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segunda-feira, 21 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18661: (Ex)citações (338): P18648 - Fiat G-91 abatido sob os céus de Gandembel em 28 de Julho de 1968 (Idálio Reis, ex-Alf Mil da CCAÇ 2317)

Guiné > Bissalanca > BA 12 > 1968 > O Fiat G-91 R4, 5411, uns dias antes de ser abatido (em 28 de julho de 1968). No cockpit, o cap piloto aviador José Nico


1. Mensagem do nosso camarada Idálio Reis (ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana, Nova Lamego, 1968/69), autor do livro "A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné - Gandembel / Ponte Balana, com data de 18 de Maio de 2018:

Quanto a este acontecimento[1], eis então o que escrevi no meu livro:

Mas já há muito tempo, e quase todos os dias, pelo entardecer, vinham 2 Fiats G-91 a descarregarem bombas sobre a já citada zona de Salancaur/Unal, de que se dizia terem abrigos inexpugnáveis, e destas tentativas intimidantes da aviação militar, surge a 28 de Julho, mais um dos casos inesperados, e que seria o primeiro a acontecer na Província nestas circunstâncias.

Neste dia, parte da Companhia tinha ido montar protecção a uma coluna de reabastecimentos, de modo que em Gandembel restavam apenas 2 grupos, um dos quais um Pelotão de Caçadores Nativos.

Ouve-se, vindo de longe e dos lados da fronteira, uns estampidos de metralhadora pesada. E passados alguns momentos, um dos soldados que estava atento às trajectórias das aeronaves, claramente distingue que se notava uma chama de fogo na cauda de um dos Fiats. 
Prontamente, via rádio, deu-se conhecimento aos pilotos. E vê-se nos céus, o avião a fazer uma curva acentuada, direccionando-se para o lado da fronteira. E quando a aeronave, já com as chamas bem visíveis na parte posterior da carlinga, passava sobre as imediações de Gandembel, distingue-se um pára-quedas que se ejecta do mesmo, e que vem a cair a cerca de 3 a 4 centenas de metros a sul do aquartelamento, com a aeronave a despedaçar-se em parte incerta, mas muito próximo da fronteira. 

Um documento oficial, refere que o piloto era um tenente-coronel, de nome Francisco Costa Gomes, comandante do Grupo Operacional 1201.

Aparentemente, o local da queda, não oferecia perigos para o seu resgate, desde que se conhecessem os locais das armadilhas em volta do cercado do arame farpado. Procurou-se de imediato arranjar um grupo com metade dos efectivos disponíveis, e então fomos ao encontro do piloto. 

Escondido num arbusto, estava o homem sem distinção da sua patente, e despojado da sua pistola de cintura [mais tarde foi encontrada, e julgamos que era uma Walther].

Já vínhamos a caminho do aquartelamento, e algumas unidades aéreas, como helicópteros e T-6 o sobrevoava, pelo que, franqueada a entrada, logo um dos helicópteros aterrava para o levar rumo a Bissau.

O abate desta aeronave, com fogo antiaéreo de metralhadora 12,7, teve uma óbvia repercussão a nível da Província, e muito certamente reforçou os ânimos dos combatentes locais do PAIGC. Contudo, não deixaremos de anotar, que nos parece que a probabilidade de uma bala anti-aérea, em acertar numa destas aeronaves, era extremamente diminuta, ainda que o IN parece que dispunha de um conjunto de metralhadoras quádruplas, em que os disparos eram bem audíveis em Gandembel. Mas o que é inegável, é que o avião se perdeu, e a perícia do piloto também foi notável para a integridade da sua própria pessoa, pois se tivesse caído em local fora do nosso horizonte de referência (não mais de 2 km), não se dispunha no momento, de condições para ir à sua procura. E muito provavelmente, o piloto poderia vir a ser capturado pelo inimigo.

Em jeito de remoque, parece que o piloto afirmou que teve de fugir de guerrilheiros do PAIGC, quando, na verdade, os elementos que primeiro o viram, pertenciam ao Pelotão de Caçadores Nativos.

Sempre esta dualidade da sorte e do azar, que nos espreitava na leveza de cada duro momento.
____________

Nota do editor

[1] - Vd. poste de 18 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18648: FAP (105): 28 de julho de 1968, o dia em que o Fiat G-91, nº 5411, pilotado pelo ten cor Francisco Dias Costa Gomes, foi abatido sob os céus de Gandembel, por fogo de AA (Antiaérea)

Último poste da série de 16 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18640: (Ex)citações (337): A propósito das deserções nas fileiras do PAIGC, há um provérbio africano que diz "Todos os cães podem ser bravos, mas são mais bravos dentro das suas moranças", o mesmo quer dizer, dentro dos seus "chãos" (Cherno Baldé, Bissau)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16653: In Memoriam (267): gen pilav ref Francisco Dias da Costa Gomes (BA12, Bissalanca, 1967/68, cmdt do Grupo Operacional 1201)... Foi o primeiro piloto de Fiat G-91 a ser abatido, em 28/7/1968, sob os céus de Gandembel (José Matos, investigador independente em história militar)


Ofício, de 30 de julho de 1968, da Força Aérea, Comando da Zona Aérea de Cabo Verde, Base Aérea 12, para o Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, comunicando a perda de um Fiat G.91 por reação AA [Antiaéreas]

 Cortesia de José Matos (2016)


1. Mensagem de José Matos, com data de 27/10/2016, 22:39

[ Foto à direita:  o nosso grã-tabanqueiro José [Augusto] Matos;
formado em astronomia em 2006 na Inglaterra ( University of Central 

Lancashire, Preston, UK ); 
é especialista em aviação e exploração espacial desde 1992;
faz parte da Fisua - Associação de Física da Universidade de Aveiro;
filho de um antigo combatente, nosso camarada da Guiné, já falecido;
é investigador independente em história militar ]



Olá,  Luís

Uma informação para o blogue:

No dia 7 de Outubro de 2016, faleceu o Francisco Dias da Costa Gomes, que esteve na Guiné em 1967/68, como Comandante do Grupo Operacional 1201.

Costa Gomes foi o primeiro piloto de Fiat G.91 (5411) abatido na Guiné por fogo antiaéreo no dia 28 de julho de 1968. O caça, pilotado pelo então Tenente-Coronel Costa Gomes, executava uma missão de RFOT na fronteira sul da Guiné para detectar posições AA, quando é atingido pelo fogo antiaéreo de armas 12,7 mm, obrigando o piloto a ejectar-se perto do aquartelamento de Gandembel, onde conseguiu chegar pelo seu próprio pé. (*)

Depois deste evento Costa Gomes receberia a Cruz de Guerra de 1.ª classe. Deixo aqui a informação do abate. (Vd. documento acima).(**)

José Matos
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16496: FAP (98): "Pedaços das nossas vidas" - "Marte, saia a Força Aérea, o Pirata ejetou-se em Gandembel", por TGeneral PilAv José Nico - II Parte (Miguel Pessoa)

(**) Último poste da série > 21 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16627: In Memoriam (266): Manuel Ribeiro de Figueiredo (1942-2016), ex-sold cond auto, CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16494: FAP (97): Pedaços das nossas vidas (1): "Marte, saia a Força Aérea, o Pirata ejectou-se em Gandembel", por TGeneral PilAv José Nico - I Parte (José Nico / Miguel Pessoa)

1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa, Cor PilAv Ref (ex-Ten PilAv, BA 12, Bissalanca, 1972/74), com data de 14 de Setembro de 2016, contendo um trabalho intitulado "Marte, saia a Força Aérea, o Pirata ejectou-se em Gandembel!", da autoria do TGeneral PilAv José Nico, relatando o abate, em 28 de Julho de 1968, do avião pilotado pelo então TCor PilAv Costa Gomes, Comandante do Grupo Operacional 1201, que vamos publicar em duas partes.

Caros editores
O General Nico (da Força Aérea) disponibilizou este texto para publicação no blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné", socorrendo-se da minha pessoa para vos fazer chegar o artigo.
Dada a sua extensão não sei se será possível a sua publicação num único poste. Tenho sempre receio da sua divisão em partes, por poder eventualmente desinteressar o leitor. Mas a equipa editorial irá certamente ponderar as duas hipóteses... e decidir-se pela melhor opção.

Um abraço.
Miguel Pessoa


PEDAÇOS DAS NOSSAS VIDAS[1]

Cumpri muitas missões durante a minha carreira na Força Aérea Portuguesa. A comissão na Guiné, porém, sobrepôs-se a todas as outras e marcou-me indelevelmente para o resto da vida. A mim e certamente a todos os que, de algum modo, partilharam a mesma experiência. É dela ou de acontecimentos com ela relacionados, que vos irei dando conta… 


VII – “Marte[2], saia a Força Aérea, o Pirata[3] ejectou-se em Gandembel!”

Por TGeneral José Nico

I Parte

A frase em título reproduz uma angustiante emissão rádio efectuada na frequência 49,0 MHz FM, ao fim da manhã do dia 28 de Julho de 1968. Nesse preciso momento encontrava-me a efectuar o “sector”[4] de Nova Lamego, com um DO-27, e confesso que fiquei gelado. O Comandante do Grupo Operacional 1201 (GO 1201), na altura o combatente mais graduado da Força Aérea na Guiné, tinha sido forçado a abandonar o avião por razões que não foram explicadas no momento, numa área que todos sabíamos infestada de guerrilheiros. Por esse motivo assumi instintivamente a sobrevivência, em consequência da ejecção, como um risco menor naquela situação. Foi a possibilidade do Tenente-Coronel Costa Gomes ser capturado pelo inimigo que mais me assustou. Respondi imediatamente ao Tubarão[5] informando-o que o Sampunhe na Mouco[6] ia interromper a missão e rumar a Gandembel para ajudar a tentar localizar o piloto no solo. Todos os aviões em voo mantinham escuta permanente em 49,0 MHz, que era o canal para apoio aéreo às forças de superfície, e foram vários os pilotos que também alteraram a missão para se dirigirem a Gandembel. Soube-se depois que o G-91 5411, pilotado pelo Comandante do GO 1201, tinha sido atingido por fogo antiaéreo e incendiara-se. O número dois da formação, alarmado com o enorme rastro de fogo deixado pelo avião, incitara o chefe a ejectar-se imediatamente o que ele fez alguns segundos depois. Logo a seguir, enquanto observava o pára-quedas a descer para a mata, o Capitão Vasquez comunicou a situação ao Centro Conjunto de Apoio Aéreo (CCAA) e com essa transmissão rádio alertou o dispositivo aéreo para aquela emergência. As palavras que então proferiu ainda hoje ressoam na memória de todos os que as ouviram naquele já longínquo dia e são elas que dão o título a mais este “PEDAÇOS DAS NOSSAS VIDAS”. 


Limitações organizacionais da Força Aérea na Guiné 

A minha vida mudou radicalmente quando, no dia 28 de Setembro de 1967, a porta do HC-54 Skymaster 7504, que me transportou até Bissau, se abriu e uma baforada de ar quente e húmido invadiu a cabine dos passageiros. Tinha feito a viagem desde Lisboa com o meu camarada de curso, o Tenente Balacó Moreira, e foi aquela bofetada de calor húmido com odor a ferrugem que nos anunciou o peculiar ambiente em que íamos viver e combater a partir daquele dia. 

