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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10497: O nosso livro de visitas (147): Ansumane Cassamá, engenheiro agrónomo, natural de Sare Bacar, a viver em Portugal desde 1997




Guiné > Zona leste > A posição relativa do destacamento de Sare Bacar , mesmo junto à fronteira com o Senegal,  parte de um triângulo que compreende Cambaju e Contuboel. Fajonquito fica na carta de Colina do Norte (1956)

Fonte: Carta da Provínica da Guiné (1961). Escala 1/500 mil  (Pormenor)

1. Mensagem do nosso leitor Ansumane Cassamá:

De: Ansumane Cassamá

Data: 6 de Outubro de 2012 20:49

Assunto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Venho por este meio informar que sou filho e natural de Sare Bacar, Contuboel, Bafatá.

Chamo-me Ansumane Cassamá, nascido a 3 de março de 1969, em Sare Bacar, Guiné-Bissau.

Sou engenheiro agrónomo.

Vivo em Portugal desde 1997, em Monte Abraão, Queluz.

Gostaria de participar nos vossos convívios.

Estive em Sare Bacar há seis meses para visita familiar.

Aguardo. As minhas [saudações], até à próxima oportunidade. Obrigado

Ansumane Cassamá

2. Comentário de L.G.:

Caro Ansumame, agradeço a sua mensagem e vou considerar o seu pedido como um honra para todos nós, amigos e camaradas da Guiné. Este blogue agrega já mais de 580 membros, a maior parte deles antigos combatentes portugueses da colonial colonial (1963/74). Mas também amigos da Guiné, portugueses, guineenses, caboverdianos e outros, que não são ou não foram militares. O Ansumane cabe nesta última categoria. E a propósito, fica deste já convidado a juntar-se a esta comunidade virtual, constituída justamente para "partilhar memórias e afetos".

Muito provavelmente o Ansumane não tem grandes memórias da guerra colonial. Tinha cinco anos e meio quando os últimos "tugas" saíram de Bissau. Mas passou a outra parte da sua infância, bem como a adolescência (e possivelmente a juventude), no novo país lusófono, a Guiné.-Bissau. Talvez nos possa (e queira) contar um pouco da sua vida nesse tempo, até vir para Portugal, em 1997,

Leia as nossas 10 regras editoriais (disponíveis na coluna do lado esquerdo do blogue). Se estiver de acordo com elas, pode mandar-nos uma fotografia atual e um foto (ou mais) da sua região...Queremos apresentá-lo formalmente aos outros grã-tabanqueiros. Reunimo-nos, a Tabanca Grande, pelo menos um vez por ano (nos últimos 3 anos, em Monte Real, Leira).

Não temos muitas referências a Sare Bacar (Clique aqui). A maior parte estão relacionadas com a malta da CCAÇ 3414, que passou por Bafatá e Saré Bacar, em 1971/73, e em especial o nosso amigo e camarada Joaquim Peixoto. Pode consultar a carta (1/50 mil) de Paunca (1957), que englobaa sua terra. Também não temos muitas fotos de Sare Bacar. Eu passei menos de dois meses em Contuboel, em junho e julho de 1969, mas nunca cheguei a ir até à fronteira. Conheci Contuboel, Sonaco e tabancas em redor...  Nesse tempo, era uma região pacífica, podia andar-se em Contuboel num raio de 15 quilómetros, desarmado... Tenho boas recordações dessa região.

Em resumo, Ansumane, obrigado pela sua visita, gostava que nos mandasse uma foto sua, atual, podendo vir acompanhada de mais algumas da sua terra, recentes ou mais antigas. Felicidades pessoais e profissionais. Que Deus, Alá e os bons irãs protejam a  nossa Guiné. Mantenhas. Luís Graça.
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Nota do editor:


Último poste da série > 27 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10302: O Nosso Livro de Visitas (146) ): Jaime Segura, ex-alf mil cav, CCAV 488 / BCAV 490 (Mansaba Bissorã, Ilha do Como, Jumbembem, Bissau, 1963/65)

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8740: Convívios (372): Tabanca de Guilamilo, 21 de Agosto de 2011: A arte de bem receber da Margarida e do Joaquim Peixoto (ex-Fur Mil, CCAÇ 3414, Saré Bacar e Bafatá, 1971/73)


Tabanca de Guilamilo, freguesia de Polvoreira, concelho de Guimarães > 21 de Agosto de 2011 > Não é fácil de lá chegar... O dono da casa foi-nos esperar à saída da autoestrada...

Tabanca de Guilamilo, freguesia de Polvoreira, concelho de Guimarães > 21 de Agosto de 2011 >  Os sete magníficos; a contar da direita, António Carvalho (ou simplesmente Carvalho de Mampatá), Zé Rodrigues, Zé Manel Lopes, Zé Cancela, Joaquim Peixoto - régulo da tabanca -, Manuel Carmelita, Brito da Silva;  mais um, Luís Graça, na ponta esquerda...  

Aqui reunem-se, de vez em quando, os amigos da Guiné, diz o letreiro, bem humorado, afixado no alpendre da casa, centenária, cheia de mistério e de história, ensombrada por um irã, que repousa sobre um diospireiro (Diospyros kaki, originário da China) , e que dizem ser a alma (penada) de um frade que terá sido morto durante a guerra civil de 1828-1832...  Em suma, dizem os pergaminhos da casa (que em tempos até serviam para os caseiros fazer os porta-enxertos das vides...) que o casarão já foi convento, extinto provavelmente em 1834, como todos os outros em Portugal...
 


Tabanca de Guilamilo, freguesia de Polvoreira, concelho de Guimarães >  21 de Agosto de 2011 >  Algumas das iguarias com que nos brindaram os donos da casa, a Margarida e o Joaquim Peixoto, professores do ensino básico, reformados, a viver habitualmente em Penafiel... O cabritinho (não confundir, com o anho ou o cordeiro a que tinham direito os senhores professores quando no activo...) e o respectivo arroz de forno (com açafrão) eram dignos de uma página de finmo recorte literário do grande gourmet que também era o Eça de Queiroz... Ou melhor, e passe a publicidade: A Margarida teve a nota máxima... Um dia ainda haveremos de editar o livro de receitas de todas as nossas tabancas... E o cabrito de Guilamilo, à moda da professora Margarida Peixoto, deverá lá figurar como uma das nossas maravilhas gastronómicas...
 

Tabanca de Guilamilo, freguesia de Polvoreira, concelho de Guimarães >  21 de Agosto de 2011 >  Os aperitivos, cá fora, na antiga eira da quinta... Do lado esquerdo, O Zé Cancela (Penafiel) e  o Zé Manel Lopes (Régua); do lado direito, duas das esposas, a do Zé Cancela e a do António Carvalho (Gondomar)...  (As duas são Luísas, se não me engano... Não fixei todos os nomes, lapso de que peço mil perdões.)

Tabanca de Guilamilo, freguesia de Polvoreira, concelho de Guimarães > 21 de Agosto de 2011 >  Em primeiro plano, a esposa do Brito da Silva (cuja entrada, na Tabanca Grande, se aguarda...) e a Alice, da Tabanca de Candoz...  O Brito da Silva, natural de Baião (e, portanto, vizinho da Tabanca de Candoz) vive, por sinal, na Madalena, Vila Nova de Gaia, onde eu (e a Alcie) costumo ir com frequência...
 

Tabanca de Guilamilo, freguesia de Polvoreira, concelho de Guimarães > 21 de Agosto de 2011 >  O Joaquim Peixoto - régulo da tabanca - exibindo uma surpreendente oferta do Manuel Carmelita à Tabanca Grande, representada por mim, um relógio de parede com o logótipo da solidária e alegre Tabanca de Matosinhos... 

O Manuel Carmelita, que é um verdadeiro artista, casado com a Joaquina Carmelita, vive em Vila do Conde, ofereceu igual prenda ao Pepito, director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, a passar férias em Portugal (e réguo da Tabanca de São Martinho do Porto),  aquando da sua  visita (muito comentada) à Tabanca Pequena, no passado dia 17 de Agosto...

