentejano genuíno – voz grossa e pachorrenta -, o Baião, ao deparar com um amedrontado sapo num canto.

Foi uma grande risota. - O Belchior deve estar a chocar o paludismo - Alguém disse.

Tão cedo ninguém esqueceu esta, para mal dos pecados do Belchior, pois não mais foi poupado.

Mas, andar por ali um sapo!...

Olha o Belchior viu um sapo com asas!

Quantas vezes! Até aparecer outra, o que não demorou muito, o homem teve que ouvir.

Periferia do aquartelamento do Olossato
Olossato, Olossato, onde tudo é muito chato e a vida não dá prazer / Companhia, Companhia, quer de noite quer de dia há sempre muito que fazer.

Passaram-se mais dois dias e eis que o Capitão reúne Sargentos e Oficiais e diz-nos que temos de voltar à estrada do K3 para limpar as abatises, pois segundo um reconhecimento aéreo, o inimigo, em face das outras terem sido retiradas, abateu outras e então à laia de vingança, um número muito maior de abatises estava agora na estrada. Portanto, a ordem, que era do Comando do Batalhão, ficou dada através do nosso Capitão. Começou aí “o dia mais longo”, como lhe chamamos, para a 816. Operação de orgulho do Batalhão que custaria bem caro à 816. A estrada Olossato-Farim continuaria interdita afinal, mas agora já manchada também de sangue de militares da 816.

O Poste 3383 conta bem como foi…

Rui Silva
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 – P10100: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (19): A Serração de Joboiá - a destruição de um mito

domingo, 1 de julho de 2012

Guiné 63/74 – P10100: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (19): A Serração de Joboiá - a destruição de um mito

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 25 de Junho de 2012:

Caros Luís Graça e Vinhal, sem esquecer o meu grande amigo M. Ribeiro:
Recebam as maiores felicitações e mais uma folha “arrancada” das minhas memórias.

Rui Silva



Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

A SERRAÇÃO DE JOBOIÁ – A destruição de um mito

16 de Dezembro de 1965

Julgo que toda a Companhia ou Grupo militar operacional, tinha, em menor ou maior grau, o seu “calcanhar de Aquiles” na guerra, isto é, algo que a estigmatizou em dado momento, através de um grande revés ou infelicidade, (refiro-me principalmente de mortos em combate ou de fortemente estropiados) na estrada, no mato, no aquartelamento, ali ou acolá, e que a marcou. A 816 não era exceção. Passar depois por esse mesmo sítio havia sempre um nervoso miudinho na malta.

A 643 dos Águias Negras (grande Companhia operacional) em Bissorã e a 566 (não menos grande Companhia) no Olossato, para falar das Companhias com que tivemos o privilégio de atuar, muitas vezes em conjunto, pareciam também ter o seu.

A 643 falava muito na “carreira de tiro”, um percurso em balcada com uma centena de metros, na estrada de Bissorã para Olossato antes de Maqué e do grande poilão.

A 566, no dizer de alguns dos seus operacionais, preferia uma operação a Morés do que entrar na estrada (então interdita) que ligava Olossato a Farim.

No entanto, não esqueço aquele Cabo da 566 que de Dryse na mão, em cima do capot do motor de uma GMC, a peito descoberto, ajudou a resolver uma grande e violenta emboscada feita a toda a Companhia 816, naquela estrada, que entretanto tinha pedido ajuda no Olossato, pois as munições estavam a acabar à coluna da 816 no célebre e traumatizante dia 1 de Agosto de 1965. Começamos aos tiros de manhã cedo e até ao princípio da noite e já depois de os dois T6 nos deixarem, por razões óbvias (obscuridade e já falta de bombas), de operar.

A serração de que falo ficava a poucos quilómetros de Olossato na estrada para Farim (e K3) mais propriamente em Joboiá, metida um pouco dentro no mato e do lado esquerdo.

Era um dos santuários do inimigo ali no Oio. A 566 tivera ali um revés que os marcou.

Até que um dia chegou a ordem de alinharmos para destruirmos a famigerada Serração de Joboiá, a célebre serração, ou melhor, o que restava do que outrora foi uma serração e isto não passava apenas das paredes ao alto (o que bastava para o IN se emboscar e era tido como um ponto de encontro) e dos caibros da armação que outrora sustentava o telhado. A serração de Joboiá distava do Olossato cerca de 4 a 5 quilómetros na estrada para Farim. Ficava isolada e longe de qualquer meio povoado. Olossato era o mais próximo, porventura. A “casa-de-mato” de Cansambo não muito longe dali também.

Chamo-lhe de célebre pois muito cedo começamos a ouvir falar dela. Logo que se falava de Olossato falava-se fatalmente da serração e de uma maneira temível e então esta tinha as suas histórias de guerra para contar. Ao que se sabia, os terroristas aproveitavam-se das suas ruínas, ou melhor das paredes, para fazerem emboscadas, assim bem abrigados e num ponto bem estratégico. Ali, naquele sítio, uma emboscada era uma constante sempre que a tropa passasse na estrada de Farim, estrada que distava da serração aí a uns 40 metros.

Lembro que esta estrada no meu tempo era dada como interdita a colunas auto.

O acesso a Farim era feito pela estrada que vinha de Mansabá até ao K3 onde entroncava com a estrada Olossato-Farim e, principalmente, pela via fluvial, através do Cacheu.

Assim, sempre que passávamos ao lado da serração havia o receio de eles estarem por ali.

Então o Capitão resolveu acabar com aquilo, o que, e no dizer dele, era mais um mito que outra coisa, o que nós concordamos.

O dispositivo para tal operação foi, prévia e obviamente, muito bem concebido pelo Cap. Riquito.

A foto na Serração (houve tempo para uma foto de circunstância): Pessoal da 816 que colaborou na destruição da serração de Joboiá – Veem-se em pé: o Alferes Costa (com a G3 à caçador), Furriéis Rui (eu com a mão no cinto) e Coelho; Flores, Alferes Esteves (de capacete) e o “Pelé”; e em baixo o Clarimundo simulando carregar o morteiro e o “Chaves” com a sua “bazooka” a “fazer foto” da estrada Farim-Olossato. Do lado direito pode-se ver ainda parte da estrutura da serração.

