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quinta-feira, 3 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2715: Construtores de Gandembel / Balana (7): As minhas andanças com o Pel Caç Nat 55, no tempo da CCAÇ 2317 (Hugo Guerra)


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 2007 > Restos do antigo aquartelamento das NT, abandonado em Janeiro de 1969... De quem seria estas inscrições no cimento dos abrigos ? Seguramento dos primitivos construtores: Barreto... Globe-Trotters...

Fotos: © Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados.
1. Mensagem do Hugo Guerra, dirigida ao José Teixeira, com conhecimento aos editores do blogue, com data de 30 de Março (1):


Zé Teixeira:

Como dizíamos na tropa estava à espera "que te apresentasses" (brincadeira, claro) para encetarmos este papo entre nós que começou nos idos de 1968.

Já hoje tinha andado a bisbilhotar o blogue para ver se estavas atento e, como respondeste para o mail da minha mulher, só agora te respondo. Vamos pôr as nossas memórias em dia, se possível (2):

(i) Cheguei à Aldeia Formosa de Helicóptero e saí para Gandembel também de Heli.

(ii) Era mesmo este sub-nutrido (54 kilos) que conheceste na Aldeia e vou contar-te porque fui parar a Mampatá. Nessa altura, Gandembel embrulhava todas as noites e, embora eu estivesse em trânsito para lá, houve uma noite que na hora de jantar começou o fogachal e o Major Azeredo mandou o Alferes Artilheiro mandar umas obuzadas para lá, para aliviar a pressão.Já era hábito para vocês mas para mim foi de tal maneira horrível que era aquilo que me esperava, que tive um ataque de choro que só acalmou quando o Médico me pôs a dormir.

(iii) No dia seguinte, mais calmo, fui eu que pedi ao Major que me deixasse ir dormir a Mampatá umas noites para me ambientar (e esconder a vergonha, claro).

(iv) Aí nos devemos ter encontrado, mas as minhas recordações são muito diluidas. Recordo-me que foi a minha primeira noite debaixo do chão no abrigo do Alferes que comandava o destacamento. Gandembel tornou a ser flagelada mas lá me aguentei e tomei a decisão de ir ter com o meu Pel Caç Nat 55 o mais rápido possível.

(v) Não fui, portanto, na coluna que referes, mas sim num heli que ali parou com destino a Gandembel e, como eu pesava pouco, deram-me boleia.

(vi) Quanto à Chamarra só não nos encontramos por dias, sei lá. Eu vinha de Ponte Balana na coluna de 19 de Janeiro [E 1969] e fomos descomprimir na Aldeia Formosa durante uns dias. Fui para a Chamarra substituir o Alferes Magro, com o meu Pel Caç Nat 55. A CCAÇ 2317 seguiu para Buba na mesma altura que tu, penso eu.

(viii) Fiquei na Chamarra até vir de férias ao Continente, em Junho ou Julho desse ano e depois.... Bem, é outra estória para outro dia.

Foi bonito o teu gesto carregado de simbolismo em Gandembel (3).

Tive muita pena de não poder ir mas o meu médico quebra-ossos desaconselhou-me de todo. É o Francisco Silva que foi com vocês.....Que raiva.

Para já um grande abraço
do Hugo Guerra
___________

Notas dos editores:

(1) O Hugo Guerra, hoje Cor DFA, comandou os Pel Caç Nat 55 (que esteve adstrito à CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana, Chamarra, 1968/69) e depois o Pel Caç Nat 50 (S. Domingos, 1969/70):


(2) Vd. postes de:






sábado, 29 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2698: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (3): O Abdulai Djaló

Foto 1> Mampatá 2008> A mãe da Maimuna, a minha bebé


Foto 2> Mampatá 2008> A Djubai, sempre alegre e bem disposta


Foto 3> Mampatá 1968> A Djuvai de olho zarolho, mais bonita agora do que em jovem. Como ela se lembrava de mim!


Foto 4> Mampatá 2008> A Adama, mãe do bebé que livrei do paludismo


Foto 5> Mampatá 2008> A família Baldé


Foto 6> Mampatá 2008> Os miudos de Mampatá


Foto 7> Mampatá 2008> A Farmara (ou Fatma) minha lavandera


Foto 8> Mampatá 2008> A Fatma com as cunhadas (mulheres do filho do Aliu Baldé)

Fotos: © José Teixeira (2008). Direitos reservados.


Algumas notas soltas, mas sentidas (1)

(i) O Abdulai Djaló

Ainda não eram sete da matina quando o telefone tocou. Hora serôdia de uma segunda-feira de Páscoa para acordar, quem após muitos anos de labuta, se entregou ao descanso da merecida reforma.

Alô - sou o Abdulai da Guiné ! Quer falar cum sinhor Tissera.

Qual Abdulai seria? O que conheci em Buba? O de Chamarra ? O Abdulai Djaló qui firma na Catió e todas as semanas aparecia, em tempos idos, que muitos dos leitores recordarão, no programa de discos pedidos da emissora oficial da Guiné a pedir a canção Deixa o meu cabelo em paz, para dedicar à sua bajuda, não era com certeza.

Era o Abdulai Djaló meu amigo de Mampatá Forreá, pequena tabanca perto de Quebo, rodeada de guerra por todos os lados, que durante os seis meses que por lá passei, viveu uma paz relativa, pois que apenas sofreu seis ataques, quando Balana, Gandembel, Guileje, Gadamael, Cacine e outros, tinham festival quase diário.

O Abdulai que há dias procurei na sua morança, mas não encontrei.

O Abdulai que após a Independência se ausentou para o Senegal e por lá viveu longos anos, por amor à pele e voltou há alguns anos. Em 2005 ninguém sabia dele.

O Abdulai das longas conversas nocturnas.