O Joaquim estava superfeliz, por  uma série de razões: (i) acabava de se reformar; (ii) tinha conseguido, em finais de Julho, realizar o 1º encontro da sua companhia, a CCAÇ 3414 (Sare Bacar, 1971/73), "graças ao teu/nosso blogue"; (iii) trazia a Guilamilo alguns dos seus amigos e camaradas da Tabanca de Matosinhos, mais chegados, incluindo o Brito da Silva (ex-Fur Mil Mec da sua companhia); (iv) tivera a agradável surpresa da vinda dos já velhos amigos Luís Graça e Alice Carneiro, da Tabanca de Candoz; (v) juntava também os seus filhos e genro... E, last but not the least, (vi) através do nosso blogue, um ilustre parente desconhecido contactou-o, por mail e depois por telefone, dando-lhe conhecimento dos desenvolvimentos da árvore genealógica dos Peixoto e da história de Guilamilo...


Tabanca de Guilamilo, freguesia de Polvoreira, concelho de Guimarães > 21 de Agosto de 2011 > Os anfitriões, Margarida e Joaquim, na hora dos discursos... Antes do Old Parr ("from Scotland for The Portuguese Armed Forces with love"...) e da aguardente, amarelinha,  do frade, feita outrora na quinta... (O Joaquim fez questão de presentear cada um dos seus convidados com uma garrafa desse precioso líquido, em cuja feitura estava presente o alquimista do frade; a Margarida, por sua vez, e mais uma vez, surpreendeu-nos com os seus delicados mimos, para as senhoras, que também eram oito... No seu brilhante e bem disposto improviso, a Margarida fez questão de sublinhar o quão bem tinha feito ao seu marido o reencontr com os camaradas da Guiné.)
 


Tabanca de Guilamilo, freguesia de Polvoreira, concelho de Guimarães > 21 de Agosto de 2011 >  À hora refeição, em que participou também a família Peixoto (Margarida e Joaquim, mais os seus dois filhos e o genro, marido da Joana).

 A Tabanca de Guilamilo (que já foi falsamente baptizada, por mim, como Guilhomil) dá assim mais um magnífico exemplo de camarigagem e de gosto pela convivialidade, sã e fraterna,  dos camaradas da Guiné que, de norte a sul, se reúnem sob o poilão da nossa magnifica Tabanca Grande... Neste caso, os convivas (incluindo eu) têm uma dupla pertença, são também "tabanqueiros" da Tabanca de Matosinhos, e fazem jus ao slogan, "Uma, duas, três, muitas tabancas"...

O Joaquim Peixoto (bem com os seus convidados nortenhos, acima identificados) reúne-se regulamente, às 4ªas feiras, para o já sacramental e célebre almoço no restaurante  Milho Rei  (A chamada Tabanca Pequena, que tem também uma página no Facebook, é descrita como um "espaço feito para e por ex-combatentes da Guerra do Ultramar na Guiné e que se juntam semanalmente em Matosinhos para perpetuarem uma amizade iniciada na sua juventude em África em tempos de Guerra").


Fotos (e legendas): © Luis Graça (2011). Todos os direitos reservados 

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terça-feira, 5 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7081: O Mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (27): Manuel Lopes, há 34 anos nos EUA, procura camaradas da CCAÇ 3414, mas já encontrou o Joaquim Peixoto



1. Mensagem do camarada Manuel Lopes, que está nos EUA, com data de 28 de Setembro

Assunto - Guiné

Luís, sou um antigo combatente da companhia CCAÇ 3414, 1971/73, estou fora de Portugal há 34 anos mas não me esqueço de onde vim estou a escrever para lhe pedir uma informação à cerca de onde é que poderia arranjar uma lista com todos os nomes dos meus antigos camaradas...

Já encomtrei o Joaquim Peixoto, natural de Penafiel [, aqui na foto, à esquerda, ao lado do malogrado Fernando Ribeiro, de pé] e vejo muito o seu blog e sempre estou procurando grato pela sua atenção

M.L. [ Manuel Lopes]
1º cabo 10364270
CCAÇ 3414, 1971/73

2. Comentário de Joaquim Peixoto  [ ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 3414, Bafatá e Sare Bacar, 1971/73]:
, no mesmo dia, depois de ter conhecimento da mensagem do Manuel Lopes:

Amigo Luís: Agradeço-te imenso teres reencaminhado esta mensagem.


Este princípio de ano lectivo tem sido muito trabalhoso e ainda não tive disponibilidade e "tempo" para te agradecer as elogiosas palavras que me dirigiste aquando da ida à Tabanca de Guilhomil.

Relativamente ao camarada Manuel Lopes, foi com grande espanto e alegria que recebi, há dias, um telefonema dos Estados Unidos e, ao fim de algum tempo, verifiquei que estava a falar com um enfermeiro da minha companhia que não encontrava há 37 anos.

Cheguei à conclusão que soube do meu contacto através do "nosso Blogue", ao ler o artigo que escrevi sobre o meu amigo Fernando Ribeiro.

É caso para dizer "O mundo é pequeno e o nosso blogue é grande".

Tinha a esperança que através deste artigo conseguisse encontrar camaradas da 3414. Tenho-me correspondido com ele através de mails, e soube que um sobrinho do Fernando Ribeiro é Sargento do Exército em Coimbra e também quer saber pormenores da morte do tio.

São estas coisas que nos dão força para recordarmos os tempos passados e fazermos parte activa do nosso blogue.

E é com este espírito de camaradagem que irei satisfazer o pedido do Manuel Lopes.

Aproveito a ocasião para perguntar como têm passado e enviar um alfa bravo para ti e Alice.

Os amigos da Tabanca de Guilhomil

Joaquim Carlos e Margarida

3. Comentário de L.G.:

Obrigado, Manuel Lopes, obrigado, Joaquim e Margarida. Um abraço, aqui do Porto, para vocês. Os Estados Unidos da América é o 3º país onde o nosso blogue é mais visto ou lido. A entrada do Manuel Lopes na nossa Tabanca Grande será bem vinda. E de certo na novel Tabanca de Guilhomil... E a propósito, senhor professor Joaquin Carlos Peixoto, a grafia correcta é Guilhomil ou Guilhumil ? O nome de baptismo é de V. Excia, Visconde de Guilho(u)mil... Um abraço aos camaradas. Um bj para a nossa amiga Margarida.

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domingo, 18 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5126: Um Casal Garcia, para desinfectar o dente... (Joaquim Peixoto, ex-Fur Mil, CCAÇ 3414, Bafatá e Sare Bacar, 1971/73)

O Joauqim Peixoto, natural de Penafiel, a bordo do T/T Niassa

"Ilha de Bolama. Primeira fotografia tirada na Guiné" (JP).

Fotos: Joaquim Peixoto (2009). Direitos reservados




Marco de Canaveses > Paços de Gaiolo > Ambrões > 4 de Setembro de 2009 > Foi aqui que a jovem professora Margarida Peixoto (hoje já reformada do ensino básico) viveu um ano, enquanto deu aulas na Escola de Passinhos / Foz... Na foto, tem à esquerda o marido, o Prof Joaquim Peixoto (ainda no activo) e a Maria Alice, à sua esquerda.

Fonte: A Nossa Quinta de Candoz > 10 de Setembro de 2009 > A Homenagem da Professora Aos Seus Primeiros Alunos (Escola de Passinhos, 1972) (*)

1. Texto do Joaquim Peixoto, professor do 1º ciclo ensino básico, residente em Penafiel, membro da nossa Tabanca Branca, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 3414, Bafatá e Sare Bacar, 1971/73:

É com grande expectativa e curiosidade que diariamente ao ligar a “caixinha das surpresas” qual cartola de mágico fazendo sair um coelho da cartola, ou lenços coloridos fazendo lembrar um arco-íris em movimento, o meu computador me leva ao blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

De olhos bem abertos e com toda a atenção leio e releio todos os artigos, deliciando-me com todos os casos narrados e parecendo viver ou mesmo reviver alguns deles.
Logo penso cá comigo:
- Também vou escrever.