Cerca das 3 horas da madrugada sai então do aquartelamento o 1.º Grupo de combate comandado pelo Alferes Costa, na ausência do Alferes Barros o titular daquele Grupo. A missão deste Grupo é fazer um reconhecimento e instalar-se em redor da serração, em dispositivo de segurança, de forma que, já pelo alvorecer, a chegada do meu Grupo de combate àquele sítio e mais tarde o grupo das viaturas seja feito a coberto de qualquer surpresa, pois, uma vez já ali instalado o 1.º Grupo, não seríamos surpreendidos pelo inimigo, que podia muito bem já estar ali acoitado. Portanto, quer dizer, o 1.º Grupo assegurava a não presença inimiga ali na altura que nós chegássemos pela alvorada, e mantinha a segurança ao 3.º GC (o meu Grupo) que com o material adequado procedia à completa destruição do que ainda então restava da antiga serração. Mas, logo no começo da operação, traçou o destino, ia haver contacto com o inimigo. Assisti ao partir do 1.º Grupo de Combate, que, silenciosa e cuidadosamente, saiu em fila indiana, e como já se disse, à volta da 3 da madrugada, rumo ao objetivo. Primeiro eles iam por a estrada até à ponte do rio Olossato - o costume - que ficava a cerca de um quilómetro do Quartel, e, ultrapassada a ponte, meter-se-iam então pelo mato, para melhor segurança na progressão e evitarem serem detetados.

Quando os últimos homens da coluna estavam a sair do aquartelamento contornando o cavalo-de-frisa na saída para a estrada para Farim, e como já era um pouco tarde e eu tinha que me levantar cedo, fui-me deitar. Quando me aprestava para adormecer, e já todos nós deitados, eis que ecoa um metralhar contínuo e forte que mais forte parecia no silêncio da noite. Uma rajada breve. Parecia fogo de uma metralhadora pesada. “É nosso?” “É deles?” - interrogamo-nos, surpresos. Era eles com certeza; naquela altura já tínhamos o ouvido bem sintonizado para o tipo de estampido e a sua cor. Era ali perto, pelo nítido ouvir da metralhadora e a julgar por só terem passados breves minutos após a saída do Grupo. Como que impelidos pela mesma mola logo saltamos da cama e procuramos saber o que se passava. Tinha sido ali pertinho, precisamente logo ao sair da ponte e à entrada para o mato. “Foram eles, e parece que há feridos” - alguém disse apavoradamente. Estranhamos como aconteceu já ali perto e para mais saídos de surpresa (?) como era habitual. Logo o Capitão e dois soldados armados se introduziram num ”jeep” e para lá se deslocaram ao saber-se pelo rádio do local exato e de que haviam feridos. Pouco tempo depois regressa o “Jeep” rumo à Enfermaria e então constatou-se ter sido o Andrade atingido com um tiro numa coxa. O preto Seidi tinha levado também um tiro que lhe esfacelou um dedo dum pé. Os feridos, claro, ficaram no quartel, mas o Grupo continuou para o objetivo: Garantir a segurança em redor da serração, para o outro Grupo, que iria chegar pelo alvorecer, para proceder ao seu desmantelamento.

Viemos a saber que os tiros de metralhadora e ao que parecia ser pesada, tinham sido feitos por presumíveis sentinelas que o inimigo tinha ali instalado em permanente vigilância à tropa do Olossato. Porém, estes sentinelas, com certeza que só à noite ali estavam, pois era também sempre de noite que nós saíamos para operações de “Golpes-de-mão” e não só. As sentinelas descarregaram então o que puderam e logo fugiram através do emaranhado do mato e a coberto da escuridão. Acontecia muitas vezes isto: sentinela detetado, despejar a arma e fugir. O alarido dos tiros avisava o seu grupo e podia ainda sobrar alguma coisa. Não seriam mais que dois, como alguém bem perto da cena calculou. Do pelotão nem chegou a haver reação. Apanhados de surpresa, em plena escuridão da noite e praticamente à porta de casa, limitaram-se a deitarem-se para o chão e como ficaram aos magotes, ninguém respondeu ao fogo inimigo até com o receio de se ferirem uns aos outros. A coisa foi também muito rápida pois eles fizeram a rajada e debandaram logo. “Só se via a chama à boca da metralhadora” -  alguém acrescentou depois. “Eles estavam atrás de uma árvore muito grossa” - alguém ajuntou também.

Como se nada tivesse acontecido, ou por outra, como o que aconteceu não era de modo a abortar a operação, esta prosseguiu como se impunha.

Pelo alvorecer já estava o meu Grupo a caminho da serração e de encontro ao 1.º Grupo. Uma vez ali chegados, logo se começou a trabalhar na destruição do esqueleto daquilo que outrora fora uma serração. Começou-se pela remoção dos caibros que sustinham o telhado que provavelmente teria existido, e depois, à picareta, as paredes também foram postas abaixo. Com o barulho das moto-serras, o bater das tábuas ao caírem, e outros inevitáveis barulhos, receávamos pela chegada do inimigo a qualquer momento, embora o dispositivo de segurança entretanto montado pelo 1.º Grupo desse tranquilidade aos que trabalhavam. Assim, havia um grupo empenhado na completa destruição da serração e outro metido no mato formando um anel em volta daquela e a olhar pela segurança do primeiro. Entretanto alguém aproveitou para bater um instantâneo para a posteridade, cuja foto se pode ver atrás. É isso (!), havia sempre quem andasse de máquina fotográfica no seio da guerra; quem não se lembra do saudoso camaradão do Sarrico?

Foram também chegando as viaturas e respetivas guarnições. As viaturas serviriam assim ao transporte da grande quantidade de tábuas resultante da destruição da serração.

As tábuas grandes e espessas fariam bastante jeito em diversas construções no quartel.

As viaturas ficaram na estrada, portanto a cerca de 40 metros da serração, distância esta já referenciada atrás. A serração que ficava do lado esquerdo da estrada de quem ia para o K3 e mais à frente Farim, estava bem metida no mato e apenas havia um carreiro a ligar a dita serração à estrada, o que não permitia o acesso às viaturas. O transporte das tábuas e caibros para as viaturas foi assim muito moroso, pois para além de serem muitas, eram pesadas também.

Houve depois também um vai-e-vem de viaturas para o quartel, até que tudo que tivesse préstimo fosse transportado. Depois, a Companhia, naquela altura já praticamente toda, rumou de regresso ao aquartelamento, metade apeada e outra metade aproveitando as viaturas. Tempos andados teríamos então uma surpresa, ou talvez não… o inimigo! Como tempo para isso não lhes faltou. Montaram uma emboscada a meio caminho Serração-Olossato.