Tudo começou quando já noite me recolhia ao abrigo para me entregar nos braços de Morfeu. Uma voz chamou: - Tissera, vem cá!

Era o Abdulai. Estava deitado na enxerga ao lado da esposa. Recém-casados e sem filhos, queriam kunversa cum Tissera. Queriam saber coisas da Metrópole. Difícil foi explicar-lhe que vivia num terceiro andar. Que havia casas com dez e vinte andares.

Como se seguravam? Como se subia lá para cima? Elevadores ? Eram coisas de branco maluco.
E um comboio? Muitas GMC atreladas umas às outras, mas só uma tinha motor e com rodas de ferro!

Na segunda noite estavam novamente à minha espera. Seguiram-se muitas noites di kunversa.

Um dia convidou-me a deitar na cama. Eu, a mulher e ele, ali ficávamos até vir o sono, conversando.

Há dias passei por Mampatá. Abraços, beijos e algumas lágrimas de comoção. A mulher estava lá, mas o Abdulai, esse tinha ido a Bissau. Deu para matar saudades e deixar um abraço.

Agora telefonou para pidir discurpa, dar um abraço e agradecer a minha visita.

Obrigado Abdulai. Até sempre.


(ii) - Mampatá Forreá, terra de gente querida

É a tabanca da Guiné-Bissau eleita pelo meu coração. Nos meses de convivência com as sua população aprendi muita coisa que me foi útil pela vida fora, sobretudo a forma de acolher um forasteiro, a solidariedade de quem vivia como se fossem ermons.

Os usos e costumes do povo Fula. Sentia-me útil e realizado no meio escaldante de uma guerra traiçoeira em que sobrevivia quem conseguisse atirar primeiro e acertar no inimigo, como em todas as guerras.

Voltei lá em tempos de paz. Recebi abraços e beijos, recordei vivências, momentos hilariantes, momentos tristes, momentos de angústia e sofrimento. Palmilhei os mesmos trilhos (continua a não ter ruas alcatroadas, água canalizada e saneamento). Entrei nas mesmas moranças. Encontrei a mesma simpatia nas pessoas. Brinquei com outras crianças.

Pude reencontrar amigos. A Farmara, minha lavandera, continua linda e com a alegria de sempre. O Braima, o Issa, a Answar, mãe da minha bebé, que não consegui ver, agora que já mulher, casou e foi viver para Kumbijá.

A Ádama, mãe da bebé que salvei da morte e passou a ser por opção da mãe, a minha mudjer. De manhã cedo lá vinha ela no colo da mãe trazer água fresquinha ou bananas.
- Mudjer de bó vem parte mantenhas e traz banana pra ti.

À noite lá estava ela na morança à espera que o fermero passasse para partir mantenhas antes de adormecer.

(iii) - Relendo o meu “Diário” > Novembro 1968 / Mampatá /1

... Fui procurado pela irmã mais velha da Fámara Baldé. Trazia-me a sua filha com oito meses que estava doente. Tinha paludismo e estava a entrar na fase crónica, de que quase todos os adultos de raça africana sofrem, os que conseguem escapar na sua fase mais aguda.

A criança apresentava-se muito magra, com 42 graus de temperatura, diarreia e vomitava tudo o que mamava, nem forças tinha para chorar. Acabava de chegar do Hospital de Bissau, segundo me disse a mãe a chorar, sem esperança.

Todos os dias de manhã tinha sua visita. - Fermero parti-me mézinho para minina, na tem febre e bariga ramassa

Que fazer? Eu que apenas tinha aprendido a tratar feridos da guerra!

Estes poucos meses de Guiné ensinaram-me a lutar contra o paludismo nos meus colegas e nos adultos africanos com bons resultados, mas nunca tinha deparado com uma situação tão delicada.

Pedi-lhe para voltar mais tarde que ia pensar o que fazer para salvar a bébé.

Para combater o paludismo nos adultos servia-me de um anti-palúdico injectável misturado com outro injectável para prever a reação negativa do coração. Então pensei que injectando na bébé umas milésimas destes dois produtos talvez salvasse a criança.

Ontem assim fiz, com todo o cuidado, no posto de socorros ao ar livre, no coberto da casa da Answar.
A reacção só se fez sentir cerca de um quarto de hora depois com um pulsar acelarado do coração e um avermelhamento da face.
Depois a acelaração aumentou, os olhos dilataram-se e a menina ficou estática por duas ou três horas.
Que momentos de ansiedade para mim e para aquela mãe que me confiou a sua filha. Esta chorava e dizia: - Tu mataste minina.
Eu pedia-lhe para ter calma e apelava para todos os Santos. Por fim a acelaração do coração começou a baixar e temperatura registou 39 graus. Estava ganha a vida da criança. Abraçamo-nos a chorar um ao outro e a mãe ofereceu-me a menina para minha mulher quando fosse grande.

Ao fim do dia deixei-a levar a menina para a tabanca e chorei sozinho de alegria.

Hoje voltou para me dizer que a minina ká na tem xoro já não vomitou a mamada.
A recuperação foi de cerca de oito dias.

Daí em diante, todos os dias a mãe trazia-me a menina. - Tua mudjer vem parte mantanhas (cumprimentar).

Trazia-me água fresca, numa cabaça, que ia buscar à bolanha a uma nascente de que se servia também o IN. (Que riscos por minha causa).

Trazia-me cachos de bananas e eu tinha de todas as noites ao passar para o meu abrigo ir parte mantanhas à minha mulher. Se não o fizesse, a mãe chamava: - Fermero tu não vens ver tua mudjer e parte mantanhas a ela !"

Dizia-me muitas vezes que quando eu viesse para a Metrópole tinha de trazer a minha mudjer.

Assim foi até sair de Mampatá. Tornei-me um visitante da família Baldé: Fámara, Binta, Auá, e Ádama e, da Answar a mãe da Maimuna...