Tínhamos completado o treino operacional em F-86F, na Esquadra 51 de Monte Real mas, para a guerra que se desenrolava na Guiné, não houve qualquer preparação específica. Era um nível de formação que ultrapassava as capacidades de uma pequena unidade de voo como era a Esquadra 51. Penso mesmo que nunca foram inseridos, no treino que se seguia ao curso de pilotagem de aviões de caça (em T-33), os ensinamentos resultantes da recolha de informações e da análise do que se estava a passar em África, nem a disseminação de eventuais lições aprendidas, nem sequer das práticas da cooperação aeroterrestre. A Força Aérea, com a expansão forçada pela defesa dos territórios ultramarinos, ficou de tal modo estirada que estas questões que exigiam um estado - maior central, com capacidade para estudar o nível operacional da guerra, nunca foram convenientemente resolvidas. 

Desembarquei assim em Bissau necessitando de tempo e experiência para perceber o que faziam os que já lá estavam e o porquê de como o faziam. Como a actividade era intensa as oportunidades para concretizar a necessária qualificação para operar no teatro de operações da Guiné surgiram em catadupa, umas atrás das outras. Apenas me foi explicada uma prioridade: como o DO-27 era pau para toda a obra quase todos os pilotos, independentemente do tipo de aeronave a que se destinavam, que no meu caso era o G-91, tinham que ser também qualificados naquela aeronave. E foi assim que, logo no dia seguinte à chegada, comecei a receber instrução no DO-27 e passados três dias fui considerado apto para operações. Só depois disso, no dia 3 de Outubro de 1967, efectuei então o primeiro voo em G-91 e poucos dias depois estreei-me contra o dispositivo antiaéreo do PAIGC no Quitafine[7].

Outra questão muito importante, que na altura me passou despercebida, foi que o nível operacional da guerra pura e simplesmente não existia na Força Aérea ou, para ser mais preciso, existia apenas uma pessoa que tinha estatuto para analisar o que se passava, pensar o que se poderia fazer com os recursos disponíveis e planear: o Tenente-Coronel Costa Gomes, Comandante do GO 1201 que nessa função era apoiado pelo Comandante da Esq 121, o Capitão Vasquez. Todos os outros elementos, na grande maioria jovens tenentes do quadro permanente e alferes e furriéis milicianos, eram executantes puros que dominavam apenas o nível táctico. Não havia um estado-maior operacional e isso influenciou sempre, sem que nos apercebêssemos, a qualidade da nossa operação mau grado o voluntarismo e agressividade dos pilotos, como se perceberá do episódio que me proponho relatar. 

De facto, agora à distância de 50 anos, analisando a nossa organização e a forma de emprego do poder aéreo naquele tempo, é óbvio que as responsabilidades de nível operacional residiam na pessoa do Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné[8] (COMZAVERDEGUINÉ). Numa condição de guerra é, na actualidade, indiscutível que deviam ter sido responsabilidades apoiadas por um estado-maior o que nunca aconteceu. Poder-se-ia agora argumentar que dada a pequena dimensão da componente aérea as responsabilidades de nível operacional caberiam nas competências do Comando-Chefe e, de facto, isso podia ter sido feito não fosse o facto do QG conjunto ser um comando essencialmente terrestre. Da Força Aérea apenas contava com um oficial de ligação com o posto de capitão. Mas mais ainda, nos casos em que o comandante da zona aérea não tivera experiência anterior nas unidades de caça, essas responsabilidades eram informalmente assumidas pelo comandante do grupo operacional como se fosse uma coisa natural. Mas tal como o comandante da zona também o comandante do grupo operacional não dispunha de um estado-maior de combate. Em termos práticos foram responsabilidades de cariz vincadamente unipessoal e, por isso, foram deficientemente exercidas mas nunca ninguém se apercebeu desta lacuna porque não fazia parte da nossa cultura. 


Antecedentes do abate do Pirata[9]

No dia 26 de Julho de 1968 uma parelha de G-91, em patrulhamento na fronteira Sul, foi alvejada por fogo antiaéreo, na vizinhança do corredor do Guilege. O relatório do chefe da formação referia que foram detectadas três armas no ponto GUILEGE 8 H 1 5/9, próximo da antiga tabanca de Sare Morso[10]. Porque situações desta natureza tinham sido comuns nos últimos meses de 1967 até Março de 1968 tudo sugere que não foi atribuído nenhum carácter de urgência ou excepcionalidade à informação. No entanto, havendo diariamente um briefing dado pelos oficiais de informações do CCAA às 17h00, sobre a actividade efectuada em cada dia, é muito provável que o facto tenha sido divulgado nessa altura. Pessoalmente não tenho memória disso e tenho a certeza de que se tivesse dado conta dessa ocorrência teria ficado focado nela. Mas mais ainda, se o assunto não foi referido no briefing ao fim do dia deveria ter sido no briefing da manhã, no dia seguinte, às 08h00, onde era exposta a actividade prevista para esse dia. Também, provavelmente pensando que a posterior análise do relatório seria suficiente para desencadear as acções mais adequadas, os pilotos envolvidos não comunicaram o facto de viva voz, nem ao Comandante da Esquadra 121, nem ao Comandante do Grupo Operacional. O certo é que nenhum deles tomou conhecimento da existência daquela AAA[11] e isso influenciou negativamente as decisões posteriores.

Nesse mesmo dia 26 de Julho, ao fim da tarde, na reunião diária no Comando-Chefe[12], foram referidas pelos oficiais de informações notícias dando conta da existência ou construção de um túnel na zona fronteiriça, que passaria debaixo do corredor[13] que, vindo de Kandiafara, penetrava no território nacional. Como nessa altura o alvejamento dos G-91, ocorrido durante a manhã, ainda permanecia no âmbito da Força Aérea, os oficiais de informações do Comando-Chefe não estabeleceram qualquer ligação entre aquelas notícias e a AAA que já fora detectada. 

No dia seguinte, 27 de Julho, uma segunda parelha de G-91 voltou a ser alvejada pelas mesmas armas[14] mas, novamente, nem o Comandante da Esquadra 121, nem o Comandante do GO 1201 tomaram conhecimento do facto. O relatório deve ter tido o tratamento de rotina a nível do CCAA mas não influenciou imediatamente o nível de decisão do grupo operacional, o que se pode explicar por motivos de natureza circunstancial. Provavelmente, absorvidos por outras solicitações, nem o Comandante do GO 1201, nem o Comandante da Esquadra 121 assistiram aos briefings de informações das 17h00 do dia anterior nem ao das 08h00 desse dia e também nenhum dos pilotos envolvidos achou necessário comunicar-lhes o facto directamente. 

Sensivelmente na mesma altura em que os guerrilheiros, certamente apoiados pelos barbudos do Fidel[15] como era a prática corrente, faziam tiro ao alvo à parelha de G-91 que acabo de referir, o Tenente-Coronel Costa Gomes chamou o Capitão Vasquez que conhecia bem o trilho do corredor do Guilege e informou-o sobre as notícias que ouvira no dia anterior referindo o aumento da actividade do PAIGC e a história da construção de um túnel. Deu-lhe então instruções para efectuar um reconhecimento visual em DO-27, para confirmar ou desmentir essas notícias, e recomendou-lhe que levasse com ele um piloto de helicópteros para o caso de vir a ser necessário lançar uma operação helitransportada. 

Friso novamente que, até ao momento, apesar das indicações já existentes, tanto o comandante do grupo como o Capitão Vasquez continuavam a ignorar a existência de armas AA[16] activas junto ao corredor do Guilege. Começou assim a desenhar-se uma armadilha que iria ter consequências desastrosas. 


O RVIS[17] ao corredor do Guilege na tarde do dia 27 de Julho de 1968

É com as palavras que se seguem que o então Capitão Vasquez relata o que aconteceu durante o RVIS: 

“Planeei a missão com o Tenente Ruano e descolámos com destino ao corredor do Guilege. 

Iniciámos o reconhecimento a partir de Porto Balana voando a cerca de 300 pés sobre o terreno e mantendo o trilho à nossa direita. Fomos observando ou "lendo" o trilho, à procura de indícios que configurassem ou não a suspeita levantada na reunião no Comando-Chefe. 

Pouco depois de atravessar a picada Gadamael Porto - Gandembel, seguindo o corredor em direcção à “cambança” para Kandiafara e com o trilho entre 200 a 300 metros à direita, fomos subitamente surpreendidos por um intenso tiroteio antiaéreo, vindo da esquerda da nossa rota de voo. As armas que disparavam seriam duas ou mais, dado o intenso matraquear ouvido dentro do avião e a quantidade de trajectórias tracejantes avistadas, próprias de armas de calibre não inferior a 12,7 mm. (Ver a rota de voo, no croquis da carta de 1/50.000). Reagi voltando imediatamente pela direita para me afastar das armas e por sorte entrei imediatamente num aguaceiro que caía naquele momento sobre o trilho o que terá facilitado o escape. Não sentimos nenhum estrondo, nem surgiram sinais de mau funcionamento o que deu logo a sensação de que não tínhamos sido atingidos. 

Regressámos imediatamente a Bissau com uma aterragem intermédia em Buba para inspeccionar o avião o que permitiu confirmar que não tinha sido danificado.” 

A rota do RVIS desenhada numa carta 1:50.000 pelo ex-Capitão Vasquez 

À chegada à BA12, Bissalanca, o Capitão Vasquez e o Tenente Ruano foram imediatamente relatar ao Tenente-Coronel Costa Gomes o que se tinha passado. O comandante do grupo mostrou-se surpreendido e questionou a credibilidade da presença das armas AA naquela zona. Na sua ideia, a anterior tentativa do PAIGC declarar o Quitafine uma zona libertada[18], com recurso à instalação de numerosas armas AA, tinha acabado por ser derrotada em Março de 1968 e não faria agora sentido insistirem naquela táctica porque a Força Aérea acabaria por destruir-lhes o arsenal. Além disso, tinha sido o Tenente-Coronel Costa Gomes que liderara essa campanha e penso que lhe custou admitir que, pelo menos aparentemente, estava tudo a voltar à estaca zero. Chegou mesmo a chamar a atenção do Capitão Vasquez para a responsabilidade do que estava a relatar mas a segurança das afirmações dos dois pilotos acabou por convencê-lo. 

É certo que o PAIGC tinha continuado a instalar AAAA ao longo da fronteira mas apenas em território da Guiné-Conacri. Procuravam atingir os aviões a operar nas proximidades e raramente foram detectadas. Lembro-me de uma vez em que voava sobre a fronteira Sul com o Tenente Firmino das Neves ter avistado por entre a folhagem o característico relampejar de uma AA que não nos atingiu. Outro caso de que tenho conhecimento, esse na mesma altura em que ocorreu o episódio objecto do presente relato, deu-se com uma parelha com o Capitão Vasquez e o Tenente Balacó Moreira. Voavam também sobre a fronteira e começaram a ver uma série de flocos que se formavam mais acima da altitude de voo. Eram claramente rebentamentos de granadas de canhões AA 37mm que deviam estar programadas para os 8000´. Não foi possível detectar as armas e o chefe da formação deu ordem para descer imediatamente para anular o campo de visão dos atiradores não tendo havido consequências. 