Emboscada forte mas a que a 816 respondeu com a maior determinação.

Na altura a Companhia já denotava muita maturidade e muito calo e então a reação foi espontânea e em potência. O inimigo pôs-se em debandada e o regresso continuou sem mais problemas.

Interrogamo-nos só, como ali tinham passado tantas vezes viaturas isoladas, algumas só o condutor e com um ou outro atirador, aquando do vai-e-vem do transporte da madeira para o quartel, e eles não terem atuado. Imaginamos então que, inclusivamente, eles até com um simples tronco de árvore atravessado na estrada apanhavam à unha o condutor e o seu eventual acompanhante e depois também destruírem a viatura. Mas, ou não acreditavam em tamanha descontração, ou preferiram esperar pelo grosso da coluna, ou seja pelos 2 Grupos de combate, agora já reforçados e assim teriam “caça grossa”. Os condutores que por ali tinham passado um pouco antes até tremiam quando se lembravam do tal.

Mas, isso é o que poderia ter acontecido, mas que de facto não aconteceu. Assim era a filosofia do “segue em frente e não olhes para trás” que melhor se coadunava com quem convivia com a guerra. A Companhia regressou ao Olossato e o mito da Serração deixou de existir, pois esta foi completamente arrasada, e quando por lá passávamos depois, já ninguém se lembrava da Serração, que afinal deu muito que contar sobretudo aos homens da 566.

Houve momentos de satisfação por mais um obstáculo desimpedido: E o mito da serração de Joboiá foi destruído,… de todo.

Segue o extrato do relatório da operação em questão:


"Estrela": local aproximado da Serração (4 a 5Km do Olossato, na estrada para Farim, passando pelo K3)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 – P9887: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (18): O primeiro "ataque" a Bissorã

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Guiné 63/74 – P9887: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (18): O primeiro "ataque" a Bissorã

 
1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 7 de Maio de 2012:

Caríssimos Luís, Vinhal e M. Ribeiro:
Daqui de Santa Maria da Feira aí vai um grande abraço para vocês a que junto um “Salpico” para blogar.

Rui Silva



Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

- Um salpico! -

Primeiro “ataque” a Bissorã, Uf!

Sabíamos que a nossa missão ali na Guiné e enquanto Companhia de Caçadores passava principalmente por dois tipos de atuação bélica. Uma, era ir ao encontro do inimigo, mato dentro, através de golpes-de-mão aos seus refúgios (as chamadas “casas-de-mato”) e o outro era defendermos o aquartelamento e a população civil ali adjacente e (ou) conivente, de eventuais, mas muito prováveis, ataques. Outras missões passavam por patrulhas à área envolvente do aquartelamento, segurança a colunas de reabastecimentos e à pista da aviação; fazer emboscadas intercetando o inimigo através de informações chegadas de fresco, ou então feitas de rotina; capinagens para uma visibilidade mais abrangente nas faixas laterais e o inimigo mais afastado, pelo menos nas estradas mais utilizadas principalmente, e as rondas noturnas de Bissorã, esta das operações mais temidas ali feitas na Guiné pelo menos na minha Companhia: um jeep com “olhos-de-gato” com uma guarnição de 4 homens, picadas adentro e bastante, (para Olossato, Mansabá, Mansoa, Barro e “Outra banda” ), e nas altas horas da noite. Também as operações Psico (recolha de populações para junto de nós, nos aquartelamentos), e as operações-Vaca (parecia o far-west), estas bem mais rentáveis pois punha-nos a comer bifes invariavelmente, sem esquecer os miolos fritos bem regados a cerveja ao meio da manhã (dos tais salpicos-dos bons mesmo).

Bom, estávamos então era mais centrados nos golpes-de-mão e na defesa dos ataques ao aquartelamento se bem que, estes ali em Bissorã, nós sabíamos que eram cirúrgicos. No meu tempo, Bissorã não era muito atacada e concluía-se que no maralhal que pululava a povoação havia de tudo: informadores (vulgo bufos), pró-turras e até turras mesmo; “carteiros” que levavam notícias frescas e também de transporte de arroz e outros alimentos e com alguma informaçãozinha à mistura. Quando a tropa estava a alinhar para partir para o mato dizia-se que ia “correio” à frente (um aviso que logo nos foi feito pelos companheiros de quartel os “Águias Negras” da 643). Portanto, qualquer ataque a Bissorã, quando era feito, era-o de modo muito seletivo e de alvo bem definido, mais sobre as moranças ou até tabancas com pessoal não pró-PAIGC o que por ali parecia haver pouco. Na “Outra banda”, logo depois de se atravessar o rio Armada, havia mais chinfrim. Só que chegar lá tinha-se de vencer algumas centenas de metros. Julgo que o problema ali era mais de guerra entre etnias se bem que subjacente estava sempre a guerra pela “independência”.

Tínhamos assim de conviver com eles, passar por eles na rua e até conversar, mas, também a presença deles nos servia de carapaça aos ataques. Mas de vez em quando havia refrega principalmente como retaliação aos estragos que lhe infligíamos mormente na véspera imediata. Quando lhe destruíamos os refúgios e não só.

No rudimentar mercado em Bissorã vendiam-se muitos apetrechos elétricos, também de som, vindos ao que se dizia do vizinho Senegal. O ir lá buscá-los era também um bom pretexto para troca de informações e não só. O pessoal “contrabandista” era vigiado e, por vezes, à mínima suspeita, havia interrogatório do duro. Pronto, o estar ali há pouco tempo e ter receio de tudo que mexesse (síndrome de “Periquito”) e com o espectro de um ataque, o dormir tinha os seus pesadelos. Também dependia também da cerveja que se bebesse nas cartas. Havia quem dormisse pianinho e havia quem sonhasse alto ou tivesse insónias, isto numa espécie de casa assombrada até porque o status psico-guerra era latente.

Mas eis que algo de insólito aconteceu numa certa noite e é o motivo deste meu “salpico”. Protagonista principal: o meu querido amigo, Furriel da Companhia, o alentejano e eborense de muita fibra, o Zé Baião. Sempre bem disposto e a dispor bem a malta.