A Djubai de olho zarolho, mais bonita agora do que em jovem: - Tissera! Mama garandi. Mama piquena, - dizia ela a rir-se enquanto apalpava com a sua mão os seios, hoje escondidos e talvez mais disformes do que eram na altura, recordando o que eu, atrevido, por brincadeira lhe fazia. Se o leitor apreciar as fotografias anexas entenderá melhor esta linguagem, que ela recordou com inaudito prazer e me fez reviver tempos tão belos, quanto perigosos da minha juventude.

A mudjer, ainda viva, do falecido régulo Aliu Baldé, alferes da milícia morto em combate em 1971.

O seu filho, talvez um dos miúdos que no meu tempo de estadia se pinha à porta da cozinha na esperança de “agarrar” uns restitos de comida, a quem agradeço a forma carinhosa e dedicada, como soube ser meu cicerone, nesta aventura.

A famíla da Djovo Ansato, ausente em Bissau, que se juntou toda para me receber.

(iv) - Do meu “diário” > Dezembro,1968 / Mampatá /29

... A bajuda Jobo Ansato ( Joaninha, como eu lhe chamo), começou há tempos a ter um comportamento diferente para comigo. Várias vezes me ofertou fruta, chama-me muitas vezes à noite para a porta do abrigo subterrâneo onde dorme, gosta de conversar comigo e fica ciumenta quando me vê a conversar com outras bajudas, com a Fámara, por exemplo, que é a jovem mais linda que eu vi em toda a minha vida.

Eu, embora notasse essa mudança não conseguia compreender a sua razão de ser. Ontem, como tantas outras vezes fui até à sua tabanca e a conversa virou para os feridos de guerra, as doenças da população e a acção dos enfermeiros e fiquei espantado ao ouvi-la dizer dizer: - No último taque di bandido eu ver Tixera ir por Tabanca, baixo di fogo perguntá tudo dgente si ká na tem firido. A mim nesse dia ficá manga di contente com Tixera. Tixera i amigo di Africano.

Para meu espanto verifico que foi a partir da data do último ataque que sofremos que se deu esta mudança no seu comportamento. Como uma simples acção no cumprimento do meu dever pode influir tanto na maneira de pensar e agir de uma pessoa!...

As crianças que se acotovelavam para me tocar. Os dedos das minhas mãos, não chegavam para tantas mãos.

Calou bem fundo aquele convite da Djuvai: - Tissera volta para cá. Esta casa é para ti!...

Um dia voltarei... de visita.

José Teixeira
________________

Nota dos editores

(1) Vd. último poste da série, de 23 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2676: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (2): Um abraço de ermons e (más) recordações do Comandante Manecas

domingo, 23 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2674: Recortes de imprensa (3): José Carlos Marques, do Correio da Manhã, em Gandembel e Guileje, embeded nas NT







Guiné-Bissau <> Cananime > Simpósio Internacional de Guileje > Visita ao sul > 2 de Março de 2008 > Depois de um excelente almoço, de carne e peixe, na praia de Cananime, alguns de nós quiseram dar um salto, de barco, à outra margem do Rio Cacine, justamente para visitar a povoação de Cacine. O jornalista do Correio da Manhã, José Carlos Marques, foi um dos privilegiados turistas... Foi de Lisboa para Bissau, connosco, de avião. Andou connosco. Regressou connosco. Sempre discreto e afável. Só foi pena o jornal tê-lo posto da Residencial Coimbra... Podia ter ficado connosco no Hotel Azalai...


Fotos e legendas: ©
Luís Graça (2008). Direitos reservados.

1. Em 15 de Abril de 2007, demos início a uma nova série, Recortes de imprensa, de que se publica agora o nº 3 (*)... O jornalista José Carlos Marques foi o único jornalista da imprensa escrita, diária, portuguesa, a acompanhar-nos durante a semana em que decorreu o Simpósio Internacional de Guiledje (de 1 a 7 de Março de 2008).

Eis o que ele escreveu sobre Gandembel e Guileje, bem como sobre a inauguração do Simpósio, que contou com a presença do Chefe de Estado guineense, João Bernardo Vieira 'Nino'.


2. Recortes de imprensa (*) > Guiné-Bissau: Recordar a Guerra do Ultramar
Regresso ao corredor da morte


José Carlos Marques

Correio da Manhã, 4 de Março de 2008


Há uma multidão à espera dos jipes que desafiam as estradas de terra batida do sul da Guiné. Os portugueses são esperados com expectativa, sobretudo um deles: Alexandre da Costa Coutinho e Lima, o último comandante do quartel de Guiledje, o homem que, a 22 de Maio de 1973, após cinco dias de cerco e bombardeamento do PAIGC, decidiu evacuar militares, população e abandonar o quartel.

O régulo, líder tradicional da aldeia, abraça-o. O papel que Umaru Jaló tem na mão mostra o apreço pelos portugueses: ali estão os nomes de todos os comandantes militares de Guiledje desde 1964. Coutinho e Lima é engolido pela multidão. Todos o querem cumprimentar. Emocionado, o antigo comandante do quartel retribui.

Em 1973, o então major desrespeitou as ordens do general Spínola, comandante-chefe militar da Guiné, que lhe ordenou que resistisse ao cerco. Coutinho e Lima escolheu retirar-se. Seiscentos militares e civis fugiram para Gadamael Porto, a guarnição mais próxima. Foi preso e teve de enfrentar processo disciplinar, que acabou arquivado.
- Não me arrependo de nada. Tomei a decisão de abandonar Guiledje para poupar as vidas dos meus homens e a da população. Voltava a fazer tudo outra vez - explica ao CM.