Ao fim da tarde, na reunião no Comando-Chefe, o Tenente-Coronel Costa Gomes comunicou então o que se tinha passado durante o RVIS no corredor do Guilege. A reacção do Brigadeiro Spínola, no seu estilo peculiar, foi muito directa e até um pouco desabrida: 
- Isso é um problema para a Força Aérea resolver! – disse ele rodando a cara de modo a fixar o Comandante do Grupo Operacional. 

O ex-Tenente-Coronel Costa Gomes diz que até lhe pareceu que o monóculo do Comandante-Chefe faiscou quando deu aquela ordem. Talvez tenha sido o reflexo momentâneo de alguma luz mas o que mais o marcou foi a percepção de que naquele caso a Força Aérea era ele, Costa Gomes, e só ele. Sentiu por isso que o Comandante-Chefe lhe estava a dar uma ordem de missão personalizada e que ele, naturalmente, teria de cumprir. 


Um reconhecimento fotográfico que correu mal 

No dia seguinte o Comandante do GO 1201 deu ordem para que fosse preparada uma parelha de G-91 para se efectuar um reconhecimento fotográfico. Nessa manhã eu estava incumbido de executar um TGER[19] em DO-27 em apoio do batalhão de Nova Lamego. Por mero acaso, antes de partir, assisti a uma conversa entre o comandante do grupo e o Capitão Vasquez em que os dois combinavam um reconhecimento fotográfico a baixa altitude para localizar e identificar umas AA junto ao corredor do Guilege. Foi a primeira vez que ouvi falar dessas armas e, não sei porquê, fiquei com a sensação que aquilo podia correr mal. 

Conta o ex-Capitão Vasquez que planeou a missão sozinho e que, numa carta 1:50.000, traçou uma rota em que o ponto inicial para a aproximação ao alvo era o aquartelamento do Guilege. Daí para a frente era só manter rumo e velocidade e o alvo devia ser avistado, se tudo corresse bem, um minuto e dezasseis segundos depois. A baixa altitude não havia referências, só se via o campo verde de um ondulado uniforme formado pelas copas das árvores. A navegação tinha que ser por isso muito estável e ao fim do tempo era necessário subir ligeiramente para tentar detectar visualmente onde estavam as AA, manobrar para corrigir a posição relativa, colocar o retículo da camara mais adequada no alvo e accionar o sistema fotográfico. 

A seguir deviam descer imediatamente e afastarem-se flectindo para a esquerda para evitar entrar na Republica da Guiné-Conacri. 

Quando os dois pilotos chegaram à linha da frente levantou-se a questão de quem seria o número um da formação. Pessoalmente penso que isso seria indiferente visto que naquele tipo de aproximação baixa apenas contava o rigor da navegação. O Capitão Vasquez embora já tivesse sido alvejado por aquelas AA não sabia com precisão onde elas estavam e, portanto, tinha tantas probabilidades de acertar como o comandante do grupo. Estava é mais rotinado no voo baixo o que poderia facilitar a detecção de qualquer pormenor que lhe permitisse corrigir a navegação e, por último, estava mais habituado a utilizar o equipamento de reconhecimento fotográfico. No entanto, apesar de contestada pelo capitão, a decisão do comandante do grupo foi peremptória: seria ele a liderar a missão. Nos últimos anos ouvi várias vezes o ex-Tenente-Coronel Costa Gomes explicar o que o levou àquela opção. Evoca normalmente dois motivos. Diz ele que, naquela altura, imaginava ter sido directamente responsabilizado pelo Comandante-Chefe. Sentia que o Brigadeiro Spínola estava à espera que fosse ele a resolver o problema daquelas AA e, além disso, como se tratava de uma missão com algum risco e sendo o mais antigo não podia deixar de ser ele a ir à frente. Era inadmissível proceder de outra forma. O que se passou a seguir foi mais ou menos o seguinte: 

A parelha descolou seguindo os procedimentos de rotina e voaram a uma altitude confortável até terem o Guilege à vista. O Tenente-Coronel Costa Gomes pilotava o G-91 5411 e o Capitão Vasquez seguia-o cerca de 300 metros atrás no G-91 5416. Depois desceram e passaram o Guilege já a voar muito baixo. O número dois deixou-se então atrasar para criar maior espaçamento entre os aviões e facilitar a manobra individual. Ao fim do tempo previsto o número um iniciou uma subida suave para tentar localizar as armas. Viu-as imediatamente à sua direita, numa zona desmatada, com um ligeiro declive, mas estava praticamente em cima delas sem condições para fotografar. Aparentemente surpreendidos os atiradores das AA não abriram fogo imediatamente, possivelmente porque estavam à espera de alvos na direcção de Gandembel que era para onde estava virada a encosta onde estavam instalados. 

Reflectindo agora sobre os detalhes deste momento penso que o facto de não terem disparado logo terá funcionado no imediato como uma espécie de tranquilizante para o Tenente-Coronel Costa Gomes. Só assim se justifica que numa situação tão vulnerável não tenha iniciado imediatamente uma manobra de evasão. Ainda estava a avaliar o que poderia fazer para se colocar em posição para fotografar quando, por volta dos 800’ e com cerca de 250 KIAS, viu as armas começarem a disparar todas ao mesmo tempo e sentiu o que lhe pareceu serem umas pancadas na fuselagem. Imediatamente acenderam-se as luzes de aviso de fogo o que o levou, instintivamente, a aumentar ainda mais o angulo de subida. Pelo retrovisor viu que tinha fogo na cauda e então comunicou[20] ao número dois o que sucedera e pediu-lhe para verificar o estado do avião. 

O Capitão Vasquez concentrado na sua própria navegação não tinha dado por nada. Estava a procurar localizar as AA, que não chegou a ver, quando ouviu a comunicação do chefe da parelha. Olhou imediatamente para a frente e viu o outro avião numa atitude pronunciada de subida com a cauda envolta em chamas que se prolongavam num longo rastro. 

Há quase cinquenta anos que o ouço repetir o que sentiu naquele momento. Diz ele que a situação lhe pareceu tão severa que não hesitou em dar-lhe indicação para se ejectar imediatamente, apesar dos gravíssimos perigos que o esperavam no solo: 
- "Pirata, tem fogo, ejecte-se já, Pirata, ejecte-se já"!!!! 
- “Vou aguentar mais um bocado” – respondeu o Pirata que, apesar do fogo, estava bem consciente dos riscos da proximidade aos guerrilheiros do PAIGC. 

A seguir, o número dois observou o avião do chefe a meter a asa esquerda em baixo e rodar para esse lado, a muito baixa velocidade, como se fosse fazer um “renversement”. Não chegou a rodar 180º mas terá completado entre 110º e 120º de rotação nessa manobra saindo mais ou menos apontado ao sol e ao único aquartelamento do Exército naquela zona: Gandembel. 

O Tenente-Coronel Costa Gomes conhecia bem a área, tinha estado poucos dias antes no aquartelamento com o Brigadeiro Spínola e por isso estava orientado e foi sem dificuldade que, apesar da aflição, localizou imediatamente o aquartelamento. Manteve a direcção do voo até ter Gandembel mesmo à sua direita e então ejectou-se. Pelos meus cálculos terão decorrido cerca de 30 segundos desde que foi atingido até esse momento. 

O número dois, que entretanto tinha “cortado a volta” para se aproximar, ficou a ver o pára-quedas descendo sobre a mata, bastante próximo do aquartelamento. Foi então que mudou para a frequência de apoio aéreo e emitiu o alarme que compõe o título deste relato. 

O TCor Costa Gomes com o Comandante-Chefe em Gandembel poucos dias antes de ser abatido 

A rota desde o Guilege até ao alvo e depois à ejecção.

************

Notas:

[1] - Série de artigos inicialmente projectada para ser publicada na revista Mais Alto da Força Aérea.
[2] - Indicativo táctico do Centro Conjunto de Apoio Aéreo na Base Aérea 12 (CCAA). Anos mais tarde passou a ser designado Centro de Operações Aero-Tácticas (COAT)
[3] - Indicativo táctico do TCor Francisco Dias da Costa Gomes, na altura Comandante do Grupo Operacional 1201
[4] - Missão de ligação e apoio logístico em proveito de um batalhão do Exército.
[5] - Indicativo táctico do Cap Fernando de Jesus Vasquez, Comandante da Esquadra 121 que emitiu o alerta e que, na circunstância, era o asa do Comandante do Grupo.
[6] - Indicativo táctico do autor do presente artigo.
[7] - Na altura, a única directiva superior para a Força Aérea era uma nota da Secretaria Geral da Defesa Nacional (na Cova da Moura, em Lisboa), com umas poucas linhas de texto dando conta do emprego de armas antiaéreas pelo PAIGC, no Sul da Guiné, e que terminava com as seguintes palavras “…pelo que deve a Força Aérea proceder à sua neutralização.”
[8] - O mais elevado nível de Comando da Força Aérea no Teatro de Operações da Guiné.
[9] - Pressupostos baseados na rotina diária das operações.
[10] - ZASITREP 209/68 26JULHO
[11] - Anti-Aircraft Artillery
[12] - QG do Comandante em Chefe
[13] - Corredor do Guilege
[14] - ZASITREP 210/68 27JULHO
[15] - O enquadramento das operações antiaéreas pelos cubanos já está suficientemente recortado para se assumir que também participaram nesta acção. Por essa altura os apoiantes cubanos eram quase todos pretos para não se distinguirem facilmente no meio da guerrilha.
[16] - Antiaérea(s)
[17] - Sigla que designava uma acção de reconhecimento visual
[18] - Estratégia desenhada pelo Comité de Descolonização da ONU, também conhecido como Comité dos 24. Como a estratégia não vingou o Comité dos 24 acabou por decidir enviar, em 1972, três embaixadores que efectuaram uma passeata furtiva no Sul da Guiné e declararam depois ter estado em “zonas libertadas”. Foi com base nesse testemunho, claramente fabricado, que Portugal foi considerado ocupante ilegal do território o que criou as condições políticas para que, a seguir, em 24 de Setembro de 1973, o PAIGC declarasse unilateralmente a independência. Na prática, a declaração unilateral da independência não foi uma iniciativa do PAIGC mas sim um plano concebido e orquestrado pelo Comité dos 24.
[19] - TGER: sigla para transporte geral que neste caso incluía tudo o que um batalhão normalmente necessitava distribuir pelas companhias. Normalmente era transportado pessoal, correio, víveres, munições, etc..
[20] - As comunicações tácticas entre os G-91 eram efectuadas em UHF, gama de frequências que não estava disponível nos outros tipos de aeronaves do GO1201.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16296: FAP (96); Algumas correções, para a história: (i) Morais da Silva comandava a Esquadra121, também dos Fiat G-91 e nunca voou helicópteros; (ii) quem veio substituir o cap pilav Cubas em 1970 foi o cap pilav Zúquete da Fonseca, o meu primeiro comandante de Esquadra; (iii) não foi a Esquadrilha mas a Esquadra de voo 122, que sempre se designou por Canibais; (iv ) quando lá cheguei, em 8/12/1970, ainda conheci a "velhice", o Jorge Félix, o Solano de Almeida, o Heleno e o Falé... (Lino Reis, ex-alf mil pil, BA 12, Bissalanca, 1970/72)

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15122: Da Suécia com saudade (50): A propósito do 'massacre de Sangonhá' (ou Sanconhá), de 6/1/1969... Contrariamente ao que escreve o gen pilav ref José Nico no poste P15038, não encontrei, até agora, nos arquivos do reino da Suécia, qualquer referência à eventual presença, nesse dia e local, de uma equipa cinematográfica sueca...