Certa noite, que já ia alta, e quando todos já dormiam em sono pegado, ouve-se gritar bem ali na casa: “Ai, ai”! “Ai o meu braço! Ai o meu braço!...”

A furrielada levantou-se toda à uma, e convergiu para a zona dos gritos de aflição. “Que é isto?” “ Eles aqui dentro?” “Um ataque corpo-a-corpo?”. Todos incrédulos e meio espavoridos fomos dar com o Baião aos gritos já no pequeno corredor que dividia o interior da casa; tinha o braço dormente, pois concerteza tinha estado a dormir com todo o peso sobre ele, e como desconhecia (?) tal estado fisiológico, julgava que estava a perder o braço, e… acordou toda a gente! Aos gritos, gritos de aflição como se o estivessem a matar. Pensamos logo num ataque à casa dos Sargentos. Em breve se recompôs, pois o sangue começou logo a correr normalmente, e então exclama ele ao mesmo tempo que apalpa e ginastica o braço: “Alto que ele já cá está outra vez!”.

Virou-se e foi deitar-se tranquilo e já fisiologicamente perfeito, visto isso, como nada se tivesse passado, nem chamado alguém para o caso. A sua cara parecia até querer perguntar: “ O que é que foi?”

Ficou ele satisfeito, já por ter o braço no seu sítio outra vez, a contrastar com todos os outros, pois não faltou quem ficasse chateado com ele, por tanta lambança por tão pouco e que fez acordar toda a tribo furrielense de forma sobressaltada.

Uns mais exaltados demoraram a calar-se e… a adormecer. Aí o Baião já tinha entrado num sono profundo e com o braço noutra posição naturalmente.

Ai Baião, Baião!!

Eis a nossa casa em Bissorã. Com terraço e tudo. “Periquitos” de pele branca ainda. Ex-casa de colonos com instalações para estabelecimento e tudo. Estávamos com cerca de um mês de Guiné.

O Baião é do meio. De óculos de sol o Furriel açoriano, Vieira, natural da Ilha Terceira, que não fugiu à alcunha de “português de terceira”. O macaquinho aos meus pés morreu mais tarde, já no Olossato, com fratura de crânio num acidente doméstico. À esquerda a tasca do Sr. Maximiano.

Uma vista de Bissorã (foto tirada da net, com a devida vénia ao seu legítimo autor, se reproduz). A seta vermelha indica a casa dos Furriéis da 816 (Jun/Set 1965)

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P.S. -  O nosso muito estimado e querido amigo José Baião morreu já há alguns anos na sua adorada Évora. Muita consternação na malta (que o soube) e a saudade que sempre perdurará. Que descanse em paz e no reino de Deus.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 – P9487: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (17): O Regresso (muita sorte!)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 – P9487: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (17): O Regresso (muita sorte!)

1. Mensagem de Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 9 de Dezembro de 2011:

Caros super amigos Luís e Vinhal:
Aqui vai mais uma folha arrancada das minhas memórias.

Recebam um grande abraço extensivo ao meu querido amigo Magalhães Ribeiro.
Passem bem, mesmo muito bem.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Das minhas memórias: “PÁGINAS NEGRAS COM SALPICOS COR-DE-ROSA”

O REGRESSO (muita sorte!)

Quando, e precisamente aos 5 de Janeiro de 1967, logo de manhã cedo, sinto, sob os meus pés, as rodas do trem de aterragem de um DC6, agora na frota militar, a deslizarem na pista do aeroporto de Bissalanca deixando a Guiné, disse para comigo: “Estou safo!!”
Registei esse momento. Ele dizia muito. Rara sensação.

Deixei a Guiné mais cedo um mês do que a minha Companhia. Vim evacuado para ser operado no Hospital da Estrela, a um joelho. Acidente no aquartelamento do Olossato a… jogar futebol.

A minha Companhia esteve sempre em campanha, sempre no mato, durante 21 meses, e eu, portanto, 20.
Viemos para Mansoa para descontrair um pouco. Era normal e acontecia, se não com todas, com a maioria das Companhias que tivessem estado em zonas de intervenção complicada e difícil. Os últimos 4-5 meses eram passados em zonas mais soft. Assim era para acontecer; só que, a guerra estala aí também. Começam as emboscadas na estrada Mansoa-Bissau (cheguei a fazer esse trajecto num Volkswagen (vulgo carocha) alugado em Bissau, com mais dois Furrieis da 816), e a guerrilha assenta arraiais em Jugudul, Quibir, Date, Bindoro e até Porto Gole.

A guerra na altura chegava às portas de Bissau.

DC 6 estacionado em Bissalanca
Foto retirada, com a devida vénia, do Site Especialistas da BA12

Os DC 6 vinham para a frota militar depois da TAP os considerar obsoletos ou desactualizados, dizia-se.
Era um avião, agora militar, destinado a carga. Não sei se na TAP era esse o serviço ou se foi adaptado.
O espaço interior (excepto, claro, o cockpit) era todo aberto com dois rudimentares bancos corridos e com assento de lona, quase em todo o comprimento e um de cada lado encostados à fuselagem, o que permitia-nos viajar sentados virados uns para os outros. Vínhamos poucos no entanto.

Antes de subir reparei no avião e fiquei com a impressão de um avião já velho com a tinta comida ali e acolá e algumas amassadelas. Mas as hélices rodavam.

Mais impressionado fiquei quando entrei e vi o estado da aeronave. Mais arrepiado fiquei quando a larga porta que servia, decerto, à passagem de grandes volumes, foi finalmente fechada… à marreta. E eu que fiquei mesmo à beira dela. Grande frincha na porta. Será que…

Um arrepio e logo um pensamento: Queres ver que me safei do mato e vou cair nesta geringonça.
Já estava a ver nos jornais a história do desastre.

Fizemos escala em Las Palmas. Estivemos ali cerca de 45 minutos num café-cantina também de militares, provavelmente de tropa espanhola. Fez-me raiva ver aquela malta fora de qualquer guerra, ali descontraída e alegre a beber o seu copo.

Quando pousei um pé, julgo que em Figo Maduro e depois de cerca de 16 horas de voo num avião pouco menos que assucatado, já alta madrugada, suspirei de alívio.
Agora sim, já não morro mais!

Depois de uma breve passagem pelo Hospital da Estrela - entrega, suponho, de papelada - fui de imediato para o “Texas” (Anexo do Hospital Militar da Estrela que ficava ali perto do Hotel Ritz, e na rua Artilharia 1). A noite já ia bem avançada e fui instalado numa camarata. Mas, que bom, estava safo e até parecia mentira.