Pouco depois, numa cerimónia simples mas cheia de significado, recebeu do régulo de Guiledje uma túnica branca – cor dos mais velhos e sábios.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém > Três homens felizes, fotografados com a estatueta, em metal, da santa protectora dos Gringos de Guileje, encontrada nas escavações arqueológcias do antigo aquartelamento de Guileje... Da esquerda para a direita: José Carioca, Abílio Delgado e Sérgio Sousa...

Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


O regresso a Guiledje é um momento sentido por outros três ex-combatentes. Abílio Delgado, Sérgio Sousa e José Carioca cumpriram ali serviço militar entre Setembro de 1971 e Julho de 1973. Com 21 anos, Abílio Delgado, o mais jovem capitão do Exército português, comandava a companhia dos Gringos de Guiledje. 150 homens habituaram-se a viver sob ameaça permanente:
-O período mais longo que estivemos sem ser bombardeados não passou de 15 dias. Havia sempre morteiros a cair e passávamos a vida escondidos nos abrigos - lembra.

A companhia teve duas baixas em combate, mas conseguiu aguentar o quartel até ao fim da comissão. Foram a última companhia a consegui-lo. Os militares que os substituíram, os Piratas de Guiledje, comandados por Coutinho e Lima (**), abandonaram.

O que hoje é um amontoado de ruínas e restos de munições era o ponto nevrálgico da guerra na Guiné. O corredor de Guiledje – a que os portugueses chamavam corredor da morte e o PAIGC corredor do povo – era a zona por onde a guerrilha fazia entrar todos os reabastecimentos oriundos das bases na Guiné-Conacri.
- A perda de Guiledje foi um ponto de viragem. Tornou-se claro que o exército português nunca conseguiria ganhar a guerra - diz o historiador guineense Leopoldo Amado, um dos participantes no Simpósio Internacional que começou ontem em Bissau, e que junta ex-combatentes dos dois lados do conflito e investigadores para debater a mais violenta guerra que os portugueses travaram em África.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Antigo aquartelamento de Guileje > 1 de Março de 2008 > O Cor Art, na situação de reserva, Coutinho e Lima, antigo comandante do COP 5, e o historiador guineense Leopoldo Amado.

Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


COMANDANTES APERTAM AS MÃOS

O presidente da Guiné-Bissau, Nino Vieira, inaugurou ontem na capital do país o Simpósio Internacional sobre o Guiledje. Até sexta-feira, ex-combatentes guineenses, portugueses, cabo-verdianos e cubanos, e investigadores de várias nacionalidade, vão debater o momento crucial da guerra na Guiné, quando o PAIGC começou a ganhar supremacia militar sobre o exército português.

Nino Vieira era, há 35 anos, o comandante das forças guerrilheiras no sul, e foi ele quem comandou o ataque ao quartel de Guiledje. Recordou que “foi uma oportunidade de demonstrar a vitalidade dos valores da luta e a unidade do PAIGC”. Na altura teve a oportunidade de apertar a mão a Coutinho e Lima, o oficial que comandava o quartel de Guiledje.

VIAGEM DE EMOÇÕES

Durante dois dias, uma extensa comitiva percorreu os lugares mais marcantes da guerra no sul da Guiné. Uma das paragens mais emotivas aconteceu em Gandembel, o aquartelamento que os portugueses abandonaram em Janeiro de 1969, após terem sofrido cerca de 370 ataques em 9 meses. O cabo enfermeiro José Teixeira, que fez serviço militar nesta zona, deixou no local uma planta com uma mensagem inscrita: “Guineenses e portugueses, dois passos um rumo: paz”

AQUARTELAMENTO DO PAIGC

Os ex-combatentes portugueses tiveram este domingo a oportunidade de perceber como é que o inimigo vivia na mata. A visita ao Acampamento Osvaldo Vieira, nome de um combatente do PAIGC caído em combate, deu a conhecer a forma como a guerrilha se organizava e como executava as suas acções. Mulheres como Ulé Nabila, hoje com 60 anos, asseguravam a alimentação e a logística dos homens que viviam no mato.

A SANTA DE GUILEDJE

Na semana passada, a equipa que está a fazer o levantamento das ruínas do quartel de Guiledje encontrou uma figura metálica de Nossa Senhora. O achado foi imediatamente identificado pelos três elementos dos Gringos de Guiledje:
- É a Virgem que os açorianos da nossa companhia esculpiram e que nos servia de protectora - lembra José Carioca.

A peça vai fazer parte do espólio do futuro museu de Guiledje.

José Carlos Marques, Enviado Especial (Guiné-Bissau)

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Notas de L.G.:

(*) Vd.postes anteriores:


15 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1663: Recortes de imprensa (1): As nossas mulheres e o stresse pós-traumático de guerra (Zé Teixeira)

1 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2599: Recortes de imprensa (2): O Simpósio de Guileje visto hoje pelo Diário de Notícias (Virgínio Briote)

(**) O então major Coutinho e Lima era o comandante do COP 5... O comandante dos Piratas de Guileje, a CCAV 8350, era o capitão miliciano Abel Quintas... Vd. poste de 30 de Julho de 2007 >
Guiné 63/74 - P2007: Três homens de Guileje: Nuno Rubim, J. Casimiro Carvalho e Abel Quintas

Guiné 63/74 - P2673: Uma semana memorável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (10): Guiledje: Homenagem ao Coronel Coutinho e Lima


As autoridades civis e relgiosas locais acabam de chegar para a cerimónia de homenagem a Coutinho e Lima. Aqui posam para a fotografia....

Os homens grandes da região, represantando a população de Guileje....


















Diz-me o Pepito que "quem doou, em nome da população, o chabadora (nome do tal fato) foi o régulo de Medje (Mejo), Umarú Djaló. Logo atrás dele, com um lenço à volta da cabeça está o filho do famoso Tcherno Rachid, de seu nome Aladje Tcherno Aliu Djaló, responsável religioso de Quebo. À esquerda deste, com a cabeça empinada para a frente é o Aladje Mamudu Baldé, régulo de Foreá-Quebo".. Tenho pena de não poder identificar todos estes rostos...