Guiné-Bissau > Bissau > ONG AD - Acção para o Desenvolvimento > 12 de dezembro de 2013 > Atelier ambiental transfronteiriço em Sanconhá (sic). Foto: cortesia da página da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, cofundada e dirigida, até à sua morte, pelo nosso saudoso amigo Pepito (1949-2014).

 "De 6 a 7 de dezembro de 2013, realizou-se em Sanconhá, junto à fronteira com a Republica da Guiné, o 2º atelier transfronteiriço, o qual tomou decisões muito importantes. Salienta-se a criação do 'Parque Comunitário Para a Paz, de N’Compá', a primeira área transfronteiriça dos dois países, a partir do qual se estabelecerá um processo de cooperação para o desenvolvimento das populações de ambos os lados da fronteira."

Foto (e legenda): © AD - Acção para o Desenvolvimento (2013). Todos os direitos reservados



1. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia...

[ foto atual à esquerda: José Belo, ex-alf mil inf, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); atualmente é cap inf ref e vive na Suécia há quase 40 anos]

Data: 17 de setembro de 2015 às 17:36
Assunto: O poste 15038 e..."Os olhos azuis"


"Romanceamentos"


Os antigos combatentes continuam,e continuarão,a sentir profundo orgulho no seu serviço prestado na Guiné.

Existem dificuldades, mais do que compreensíveis,  em esquecer que algumas das ajudas humanitárias e económicas dadas por outros países aos movimentos de libertação que nos combatiam,  acabavam por, indirectamente, aumentar as suas capacidades militares e o número de mortos e feridos que nos iam causando.

Independentemente das ideias políticas de cada um, não o reconhecer seria mais do que falacioso na injustiça para com os camaradas que directamente vieram a sofrer as consequências destes auxílios.

Uma política nacional de apoio económico e social aos movimentos de libertação em África, América Central e do Sul, assim como ao Vietname, foi a dominante sueca nos anos sessenta e inícios de setenta.

Mas terá alguma vez havido "amizades" entre as políticas nacionais dos diversos países europeus, independentemente de o facto aparentamente poder "chocar" alguns militares com altos postos?

Assim como o governo português, no que julgava ser uma política colonial de defesa dos interesses nacionais, näo foi pedir sugestões aos suecos, não se pode estranhar que estes também o não tenham feito quanto aos seus interesses.

A Força Aérea de que todos nos devemos orgulhar

O sr. general José Nico apresentou de forma interessante, e profissional, a actuação da nossa Forçaa Aérea aquando das operações em Sangonhá [ou Sanconhá, para os guineenses, antes e depois da independência].

Mais uma vez se pode verificar com profundo orgulho a coragem, voluntarismo, eficácia e dedicação demonstradas pelos profissionais que faziam os possíveis, e os "impossíveis", para obterem o melhor rendimento e resultados do material de que dispunham, arriscando muitas vezes a vida ao procurar contornar muitas das limitações enfrentadas diariamente.

O mesmo näo o posso fazer quando o sr. general começa a divagar em análises político-sociais que de tudo um pouco envolvem no respeitante à Suécia, suas gentes, realidades económicas. Não menos, por leituras aparentemente fáceis sobre o luteranismo e suas influências histórico-actuais.

O sr. general terá, obviamente, todo o direito de ter as opiniöes que achar por boas.

Ao ponderar sobre assuntos técnico-operacionais da sua Arma e Especialidade há que humildemente saber ouvir.

No entanto, ao entrar por divagações políticas, alguns de nós, com a mesma humildade e respeito anteriormente referido, pdoerão... discordar.

Toda a divagação pós-operacional se situa na hipótese de que o nosso sucesso em Sangonhá [ou Sanconhá] se tornou possível pelo facto de os guerrilheiros do PAIGC estarem a participar ,como figurantes, em filme sueco de propaganda quanto às suas capacidades militares.

Tal conclusão é unicamente baseada num relatório apresentado pela polícia política da ditadura, que o sr. general cita de memória, pois acaba por admitir não ter até à data podido provar a [sua] existência por... [ter] desaparecido.

Basear täo "nuanceadas" conclusões em relatório único da polícia política, envolvida na guerra de propaganda e contra-propaganda, será, pelo menos, um pouco limitado nas fontes.

Muitas e díspares opiniões se poderão ter sobre a Direção Geral de Seguranca [, DGS],mas será pouco admissível acreditar-se serem os mesmos ingénuos e incompetentes na contra-propaganda da zona de guerra na Guiné.

Nem a nível oficial, nem a níveis pessoais, existe qualquer referência a tal filme entre as gentes do PAIGC,

Sabendo-se o gosto pelo "ronco" por parte da maioria dos locais, ou mesmo a lógica utilização de tão grande desastre militar como arma de arremesso (então ou posterior) entre as inúmeras facções políticas guineenses, este não documentado desastre é, pelo menos, estranho.

As [escrutinadíssimas] fontes suecas

Decidi então procurar na Suécia respostas.

Primeiro junto do Partido do Governo na data da ocorrência (socialistas), não encontrando nos arquivos qualquer referência a filmagens em Sangonhá [ou Sanconhá].

Forneceram-me contactos quanto aos arquivos do Departamento Estatal que trata dos assuntos relacionados com os apoios aos países em desenvolvimento e, tanto referido à Guiné como ao PAIGC em particular,  nada está referenciado quanto a tal ocorrência.

Para acalmar o nosso gosto mórbido quanto a possíveis "conspirações do silêncio" acabei por também contactar os sindicatos dos cineastas, fotógrafos e jornalistas na busca de participantes vivos, mortos ou feridos nas pessoas dos profissionais neles registados.

Nada quanto ao filme, participações, e muito menos quanto a mortos ou feridos.

Quanto aos últimos, numa sociedade totalmente aberta ao escrutínio dos cidadãos como é a sueca, mortos e feridos em África sem terem surgido nos jornais,TV, rádio, ou em discussões inter-parlamentares, é algo de impossível.

Temos portanto até hoje o tal relatório da Direção Geral de Segurança misteriosamente desaparecido em Portugal.

A não ter uma das tais suecas de olhos azuis ido aí para o destruir,  restam-nos sentimentos de fé, certamente muito válidos quanto aos Arquivos do Vaticano mas...quanto à política da ditadura e seus agentes?

Não tendo qualquer procuração jurídica, necessidade ideológica ou desejo pessoal de defender as políticas do reino da Suécia ( e quem sou eu para o fazer?), ficamos à espera que alguém encontre referências documentadas sobre o assunto, e deste modo, evitando intrepretações subjectivas,  passíveis de debates mais ou menos... romanceados.

Um grande abraço, desde Estocolmo,
do José Belo.

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(...) Segunda parte do trabalho da autoria do General PilAv José Francisco Fernando Nico, versando a ajuda da Suécia aos Movimentos de Libertação africanos, durante a guerra colonial, enviado ao Blogue pelo nosso camarada Miguel Pessoa, Cor PilAv Ref (ex-Ten PilAv, BA 12, Bissalanca, 1972/74) em 22 de Agosto de 2015.

(...) A razão para o suicídio do PAIGC em Sangonhá

(...) Por acaso tudo se aclarou alguns dias mais tarde ao ler um relatório da DGS que chegou ao gabinete do Comandante do Grupo Operacional 1201. Para mim foi uma espécie de relâmpago que tudo iluminou e desvendou, num instante, a lógica daquele comportamento estranho do PAIGC. Não consegui agora encontrar nenhum registo desse documento mas o facto é que me marcou tanto que nunca mais esqueci o essencial do que li. Resumidamente, a DGS dava conta de que o ataque se tinha enquadrado numa acção de propaganda promovida pela Suécia. Na minha opinião, muito provavelmente a pedido do próprio Amílcar Cabral, resolveram aproveitar o abandono de Sangonhá para simular a tomada do aquartelamento pela guerrilha. O cenário não podia ser mais perfeito. Antes de abandonar a posição, as instalações do aquartelamento tinham sido destruídas pelo Exército e essa imagem podia ser facilmente mostrada em fotografia e filme como sendo consequência dos ataques do PAIGC. Depois, a posição “acabada de conquistar” podia ser utilizada para mostrar o poder de fogo do PAIGC contra as posições que se preparavam para conquistar a seguir: Ganturé e Gadamael. Uma equipa de repórteres, incluindo fotógrafos e cineastas,  deslocou-se para esse efeito à Guiné-Conacri onde se juntou aos guerrilheiros. Um total de 400 pessoas terão estado envolvidas em toda a operação,  segundo as informações do régulo Abibo,  de Ganturé.

Ficou assim explicado porque razão o PAIGC se tinha exposto em pleno dia a levar com as bombas da aviação. É que não era possível fotografar nem filmar sem luz. Também não fazia sentido estarem escondidos quando tinham acabado de derrotar e afugentar o inimigo. Tinham, é claro, a noção de que iam correr um grande risco e por isso o terem levado a ZPU-4 para se defenderem. Mas cometeram um segundo erro, este gravíssimo. Foram detectados e,  em vez de embalarem a trouxa e rumarem novamente à Guiné-Conacri, deixaram-se ficar. Pessoalmente penso que, como os dois primeiros aviões não abriram fogo, assumiram que, ou os tinham atingido, ou os tinham dissuadido e resolveram continuar a fazer a “fita”.

Faltava explicar a utilização das peças anti-carro porque, como já foi dito, não eram, nem armas de guerrilha, nem adequadas às flagelações aos aquartelamentos. Não há mesmo conhecimento de terem sido utilizadas em qualquer outra ocasião.

Uma explicação muito credível ocorreu-me quando descobri algumas fotos dessas armas no arquivo Amílcar Cabral da Fundação Mário Soares. Fiquei até convencido que respeitam à acção do dia 6 de Janeiro de 1969. Passo a explicar.

O objectivo da operação era produzir propaganda, como referiu a DGS no seu relatório. Havia, por isso, necessidade de mostrar grande capacidade militar e poder de fogo, factores esses que estariam a determinar avanços do PAIGC no terreno nomeadamente a conquista de posições ocupadas pelos portugueses. Acontecia que aquelas peças anti-carro tinham um reparo longo, tinham rodas e um cano comprido. As eventuais audiências alvo da propaganda ficariam certamente muito mais impressionadas se o ataque fosse feito com estas peças de artilharia em vez dos tradicionais morteiros ou dos canhões sem recuo que eram armas relativamente pequenas. Só uma razão desta natureza os poderá ter levado a não utilizar o armamento tradicional nesta flagelação a Ganturé: nenhuma granada rebentou no perímetro do destacamento. (...)