Voltando ao princípio e à viagem propriamente dita do regresso:

Inserido num grupo de meia dúzia de evacuados, parto para Lisboa deixando a Guiné e os meus grandes amigos da 816. Ainda me recordo que fiz questão de gravar na minha mente a imagem que me era dado ver através de uma pequena janela do avião, pois seria essa a última visão da Guiné. Sem pestanejar, olhava para aquela terra a que eu jamais provavelmente voltaria. Olhava um ponto indefinido lá longe na mata e meditava, meditava… que sentido fazia a vida ali a ser vivida desta maneira? Perguntava-me a mim próprio.

Sim, tinha sido ali que eu tinha vivido quiçá o episódio mais cruciante e mais temeroso da minha vida, pelo menos até então. Foi ali que integrado na Companhia de Caçadores n.º 816, defendi, embora modestamente, a minha pátria. O avião começou então a ganhar velocidade e então via que me afastava daquela pequena parcela de território português, palco de uma guerra terrível, uma guerra de nervos - o inimigo está em todo lado, já ali do outro lado do arame farpado, e acoitado na mata -, de acção constante, (ali a guerra tem 24 horas por dia), uma guerra fria e traiçoeira – as minas, os fornilhos, as emboscadas aparecem onde menos se espera. Uma guerra em que os valorosos soldados portugueses eram a força, a coragem e a determinação personificadas. Valente o soldado português, pensei para cá comigo. Senti então o meu coração bater forte e instintivamente desejei, mentalmente, a maior sorte aos meus amigos que ali ficavam e ali continuariam a lutar e a sofrer, embora que, no caso dos da 816, só por algumas semanas mais.

O avião deixou então de pisar a pista e voou até se perder na penumbra da atmosfera. O meu olhar não despegou daquela mancha esverdeada raiada de traços de água um pouco por todo o lado, mancha que era a densa, diversa e sinuosa vegetação que caracterizava aquela terra e os traços largos de água que a inundam vastamente formando autênticos pântanos nas suas margens aquando das marés baixas (os tarrafos).

Deu para ver a silhueta da Guiné na sua parte ocidental. A imagem real que eu só conhecia no mapa e há pouco tempo, pois nos bancos da escola falava-se mais da Índia, de Angola, de Moçambique. Eu a ver do alto aquele palco. Um palco de horrores. O rio Mansoa, mais adiante o Cacheu, A verde vegetação que em tantos pontos nos obrigava a gatinhar ou andar deitados para a podermos contornar para progredir e pântanos que tantas vezes quase nos cobria de água e lodo ao os atravessarmos, sempre no encalço do inimigo. A lama dos pântanos e a água das bolanhas que nos encharcava o corpo de alto abaixo, a água que logo secava quando dela saíamos, a água que volta a envolver-nos e a encharcarmo-nos logo mais adiante. O camuflado de tanto molhar, secar e molhar ficava como um grosso papelão com uma capa de lama ressequida - quantos quilos de lama seca se transportava no corpo?!

O barulho de um crocodilo (segundo um nativo) algures quando metidos em água. E outras coisas…outras coisas. Tal como quando cheguei no Niassa, embora neste caso ao nível terrestre praticamente, viam-se ali e acolá colunas de fumo.
Agora estava certo que reportavam a acções de guerra e, aquela hora, princípio da manhã, eu agora sabia-o que os refúgios inimigos eram incendiados após o ataque.

Imaginei os meus camaradas naquela emaranhada floresta aos tiros, o frenesim dos radiotelegrafistas, os gritos dos comandantes, os feridos, os Alouettes (no meu tempo estes eram do modelo que transportava os feridos em macas no exterior, uma de cada lado do aparelho) ao encontro daqueles, e os T6 e já também os Fiat naquela altura, a descolarem para entrarem em acção e apoiarem a tropa em luta no terreno.
E eu já ali bem encima a deixar o Inferno e a afastar-me deste em boa velocidade.

Afinal estive ali perto de 2 anos. Despertei então daquele estado de absorção que me fazia alhear completamente da vida naquela altura, e recompus-me no assento do avião e, pronto, pensei, tinha acabado ali aquilo que mais parecia um sonho. Sim tudo pareceu um longo sonho,… ou pesadelo?

Um sonho que afinal até teve episódios agradáveis. A nossa juventude rebelde e irreverente procurava sempre criar momentos agradáveis nem que com isso custasse a este e aquele servirem de chacota ou de bode expiatório. Hoje uns, amanhã outros. Alguns murros por o meio também. Um sonho singular, e por isso mais aliciante? Contudo um “sonho” de grande importância na minha vida de homem na circunstância um cidadão português na condição de militar combatente. Sei lá o que dizer ou o que pensar? Talvez um pouco de tudo! A vida ali tocava as pontas.

Formatura em Brá aquando da despedida da Guiné. Destaco o nosso Primeiro Rodrigues, já falecido, segurando com firmeza o nosso Guião. Paz à sua alma. Em primeiro plano o nosso jovem nativo fardado à maneira, que veio com a 816 para a metrópole, quando tinha 8 anos. O nome de Mamadú ou Morés, este de alcunha, deu lugar a Jorge, hoje senhor Jorge e com 53 anos a viver em Riomeão

No mês seguinte, Fevereiro de 1967, foi com a maior alegria e com uma persistente lágrima no olho a querer deslizar, que abracei os meus colegas no cais da Rocha do Conde de Óbidos em Lisboa mal atracou o “Uíge”. O barco que os trouxe da Guiné.

O navio Uíge trouxe a Companhia 816 de volta à Metrópole em Fevereiro de 1967

No Uíge, à mesa, na Sala de Jantar dos Oficiais. Do lado esquerdo, o segundo contando de cá para lá e olhando para a câmara, é o Capitão (Grande Capitão como ainda hoje lhe chamamos) Luís Riquito que comandou a CCaç 816.