Sem mais demandas pego numa folha de papel em branco para o colorir com factos vividos na Guiné. As ideias surgem-me em catadupa, mas a força, a dinâmica para arrancar afrouxa, porque surge o pensamento:
- O que vou escrever?

Os textos que li são tão elucidativos, estão tão bem escritos que … vou repetir por outras palavras o que outros já disseram ?...

E assim, de dia para dia, de pensamento em pensamento eis que surge luz na caverna dos meus pensamentos … Dessa luz nasceu algo que passo a narrar.

Fins de Junho de 1971. Embarquei no Niassa, viajando num meio de transporte diferente do que habitualmente utilizava, tendo como estrada o rasgar das águas do Atlântico e como paisagem um céu azul reflectindo a sua cor nas águas turbulentas e agitadas onde aquele barco se agitava com um sem número de gaiatos, jovens, julgando que já eram homens, partindo não sei bem para onde, nem sabendo muito bem o que os esperava, rumava eu com os outros camaradas com destino à Guiné.

E eis que já farto de água e céu, chegamos à terra prometida Bissau.

Que admiração!
Que espanto!
Que curiosidade!
Tudo era diferente…

Já tínhamos visto negros, mas assim. Tão diferentes na maneira de ser, nas roupagens, nos olhares!... E no entanto tão iguais a nós. Seres humanos, seres com sentimentos sonhos e necessidades como as nossas.

A paisagem deslumbrante, de uma vegetação diferente e uma terra barrenta com um cheiro tão característico, que passados tantos anos ainda o reconheceríamos. O clima dum calor húmido, que nos humedece o corpo mas não o arrefece. Tudo era diferente! Transportava-nos, com os nossos tenros vinte e poucos anos, a um mundo quase irreal. Naquele momento não podíamos nem queríamos fazer juízos de valor nem aprofundar onde estávamos.

Assaltou-me um pensamento:
- Como seria a guerra?

Não tive tempo de imaginar. Uma voz que me pareceu surgir do nada informa:
- Agora vão para a ilha de Bolama. Lá é tudo muito calmo. Não há guerra. Vão tirar a IAO. Só podem usar balas de salva.

E sem mais explicações, nem tempo para pensar, fomos metidos num barco (penso que seria uma LDM ).

Numa calmaria, baloiçando nas águas tranquilas, ladeados por uma vegetação inigualável, surgiu o primeiro contratempo. Um soldado deixando-se embalar por aquele calor tórrido, deixou-se adormecer, sonhando talvez com umas férias paradisíacas. No final da viagem no lugar do sonho que o embalava, tinha um grande escaldão que precisou tratamento médico durante muito tempo.

À chegada a Bolama o espanto foi total. Então não íamos para a guerra? É que no local onde iríamos viver durante um mês, tinha escrito em letras garrafais, embora já comidas pelo tempo:
HOTEL DE BOLAMA

Então isto é a guerra? Como diria o nosso saudoso Raul Solnado : “Cheguei à guerra … mas a guerra já tinha acabado. “

Estava na Guiné, estava num hotel. Não havia guerra. O que havia de pensar?

O tempo ia decorrendo e os corações agitados com a perspectiva duma guerra que não conhecíamos, ia acalmando.

Mas … como não há bela sem senão… Eis que ao segundo dia sou abanado pelo primeiro ataque. Não, não pensem já em vítimas … Foi um ataque de uma enorme dor de dentes. Daquelas que uma pessoa não sabe se grita, se chora, se toma uma piela … ou se simplesmente vai ao dentista.

Era de noite, as estrelas bailavam no firmamento e este silêncio contrastava com o ressonar de alguns camaradas que no meu quarto de hotel (que compartilhava com mais dezassete) dormiam a sono solto, sem se aperceberem que eu estava a ser atacado.
Mas, eis que, no meio da minha dor, do ressonar composto por diversos sons, um barulho muito esquisito feriu os meus ouvidos e contendo a respiração por alguns segundos ouvi um grande rebentamento. De um só salto, todos abandonamos as nossas camas e saímos do quarto.

Era mesmo um ataque a sério. Estávamos a ser atacados por mísseis. (Julho de 1971). Era o nosso baptismo de fogo. E nós, pobres indefesos e inocentes a este tipo de despertar, o que podíamos fazer? Como nos defender? Atirar as balas de salva?

Alheios ao perigo que corríamos ficámos minutos e minutos a falar como se de um fogo de artifício de alguma romaria se tratasse.

E assim, sem reagirmos ao inimigo recolhemos à caverna. Perdão, hotel. Para meu espanto verifiquei que a dor de dentes me tinha passado. Remédio milagroso!!!

Aliviado pela anestesia que tinha apanhado preparava-me para dormir o sono dos justos, quando por artes mágicas o maldito ataque do dente deu a sua réplica e enquanto a dor me martirizava ia recordando com uma certa perplexidade se tinha assistido a um ataque a sério ou se tinha havido uma romaria próximo do nosso local e nós nem a música ouvimos.

Ao romper o dia fui direitinho meter uma cunha ao enfermeiro Furriel Silva para ser o primeiro a ser atendido quando viesse o médico. Amparando a dor com analgésicos fui aguentando a dor até à chegada do médico.

Qual o meu espanto, ao fim do dia, o médico tinha ido embora e eu não tinha sido chamado. O enfermeiro tinha-se esquecido de pôr o meu nome na lista.

Não será difícil de pensar qual foi a minha reacção a tão cruel esquecimento. Procurando no mais profundo do meu ser encontrei as palavras mais cultas e eruditas que se possa dizer a quem nos faz um favor. Assim desde “filhinho da mamã”… até à árvore mais frondosa que nos protege do sol quando o calor nos sufoca, o “carvalho”, surgiram em catadupa uma série de vocábulos que jamais imaginaria um dia transmitir a quem quer que fosse.

No meio do meu desespero, alguém me contou que o médico havido tirado dois dentes a um paciente, quando este se queixou só de um dente. Enganos!!! Ouvido isto, agradeci sinceramente ao enfermeiro Silva o ter-se esquecido do meu pedido e retirei-lhe toda a sabedoria com que o tinha brindado.

Algum tempo depois deste incidente chegou finalmente a minha vez de ir ao dentista. Desta vez já estava em Sare Bacar e desloquei-me a Bafatá numa coluna de reabastecimento. O consultório era no rés-do-chão, com uma cadeira de barbeiro e na parede alguns posters alusivos à nossa mente jovem, com o intuito de nos ir distraindo. Uma janela, aberta de par em par, dava para o exterior e como se de um circo se tratasse o tratamento aos dentes, tinha assistência garantida. Duas negras lindas olhavam boquiabertas (com os dentes duma alvura invejável) para a boca aberta de quem se sentava numa cadeira de barbeiro, não para fazer a barba ou cortar o cabelo, mas para extrair um dente.

E, um gajo já com a cabeça à roda, olhando para o colo desunado daquelas musas encantadas, apontava ao dentista, já meio anestesiado, qual o dente que me doía.
E assim, o competente dentista, apertando o alicate e puxando, como se de um prego se tratasse, arrancou-me o dente mau, sem que eu tivesse qualquer dor e mandou-me sair. Não houve direito a palmas, a assistência limitou-se a observar.

Saí e fui directo a um café comprar uma garrafa de água para limpar a boca.
Hoje, passados quase quarenta anos, posso afirmar que foi o dente que me custou menos a extrair.

Eram dez horas da manhã. Aproximava-se a hora do almoço. Ao meio dia juntei-me com os outros camaradas da companhia para irmos almoçar ao Restaurante Transmontano, o célebre bife com batatas fritas. O proprietário do restaurante, o Sr. Anis, ao ver-me fez a perguntar habitual da qual já sabia a resposta:
- Uma garrafinha de vinho da sua terra, “Casal Garcia”, de Penafiel?
Respondi:
- Certamente, para desinfectar a ferida.