(...) Concluindo, ironicamente pelo menos desta vez, a bondosa ajuda humanitária sueca cujo objectivo foi soprar “os ventos da história”,  contribuindo para a derrota militar dos portugueses,  não conseguiu infligir baixas às nossas forças. Ao invés, provocou um número substancial de mortos, feridos e incapacitados entre os guerrilheiros e, muito provavelmente, também entre os apoiantes cubanos, repórteres, fotógrafos e cineastas suecos. Que foram encontrados diversos despojos de pele branca é um facto,  mas nunca se conseguiu saber a quem teriam pertencido. O PAIGC e o governo sueco, em escrupulosa obediência às regras da propaganda nunca revelaram, nem durante a guerra, nem depois, este desastroso embate. (...)


quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15100: FAP (88): A propósito da Op Mar Verde, dos MiG e do artigo do José Matos: Labé ainda hoje não tem uma pista capaz de receber MiG, se eles existiam mesmo só podiam estar em Conacri...Será que a malta foi mesmo ao aeroporto ? (António Martins de Matos, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)

 
1. Comentário de António Martins de Matos ao poste P15092 (*):


[ex-tenente pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74), hoje ten gen pilav ref; membro da Tabanca Grande ]


Tenho que felicitar o José Matos pelo seu exaustivo trabalho de pesquisa, deu-nos a conhecer uma outra visão, a dos Altos Gabinetes e Estados Maiores, como a política e as chefias militares lidavam com os assuntos da distante (para eles) Guerra do Ultramar.

Constatei o que sempre tinha suspeitado, como assuntos importantes eram discutidos, avaliados e decididos por alguns “teóricos”, sem ouvirem a opinião dos “combatentes”, dou dois exemplos:

(i) quererem meter mísseis ar-ar num avião (FIAT G-91) que era concebido para missões ar-chão; mal comparado, seria o mesmo que meterem pneus de corrida num Smart;

(ii) não havendo uma cobertura eficaz de defesa aérea na Guiné, a compra dos Crotale era totalmente descabida, estes mísseis não podem (devem) actuar a solo mas sim englobados num sistema mais vasto de defesa aérea, por si só o operador de tão sofisticada bataria de mísseis nunca conseguiria destrinçar um G-91 de um MiG. (foi assim que os separatistas na Ucrânia deitaram abaixo um comercial, pensando que estavam a abater um bombardeiro ucraniano).

Só há pouco tempo constatei que havia um radar de defesa aérea na Guiné, até tenho uma foto onde o malfadado radar aparece em fundo, malfadado porque preciosa ajuda nos teria dado se estivesse a funcionar, essencialmente para nos guiar quando em missões de má visibilidade, o elemento que faltava para que se pudessem fazer missões de noite. Dois anos de comissão e … nunca mexeu!

Sobre as estórias dos MiG, já aqui no blogue e em tempos escrevi sobre o tema (**), penso que o texto do José Matos e o meu se complementam, apenas um comentário, contestar a afirmação de, na operação Mar Verde, ao não terem encontrado os MiG, “alguém” ter afirmado que eles estariam em Labé.

Labé ainda hoje não tem uma pista capaz de receber MiG, está situada num planalto a uma altitude de 3396 pés (1000 metros) e tem um comprimento de 6500 pés (2000 m), os MiG precisavam de uma pista asfaltada e com um comprimento mínimo de 8000 pés.

Aliás e se quisermos ser mais picuinhas, se hoje um qualquer MiG quiser aterrar na Guiné, tem de ser em Conacri, caso contrário … parte a cara.

Do acima escrito reafirmo as minhas conclusões, ou não havia MIG na Guiné, ou, se havia, estavam em Conacri!

A minha pergunta:
Será que os da missão Mar Verde foram ao aeroporto?

Abraços
AMM


PS - Quando digo que os MiG só podem aterrar em Conacri estou obviamente a referir-me à Guiné, não à Guiné-Bissau. Na Guiné-Bissau sempre houve 2 pistas aptas a aviões deste tipo, Bissalanca e Nova Lamego. [O MiG precisava de uma pista com comprimento relativamente grande (2,5 km), asfaltada, coisa que na vizinha Guiné apenas existia na capital, tudo o resto era curto e em terra batida] (**).

Era procedimento normal na aterragem do FIAT-G91 a utilização de um paraquedas para ajudar a travar o avião.

A pista de Nova Lamego não era de terra, era asfaltada (cimentada?), era uma alternativa a Bissau anda que, por algumas vezes, fosse utilizada como ponto de partida para missões.

Os aviões a jacto, Fiat, MiG, Boeing, Airbus..., não podem utilizar pistas de terra, as poeiras, pedras e outros detritos danificam os motores.



Recorte de imprensa > "Nouvelles de Guinée", s/d > Labé: o aeroporto à mercê dos animais domésticos... Foi recentemente atingido por um tornado e as suas seriamente danificadas, em 1/6/2015... Labé é a capita do Fouta Djallon.  [Fonte: Nouvelles de Guinée, com a devida vénia...] [Edição e legenda: LG]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 9 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15092: FAP (87): a ameaça dos MiG na guerra da Guiné (José Matos, Revista Militar, nº 2559, abril de 2015) - IV (e última) parte

(**) Vd. poste de 1 de dezembro de 2010 > Guiné 63/74 – P7366: FAP (56): MIGs, MIRAGEs e miragens (António Martins de Matos)

(...) No meio deste desconforto de nos podermos encontrar cara a cara com um MIG-17, o que nos tranquilizava era não haver qualquer confirmação fidedigna de que o país vizinho dispusesse de aviões daquele tipo.

Cá pela minha parte várias vezes fui incumbido de ir voar junto à fronteira, a ver se via algum, nunca os enxerguei.

E deixem-me dizer-vos “ainda bem”, porque tendo o péssimo hábito de fazer perguntas, uma vez calhei a perguntar aos meus superiores, o que deveria fazer caso os avistasse: abatê-los, assustá-los, pirar-me, assobiar para o lado, eventualmente cumprimentá-los ?

Resposta do meu superior, “depois logo se vê”, como se tal fosse possível, num minuto tudo estaria iniciado e concluído. (...)

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15038: FAP (83): Pedaços das Nossas Vidas: VI - Um ataque com "olhos azuis" - II Parte: Um ataque atípico no dia 6 de Janeiro de 1969 (José Nico, Gen PilAv)

1. Segunda parte do trabalho da autoria do General PilAv José Francisco Fernando Nico, versando a ajuda da Suécia aos Movimentos de Libertação africanos, durante a guerra colonial, enviado ao Blogue pelo nosso camarada Miguel Pessoa, Cor PilAv Ref (ex-Ten PilAv, BA 12, Bissalanca, 1972/74) em 22 de Agosto de 2015.

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PEDAÇOS DAS NOSSAS VIDAS

Cumpri muitas missões durante a minha carreira na Força Aérea Portuguesa. A comissão na Guiné, porém, sobrepôs-se a todas as outras e marcou-me indelevelmente para o resto da vida. A mim e certamente a todos os que, de algum modo, partilharam a mesma experiência. É dela ou de acontecimentos com ela relacionados, que vos irei dando conta…
José Nico
Gen PilAv



VI – UM ATAQUE COM “OLHOS AZUIS” (2)

Um ataque atípico no dia 6 de Janeiro de 1969

Naquela segunda-feira, a notícia de um ataque com canhões, ao início da manhã, a Gadamael Porto, sede da CArt 2410 deu logo a ideia de que qualquer coisa estranha estava a acontecer. Não era nada normal o PAIGC desencadear flagelações àquela hora. O que era normal era atravessarem a fronteira durante o dia, estabelecer bases de fogos e depois esperar pelo fim do dia para desencadear os ataques. Podiam depois retirar a coberto da noite, em segurança, com a certeza que, nem o Exército tinha condições para os perseguir, nem a Força Aérea para os detectar e atacar.

Na Base 12 o dia de trabalho estava a começar e o pedido de apoio aéreo que chegou através do Comando-Chefe fez os dois pilotos da parelha de alerta largar o pequeno-almoço, apanhar rapidamente o equipamento e meterem-se no jeep de apoio em direcção à linha da frente. Lembro-me de ter ouvido o que se estava a passar mas tinha outras missões para esse dia e não cheguei a envolver-me no que aconteceu depois. No entanto, num cantinho da memória persiste uma sensação de choque associada à notícia porque fiquei com a perturbante impressão de que tínhamos entrado numa nova fase da guerra.

Dos G-91 prontos na linha da frente, os dois de alerta, como era normal naquela altura, estavam configurados com tanques de combustível externo, 8 foguetes 2,75 polegadas e as 4 metralhadoras 12,7mm19. Não havendo outras informações para ajuizar a situação no terreno o que a experiência ensinara era que a presença dos aviões faria o PAIGC “encolher as unhas” e terminar o ataque. Os dois pilotos procuraram, por isso, descolar e chegar o mais rapidamente possível a Gadamael Porto.

Apesar de andar empenhado na recuperação deste episódio há muito tempo, porque penso que deve ficar registado na nossa memória colectiva, não consegui identificar até agora um dos dois pilotos envolvidos. Por exclusão de partes e porque éramos muito poucos, penso que foi o Capitão Amílcar Barbosa20 o chefe da parelha de alerta, mas não tenho a certeza absoluta. O outro piloto está bem identificado e foi o então Tenente Balacó Moreira de quem obtive muita da informação sobre o que se passou.

Dos registos sobreviventes sabe-se que os aviões descolaram às 09H00, que a flagelação teria começado cerca de uma hora antes e visava objectivamente Ganturé, a curta distância de Gadamael Porto onde, para além de um pequeno núcleo populacional, estava destacado o 4.º grupo de combate da CArt 2410. Numa primeira fase os rebentamentos foram espaçados e compridos dando a impressão que o inimigo estava a regular o tiro21. De Ganturé a resposta estava a ser dada com o morteiro 81 operado pelo furriel miliciano Luís Guerreiro. Com o correr do tempo o PAIGC foi aumentando a frequência dos disparos até que a artilharia de Gadamael Porto também entrou em acção na tentativa de suster a flagelação mas sem resultado. O PAIGC disparava cada vez com mais intensidade mas, felizmente, as granadas passavam silvando sobre Ganturé e iam danificar o arvoredo que se estendia para lá da posição.

Em rota, a parelha de alerta conseguiu entrar em contacto rádio com Gadamael Porto que forneceu uma série de indicações sobre a direcção e distância a que entendiam estar a ser feito o ataque e até dispararam algumas granadas de fumo com o morteiro 81mm para tentar sinalizar esse local. Na carta 1:50.000 essas indicações apontavam para a antiga tabanca de Bricama a cerca de dois quilómetros a SW de Gadamael Porto. No entanto, quando os aviões chegaram à zona, ao passarem junto a Sangonhá, onde estivera instalada uma unidade do Exército até 29 de Julho de 196822, os pilotos foram surpreendidos com o que viram: o perímetro do antigo aquartelamento estava pejado de gente. Perceberam imediatamente que só podiam ser os guerrilheiros responsáveis pela flagelação a Ganturé. Mas o mais espantoso é que estavam ali, num espaço completamente aberto e sem qualquer espécie de camuflagem. Quase à vertical alguns detalhes tornaram-se então claramente perceptíveis como a presença de três armas com rodado. Uma delas, entre o perímetro do aquartelamento e a antiga pista, era uma anti-aérea ZPU-4 que abriu imediatamente fogo contra os aviões obrigando os pilotos a entrarem num circulo alargado para manter uma distância de segurança. Dentro do perímetro do aquartelamento, no meio dos destroços dos edifícios23, estavam duas peças de artilharia com um cano relativamente comprido e, na picada que saindo de Sangonhá se dirigia à Guiné-Conacri, viam-se algumas viaturas incluindo uma ambulância. Deviam ter vindo de Sansalé que era uma pequena aldeia da Guiné-Conacri muito utilizada pelo PAIGC nas suas movimentações junto à fronteira.