Ainda no Uíge, uma mesa dos Furriéis da 816

Depois ao desfilarem e eu cá de cima do terraço do edifício do cais, senti um calafrio percorrer-me o corpo todo, imbuído numa rara emoção. Disse instintivamente: ”Ali vai um grande grupo de militares”. Para toda esta gente (referia-me aquela grande multidão que invadia o terraço e zonas limítrofes) não passa de um grupo anónimo de militares qualquer, mas tinha sido efectivamente um grupo de homens que, chamado a intervir, fê-lo desde a primeira hora sem nunca virar a cara à luta ou a recear qualquer que fosse a missão ou o objectivo. Nunca em caso algum temeram o inimigo em qualquer que fosse a circunstância e nunca também regatearam qualquer esforço ou trabalho por muito árduo ou temeroso que ele fosse.

A emoção daquela gente que também chorava como à partida, mas agora com contornos diametralmente diferentes.

Aqueles homens podiam orgulhar-se de grandes cometimentos, mas eu sabia bem que aqueles soldados eram demasiado simples e humildes para deixarem-se mover por veleidades, quer de vaidades, quer de preconceitos.

Várias Companhias desfilavam na altura e entre elas a minha 816 e o meu olhar era um olhar de admiração e consideração. Porque a Companhia de Caçadores n.º 816 tinha feito um grande trabalho, de grande qualidade e importância na defesa do território português a que se dava o nome de Guiné.

O desfile acabou e o pessoal começou a acomodar-se nas viaturas.

Despedi-me dos soldados, dos meus colegas Furriéis e dos Oficiais.

Uma enorme sensação, um grande estado emocional tinha então se apoderado de mim, pois para além do mais, eu sabia que, concerteza, jamais voltaria a ver muitos daqueles camaradas, com quem compartilhei o bom e o mau, os momentos felizes e menos felizes, as lágrimas pela morte dos nossos camaradas mortos em combate, e os feridos, sim e os feridos, alguns mesmo muito, naquela odisseia que se prolongou por perto de 2 longos e inolvidáveis anos da minha vida e que me fizeram registar com muito empenho, entusiasmo e realismo em Páginas negras com salpicos cor-de-rosa.

Texto e fotos
Rui Silva
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 – P9192: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (16): Partida e viagem para a Guiné

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 – P9192: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (16): Partida e viagem para a Guiné

1. Mensagem de Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 9 de Dezembro de 2011:

Caros Luís, Vinhal e Magalhães Ribeiro:
Recebam um grande abraço com o desejo de que estejam em forma. Abraço esse extensivo a outros co-editores e colaboradores deste insuperável Blogue.

Aqui vai mais uma página “arrancada” das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”, curiosamente uma das primeiras.

Manga de saúde para Vocês.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

A PARTIDA (… e a viagem)

Fui mobilizado, como Furriel miliciano e com a Especialidade de Armas Pesadas, integrado na Companhia de Caçadores n.º 816, para servir o Exército no Ultramar, mais propriamente na colónia da Guiné, pedacinho de terra na Costa Ocidental de África, aonde portugueses de antanho destemidos e aventureiros levaram e implantaram o nome de Portugal.

Depois de algumas semanas em Santa Margarida, e após formação no BC 10 em Chaves, as Companhias de Caçadores, entretanto tornadas independentes (após dissolução do Batalhão), 816, 817 e 818 abalaram para a Guiné.
E foi assim que aos 21 de Maio de 1965 embarcámos no Niassa então aportado no cais de Alcântara em Lisboa.
O Niassa ia então fazer uma longa viagem, a viagem toda. Levava tropa até Timor, deixando alguma em Angola, Moçambique e julgo que em Cabo Verde e S. Tomé também.
Sairíamos em Bissau. A viagem mais curta no tempo, mas a mais temerária. A Guiné naquela altura era o pior sítio da guerra Colonial, ao que se dizia.

Nunca mais esqueço aqueles momentos da maior emoção que vivi no cais de Alcântara, naquela manhã de sol radioso e céu limpo e azul aquando do embarque da Companhia.
Eram avós, pais, irmãos, esposas, madrinhas de guerra, namoradas a despedirem-se daqueles que partiam, e partiam com o espectro de não se saber se voltavam. Lágrimas, longos abraços e beijos, tudo que um grande estado emocional podia despojar na hora de uma separação algo dramática.
Gente anónima ou curiosos, também por ali.

Era cerca do meio-dia, a hora pré-fixada para o embarque.
Esses momentos de rara emoção foram também, primeiro, do desfile de nós, militares, que antecedeu o embarque; depois, a subida na escarpada escada que ligava o chão do cais ao convés do barco, diante daquela multidão que nos acenava vibrante e incessantemente, e, depois, o Hino Nacional que, com ênfase, foi tocado pela Banda Militar, ao mesmo tempo que o barco se afastava lenta e progressivamente do cais e deixava para trás, a nossa terra, a nossa família, os nossos amigos… e muitas das legítimas ilusões.
Senti um arrepio.
Quadro só ali visto e sentido.
Não suportei que duas lágrimas se me aflorassem nos olhos.


Antes de ir para o meu camarote (?) (3-4 camas em beliche) olhei ainda lá em cima, do outro lado do Tejo, o Cristo-Rei que, de braços abertos, parecia querer abençoar-nos.

E a ponte sobre o Tejo já em fase adiantada de construção.

Foto reproduzida, com a devida vénia de “mlisboaantiga.web.siplesnet.pt”

Deparei então com as mais variadas das reações nos meus colegas naquela hora de desenlace: uns, impotentes, deixavam as lágrimas correrem livremente o seu curso; outros denotavam apenas uma expressão de tristeza, outros ainda, aparentando serem fortes, davam palmadas nas costas daqueles que exteriorizavam a sua amargura. Outros ainda continuavam a acenar… a acenar… a acenar até que o cenário da multidão no cais se diluiu com a distância.

Um bocado de todos tinha ali ficado.

Foram cinco dias de amena e agradável viagem, sempre num mar calmo. Um pequeno conjunto musical, julgo privativo do Niassa, e já com alguma veterania, com suave e tranquila música, na sala do bar, procurava também minimizar a ansiedade da tribo.

Uma foto muito especial no convés do Niassa, pois nela podem-se ver o Comandante da Companhia (Luís Riquito), Oficiais, Sargentos e Praças, todos da 816.

Estes dias serviram também para enfortalecer mais os laços de amizade e companheirismo reinantes entre a malta. Afinal éramos companheiros da desdita.
Em alegre confraternização, conversando, jogando às cartas - logo na primeira noite perdi 400 “paus” a jogar ao “abafa”, depois nas outras passei a ser um simples espectador.