O Pepito e a senhora Isabel Buscardini... Em segundo oalno, Isabel Miranda.

A senhora Ministra dos Antigos Combatentes da Liberdade da Pátria, Isabel Buscardini...


Uma antiga combatente, hoje deputada do PAIGC... Em segundo plano, vê-se o antigo embaixador de Cuba na Guiné-Conacri, Oscar Oramas...

A Francisca Quessangue... Em segundo plano, uma professora universitária guineense que vive hoje no Brasil....

A Maria Alice Ferreira Carneiro, esposa do Luís Graça....

O representante da Embaixada de Portugal na Guiné-Bissau, o nº 2 na hierarquia... (Não fixei o nome.)

Roberto Quessangue, presidente da Assembleia Geral da AD - Acção para o Desenvolvimento, e que desempenhou nesta cerimónia o papel de interface entre a comissão organizadora do Simpósio e a comunidade local de Guiledje.
Na primeira fila, com direito a cadeira, o Cor Art Coutinho e Lima, envergando já o chabadora, que Umaru Jaló, régulo de Mejo, lhe impôs, como sinal de gratidão e de homenagem da população local.




















Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > Antigo aquartelamento e tabanca de Guiledje, abandonado pelas NT em 22 de Maio de 1973. A decisão do então major Coutinho e Lima, comandante do COP 5, de abandonar Guileje, fortemente cercado pelas forças de artilharia e de infantaria do PAIGC, é hoje reconhecida pela população local (maioritariamente fula) como um acto de bom senso e de humanidade, que permitiu salvar muitas centenas de vida, de um lado e de outro. Neste vídeo, vemos o Cor Art, na situação de reserva, Coutinho e Lima, receber as homenagens da população local. Umaru Jaló, o régulo de Mejo, veste-lhe a tradicional chabadora, uma distinção que só pode ser conferida a homens santos e sábios... Coutinho e Lima é aqui descrito como "um grande homem que nos salvou"... A cerimónia, singela, termina com vivas aos dois povos, português e guineense... As autoridades civis e religiosas da região assistiram è cerimónia. Para mim, foi um regresso ao passado, ao chão fula que eu conheci na zona leste, há 40 anos atrás, um retorno ao mundo patriarcal, fortemente hierarquizado dos fulas, donde as mulheres são apartadas da vida pública...

Vídeo (1' 35'): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Alojado em: You Tube >Nhabijoes






Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > Coutinho e Lima, que diz ser um homem mais de acção do que de palavras, agradece emocionado a distinção que acaba de receber. Segundo ele me confidenciou, a população de Guileje não queria abandonar os seus haveres, a sua tabanca, as suas moranças... A verdade é que, ao fim de cinco dias a viver nos abrigos, a população local e os militares portugueses, sem água, sem transmissões, sem apoio aéreo, com um morto, e com a artilharia a acertar em cheio nas instalações de superfície, dificilmente poderia resistir muito mais tenpo... Na época, o comportamento de Coutinho e Lima foi considerado como insólito e dificilmente aceitável pelos seus próprios camaradas... É sabido que foi imediatamente detido à sua chegada a Gadamael, por ordem de Spínola...

Vídeo (3' 05'): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Alojado em: You Tube >Nhabijoes

(Continua)
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Nota do editor:

Vd. postes de:

8 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2618: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (1): Regresso a Bissau, quatro décadas depois...

9 de Março de 2008> Guiné 63/74 - P2620: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (2): O Hino de Gandembel, recriado pelos Furkuntunda

9 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2621: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (3): Pequeno-almoço no Saltinho, a caminho do Cantanhez

11 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2625: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (4): Na Ponte Balana, com Malan Biai, da RTP África

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2640: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (5): Um momento de grande emoção em Gandembel

16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2650: Uma semana involvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (6): No coração do mítico corredor de Guiledje

17 de Março de 2008 > Guine 63/74 - P2655: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (7): No corredor de Guiledje, com o Dauda Cassamá (I)

17 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2656: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (8): No corredor de Guiledje, com Dauda Cassamá (II)

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2667: Uma semana memorável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (9): O grande ronco de Guiledje

sexta-feira, 21 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2670: Fez-se História em Guileje (Nelson Herbert)

Mário Soares, Presidente da República de então, presta a Homenagem de Portugal aos Militares do Exército Português caídos no solo guineense.

Foto: © Nelson Herbert (2008). Direitos reservados.

É de facto no culto dos seus mortos que as sociedades humanas, procuram tradicionalmente os mais delicados símbolos da sua coesão e identidade. Era assim entre os antigos gregos. Nas sociedades tradicionais africanas, a homenagem aos entes e antepassados mortos assume igualmente um notável destaque nas práticas rituais. A convicção de que os antepassados podem ter influência sobre a vida de gerações, constitui uma arreigada tradição nessas sociedades.


Cícero dizia que os antepassados quiseram que os homens que tivessem deixado esta vida fossem contados no número dos Deuses. Nesta perspectiva seria de facto natural que nas relações Estado-a-Estado, a maturidade dos homens, dos outrora inimigos, pudesse incluir com toda a dignidade, o culto dos respectivos mortos. Mas alguns episódios demonstram o quão de facto ínvio e difícil foram, por vezes, os trilhos dessa desejável catarse.


Mário Soares recebido à porta do cemitério de Bissau por uma manifestação pacífica e silenciosa de antigos combatentes da luta pela libertação da Guiné e integrada por outras igualmente vítimas dessa guerra, nomeadamente antigos soldados nativos que combateram sob a bandeira portuguesa.

Foto: © Nelson Herbert (2008). Direitos reservados.