O que é que teria passado pela cabeça daquela gente para se expor daquela maneira? O PAIGC e os seus mentores cubanos vinham seguindo à risca a cartilha da guerra de guerrilha mantendo-se sempre encobertos e só atacando quando estavam em vantagem. Quando se sentiam em desvantagem furtavam-se ao contacto. No entanto, desta vez, estavam a fazer tudo ao contrário, de tal maneira que os dois pilotos dos G-91 tiveram dificuldade em assimilar a imagem que a vista lhes oferecia com toda a nitidez. Seria mesmo real o que estavam a ver? O ex-Tenente Balacó Moreira confessa que da sua experiência em operações quase diárias no teatro de operações da Guiné nunca tinha dado de caras com o inimigo numa situação tão vulnerável. No entanto, os aviões da parelha de alerta não estavam equipados para intervir naquele cenário. Quer os foguetes, quer as metralhadoras, para serem eficazes só podiam ser disparados a uma distância relativamente curta do alvo, bem dentro da densa e eficaz nuvem de projécteis cuspidos pelos canos da ZPU-4 à razão de 2400 tiros por minuto. Pela sua extensão e natureza aquele alvo exigia mais aviões e também munições mais capazes.

O comandante da parelha decidiu por isso abandonar a área e regressar imediatamente à BA12 para que a situação fosse ponderada e tomada uma decisão adequada às circunstâncias. Em qualquer caso, a partir desse momento era tudo urgente porque a guerrilha, tendo sido detectada, devia começar a desmobilizar e desapareceria rapidamente nas matas que rodeavam Sangonhá. Cada minuto de atraso na resposta aumentava exponencialmente as probabilidades de insucesso. Depois de informar Gadamael que iam regressar a Bissau o comandante da parelha entrou em contacto com o Centro Conjunto de Operações Aéreas (CCOA).
- Marte, Tigres chamam!
- Marte à escuta, transmita!
- Informe o Pirata24 que estamos a regressar a Bissau. A situação em Gadamael é a seguinte: flagelação a Ganturé continua a partir da pista de Sangonhá. Em Sangonhá vê-se muita gente no chão, uma quádrupla que abriu fogo quando os aviões se aproximaram, dois canhões com rodado, diversas viaturas e uma ambulância. Sugiro preparação de mais aviões com bombas. Diga se copiou.  - Afirmativo Tigres, tudo copiado vou já passar ao Pirata - respondeu o oficial de serviço.

Tinham passado trinta minutos depois da descolagem quando os dois aviões tocaram na pista de Bissalanca e iniciaram uma rolagem rápida para o estacionamento.

Furriel Miliciano Luís Guerreiro operando o morteiro de Ganturé
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Notas:

19 - Esta configuração “standard” permitia alcançar qualquer ponto do território, garantia algum tempo de permanência sobre o alvo mesmo no extremo Leste e dava alguma capacidade de intervenção se não existisse reacção AA.

20 - Cap PilAv Amílcar Barbosa, nascido em Cabo Verde e originário da Esquadra 51 de Monte Real que morreu no ano seguinte, no campo de tiro de Alcochete, ao lançar uma bomba equipada com uma espoleta experimental que funcionou mal.

21 - Não foi certeiro na fase de regulação, nem foi certeiro depois por razões que se explicam no texto.

22 - Na reestruturação do dispositivo ordenada pelo Brigadeiro António de Spínola depois de tomar posse como Governador e Comandante-Chefe, as posições de Sangonhá e Cacoca que ficavam entre Gadamael Porto e Cacine foram abandonadas.´

23 - Os edifícios foram destruídos pelo Exército quando a posição foi abandonada em 29 de Julho de 1968.

24 - Indicativo pessoal do Comandante do Grupo Operacional 1201 que na altura era o TCor PilAV Francisco Dias da Costa Gomes.

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A decisão

Assim que foi informado do que se passava, o Tenente-Coronel Costa Gomes pôs o Comandante da Zona Aérea, Coronel PilAv Diogo Neto, ao corrente da situação. Minutos depois este entrava no gabinete do Comandante do Grupo já com a caldeira a toda a pressão o que nele se percebia facilmente pela veia que no pescoço inchava notoriamente quando a tensão arterial subia. A primeira ideia que lhes ocorreu foi lançar uma operação helitransportada mas rapidamente perceberam que não só era demasiado arriscado como ia demorar muito tempo. De facto, com o número de helicópteros prontos não seria possível transportar mais que trinta paraquedistas o que era muito pouco. Não haveria surpresa e, além disso, não havia uma zona de aterragem reconhecida nem havia ideia do perímetro defensivo do PAIGC à volta de Sangonhá. A aterragem dos helicópteros teria de ser feita numa clareira ad hoc e relativamente longe do alvo não só porque não se sabia por onde andavam os guerrilheiros mas também por causa da ZPU-4. Acresce que se esta não fosse eliminada pelos G-91, o que não podia ser garantido, o apoio de fogo aos paraquedistas não seria exequível. Era também preciso reunir e preparar os homens o que iria demorar pelo menos uns 45 minutos. Finalmente, a velocidade do AL III também não ajudava. Tudo somado, mas em especial o risco de lançar trinta homens num local pejado de guerrilheiros, sem informações adequadas, fê-los desistir imediatamente da ideia.

As hipóteses de acção ficaram assim reduzidas aos G-91 e a quatro pilotos. Os dois da parelha de alerta que estava a aterrar, o Comandante da Zona Aérea e o Comandante do Grupo Operacional. Os restantes pilotos de G-91 estavam empenhados noutras missões e não estavam disponíveis. Também não havia tempo para montar a carga máxima nos aviões porque era preciso retirar os tanques de combustível e as calhas dos foguetes dos aviões que tinham ido a Gadamael e montar os suportes que permitiam levar duas bombas de 50kg em cada asa, em quatro aviões. Tudo no mínimo tempo possível. Assim, em vez de um total de 8 bombas de 200kg mais 16 bombas de 50kg foi dada ordem ao pessoal de armamento para montar apenas 8 bombas de 200kg mais 8 bombas de 50kg.

Entretanto, o Comandante-Chefe já tinha sido informado do que se estava a passar e quis falar com o Coronel Diogo Neto. Este meteu-se na viatura e lá foi ao Forte da Amura explicar o que lhe parecia mais razoável e eficaz. Como era de esperar a preferência do Brigadeiro Spínola ia para o emprego dos paraquedistas mas depois de ouvir as explicações do coronel concordou e deu o seu aval ao “plano de acção”.

Na BA12 os mecânicos e o pessoal de armamento, cientes da urgência da missão, esforçavam-se para aprontar os aviões o mais rapidamente possível. Não conseguiram porém evitar que o Coronel e os outros três pilotos que entretanto tinham chegado à linha da frente, completassem as inspecções e ficassem à espera, já sentados no cockpit, que o processo de configurar os aviões com as bombas de “fins gerais” terminasse. Mal as pontas dos arames de armar as espoletas foram cortadas e o sinal de tudo pronto foi passado aos pilotos, começaram a ouvir-se, numa sequência um pouco desencontrada, os silvos dos cartuchos de arranque à medida que iam sendo disparados seguidos do ronco surdo das turbinas em aceleração.


Canhão Zis-2 AC 57 mm pronto para ser atrelado a uma viatura de reboque. Imagem provavelmente relacionada com o ataque a Ganturé cedida pela Fundação Mario Soares.



Situação geral no terreno na manhã de 6 de Janeiro de 1969

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Era impossível falhar um alvo daquele tamanho

Os quatro aviões conseguiram descolar por volta das 11H00, três horas depois do início do ataque a Ganturé e hora e meia depois do regresso da parelha de alerta. A esperança de encontrar a guerrilha ainda em Sangonhá era já muito ténue e todos tinham consciência disso. À frente, no G-91 5408, o Coronel Diogo Neto subiu logo para os 8000 pés que era a altitude standard para iniciar o bombardeamento a picar (BOP) e acelerou para 400 KIAS apontado a Cacine. Os outros três seguiam-no numa formação de marcha bastante aberta.

A rota iria permitir que os aviões passassem Cacine já escalonados para o ataque e com Sangonhá a ficar na raiz da asa esquerda de modo a garantir uma picada com o sol mais ou menos “nas costas”. Sempre que tínhamos de enfrentar fogo anti-aéreo utilizávamos este procedimento para dificultar a pontaria aos apontadores e, neste caso, também a direcção do ataque ficava próxima do eixo maior do alvo.

Como seria de esperar os quatro pilotos estavam apreensivos e como acontecia sempre em acções mais complicadas o silêncio rádio foi completo. A única comunicação que o ex-Tenente Balacó Moreira, que voava a número dois no G-91 5412, se recorda foi a ordem para armar as bombas e passar a escalão pela direita quando passaram sobre o rio junto à povoação de Cacine. Logo a seguir cada um começou a tentar vislumbrar o alvo mas só no momento em que manobravam o respectivo avião para conseguir um “poleiro” que desse um bom angulo de picada é que foi possível perceber alguma coisa do que se passava “lá em baixo”. Balacó Moreira recorda-se que a quantidade de pessoas que avistou na zona do antigo aquartelamento era muito menor do que da primeira vez e que havia viaturas em movimento.
- Estão a retirar – pensou para consigo próprio.

A seguir viu o número um “pranchar” e voltar apertado pela esquerda subindo inicialmente acima da altitude inicial e depois, continuando a aumentar o pranchamento, mergulhar desaparecendo do seu lado esquerdo. Baixou a asa desse lado para tentar seguir a trajectória mas rapidamente o avião começou a ficar cada vez mais pequenino à medida que acelerava e se afastava em direcção ao solo. Naqueles escassos segundos não viu chamas à boca dos canos da ZPU-4. Quando o Coronel Diogo Neto avisou pelo rádio que tinha acabado de largar as bombas e estava em afastamento procurou efectuar uma última correcção à posição do seu avião. Naquele momento se a ZPU-4 disparava ou não já não lhe interessava para nada. A interpretação dos instrumentos de voo e o controlo da trajectória para posicionar o avião num ”poleiro” favorável não deixavam margem para se preocupar com o inimigo. Entrou então numa picada que lhe pareceu boa e depois foi corrigindo os desvios de modo a fazer o rectículo do visor caminhar progressivamente para um ponto atrás do rebentamento das bombas do avião da frente. O carrocel de ataque estava em marcha e com reacção ou sem reacção anti-aérea tinha era que acertar com as bombas no alvo, o maior de todos os alvos que atacou durante toda a comissão. Não falhou como não falharam os outros e ninguém foi atingido.