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Nota de L.G.

(*) Margarida Peixoto, natural de Penafiel (com 6 anos de Angola, dos 10 aos 16, em plena guerra colonial), volta a Paredes de Viadores para reencontrar e homenagear os seus "meninos e meninas" da Escolinha de Passinhos / Foz, no já longínquo ano de 1972... Tinha acabado de sair do Magistério. Foi o seu primeiro ano de trabalho. Tinha cerca de três dezenas de alunos, de ambos os sexos, da 1ª à 4ª classe... Nunca mais se esqueceu deles...

Conheceu a Alice por ocasião do IV Encontro Nacional do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, em 20 de Junho de 2009, na Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria. O seu marido, também professor, Joaquim Carlos Peixoto, fez a guerra colonial na Guiné e é amigo do Luís..

A Alice proporcionou agora este reencontro com alguns dos seus antigos alunos: a Laurinda, a Leonor, o Fernando... No dia 4 de Setembro de 2009, um dia de semana... Alguns, contactados, não puderam comparecer, por trabalharem no Porto e no estrangeiro... Fica em preparação um encontro alargado para o verão do próximo ano (...).

sábado, 11 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4667: Tabanca Grande (160): Joaquim Peixoto, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 3414 (Bafatá e Sare Bacar, 1971/73)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Peixoto (*), ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 3414, Bafatá e Sare Bacar, 1971/73, com data de 10 de Julho de 2009:

Caro amigo e Camarada Carlos Vinhal:
Em primeiro lugar quero pedir mil desculpas por estar a ser um clantestino.
Tenho imenso gosto e prazer em ser membro da Tertúlia.
Embora não queira fugir à responsabilidade de não ter enviado tudo o que me era pedido, passo a explicar:

Em 1 de Abril recebi email para enviar dados pessoais, fotos e outras coisas que tais.
No dia seguinte enviei tudo, mas só agora me apercebi que o email não foi recebido por erro no endereço.
Peço desulpa.

Agora faço seguir o meu "curriculum", mas como sou periquito em informática, não sei se vai nos moldes que pediste.

Despeço-me, esperando, a partir de agora, ser membro do maior clube do Mundo.

Um abraço do camarada
Peixoto

OBS:-Em breve, enviarei um artigo para ser publicado

Dados pessoais:

Nome - Joaquim Carlos Rocha Peixoto
Posto militar - Furriel Miliciano
Especialidade - Atirador de Infantaria com o curso de Minas e Armadilhas
Unidade - CCAÇ 3414

As principais localidades onde estive: Bafatá e Sare Bacar

Morada:
PENAFIEL

Ainda a estou a exercer como Professor do 1.º Ciclo


O nosso camarada Joaquim Peixoto deu-nos o prazer da sua presença, acompanhado de sua esposa Margarida, no nosso IV Encontro em Ortigosa, como documenta a foto.


2. Comentário de CV:

Caro Joaquim Peixoto.
Obrigado por teres respondido tão prontamente.
As tuas amáveis palavras enviadas em sucessivas mensagens, em curto espaço de tempo, são para nós um incentivo, e bem estamos a precisar de algum neste momento, para continuarmos nesta espinhosa missão de mantermos o Blogue da Tabanca Grande, vivo e actuante, onde se discutam os assuntos relacionados com a guerra da Guiné de forma correcta, educada e sem violência verbal. O respeito pela diversidade de opinião, cor, opção política, religiosa e outras, é indispensável para uma convivência sã, e própria de verdadeiros camaradas e amigos que queremos ser.

Dizes que queres pertencer ao maior clube do mundo. Não pertencerás, mas uma coisa é certa, somos o maior blogue dedicado à guerra da Guiné. Pelo número de visitas registado na nossa página, tendo nós um registo de cerca de 350 tertulianos, vê-se a quantidade enorme de pessoas nos consultam para os mais diversos fins, entre os quais os didáticos.

Tu poderás ser mais um a narrar factos e a mostrar fotos que ajudem a reconstituir a parte da história em que nós, os ex-combatentes, fomos protagonistas.

Recebe então 352 abraços de boas-vindas.
Um especial deste teu camarada
Carlos Vinhal
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

22 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1774: A morte do Fernando Ribeiro: eu ia nessa fatídica coluna e era seu amigo (Joaquim Peixoto, CCAÇ 3414)

16 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4039: O Prémio: Sirvam , em nome da Pátria, uma bica quente a estes rapazes!, dizia o Gen Spínola... (Joaquim Peixoto)

21 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4557: IV Encontro Nacional do Nosso Blogue (3): Um dia caloroso, em que fizemos novos amigos (Joaquim e Margarida Peixoto)

9 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4659: Parabéns a você (12): Dia 9 de Julho de 2009 - Joaquim Peixoto, ex-Fur Mil da CCAÇ 3414 (Sare Bacar, Cumeré, Brá, 1971/73)

Vd. último poste da série de 9 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4662: Tabanca Grande (159): António João Sampaio, ex-Alf Mil da CCAÇ 15 e Cap Mil da CCAÇ 4942/72 (Guiné, 1973/74)

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4659: Parabéns a você (12): Dia 9 de Julho de 2009 - Joaquim Peixoto, ex-Fur Mil da CCAÇ 3414 (Sare Bacar, Cumeré, Brá, 1971/73)

Guiné > Zona Leste > Contuboel > Tabanca dos arredores > CCAÇ 2479 (1968/69) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece... A placa rodoviária assinala alguns das povoações, mais importantes, mais próximas, incluindo Sare Bacar (39 km), mesmo na fronteira com o Senegal (vd. carta de Paunca), onde esteve o nosso aniversariante de hoje, o Joaquim Peixoto, professor do 1º ciclo do ensino básico... É uma pequena lembrança dos nossos editores que aproveitam, para lembrar ao Peixoto, a necessidade de ele mandar "notícias e fotos" lá da terra (Sare Bacar)... Parabéns ao Peixoto que entra para o Clube dos SEXA, Suas Excelências.

Foto: © Renato Monteiro (2007). Direitos reservados


1. Hoje dia 9 de Julho de 2009, entra no clube dos sex... agenários o nosso camarada Joaquim Peixoto (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 3414, Sare Bacar, Cumeré, Brá, 1971/73.

O nosso camarada Joaquim Peixoto não foi apresentado formalmente à Tertúlia, já lhe fiz ver que é considerado clandestino, mas foi um dos presentes no nosso Encontro deste ano em Ortigosa.

A propósito da sua presença no nosso Encontro, fez estas declarações:

20 DE JUNHO DE 2009, Quinta de Paúl, Monte Real, Leiria

Dia inesquecível para mim!

Foi a primeira vez que partilhei um convívio com antigos camaradas da Guiné. Tive imensa pena de não encontrar camaradas da minha CCAÇ 3414.

As lembranças, boas e más, de uma guerra já passada vieram ao de cima e acordaram um turbilhar de ideias que pairavam na minha cabeça.

O mau, vivido num clima de medo a uma temperatura quase em ebulição, onde um rebelde e intruso mosquito teimava em picar as nossa peles ainda tão tenras, quase de meninos... Um barulho estranho, no sussuro da noite, despertava-nos dos nossos sonhos quase infantis. Um numero infinito de vivências e emoções estão guardadas na caixa negra do nosso ego.

Esse mau deu lugar a uma alegria imensa, onde pude recordar os bons momentos (que também os houve) e partilhar com os camaradas as experiências vividas há mais de 30 anos.

Foi um emaranhado de emoções, foi um recordar de situações, foi um convívio magnífico cheio de calor humano.

As conversas convergiam no mesmo sentido: A GUINÉ. Outros assuntos não tinham aqui lugar.