Estes últimos, o mesmo grupo cujos direitos os governos portugueses teimam há décadas, a ignorar. "Render Homenagem aos criminosos da guerra colonial é ofender a dignidade dos Heróis guineenses e portugueses”, lê-se no cartaz.

Na foto é visivel o jornalista Nelson Herbert, a escassos passos da retaguarda da comitiva.



Ladeado pelo então secretário de Estado da Cooperação Durão Barroso e por representantes dos principais partidos portugueses, Mário Soares quis na altura dignificar esse capítulo da História comum, que alguns sectores, de um e outro lado das outroras diametralmente opostas trincheiras, teimavam em fazer calar na Memória colectiva dos dois Povos.

De facto, quando em 1953 Felicien Challaye escrevia "a colonização talvez seja a instituição que mais lágrimas fez correr", vinha ainda longe a Guerra na Guiné.

A guerra colonial ou de libertação teve no caso concreto da Guiné (eu catraio, na altura, indiferente e inocente aos acontecimentos) um dos seus cenários mais brutais e que acabou por deixar cicatrizes e, provavelmente, algumas cravadas na alma que só o tempo e a maturidade dos homens acabariam decerto por enjeitar.

E hoje, praticamente concluída que está a primeira fase do processo de exumação dos restos mortais dos militares portugueses de Guidaje (que consistia na definição dos limites das sepulturas, na identificação e exumação das ossadas com o apoio de técnicas geofisicas) e perante o eloquente sucesso que foi o Simpósio de Guiledje...de trincheiras irmanadas (a globalização estendendo também por aí os seus tentáculos?) curvo-me em reverência, para louvar a maturidade dos outrora inimigos.

E assim fez-se História!

Quartel da Amura, em Bissau > 7 de Março de 2008 > Guarda de honra a apresentar armas na homenagem dos antigos combatentes portugueses aos Heróis Nacionais da República da Guiné-Bissau, junto ao mausoléu de Amílcar Cabral.

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

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Notas de vb:

Texto de Nelson Herbert

Voice of America
Washington, DC

1. Notícia do Vítor Tavares:

Hoje regressam os técnicos que estiveram em Guidage, na exumação dos restos mortais dos nossos camaradas, que já se encontram em Bissau onde aguardam os exames periciais. Pelas escassas imformações que tenho correu tudo bem.

2. ver artigos de

16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2652: Guineenses da diáspora (3): Nelson Herbert, o nosso Correspondente nos EUA (Virgínio Briote)

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2639: O Simpósio de Guiledge na Voz da América (Virgínio Briote)

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2639: O Simpósio de Guiledge na Voz da América. (Virgínio Briote)

Guiné 63/74 - P2669: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (1): Desta vez fui voluntário e estou em paz comigo próprio


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira com a Cadidjatu Candé.

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Azalai > 29 de Fevereiro de 2008 > O Zé Teixeira cantando o Hino de Gandembel com o vocalista dos Furkuntunda... A actuação deste grupo musical animou a nossa primeira noite em Bissau, na sequência do cocktail oferecido a todos os inscritos no Simpósio Internacional de Guiledje pela Ministra dos Combatentes da Liberdade da Pátria e Presidente do Comité Interministerial de Pilotagem das Comemorações do 35 Aniversário da Morte de Amílcar Cabral, Senhora Isabel Mendes Correia Buscardini (*).


Fotos: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > Visita dos participantes do Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira fez questão de levar, para casa,. como recordação, uma planta chamada matchundadi di branco (ou pila de branco, em crioulo) (*)... "O silêncio continua a imperar em Gandembel. Ninguém da população ousou recriar vida neste local. Só o machundadi di branco – flor estranha, surgida da terra, que os autóctenes de imediato batizaram, para relembrar aos vindouros que os Portugueses passaram por ali e sofreram duro, pela sua teimosia" (JT).

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.



1. Mensagem do Zé Teixeira, acabado de chegar da Guiné, por terra...


Caríssimos Editores:

Apesar de já haver muita coisa ecrita sobre o Simpósio [Internacional de Guiledje], nomeadamente graças ao excelente trabalho do Luís, junto uma crónica, que vai ter continuidade, se merecer.
Boa Páscoa para todos

J.Teixeira


2. SIMPÓSIO DE GUILEDGE > Algumas notas soltas, mas sentidas

Felizmente o Luís Graça (*) estava lá. Ninguém melhor que ele para falar do Simpósio. De minha parte, apenas algumas notas soltas.

(i) A RECEPÇÃO

A Canção GANDEMBEL explodiu dentro de mim, cantada de uma forma tão feliz por aquele grupo que animou a recepção.

Foi um recomeçar da guerra, agora com os inimigos bem frente a frente, de olhos nos olhos, com sorrisos de bem estar e felicidade, por se reencontrarem de novo, mas para festejarem a paz. Localizamos frentes de combate em que nos batemos, perigos que ultrapassamos, com sangue, com suor, com medo e quantas vezes com lágrimas de dor ou de raiva. Agora selamos a amizade com um abraço fraterno.

Selamos a amizade dando as mãos e cantando, dançando ao som da música que nos transporta para cenários de sofrimento e morte. Hoje espaços de vida e esperança


(ii) PICADA DE CHAMARRA.

De Chamarra até Balana, passando por Changue Laia, o terrível local onde havia uma placa com a palavra Fronteira, colocada pelo PAIGC. A partir daí entrava-se no inferno dos fornilhos, dos campos de minas e emboscadas. Só se parava em Gandembel ou Cã Dembel, como lhe chama os Fulas. Sem afectar a verdade, poderia dizer-se que o carreiro da morte começava aí.

Escrevi um dia no meu Diário

(...) Aldeia Formosa, 28 de Julho de 1968

Ontem Aldeia Formosa voltou a ser atacada. Três vezes numa semana é muito.