No final, os quatro aviões reencontraram-se à vertical do objectivo, circulando pela esquerda à altitude de ataque. Lá em baixo, Sangonhá ficara obscurecida pelo fumo e pelos detritos projectados pelas explosões dando a impressão que tudo tinha sido arrasado. Imagem bem enganadora que conheciam muito bem dos ataques aos “clusters” de armas AA que o PAIGC durante o ano de 1968 tinha tentado instalar em diversos pontos do Quitafine. Desfeita a poeirada constatava-se muitas vezes que as armas AA continuavam a disparar embora relativamente perto se avistassem as enormes crateras abertas pelas bombas. O que acontecia era que a combinação bomba/espoleta que utilizávamos penetrava demasiado no solo arenoso provocando crateras enormes que deflectiam os estilhaços para o ar sem causar danos significativos no plano horizontal.

Desta vez, o solo era certamente mais consistente porque as crateras pareciam pouco profundas, com uma assinalável concentração na zona onde estava o armamento pesado. Os quatro aviões ficaram ainda alguns minutos a circular observando a metralhadora AA que era a grande preocupação mas que parecia inactiva desde o início. Lá do alto constataram que nada parecia mexer. Nenhum dos aviões tinha sobreposto o tiro ao dos outros e as dezasseis bombas tinham produzido uma cobertura relativamente densa. Só não era possível era determinar se o ataque tinha sido eficaz em termos de baixas no inimigo.

Depois, sem armamento, nada mais havia a fazer e o comandante da formação deu ordem para abandonar a área e regressar à BA12.

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O reconhecimento a Sangonhá

Três dias depois, a 9 de Janeiro de 1969, a Cart 2410 executou um reconhecimento a Sangonhá com cerca de 100 homens - militares, milícias e caçadores nativos (Gadamael e Ganturé ficaram reduzidos ao mínimo de pessoal para a sua defesa)25. A força foi comandada pelo ex-Alferes Miliciano Albino Rodrigues, que era o comandante do 1.º Grupo de Combate, ficando o Comandante da Companhia em Gadamael.

Saíram de Gadamael por volta das 6 horas da manhã, sem qualquer apoio de viaturas, normais ou blindadas. Às 08:30 descolou de Bissalanca o DO-27 3347, pilotado pelo Tenente Balacó Moreira, com a missão de apoiar a progressão no terreno e em particular coordenar o apoio de fogo se fosse necessário.

Em todo o percurso até Sangonhá não foram detectados trilhos novos, nem foram encontrados os habituais invólucros de granadas de morteiro ou de canhão S/R que os guerrilheiros normalmente deixavam espalhados no terreno após as flagelações.26

Após a passagem a vau do rio QUERUANE/AXE, e uns 200 ou 300 metros à frente, numa pequena elevação do terreno, foram encontrados os restos de uma fogueira (a noite de 5 para 6 tinha sido fria) junto a uma árvore alta com vestígios de ter sido utilizada como posto de observação, quer pelo aspecto do tronco, quer por alguns ramos partidos. Logo 3 ou 4 metros depois encontraram fio telefónico que foi seguido até ao respectivo carretel vazio. Concluíram por isso que naquela árvore teria estado um observador avançado munido de linha telefónica para orientar o tiro dos canhões A/C estacionados em Sangonhá.

Desde este local e numa extensão de cerca de 3 quilómetros, havia abrigos individuais de um lado e outro da estrada, e também resíduos de fogueiras. Logicamente, a defesa avançada do dispositivo instalado em Sangonhá estendera-se ao longo da estrada para Gadamael Porto.

Com a força já a meio caminho descolaram então de Bissalanca 2 T-6G armados com foguetes SNEB de 37mm e metralhadoras 7,7mm27. A missão era permanecer em espera um pouco a Norte de Sangonhá e actuar à ordem do PCV (DO-27) caso fosse necessário dar apoio de fogo. Depois, às 11:30, quando a força estava próximo de Sangonhá descolaram de Bissalanca dois G-91 armados com foguetes de 2,75 polegadas e quatro metralhadoras 12,7mm. Os dois T-6 foram nessa altura reabastecer tendo voltado a descolar novamente para acompanhar o resto da operação.

A primeira indicação de que estavam próximos do objectivo foi dada pela grande quantidade de abutres (os feiosos jagudis) pousados nas árvores ou voando em círculos. Ao mesmo tempo, o pessoal começou a sentir o cheiro nauseabundo de corpos em decomposição.

A força distribui-se então de modo a formar uma longa linha perpendicular à estrada e foi nessa formação que avançaram cautelosamente. O que descobriram a seguir ultrapassou todas as marcas e foi tão chocante que o pessoal descurou momentaneamente as regras de segurança que vinha a manter.

 O ex-Alferes Miliciano José Barros Rocha, comandante do 2.º grupo de combate, recorda desta maneira o que viu e sentiu:

“…na antiga pista [de Sangonhá], armas destruídas e pedaços de corpos de negros e brancos e 13 sepulturas. Uns dias depois tivemos a informação de 36 mortos confirmados e muitos feridos.
" O aspecto do local era medonho! A terra, cuja cor natural é avermelhada, tinha a cor cinza! O intenso cheiro a putrefacção! Os abutres (jagudis) às dezenas! As árvores queimadas! Enfim..." (...).
 …………………………………
“…recolhemos 3 carretéis carregados de fio telefónico e um vazio, uma mina A/P, uma ferramenta para aperto de rodas, invólucros de granada do canhão A/C 57mm, meia pistola, munições intactas da A/A de calibre 14,5mm, bonés, chapéus tipo colonial, uma bandeira, uma caixa de ferramenta, e mais algumas bugigangas..”.

A força permaneceu em Sangonhá cerca de duas horas tendo regressado a Gadamael entre as duas e as três da tarde. Quando já estavam perto do quartel o Tenente Balacó Moreira aterrou o DO-27 em Gadamael e ficou a aguardar a chegada da força. Foi ele que levou para a BA12, em primeira mão, os resultados provisórios do bombardeamento no qual tinha participado. Levou também a óptica do aparelho de pontaria da ZPU-4 que lhe foi oferecida pelo comandante do 2.º grupo de combate e que ele entregou depois ao Tenente Coronel Costa Gomes.

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Notas:

25 - Testemunho do ex Alferes Miliciano José Barros Rocha da Cart 2410. [In blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > 23 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2574: Estórias de Guileje (9): O massacre de Sangonhá, pela Força Aérea, em 6 de Janeiro de 1969 (José Rocha) b]

26 - Indicação muito forte de que a flagelação do dia 6 teria sido efectuada apenas com os canhões AC estacionados em Sangonhá.

27 - Esta configuração era muito eficaz para o apoio de fogo à forças terrestres. Cada avião estava municiado com 72 foguetes SNEB de 37mm e podia também utilizar as quatro metralhadoras 7,7mm.

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A razão para o suicídio do PAIGC em Sangonhá

Depois do reconhecimento a Sangonhá ficou por decifrar o que teria levado o PAIGC a efectuar aquela acção suicida. A prática normal da guerrilha não se ajustava, de modo nenhum, ao que acontecera no dia 6 de Janeiro de 1969. Não tinha sido apenas a hora a que foi desencadeada a flagelação, de manhã em plena luz do dia, mas também o facto do armamento e o pessoal estarem em campo aberto e serem facilmente detectáveis pelos aviões. Era ainda o recurso às peças anticarro na flagelação como se fossem obuses ou morteiros28.

Havia certamente uma justificação para este comportamento anómalo mas nenhum de nós imaginava qual poderia ser.

No dia 19 de Janeiro de 1969 coube-me efectuar no DO-27 3341 ”o sector de Buba” o que me deu a oportunidade de falar com os oficiais da CArt 2410. Foi nessa ocasião, pelo testemunho dos que tinham, de facto, posto os pés no que fora o “nosso alvo”, que me apercebi pela primeira vez da dimensão do desastre que o PAIGC tinha sofrido. Foi também nessa ocasião que o Alferes Barros Rocha teve a gentileza de me oferecer quatro munições da ZPU-4 que estivera instalada em Sangonhá e que tinha feito fogo contra os dois primeiros (pelo menos) G-91 que descolaram para tentar suster a flagelação a Ganturé. Destas quatro munições, como referi no início, ainda guardo uma comigo e, por arrastamento, a memória deste episódio.

Por acaso tudo se aclarou alguns dias mais tarde ao ler um relatório da DGS que chegou ao gabinete do Comandante do Grupo Operacional 1201. Para mim foi uma espécie de relâmpago que tudo iluminou e desvendou, num instante, a lógica daquele comportamento estranho do PAIGC. Não consegui agora encontrar nenhum registo desse documento mas o facto é que me marcou tanto que nunca mais esqueci o essencial do que li. Resumidamente, a DGS dava conta de que o ataque se tinha enquadrado numa acção de propaganda promovida pela Suécia. Na minha opinião, muito provavelmente a pedido do próprio Amílcar Cabral, resolveram aproveitar o abandono de Sangonhá para simular a tomada do aquartelamento pela guerrilha. O cenário não podia ser mais perfeito. Antes de abandonar a posição, as instalações do aquartelamento tinham sido destruídas pelo Exército e essa imagem podia ser facilmente mostrada em fotografia e filme como sendo consequência dos ataques do PAIGC. Depois, a posição “acabada de conquistar” podia ser utilizada para mostrar o poder de fogo do PAIGC contra as posições que se preparavam para conquistar a seguir: Ganturé e Gadamael. Uma equipa de repórteres, incluindo fotógrafos e cineastas deslocou-se para esse efeito à Guiné-Conacri onde se juntou aos guerrilheiros. Um total de 400 pessoas terão estado envolvidas em toda a operação segundo as informações do régulo Abibo de Ganturé.

Ficou assim explicado porque razão o PAIGC se tinha exposto em pleno dia a levar com as bombas da aviação. É que não era possível fotografar nem filmar sem luz. Também não fazia sentido estarem escondidos quando tinham acabado de derrotar e afugentar o inimigo. Tinham, é claro, a noção de que iam correr um grande risco e por isso o terem levado a ZPU-4 para se defenderem. Mas cometeram um segundo erro, este gravíssimo. Foram detectados e em vez de embalarem a trouxa e rumarem novamente à Guiné-Conacri deixaram-se ficar. Pessoalmente penso que, como os dois primeiros aviões não abriram fogo, assumiram que, ou os tinham atingido, ou os tinham dissuadido e resolveram continuar a fazer a “fita”.

Faltava explicar a utilização das peças anti-carro porque, como já foi dito, não eram, nem armas de guerrilha, nem adequadas às flagelações aos aquartelamentos. Não há mesmo conhecimento de terem sido utilizadas em qualquer outra ocasião.

Uma explicação muito credível ocorreu-me quando descobri algumas fotos dessas armas no arquivo Amílcar Cabral da Fundação Mário Soares. Fiquei até convencido que respeitam à acção do dia 6 de Janeiro de 1969. Passo a explicar.

O objectivo da operação era produzir propaganda, como referiu a DGS no seu relatório. Havia, por isso, necessidade de mostrar grande capacidade militar e poder de fogo, factores esses que estariam a determinar avanços do PAIGC no terreno nomeadamente a conquista de posições ocupadas pelos portugueses. Acontecia que aquelas peças anti-carro tinham um reparo longo, tinham rodas e um cano comprido. As eventuais audiências alvo da propaganda ficariam certamente muito mais impressionadas se o ataque fosse feito com estas peças de artilharia em vez dos tradicionais morteiros ou dos canhões sem recuo que eram armas relativamente pequenas. Só uma razão desta natureza os poderá ter levado a não utilizar o armamento tradicional nesta flagelação a Ganturé: nenhuma granada rebentou no perímetro do destacamento.