O plafond pré-estabelecido tinha-se esgotado logo ali -, tirando fotografias por todo o barco, contando anedotas, falando das “madrinhas de guerra”, escrevendo (o primeiro contacto com os aerogramas) à família, ou àquela que poderia vir a entrar naquela, ou simplesmente contemplando a linha do horizonte, (quantas vezes!) delimitativa daquela imensa toalha de água que envolvia o barco – impressionava aquele cenário aparente de ser só nós e a água, no mundo -, assim se passou o tempo a bordo. Isto sem esquecer a bebedeira do Luís José (meu camarada também Furriel da 816) no dia em que ele arranjou muitos amigos ao abrir a mala e sacar do bom presunto e do bom chouriço que a sua mãe muito bem soubera aprontar.
Tudo em latas com pingue hermeticamente fechadas a solda de estanho. Era para uns tempos.
O que ele levava para uns tempos ficou-se praticamente por aquela noite.

Outra foto de militares da 816 no Niassa

Muitas vezes apoiado na amurada do navio olhava a linha do horizonte procurando respostas para as minhas interrogações. Como será? Como não será? Da Guiné só ouvi falar, - e de forma muito vaga - nos bancos da primária. Dizem que aquilo é de morrer com o calor. Que a água é péssima e provoca doenças. Cada um dava a sua dica, ou positiva ou negativa e conforme o seu estado d’alma.
Que trabalhos, que sacrifícios me esperavam?
Falou-se também que a estatística apontava em média para 2 mortos por Companhia em toda a comissão. Ora como uma Companhia tinha cerca de 160 homens…

Após cinco dias e cinco noites de ininterrupta e tranquila viagem, chegamos!

Começamos por vislumbrar ao longe a costa africana. O denso matagal num verde luxuriante a contrastar com o azul do céu totalmente limpo. Cada vez a terra mais nítida, mais próxima.
Já com o cenário da Guiné a ocupar-nos o campo visual, via-se algures no mato aqui e ali colunas de fumo. Era a guerra? Supostamente que sim. “Fazem aquilo para nos meter medo”, alguém disse.

E a pouco e pouco, Bissau se foi tornando nítida e próxima.
A marginal, orlada das típicas palmeiras, com todo o ar de belo e natural que tem as paragens africanas.

O barco ancorou um pouco ao largo (~1/2 milha) do cais, pois a profundidade da água, na altura, ali, era pouca para a envergadura do Niassa se aproximar mais.

Foi nas LDM,s (embarcação rudimentar, de linhas a direito e construída em chapa de ferro), que cobrimos aquela distância que separava o agora imobilizado Niassa do cais de Bissau.
E pronto, ali estávamos para o que desse e viesse. Tudo ainda era ilusão, tudo era esperança, tudo fervilhava no meu cérebro em inúmeras interrogações.
Ainda me recordo, - ficou-me na retina - quando peguei no meu saco de campanha e na minha mala (civil) de cartão e pus o primeiro pé na Guiné.

No convés do “Niassa” eu e o meu grande amigo e Furriel de Transmissões da 816, Luís José

Três Furriéis empoleirados no Niassa; os das pontas, da 816

Ao acabar de subir os poucos de degraus de pedra que separavam a linha da água do piso do cais, deparei com um Alferes conhecido do RI6 do Porto que assistia ao nosso desembarque. Logo “metralhei-o” com perguntas: Como é isto? Para onde vamos, sabe? etc., etc..
Compreensível e com muita paciência foi-me respondendo como sabia ou como não sabia.

Fomos então conduzidos em viaturas militares até ao quartel de Brá. Atravessámos a cidade a uma boa velocidade (parecia que a guerra era já ali) e ainda me recordo como casualmente fixei um café com uma esplanada arborizada, o qual viria a ser, também por casualidade, o “meu” café, sempre que vinha a Bissau: O Café Bento. O café onde eu comia uma sandes de tablete de chocolate a puxar a cerveja.

Quando pedi ao nativo empregado que me trouxesse um pão partido ao meio a tablete tal e uma cerveja ele olhou-me com cara de quem estaria a ser gozado. Convenci-o e ele atendeu-me. O café ficava cá em baixo, ao fundo da Avenida principal (avenida esta que começava lá em cima na Praça do Império onde estava o Palácio do Governador -na altura este era Arnaldo Schultz-), muito perto do ângulo com a marginal e do lado esquerdo para quem se voltava para o mar.
Já em Brá deram-me uma G3. A Companhia não tinha armas pesadas, só… serviço pesado… à nossa espera.

Palácio do Governador na Praça do Império em Bissau. Cá fora, sou eu, não é o Governador

(Segue-se: O REGRESSO - muita sorte!)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 – P9001: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (15): As “Piscinas” dos Furriéis da 816

sábado, 5 de novembro de 2011

Guiné 63/74 – P9001: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (15): As “Piscinas” dos Furriéis da 816



1. O nosso Camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato e Mansoa - 1965/67), enviou-nos a seguinte mensagem desta sua série.


Camaradas,

Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Dos tais salpicos das minhas memórias “Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa”:

As “Piscinas” dos Furriéis da 816 

Pessoalmente só conheci, na Guiné, a piscina de Nhacra, ou antes, um tanque alargado aí com 12-15 metros de comprimento por 8-9 m. de largura, mas não tomei banho nela. Vi-os a tomar, para raiva minha. Que melhor naquela canícula do que ter uma piscina ali perto, mesmo daquela água, que até parecia boa (pelo menos de temperatura).

Estava de passagem. Foi breve ali. Na minha estadia na Guiné o percurso não passava por ali.

Uma vista geral do aquartelamento em Nhacra
 A piscina de Nhacra

(Fotos reproduzidas, com a devida vénia, do site “olossatoguinebissau.blogspot.com”)

No entanto, diga-se de passagem, também passei bons bocados em Bissau, note-se. Mas tinha o trabalho de desenfiar em dois internamentos no HM241. De resto, passagem para tomar lugar no Super-Constellation da TAP rumo à metrópole para férias e, aí, ver no avião bajuda branca.

No aeroporto de Bissalanca parecia que já cheirava a Lisboa.

E por falar em avião da TAP seguem-se, e a propósito, duas fotos reproduzidas, com a devida vénia, de www.enciclopedia.com.pt artigos: TAP Portugal:
                     
Este é o quadrimotor “Super Constellation” da TAP que nos trazia de férias para a metrópole.