De longe a longe, parecia que o cheiro a terra barrenta nos entrava pelas narinas e recordava o cheiro inegualável de Bissau, Bafatá, Sare Bacar e tantas outras...

Cerrando os olhos, por breves momentos, as formas perfeitas das bajudas apareciam como num ecrã virtual.

Foi bom. Foi perfeito. Espero voltar.

Obrigado a ti, Luis Graça. Obrigado ao Carlos Vinhal, ao Virgínio Briote, ao Magalhães Ribeiro e ao Mexia Alves.

Obrigado a todos que trabalharam e organizaram este convívio.

Obrigado a todos os camaradas presentes. Obrigado a todos quantos ainda hoje recordam os momentos passados em agonia.

Joaquim Peixoto



Depois destas palavras bonitas, Joaquim, considera-te membro de pleno direito da nossa Tabanca.
Agora, mais a sério, tens de participar mais activamente no Blogue. A tua primeira intervenção, há dois anos, foi para falares do teu malogrado camarada Fernando Ribeiro e, daí para cá pouco ou nada escreveste. Lembro-te que é da responsabilidade de todos deixar um testemunho para memória futura. Contamos contigo.

A Tertúlia deseja-te uma longa vida junto da tua bajuda Margarida e restante família, sempre plena de alegria e saúde.




Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > O Joaquim Peixoto, assinalado com um círculo a vermelho, na segunda fila, entre o Manuel Amaro, à esquerda, e o Manuel Traquina à direita... O Joaquim Peixoto (que esteve em Sare Bacar, na zona leste, junto à fronteira com o Senegal (carta de Paunca), vive em Penafiel, é casado com a Margarida, que também veio ao nosso encontro... Ambos são professores do 1º ciclo do ensino básico...

Guiné > Zona Leste > Sare Bacar > CCAÇ 3414 (1971/73) > O Fernando Ribeiro, de pé, ao lado do seu amigo Joaquim Peixoto (hoje professor do ensino básico, em Penafiel). Morreu em Julho de 1973, na estrad de Binta-Faria, já no final da sua comissão.
"Algum tempo depois de regressarmos da Guiné, fizemos um almoço em Coimbra e fomos depositar um ramo de flores no cemitério em Condeixa. Haveria muito a dizer deste amigo que nos deixou tão cedo. Envio também uma fotografia em que estou com ele. (O Fernando está de pé.) Chamo-me Joaquim Carlos Peixoto, vivo em Penafiel, sou Professor do 1º Ciclo do ensino básico" (JP).

__________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

22 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1774: A morte do Fernando Ribeiro: eu ia nessa fatídica coluna e era seu amigo (Joaquim Peixoto, CCAÇ 3414)

16 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4039: O Prémio: Sirvam , em nome da Pátria, uma bica quente a estes rapazes!, dizia o Gen Spínola... (Joaquim Peixoto)

21 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4557: IV Encontro Nacional do Nosso Blogue (3): Um dia caloroso, em que fizemos novos amigos (Joaquim e Margarida Peixoto)

Vd. último poste da série de 30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4607: Parabéns a você (11): Dia 30 de Junho de 2009 - Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio




1. O Cherno Baldé nasceu na antiga província portuguesa da Guiné, em Fajonquito, na zona leste, junto à fronteira com o Senegal, há cerca de 50 anos, numa sociedade sem escrita, sendo educado na cultura do seu povo, um povo de pastores, fulas, islamizados, tendo como vizinhos, pouco amistosos, os mandingas...

Aos cinco/seis anos, em 1965, viu pela primeira vez homens brancos, armados e equipados para a guerra, que se instalaram em Cambajú onde o pai era empregado de uma casa comercial... A primeira visão foi de terror... Mas a irrestível curiosidade infantil veio ao de cima: a descobertas das diferenças, dos cheiros dos corpos, dos comportamentos sociais...

Hoje ele pertence ao mesmo mundo desses homens brancos, aprendeu a sua língua, o português, formou-se na antiga União Soviética como engenheiro, faz uma pós-graduação em Lisboa na área da gestão. No seu gabinete de trabalho, no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, em Bissau onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento, há dossiês com palavrões como Segurança, Ambiente, Gestão de Estaleiros, Auditoria, Análise de Projectos, Gestão de Contratos, Formação de Formadores, Fiscalização de Obras de Conservação de Estradas, etc., que eram completamente inteligíveis para ele em 1965... Com a chegada dos homens brancos, passou o ser Chico, Jubi, Chico...

O texto que a seguir se publica (o nº 3 das suas crónicas, em que ele descreve a maneira como o Chico viu e viveu a chegada dos primeiros homens brancos à sua aldeia, é absolutamete fantástica, é uma peça de antologia etnográfica, de descoberta do outro, o estrangeiro, que provoca terror e fascínio... Nunca tinha lido nada parecido, da autoria de um guineense, sobre nós, homens brancos... Deliciado, já li o texto três ou quatro vezes seguidas...

Obrigado, Chico, obrigado Cherno, obrigado meu amigo e irmãoinho... És um caso sério de talento literário. Os meus, os nossos parabéns. A nossa Tabanca Grande fica mais rica, contigo. Faz uma boa viagem de regresso a a casa. Obrigado, djarama, kanibambo... LG

PS - Não te esqueças, que combinámos tratar-nos por tu... Era assim que os romanos se tratavam entre si. É assim que se tratam os camaradas e, por tabela, os amigos da Guiné. Foi distracção tua, já corrigi. Aqui somos todos primeiros entre iguais [em latim, primi inter pares], além de pertencermos todos à única raça humana que eu conheço (e que os zoólogos conhecem), a espécie Homo Sapiens Sapiens.

2. Eis uma mensagem do nosso amigo Cherno Baldé, que está em Moçambique, em viagem de serviço (»):

Amigo Luís,

Não tenho palavras para manifestar a minha gratidão pelo trabalho voluntarioso e desinteressado que estás a desenvolver para reunir pedaços de memórias espalhados por este mundo fora. Memórias que certamente nos unem a todos, independentemente de tudo o resto.

No dia em que descobri o Blogue da Tabanca Grande fiquei tão emocionado que, quase, não consegui pregar olho, porque a máquina do tempo dentro da minha cabeça activou-se e começou a vasculhar nos escombros do passado de forma desordenada. Foi como se tivesse reencontrado todos os meus amigos.

Muito obrigado pela confiança, a fidelidade no tratamento do material e também pela sinceridade das tuas palavras cheias de sabedoria. Vou encarar a vossa reacção positiva e o comentário simpático do Manuel Maia como sinais de encorajamento para prosseguir nas crónicas, esperando e rogando a Deus e a todos que as lerem, vejam nelas uma simples tentativa de descrição de factos na justa medida em que a minha memória falível e a minha capacidade intelectual bastante limitada forem capazes de os conservar e transmitir.

As opiniões e pontos de vista nele contidos só me engajam a mim e de forma alguma devem ser conotados com o país, o grupo étnico ou a raça a que pertenço.

Neste preciso momento encontro-me em Maputo (antiga Lourenco Marques), Moçambique, em missão de serviço e estou vislumbrado com a beleza da cidade. Aqui fez-se trabalho pensando no futuro e este já está a chegar.

A ti e a todos os teus colaboradores um grande KANIMAMBO.

Um forte abraço,

Cherno AB - Chico

3. Memórias do Chico, menino e moço (3) > Os homens brancos

por Cherno Baldé (*)

No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterroriza as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área.

Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo.

Quando chegaram, estávamos a jogar no largo da zona comercial que também fazia de paragem para as carroças que traziam mercadorias. Foi o barulho dos motores que nos alertou, como habitualmente, corremos atrás dos veículos, e foi nessa altura é que reparamos no insólito. As pessoas que estavam sentadas em cima dos veículos, todos vestidos com o mesmo tipo de tecido, um chapéu que se estendia de trás para a frente da mesma cor na cabeça e uma arma entre as pernas, completamente imóveis, não eram pessoas normais, como estávamos habituados a ver. Eram brancos, meu Deus do céu, tão branquinhos que se podia ver o sangue vermelho rubro a correr nas veias.