Hoje fui fazer uma coluna a Gandembel. Tudo correu bem. O IN não atacou nem colocou minas na picada. Só tivemos uma tempestade de chuva. Começamos por ouvir um ruido assustador que se aproximava de nós. De repente surge uma forte ventania que nos arrastava seguida de uma tromba de água que transformou a picada num rio. Um quarto de hora depois tudo desapareceu e voltou o sol quente que rapidamente nos secou.

Pouca antes de chegar a Gandembel vimos o IN atacar um Fiat das FAP que se incendiou, tendo o piloto saltado de pára-quedas.

Passei no sítio onde há pouco tempo se deu uma terrível emboscada que roubou seis vidas. Quinze fornilhos colocados em série num local onde a tropa ao sentir as primeiras balas da emboscada se esconde. Doze rebentaram no momento em que se iniciou a emboscada e ceifaram seis vidas. Foi uma sorte não ter lá ficado toda a Companhia.

Quando chegamos a Gandembel fomos saudados pelo IN com um pequeno ataque ao aquartelamento, sem consequências. Os Camaradas que estão aqui estacionados dizem que comem disto todos os dias e mais que uma vez.

Como é terrível...

Encontrei em Gandembel o Mário Pinto, meu colega de escola, contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à Fronteira com a Guiné/Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à "estrada da morte" impedindo o IN de fazer os abastecimentos.

-Será verdade que vamos ficar nesta zona por muito tempo ?

(...) Odeio.. Odeio os homens que se guerreiam e matam. No entanto eu também sou um deles...

O Inimigo também tem namorada, mulher, filhos... também se agarra aos seus santos protectores...

Pergunto-me se quantas vezes ao sair para o mato as portas das Tabancas se abrem e surgem caras, um sorriso, um braço no ar ... um desejo de 'bom biaje', se não serão essas mesmas caras com o ódio estampado que nos esperam no meio da bolanha prontos a matar quem não quer fazer guerra, mas foi obrigado pelo sentido de Pátria em que foi educado ?

Toda a cara preta me parece um IN. Odeio o IN porque é traiçoeiro, por que mata.


Mampatá, 23 de Agosto de 1968

Mais uma etapa díficil para a Companhia 2381. Quem diria que após uma coluna a Gandembel na qual se levantaram 57 minas A/P e quatro fornilhos depois da passagem por Chamarra e sem ninguém contar, surge a terrível emboscada que provoca cinco feridos.

É sempre assim, onde menos se conta, quando a calma e a confiança volta ao espírito, quando se julga que o perigo já passou, surge de entre o arvoredo, traiçoeiramente o inimigo.

Um viver constante em estado de guerra arrasa o espírito. A parte física ressente-se , as conversas entre camaradas tornam-se por tudo ou nada exaltadas, pequenos quezílias, tornam-se problemas.

O homem é fruto do ambiente em que vive. Se o ambiente é de paz, sente-se a vida nos corações, a calma e a confiança no 'outro', vive-se a paz. Quando o troar dos canhões se ouve longe ou perto, quando existe guerra entre os homens, existe guerra no seu espírito. O espírito torna-se selvagem. Trava-se uma luta entre o antigo e o novo, entre o amor e o sangue. Um jovem que ainda ontem só pensava em amar, hoje não vacila em disparar sobre um inimigo, mesmo ferido inofensivo, inutilizado, a precisar de uma mão salvadora....

Antes de ontem e ontem, Buba foi atacada. Os Páras têm tido um trabalho intenso. Hoje bateram a zona de onde costumam atacar Aldeia Formosa. Há alguns dias que patrulham a zona envolvente de Gandembel e com bons resultados. vários mortos, "manga " de feridos e material apreendido.

Hoje, que bom sentir a vida brotando onde outrora, imperava o medo, o silêncio entrecortado pelo troar das armas ou pelo estrondo das mortíferas minas e fornilhos.

Toda a estrada de Chamarra até Balana está cheia de moranças. No rio onde em tempos longínquos rebentavam granadas e bombas hoje existe um lavadouro onde as mudjeres fulas lavam a roupa dos seus filhotes cantando alegremente.

Que bom sentir a paz brotando dos corações dos homens. (...).


(iii) GANDEMBEL, MÍTICO LOCAL , AGORA EM PAZ.

O silêncio continua a imperar em Gandembel. Ninguém da população ousou recriar vida neste local. Só o machundadi di branco – flor estranha, surgida da terra, que os autóctenes de imediato batizaram, para relembrar aos vindouros que os Portugueses passaram por ali e sofreram duro, pela sua teimosia.

Tinha desenhado na minha mente a estrutura arquitectónica, a disposição das casernas em círculo, a parada que a todo o momento servia de campo de tiro, porque do cimo das árvores do lá de lá da fronteiro o inimigo espreitava. A curva a duzentos metros da entrada, que nos fazia sair do corredor da morte, para entrar num novo palco . . . de morte.

Tudo estava lá, como eu imaginava. Os restos das casernas são testemunho vivo de uma presença, de uma luta inglória. De vidas jovens destruídas. De uma força de vontade indómita de vencer, por parte de um inimigo que não dava tréguas, porque acreditava que a vitória era difícil, que a luta poderia ser longa, mas que à razão da força teria de opor a força da razão aliada a força da alma das suas gentes.

Desta vez fui voluntário. Desta vez não tive medo. Bem pelo contrário, senti-me um homem feliz. A emoção tomou posse de mim. A planta que lá deixei, reflectiu a esperança de que a paz é possível sempre que os homens, os políticos, a desejem sinceramente.

Foi a concretização de um sonho que acalentava há vários anos.