A TAP oferecia uma bolsa aos passageiros. Não era propriamente uma Louis Vuitton. Era de plástico, mas, naquele tempo, andar de avião era um luxo, assim, a bolsa era exibida com muito garbo.

Mas as piscinas que quero falar são outras, ora vejamos:

Quer em Bissorã quer no Olossato as horas de tédio eram muitas, pois a operacionalidade era feita praticamente de noite. As saídas para “golpe-de-mão” eram feitas com 2 a 3 dias de intervalo. Havia, por o meio, patrulhas, emboscadas, as “operações-vaca”, recolha de populações (a tal psico) e melhorias do quartel, mas ainda restava muito tempo, as tardes principalmente.

Que fazer?... E o disco do Roberto Carlos “Quero que tudo o mais vá pr’ó inferno” sempre a tocar, até desfazer-se.

Então jogava-se à bola, de preferência se estivesse a chover (no tempo dela, claro). Em Bissorã apanhamos o tempo das chuvas e no campo do clube local, quando chovia, o terreno ficava logo numa lama barrenta e viscosa e então era quem mais deslizava para gáudio da tribo. Quando se escorregava não se sabia aonde se ia “estacionar” depois de percorrer alguns metros em posição pouco ortodoxa.

Ou jogava-se às cartas, com burburinho por o meio, de vez em quando - o que até fazia parte - mas era mais para sacudir o marasmo, ou então dormitava-se nas cadeiras de baloiço à porta da messe. Não, não tínhamos cadeiras de baloiço no sentido esmerado, mas cadeiras feitas com as ripas dos pipos de vinho. Como aquelas eram arqueadas, o habilidoso que as fez pôs dois arcos a servir de base e daí o baloiçar. Boa obra que já fomos encontrá-la no Olossato e que deixamos, este rico espólio, aos camaradas vindouros.


Uma cadeira baloiçante. Como se pode ver 2 ripas arqueadas na base (uma de cada lado) permitiam o baloiço.

Então as vezes, para sacudir aquela seca, alguém se lembrava de dizer: “Vamos fazer uma piscina?” (não me lembro quem foi o batizador de “piscina”).

O da ideia estava nas últimas sílabas e já se via um a correr à cozinha (?), que ficava atrás da messe, buscar o alguidar de inox no qual o Dunga (cozinheiro nativo dos sargentos) se servia para cozinhar o tacho da malta. Ponho um ponto de interrogação em cozinha, pois também era um grande viveiro de baratas. Não se viam, até que alguém se lembrou de mudar uns balcões. Meu Deus, eram… eram… aos milhares, embora fossem baratas.

Uma vez o alguidar aí com 45 cm. de diâmetro sobre uma das mesas da messe, havia um habilidoso a fazer a “piscina”.

Primeiro o excipiente: o vinho tinto da tropa (não sei se canforado ou não. Se sim, não parecia fazer efeito).

Depois toda a espécie de mistura espirituosa. Peppermint, Whiskey, Brandy, Rum, Oporto wine e tudo que andasse por ali. Graças a Deus de bebidas fortes estávamos bem servidos. Tínhamos um bom frigorífico também. Quando algum vinha de férias trazia sempre novidades em líquido espirituoso. Mas em Bissau em bebidas fortes havia do melhor também, a seguir …à cerveja, que com as ostras era a combinação perfeita.

Feita a mistura, com muito gelo por o meio, haja alguém para começar. Uma mão em cada asa e alguma força muscular para os primeiros (alguidar quase cheio) e pronto, dava a roda, uma, duas, três vezes... . Alguns mais demorados do que outros, mas, ninguém reclamava, só perto disso.

Bom até aqui tudo trivial. Beber em conjunto, mesmo de alguidar, ou mais na intimidade o seu copito, melhor ou pior, fazia parte de qualquer militar e de qualquer Companhia e em qualquer lugar da Guiné.

Então para quê vir contar isto para aqui?

Pois, o caricato, ou melhor a razão do conto que saltou para as minhas memórias, é já a seguir:

Quase todos os Furriéis usavam bigode; alguns mais ou menos aparados outros à existencialista, isto é, o bigode crescia crescia…, ali na Guiné tudo crescia depressa!

Quando chegava a um bigodeiro, este, ao beber, mergulhava também o bigode (lembro que um bigode fica logo acima da boca - e em certos casos a tapar esta -) no precioso líquido e até parecia estar a marinar (termo culinário); então quando tocava aos farfalhudos o bigode entrava aí uns bons 2 centímetros no líquido. E ali ficava até passar a outro.

Foi essa dos bigodes (alguns com matizes amareladas, não sei se do tabaco) dentro do cocktail que me ficou na retina e então há que registar.

Alguém morreu?

Alguém apareceu com moléstias?

Não! Afinal só o bigode é que ficava com aquela “água de colónia” por uns tempos para passar a língua mais tarde e de vez em quando.

Acresce dizer que no nosso Convívio de 2010 em Esposende alguém se lembrou de fazer uma “piscina”. Passados quarenta e cinco anos (quase meio século!) a piscina voltou aos Furriéis da 816. Ele há cada coisa! Bom, bigodes daqueles já não havia e porque aos sessenta e muitos tal já não se resiste assim a tudo, como por exemplo o porco (?) do mato em Uaque (“apanhado” - para não dizer roubado - algures no mato) que nem quarenta por cento estava queimado e foi todo (ai os 20 anos!).

Então em Esposende só se molhou o bico. Tudo biqueiro, ou melhor, pouco bebedeiro. Coisas do tempo… que já não volta, embora o António Mourão assim o pedisse, já quando lá andávamos. Lembro-me bem da maquineta de discos na esplanada do Café Portugal em Bissau.

Ah!, e a Ada de Castro com o “Adeus”.


Uma vista parcial da messe dos sargentos no Olossato. Como podem ver, tínhamos já ecoponto e até vasos com plantas exóticas. Também encostada à parede ao fundo vê-se uma cadeira baloiçante. Eu estou a acender um cigarro. Provavelmente um Craven A


O Craven A era um cigarro muito apreciado pela malta. Como Craven “vem” de crava, haviam histórias hilariantes à mistura.

Há mais pr’a ver neste “Memórias…”

Rui Silva
Fur Mil da CCAÇ 816
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Nota de MR:

Vd. último poste desta série em:

19 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8797: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (14): Quando do PCA veio a ordem para atacar a base de Morés...