Não foi preciso dizer a ninguém, não houve nenhuma concertação entre nós. A nossa primeira reacção foi fugir, fugir dali com todo os pés. Eu fui directamente ao quarto da minha mãe que nesse momento se encontrava na cozinha, meti-me debaixo da cama, no mesmo sítio em que costumava esconder-me sempre que quisesse estar a salvo dos perseguidores, quando fazia das minhas. Não me lembro quanto tempo estive ali escondido, o certo é que o céu não tinha desabado sobre mim, sinal claro de que afinal não era o fim do mundo. Aliás, era o prenúncio de um novo mundo para mim ao qual, mais tarde, por força da minha educação e formação, viria a pertencer para sempre.

Passado o susto, agora era a curiosidade que tinha ganhado terreno. Não se falava de outra coisa na aldeia e seus arredores, houve mesmo pessoas que regressaram dos seus lugares de trabalho para assistir à vinda das pessoas de cor branca. Em todos, a curiosidade de ver aqueles seres estranhos suplantava o questionamento sobre as razões da sua presença. Queríamos ver e entender cada gesto, cada olhar, cada palavra desses seres de olhos azuis ou mesmo verdes que, entre nós, eram conhecidos só de alguns animais dotados de poderes especiais como os gatos que tinham sete vidas ou os eternos camaleões que tinham a capacidade de adquirir as cores de sua preferência.

Não admira que as pessoas tivessem medo deles, afinal de contas, o que eram eles, diabos ou feiticeiros? De certeza que não eram pessoas normais. Isto, nós iríamos compreender mais tarde. No dia seguinte, o meu amigo e colega, Samba, veio a minha casa para as brincadeiras habituais, falámos do acontecimento de ontem e fiquei a saber que tudo não passara mesmo de um susto injustificado pois, aqueles sujeitos eram soldados portugueses vindos directamente de Portugal, o que queria dizer nossos amigos e aliados.

Segundo Samba, “Eles vinham proteger-nos dos roubos e outras maldades que os terroristas, encabeçados pelos mandingas, nossos vizinhos e preguiçosos natos que, invejando a nossa posição e riquezas, queriam tirar-nos tudo”. “Alguns dos nossos colegas já tinham feito amigos entre os brancos recém-chegados e em troca lhes tinham oferecido latas de conserva de peixe muito saborosas com o azeite a escorrer pelos dedos quando as comiam”, disse-me ele.

Decidimos fazer o mesmo e fomos, sem medo, até o sítio onde estavam alojados. Quando chegamos junto deles, notámos que o acampamento estava cercado de arame farpado por todos os lados excepto num sitio por onde todos entravam e saíam. Estas circunstâncias não agradaram a minha natureza de felino livre e mandrião, arrepiava-me só a ideia de estar fechado num sítio donde não se podia sair livremente, a maior parte deles estava de tronco nu, só tinham no corpo uns calções curtos que quase deixavam ver as nádegas.

Que falta de vergonha, pensei comigo, pessoas adultas com as nádegas de fora. Todos tinham na cabeça aqueles chapéus estranhos que traziam no primeiro dia e que tinham uma ponta redonda pela frente a cobrir o fronte e descaíam para trás em forma de dois rabos curtos. Estavam todos ocupados, isoladamente ou em pequenos grupos, alguns limpando suas armas, outros lavando roupa interior ou colocando tendas de campanha.

Houve duas coisas que saltaram logo a minha vista: Eram todos bastante jovens, fisicamente robustos e bem nutridos, todos apresentando uma pelugem de cor preta e/ou acastanhada no peito.

Era um espectáculo ainda mais incaracterístico do que a primeira vez que os vira, e de mais a mais, havia um cheiro esquisito e forte que, certamente, estaria relacionado com aquela gente estranha. Mais tarde vim a saber que se tratava do cheiro de alho que eles utilizavam abundantemente na sua alimentação. Não pude avançar mais.

Sem prevenir o meu amigo que avançava para dentro da cerca, parecendo alheio a tudo, pensando certamente, no pão e nas conservas que nos esperavam, dei meia volta e pus-me ao largo. Contudo, ninguém pode fugir do seu destino e estava destinado que a nossa geração entraria lá dentro e faria amigos entre esses brancos de origem e modos estranhos e, sobretudo, ficaria para sempre ligada a esta gente de hábitos libertinos, ao gosto inesquecível da sua sopa, da sua batata, do bacalhau e grão-de-bico e a sua civilização através da aculturação que viria a sofrer por meio da escola.

Passado o tempo da surpresa e da incompreensão, acomodámo-nos perfeitamente dentro do acampamento. Fazíamos pequenos trabalhos de limpeza e em contrapartida tínhamos direito à sobremesa do amigo. Cada um tinha o seu amigo de quem esperava que lhe trouxesse as sobras do prato igual a um cachorrinho de casa. Eu não tinha conseguido arranjar um amigo de imediato, na verdade, o medo inicial não tinha permitido muita ousadia da minha parte. Felizmente, tinha umas irmãs muito giras que não precisaram se deslocar ao acampamento. Devo dizer que esses jovens soldados portugueses eram muito atrevidos e mal-educados não se coibindo de entrar nos recintos das nossas moranças (casas) para irem atrás de uma rapariga da forma mais descarada que havia, agarrando nos seios e nos traseiros, mesmo à frente dos pais.

Os velhos da aldeia, em vez de os corrigirem daquela falta de educação, riam-se e deixavam-nos levar avante a sua insolência. “Na sua terra, certamente, não sabem o que é a vergonha”, diziam eles, senão como é que se podia entender que um adulto andasse, quase, todo nu em pleno dia, e corresse atrás de rapariguinhas que, ainda por cima, não lhes eram prometidas.

E foi assim que a coberto das minhas irmãs mais velhas que tinham amigos que vinham a nossa casa, tive acesso facilitado ao acampamento e também a possibilidade de me aproximar dos brancos e pouco a pouco habituar-me ao seu cheiro peculiar de alho moído e aceitar a sua presença no meu espírito ainda assustado.

Esse cheiro, foi para mim, o primeiro sinal da diferença entre o campo onde habitavam, em estado puro, a nossa gente, todos falando a mesma língua e os mesmos costumes com o mesmo odor de terra com mistura de calor e bosta de vaca e o ambiente urbano onde viviam pessoas vindas de outras partes e se misturavam cheiros de origens diferentes, como o do alho que veio com os soldados portugueses e o cheiro que resultava da mistura da urina e excrementos de porco que só vim a sentir quando mudamos para a localidade de Fajonquito e que estava relacionado com a presença de porcos domésticos, animal que até aquela data não conhecia.

Fotos: Arquivo

___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

segunda-feira, 16 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4039: O Prémio: Sirvam , em nome da Pátria, uma bica quente a estes rapazes!, dizia o Gen Spínola... (Joaquim Peixoto)

Guiné > Zona Leste > Sare Bacar > CCAÇ 3414 (1971/73) > O Fernando Ribeiro, de pé, ao lado do seu amigo Joaquim Peixoto (hoje professor do ensino básico, em Penafiel). Morreu em Julho de 1973, na estrad de Binta-Faria, já no final da sua comissão.

"Algum tempo depois de regressarmos da Guiné, fizemos um almoço em Coimbra e fomos depositar um ramo de flores no cemitério em Condeixa. Haveria muito a dizer deste amigo que nos deixou tão cedo. Envio também uma fotografia em que estou com ele. (O Fernando está de pé.) Chamo-me Joaquim Carlos Peixoto, vivo em Penafiel, sou Professor do 1º Ciclo do ensino básico" (JP).