Acredito que Gandembel será no futuro um espaço onde a vida humana também brote tão espontaneamente como tem vindo a brotar em tantos espaços, teatros de grandes lutas no passado, hoje centros de vida, de alegria e esperança (*).

(iv) ENCONTRO FELIZ


Ao chegar a Guiledje, cruzo-me com uma bonita mulher, extremamente activa, sempre com um sorriso nos lábios. Na lapela um crachá onde se lia Cadidjatu Candé (**).

Comentei em surdina: Conheci um Candé em Quebo que foi barbaramente assassinado com um prego na cabeça, no fim da guerra

Ouço uma resposta que não só me surpreende, como me emociona profundamente. A Cadi com o seu olhar cândido responde:
-Era meu pai...

O Candé era um alferes de um grupo especial de milícia, em Quebo que posteriormente passou para a CCAÇ 18, estacionada também em Quebo.

Soube da sua triste sorte através do seu primo Mudé Embaló, meu ajudante de enfermeiro, que mais tarde conseguiu vir para Portugal e, soube agora pela família em Chamarra, que faleceu há cerca de dois anos em Espanha


Zé Teixeira

Continua

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

8 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2618: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (1): Regresso a Bissau, quatro décadas depois...

9 de Março de 2008> Guiné 63/74 - P2620: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (2): O Hino de Gandembel, recriado pelos Furkuntunda

9 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2621: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (3): Pequeno-almoço no Saltinho, a caminho do Cantanhez

11 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2625: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (4): Na Ponte Balana, com Malan Biai, da RTP África

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2640: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (5): Um momento de grande emoção em Gandembel

16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2650: Uma semana involvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (6): No coração do mítico corredor de Guiledje

17 de Março de 2008 > Guine 63/74 - P2655: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (7): No corredor de Guiledje, com o Dauda Cassamá (I)

17 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2656: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (8): No corredor de Guiledje, com Dauda Cassamá (II)

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2667: Uma semana memorável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (9): O grande ronco de Guiledje


(**) Uma das três mulheres da equipa do Pepito, responsável por toda a logística que permitiu a nossa magnífica visita ao sul... Vd. poste de 28 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2590: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (24): Pepito e os oito magníficos da sua equipa (Luís Graça)

quarta-feira, 19 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2667: Uma semana memorável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (9): O grande ronco de Guiledje





Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > Manifestações de regojizo pela nossa chegada ao antigo aquartelamento de Guileje, abandonadao pelas NT em 22 de Maio de 1973, sob pressão do PAIGC. A, na altura polémica, decisão do então major Coutinho e Lima, comandante do COP 5, de abandonar Guileje é hoje reconhecida pela população local (maioritariamente fula) como um acto de bom senso e de humanidade, que permitiu salvar muitas centenas de vida, de um lado e de outro.

Vídeo (1' 19'): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Alojado em: You Tube >Nhabijoes








Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > Recepção festiva dos visitantes por parte do régulo e população local. Trinta e cinco anos depois os tugas voltam a Guilje: o que se passará na cabeça de homens como o Nuno Rubim, o capitão fula dos primórdios de Guileje, o José Barros Richa, um Drácula da CART 2410, ou a malta dos Gringos de Guileje , a CCAÇ 3477 (aqui presentes através do Abílio Delgado, o José António Carioca, o Sérgio Sousa) ? O que se passará na cabeça dos restantes tugas ? E dos seus aliados ? E dos antigos combatentes do PAIGC ? E os seus aliados cubanos ? ... São muitas emoções para um dia só...

Vídeo (2' 01'): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Alojado em: You Tube >Nhabijoes

Imagens de cor, alegria, hospitalidade e amizade, à chegada a Guileje, por volta do 12h30, da caravana automóvel, que tinha partido de Bissau às 7h00, com paragem no Saltinho, Ponte Balana, Gandembel e corredor do Guiledje. (1)..

Muita população da região de Tombali (em especial dos sectores de Bedanda e de Cacine) quis associar-se a este evento... Houve pessoas que se deslocaram de longe, fazendo a pé dezenas de quilómetros, só para assistir à homenagem que os antigos habitantes de Guiledje quiseram fazer ao tuga que lhes terá salvo a vida...Sabe-se que na altura a população local saiu contrariada em direcção a Gadamael...

O nosso amigo e camarada Carlos Silva no meio das autoridades tradicionais de Guiledje que acabavam de chegar, ao recinto do antigo aquartelamento, para cumprimentar as autoridades de Bissau, os antigos combatentes da Liberdade da Pátria, os tugas e demais estrangeiros, participantes (ou não) do Simpósio Internacional de Guileje, bem como os organizadores deste evento, em especial a AD - Acção para o Desenvolvimento...


Uma imagem da multidão que se juntou à volta do grupo de dançarinos e músicos que nos deram as boas vindas... A Guiné no seu melhor.


Que diria Amílcar Cabral, se fosse vivo, e pudesse, também ele, ser protagonista de mais um dia em que se fez história ?... Julgo que faria um sorriso irónico para os tugas e os seus aliados tugas que apostaram no cavalo errado...

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados


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Notas de L.G.:


(1) Vd. postes anteriores:


8 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2618: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (1): Regresso a Bissau, quatro décadas depois...


9 de Março de 2008> Guiné 63/74 - P2620: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (2): O Hino de Gandembel, recriado pelos Furkuntunda


9 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2621: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (3): Pequeno-almoço no Saltinho, a caminho do Cantanhez


11 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2625: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (4): Na Ponte Balana, com Malan Biai, da RTP África


14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2640: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (5): Um momento de grande emoção em Gandembel


16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2650: Uma semana involvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (6): No coração do mítico corredor de Guiledje


17 de Março de 2008 > Guine 63/74 - P2655: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (7): No corredor de Guiledje, com o Dauda Cassamá (I)


17 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2656: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (8): No corredor de Guiledje, com Dauda Cassamá (II)