Foto: © Joaquim Peixoto (2007). Direitos reservados

1.Mensagem do Joaquim Carlos Peixoto, de Penafiel:


Amigo Luis:

Se vires que há algum interesse neste artigo, gostava que o publicasses.
Já escrevi para aí, mas o endereço era outro.
Agora tenho um novo mail.
Um grande abraço para todos
Joaquim Carlos Peixoto



2. O prémio que nunca me deram...
por Joaquim Peixoto

Amigo Luís Graça:

Há [dois] anos escrevi um artigo para este blogue (*), e em boa hora o fiz, porque através dele já fui contactado por vários camaradas da Guiné, dos quais já pensava ter perdido o contacto.

Frequentemente leio os assuntos publicados e tenho uma grande vontade de também escrever.Mas, ou por falta de tempo ou por preguiça vou adiando…

Agora resolvi escrever. Se achares oportuno, publica-o.

Identifico-me:

Joaquim Carlos Peixoto (59 anos ); Professor do 1º Ciclo, a exercer funções em Penafiel.

Já deixei de utilizar o mail antigo:
joaquim.peixotomegamail.pt

[Revisão / fixação do texto: L.G.]


O PRÉMIO

1970 - De um jovem, quase adolescente, com um nome próprio...

... vivendo no seio de uma família, um ser humano, (como tinha aprendido o que era um ser humano desde os bancos da escola primária) passei de uma hora para a outra (sem que tivesse consciência de todo do que me estava a acontecer) a fazer parte de um número, um número frio e sem identidade.

Autómato... Maria vai com as outras... o caminho é este que te mandam seguir. Não perguntes, não reajas, não penses, segue em frente… o teu caminho é defender a Pátria. Mas, no escuro do subconsciente perguntava:
- Como vou defendê-la?O que me irá acontecer? Porque tenho de abandonar a minha família.. e fazê-la sofrer? O que vou fazer? Onde guardo os meus sonhos de menino?Quando voltarei ? …Ou não voltarei?

Perguntas e mais perguntas e sempre perguntas que não tinham e não havia resposta .
- Carne para canhão - ouvia-se, de longe a longe, esta frase.

O quê ? Eu ? Eu, era um ser humano que tinha ilusões, sonhos, desejos, sentimentos, gostos… Eu era aquilo ?

Não havia tempo para pensar. O tempo era de agir, obedecer e seguir o caminho indicado.

A roupa escolhida por mim ou pela minha mãe, passou a ser igual à de todos os outros, tratada e arranjada por mim.

As botas, essas - pesadas e desconfortáveis - tinham de andar sempre um brinquinho .

Fazer a recruta. Tirar a especialidade (atirador de infantaria). Tirar curso de minas e armadilhas. Ida para os Açores formar Companhia.


1971 – Chega o dia do embarque.

Para um sítio desconhecido, uma terra com usos e costumes totalmente diferentes. Uma terra que nos embriagava com tanto calor e humidade. ERA A GUINÉ. Uma terra onde havia guerra. Guerra a sério, não um simples jogo de cow boys. Era a doer,… era desesperante. Eu, como todos os outros, confrontado com um ataque, reagia, atacando.

Sofri muito... Vi morrer amigos (**). Saudades. Pergunto:
- Combatíamos por instinto? Porque nos haviam ensinado? Porque queríamos defender a Pátria? Porque nos queríamos defender a nós? Porquê ?

HOJE, passados trinta e seis anos, pergunto:
- PORQUÊ ?

Alguém lúcido e com as ideias bem ordenadas poderá responder-me?

A minha juventude, como a de tantos milhares de camaradas, foi passada entre tiros, medo, mato, vivências terríveis, desilusões, sonhos desfeitos…

Alguém, de vez em quando, dava-nos uma esperança, dizendo que ao regressarmos teríamos a recompensa, o tempo de tropa contaria a dobrar para efeitos de reforma, seríamos reconhecidos pelo contributo que estávamos a dar à Pátria, teríamos orgulho de ser portugueses, a consciência confortada com o dever cumprido.

Um General, muito conhecido, fiel aos seus compromissos, honrando a farda que usava, dizia-nos muitas vezes e passo a citar:
- Quando chegarem à metrópole e vos servirem uma bica fria, reclamem e digam: 'Quero uma bica quente, porque estive a servir a Pátria, na GUINÉ'!

Que ilusão !!! Que desespero !!!

Quem se lembra de nós ? Quem nos estende uma mão de reconhecimento? Que falta de memória !!!

Ao regressar da guerra, ao confrontar-me com a realidade, dura e crua, o que vi, o que senti? O que recebi?

Quando pedia uma bica, não a recebia, nem quente, nem fria. Simplesmente não ma serviam.

Verifiquei que ninguém me reconhecia, nem queriam saber o que tinha feito pela Pátria. Recebi incompreensão, falta de emprego (Os empregos eram para outros) no pós-25 de Abril.

Senti uma tremenda desilusão, um vazio que doía, doía e se transformava, aos poucos, numa frieza que eu não queria.

Queria constituir família. Onde estava a recompensa do dever cumprido? Que era feito das promessas?

Como a minha namorada era Professora Primária (como ainda hoje gosta de ser chamada), incentivou-me a tirar o curso de Professor. Em boa hora o fiz, porque foi sempre muito gratificante trabalhar com crianças. Profissão que abracei com gosto e profissionalismo. Ao longo destes 30 anos de trabalho, raras foram as faltas e sempre por motivos justificados.

A vida foi mudando, o regime político alterou-se, o nível de vida subiu, mas as marcas, o pesadelo, os traumas, o estigma de guerra, esse continua implacável dentro das mais profundas entranhas.

A vida foi pouco a pouco tomando o seu rumo e com este ou aquele projecto de vida, com este ou aquele sonho em melhorar cada vez mais as condições, essas marcas de guerra foram-se camuflando e cada vez mais ténuas foram quase passadas ao esquecimento.

Eis se não quando, por magia ou brincadeira do destino, tudo desaba sobre os ombros e tudo que parecia adormecido vivo e em chamas, prostrando-nos a uma apatia tal que a força para lutar escapa-se-nos pelos dedos, qual água gélida de um glacial a derreter…

Não há mais força, não há mais sonhos…

As leis mudaram, o tempo de tropa já não conta para o regime especial a que os Professores Primários tinham direito. Esse tempo conta só para o regime geral.

E então, tudo o que passei, tudo o que dei à Pátria, todo o meu contributo que prestei com o meu serviço militar só serviu para ser injustiçado ?

Mas que erro cometi em ser Professor Primário só depois de ter cumprido o serviço militar? Que culpa tenho eu em ter ido cumprir esse serviço? Onde se encontra a justiça deste país?

Porque tantos Professores, por não terem cumprido o serviço militar e não irem para o Ultramar, muito mais novos do que eu, já estão aposentados?

Eu, que defendi a Pátria na zona mais perigosa das nossas colónias- a Guiné; que não tive logo emprego quando cheguei porque eram todos ocupados pelos retornados (o que não tenho nada contra eles); que tirei um curso para poder viver e trabalhei sempre com o maior profissionalismo, não me posso aposentar se não aos 65 anos?!...

Que justiça é esta que em iguais condições de trabalho dão a aposentação aos mais novos que tiveram a possibilidade de tirarem o curso mais cedo, que não sabem o que é deixar família, que não sabem o que é uma guerra, que não defenderam a Pátria em detrimento daqueles que, pelo menos 5 anos , como eu, me desfiz de sonhos, que vivi horrores e por esses horrores tirei o curso mais tarde, tenho o PRÉMIO de trabalhar ainda mais !!!...

Vejo muitos dos meus amigos professores a aposentarem-se aos 52 ou 55 anos.Não chegou o que já fiz pelo meu país?

Senhor General Spínola, onde quer que esteja, ilumine os nossos governantes dizendo-lhes:
- Sirvam um café quente a estes ex-combatentes pois estiveram na Guiné...

Joaquim Peixoto

3. Comentário de L.G.:

Pois é, camarada Peixoto, dois anos (tu dizias 'alguns', mas são só dois, o que não deixa de ser muito tempo, era uma comissão em África, dias e dias, noites e noites, semanas e semanas, meses e meses, que nunca esqueceremos, uns pior passados do que outros, com sangue, suor e lágrimas, com muita camaradagem e amaizade, também...).
Mas a verdade é que, desde Maio de 2007, passaste a fazer parte da nossa Tabanca Grande, pudeste reencontrar velhos camaradas da tua CCAÇ 3414, tiveste oportunidade de ler os nossos escritos - já lá vão cerca de 2300 a mais, desde esse dia em que nos contaste a história do teu malogrado amigo e camarada Fernando Ribeiro...

Pois é, a tua/nossa Pátria não foi Mátria, foi Madrasta, para ti, para todos nós, para toda uam geração de portugueses quye combateu em África... Como eu percebo a tua amargura, quando te referes ironicamente ao Prémio que os valorosos e generosos combatentes de África era pressuposto virem a receber, no regresso, depois de cumprido galhardamente o seu dever... No mínimo, o reconhecimento do sacrifício da sua juventude (e em muitos casos da sua vida), por parte dos seus compatriotas, da sociedade e do Estado, do regime democrático instaurado a seguir ao 25 de Abril...
Mas, não, esqueceram-te, arquivaram-te, arrumaram-te a um canto, ao canto das velharias e dos anacronismos da História... Os ex-combatentes são sempre uma pedra no sapato para as novas elites dirigentes, as que assinam a paz antiga e preparam os cenários das novas guerras...

Como entendo a tua ironia, ao citares o General Spínola, uma das suas frases que o tornaram tão popular entre as nossas tropas da Guiné:

"Quando chegarem à metrópole e vos servirem uma bica fria, reclamem e digam: 'Quero uma bica quente, porque estive a servir a Pátria, na GUINÉ'"

Não sei se a frase é apócrifa, mas tu deves tê-la ouvido... Podia ser tão sincera como demagógica, mas a verdade é que tinha o seu efeito emocional: no mínimo, fazia bem ao ego, à auto-estima, de milhares de homens que regressavam das bolanhas, das picadas e das matas da Guiné, amargurados, uns, 'apanhados do clima', outros...

Automaticamente fez-me lembar esse grande poema do Álvaro de Campos / Fernando Pessoa, que tu, como professor, e homem nortenho, deves conhecer, e bem. Permite-me que o reproduza aqui, socorrendo-me, com a devida vénia, do Arquivo Pessoa, disponível em linha:

Álvaro de Campos
DOBRADA À MODA DO PORTO


Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.


(s.d. In: Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).- 310).

Pois é, Peixoto, serviram-nos o amor da Pátria frio, como dobrada fria, quando a dobrada é sempre quente, à moda do Porto, da Cidade Invicta... E nem direito tiveste/tivemos a um cimbalino, quente... Em Lisboa, diz-se uma bica, e eu peço-a sempre... escaldada.

Olha, o único consolo que te posso dar é que gostei do teu 'regresso' e do tom intimista da tua mensagem... Daqui para a frente não tens desculpas, sejam as da perguiça ou da timidez: o nosso blogue, em Penafiel, está à distância de um clique...Um Alfa Bravo. Luís
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 22 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1774: A morte do Fernando Ribeiro: eu ia nessa fatídica coluna e era seu amigo (Joaquim Peixoto, CCAÇ 3414)

(**) Sobre o Fernando Ribeiro, vd. postes de:

24 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1544: Quem conheceu o Furriel Mil Art Fernando J. G. Ribeiro, morto na picada de Binta-Farim em Julho de 1973 ? (Luís Graça)

25 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1547: O Furriel Mil Atirador Fernando Ribeiro pertencia à açoriana CCAÇ 3414 e morreu entre Mansabá e Mansoa (A. Marques Lopes)

28 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1554: As mulheres que ficaram na rectaguarda (Luís Graça /Paulo Raposo / Paulo Salgado / Torcato Mendonça)

terça-feira, 22 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1774: A morte do Fernando Ribeiro: eu ia nessa fatídica coluna e era seu amigo (Joaquim Peixoto, CCAÇ 3414)

Guiné > Zona Leste > Sare Bacar > CCAÇ 3414 (1971/73) > O Fernando Ribeiro, de pé, ao lado do seu amigo Joaquim Peixoto (hoje professor do ensino básico, em Penafiel). Morreu em Julho de 1973, já no final da sua comissão. A viatura blindada que aparece atrás, na fotografia, parece ser uma Chaimite... (LG)

Foto: Joaquim Peixoto (2007). Direitos reservados


1. Mensagem do Joaquim Peixoto:

Caro Luís Graça:

Muitas vezes recorro à Internet para saber notícias dos camaradas da CCAÇ 3414. Fiquei muito surpreendido ao verificar que alguém queria saber algo sobre o meu amigo Fernando Ribeiro (1)

Tal como ele, também eu fui furriel. Pertencíamos à mesma companhia, mas a pelotões diferentes. Formámos batalhão no BII 17, em Angra do Heroísmo. Partimos para a Guiné em 26 de Junho de 1971, a bordo do navio Niassa.

Durante um mês fizemos o IAO em Bolama. Depois partimos para Sare Bacar, a poucos metros do Senegal. Estivemos aqui muitos meses e, quando pensávamos regressar, (felizmente não tínhamos sofrido qualquer baixa) soubemos que ainda tínhamos de cumprir mais alguns meses. Ficámos em Bissau e então começaram os azares.

Numa coluna apanhámos uma mina anticarro que vitimou o condutor Parreira. Mais tarde, quando regressávamos de uma missão, sofremos uma emboscada, que vitimou o Furriel Fernando Ribeiro. Fiquei muito chocado com esta morte, porque poucas horas antes tinha estado a ter uma conversa com ele.

Pouco antes da emboscada tivemos que atravessar um rio.( Onde anos antes tinha havido um grande desastre). Essa travessia foi feita em jangadas. A minha vez de fazer essa travessia era anterior à do Fernando Ribeiro, mas este fez questão de me acompanhar e nessa viagem falou-me da namorada, do irmão, etc … Essa emboscada aconteceu numa estrada alcatroada. O F. Ribeiro seguia duas viaturas à frente da minha.

Foi muito sentida esta morte. Quando chegámos ao quartel houve alguns camaradas que ficaram em estado de choque e precisaram de receber assistência médica. Esta CCAÇ 3414 era formada por soldados açoreanos e nós, os graduados, éramos de cá.

Algum tempo depois de regressarmos da Guiné fizemos um almoço em Coimbra e fomos depositar um ramo de flores no cemitério em Condeixa. Haveria muito a dizer deste amigo que nos deixou tão cedo.

Envio também uma fotografia em que estou com ele. (O Fernando está de pé.) Chamo-me Joaquim Carlos Peixoto, vivo em Penafiel, sou Professor do 1º Ciclo .

Um grande abraço

2. Comentário de L.G.:

Obrigado, Joaquim, pelo teu testemunho. Tu eras camarada e amigo do Fernando. O teu depoimento é muito importante. Tu estavas lá, nessa emboscada fatídica... Foste o primeiro, da tua unidade, a CCAÇ 3414, a responder ao nosso pedido... Bem hajas. Gostaria que te juntasses a nós. Temos muito gosto em que faças parte da nossa tertúlia, tabanca grande ou caserna virtual. Como queiras. (LG)

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Nota de L.G.:

(1) Sobre o Fernado Ribeiro, vd. posts de:

24 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1544: Quem conheceu o Furriel Mil Art Fernando J. G. Ribeiro, morto na picada de Binta-Farim em Julho de 1973 ? (Luís Graça)

25 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1547: O Furriel Mil Atirador Fernando Ribeiro pertencia à açoriana CCAÇ 3414 e morreu entre Mansabá e Mansoa (A. Marques Lopes)

28 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1554: As mulheres que ficaram na rectaguarda (Luís Graça /Paulo Raposo / Paulo Salgado / Torcato Mendonça)