A título de curiosidade não devo terminar sem mencionar o único documento conhecido do PAIGC referente a este ataque. Trata-se de um bilhete enviado em 6 de Janeiro de 1969 por um dos mais celebrados comandantes do PAIGC, Pansau na Isna29, e dirigido a Aristides Pereira que estava na base mais próxima, Boké, na Guiné-Conacri. Na missiva para além de empolar a prestação da guerrilha, aparentemente para agradar ao chefe, solicita o envio de mais trezentas granadas para os canhões A/C e mais gasolina para continuar a atacar Ganturé “no duro”, o que não chegou a acontecer. Alguma coisa lhe terá quebrado o ânimo…

Bilhete enviado por Pansau na Isna a Aristides Pereira enquanto decorria o ataque a Ganturé. Documento cedido pela Fundação Mario Soares.

Concluindo, ironicamente pelo menos desta vez, a bondosa ajuda humanitária sueca cujo objectivo foi soprar “os ventos da história” contribuindo para a derrota militar dos portugueses não conseguiu infligir baixas às nossas forças. Ao invés, provocou um número substancial de mortos, feridos e incapacitados entre os guerrilheiros e, muito provavelmente, também entre os apoiantes cubanos, repórteres, fotógrafos e cineastas suecos. Que foram encontrados diversos despojos de pele branca é um facto mas nunca se conseguiu saber a quem teriam pertencido. O PAIGC e o governo sueco, em escrupulosa obediência às regras da propaganda nunca revelaram, nem durante a guerra, nem depois, este desastroso embate…
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Notas:

28 - As peças anticarro Zis-2, de 57mm, tinham sido projectadas para destruir os blindados alemães durante a II GG em tiro directo e mostraram-se tão desadequadas neste caso que nenhuma das dezenas de granadas disparadas caiu dentro do perímetro de Ganturé.

29 - Pansau na Isna não morreu em Sangonhá mas acabou por ser morto, no final do ano seguinte, pelos fuzileiros, a Norte de Bissau.

FIM
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Nota do editor

Vd. poste anterior de 24 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15035: FAP (82): Pedaços das Nossas Vidas: VI - Um ataque com "olhos azuis" - I Parte: "O ideal missionário do povo sueco" e "A escapatória ética da ajuda humanitária sueca" (José Nico, Gen PilAv)

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15035: FAP (82): Pedaços das Nossas Vidas: VI - Um ataque com "olhos azuis" - I Parte: "O ideal missionário do povo sueco" e "A escapatória ética da ajuda humanitária sueca" (José Nico, Gen PilAv)

1. Em mensagem do dia 22 de Agosto de 2015, o nosso camarada Miguel Pessoa, Cor PilAv Ref (ex-Ten PilAv, BA 12, Bissalanca, 1972/74), enviou-nos um trabalho para publicação, da autoria do General PilAv José Francisco Fernando Nico, versando a ajuda da Suécia aos Movimentos de Libertação africanos, durante a guerra colonial.

Caros editores Luís Graça e Carlos Vinhal
Após a conversa que tive com o Luís sobre este assunto, envio para os dois o texto que originou este meu contacto, pois não sei quem está de serviço ao trabalho editorial.
O texto em questão, da autoria do General PilAv José Nico, tem circulado na Net e o assunto que versa é certamente do interesse de muitos dos seguidores deste blogue. Por um lado, por ser assunto que é do conhecimento de poucas pessoas, por outro, por relatar factos passados na "nossa" Guiné, no início do longínquo ano de 1969, matéria que justifica uma ampla divulgação. É esse o motivo que me leva a reencaminhar-vos o referido texto para publicação no blogue, tendo-me sido já transmitida a anuência do seu autor - Gen. Nico - à sua edição no blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné".

Um abraço.
Miguel Pessoa

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PEDAÇOS DAS NOSSAS VIDAS

Cumpri muitas missões durante a minha carreira na Força Aérea Portuguesa. A comissão na Guiné, porém, sobrepôs-se a todas as outras e marcou-me indelevelmente para o resto da vida. A mim e certamente a todos os que, de algum modo, partilharam a mesma experiência. É dela ou de acontecimentos com ela relacionados, que vos irei dando conta…
José Nico
Gen PilAv


VI – UM ATAQUE COM “OLHOS AZUIS” (1)

Embora não tenha tomado parte directa na acção nunca esqueci o dia 6 de Janeiro de 1969. Há uma razão para isso: conservo ainda uma munição da metralhadora AA quádrupla ZPU-4 que nesse dia abriu fogo contra os G-91, a partir de Sangonhá, no Sul da Guiné, local que tinha sido até poucos meses antes uma posição do Exército Português. Sempre que olho para aquele pedaço de metal inerte imagino a chuva de projécteis iguais que em diversas situações sairam dos tubos dos famosos “quatro bocas”1 e nos passaram ao lado sem nunca nos conseguirem derrubar2. Como é que essa memorabile de uma arma AA que efectivamente disparou contra os nossos aviões veio parar às minhas mãos é a história que me proponho contar neste episódio dos “Pedaços das nossas vidas”.

ZPU-4. Desenho de Paulo Alegria

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Notas:
1 - “Quatro bocas”, designação que os cubanos davam às metralhadoras AA ZPU-4. Embora, por razões de “auto-estima” os guineenses nunca tenham admitido, existem grandes probabilidades dos dispositivos anti-aéreos do PAIGC e, em particular as ZPU e os canhões AA 37mm, terem sido operadas por cubanos. Os quatro canos da ZPU-4 debitavam 2400 tiros por minuto e as munições chegavam aos 15.000 pés de altura embora o alcance eficaz fosse de 4600 pés. Em qualquer caso o perigo maior para um alvo rápido como era o G-91 era a densidade de projécteis na trajectória do avião e menos a destreza do apontador.
2 - Houve aviões abatidos por outros tipos de armas AA e também pelos mísseis Strella mas nunca tivemos uma perda provocada, nem pelas ZPU-1-2 ou 4, nem pelos canhões de 37mm.

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O ideal missionário do povo sueco 

Não é possível descrever este acontecimento sem primeiro tentar traçar as linhas mestras do apoio sueco aos movimentos de libertação, durante a guerra que nos foi imposta em África, pois está directamente implicado no que vos quero relatar. Além disso, estou convencido que poucos terão consciência da dimensão e importância das acções que os suecos moveram contra Portugal nesse desastroso período da nossa história em que abdicámos totalmente do projecto da nação pluricontinental e multirracial, independentemente da situação objectiva em cada território, e embarcámos revolucionariamente na infame descolonização. Em última análise, os suecos contribuíram também para os mortos, estropiados e feridos que sofremos durante a guerra. Esta é, por isso, também uma oportunidade para lançar alguma luz sobre a dimensão e natureza do sistema adversário que enfrentámos e a que conseguimos resistir durante treze anos, apesar do diminuto peso estratégico do país.

Trata-se de uma questão que merece naturalmente uma análise muito mais abrangente do que o espaço para o presente artigo permite. Irei, por isso, tentar sintetizar o essencial do que achei até agora sobre a “amizade e solidariedade” sueca em relação aos movimentos de libertação e, consequentemente, o seu papel de inimigo como parte do sistema adversário que nos moveu a guerra.

Comecemos então pelo conceito de sistema adversário, por contraposição com a ideia corrente de que os nossos inimigos foram apenas os movimentos de libertação. Na realidade, estes beneficiaram de promotores e de apoios externos que foram engrossando com o passar do tempo até atingirem uma escala quase global. Estes apoios e os próprios movimentos de libertação estavam interligados e actuavam de forma coordenada para alcançar o mesmo objectivo estratégico e por isso devem ser considerados como um sistema. Assim, todos os que contribuíram objectivamente, por qualquer forma, para desapossar Portugal dos seus territórios ultramarinos, promovendo a liberdade de acção e a capacidade dos movimentos de libertação, foram elementos desse sistema adversário e, portanto, foram também nossos inimigos na guerra.3

Numa listagem por defeito aponto os que me parecem os mais óbvios mas, muitos outros, incluindo a gama dos países amigos com comportamentos ambivalentes, ficam por mencionar: as oposições políticas internas, diversas individualidades espalhadas um pouco por todo o Mundo, a URSS, a China, a Coreia do Norte, Cuba, os países do Norte da Europa, Argélia, Tunísia, Egipto, Senegal, Guiné-Conacri, República do Congo, República Democrática do Congo, Zâmbia, Tanzânia, o Movimento dos Não-Alinhados, a Organização da Unidade Africana e a Organização das Nações Unidas.

No grupo dos países do Norte da Europa notabilizou-se sempre a Suécia que, após uma fase de apoio informal mas efectivo, acabou por dinamizar os restantes países nórdicos4 para actuarem também abertamente contra Portugal, a partir de 1969.

De forma algo diferente dos que agiram apenas por razões políticas de natureza institucional, na Suécia verificou-se sempre uma simbiose entre a sociedade civil e o Estado. Ambos foram actores proactivos e actuaram combinados. Em última análise, o comportamento de um grupo significativo de suecos e de algumas das suas instituições foi claramente um acto de guerra contra os portugueses, muito semelhante ao dos cubanos que enviaram militares e armamento em apoio directo das acções de guerrilha sem que Portugal alguma vez os tivesse atacado ou declarado a guerra. As razões que sustentam esta atitude são naturalmente diversas mas podem ser explicadas e decorrem do sucesso do estado social sueco e de outros factores que justificam os excelentes indicadores de qualidade de vida que entronizaram o país como uma referência de desenvolvimento a partir de finais dos anos vinte do século passado.

Anteriormente, a Suécia fora um país rural, economicamente relativamente débil, que só começou a industrializar-se em meados do século XIX, na cauda dos países europeus economicamente desenvolvidos. Todavia, já nesse período, os fundamentos do estado social que iria ser, no futuro, um pilar fundamental do sucesso do país há muito que estavam enraizados na cultura sueca5. Conseguiu então, a partir daí, começar a tirar dividendos da Revolução Industrial e a partir do final do século XIX e princípios do século XX a economia acelerou definitivamente dinamizada por numerosos inventores e empresários6. No entanto, o ambiente social era ainda tão frágil que, desde meados do século XIX até aos anos 30 do século XX, muitos suecos se viram forçados a engrossar o fluxo da emigração europeia para os Estados Unidos.

Com o desenvolvimento económico e a resultante segurança material, cresceu o bem-estar social que por sua vez influenciou a melhoria da estabilidade interna e externa do país e o incremento das liberdades civis. Foram estas conquistas, reconhecidas e elogiadas internacionalmente, que acabaram por incutir nos suecos a presunção de que tinham adquirido não só o direito mas também a obrigação moral de exportar o seu modelo civilizacional para os países menos desenvolvidos e áreas problemáticas. Foi uma atitude que derivou dos princípios luteranos inculcados há muito na sociedade e no Estado7, os quais exigem que seja feito sempre o melhor (a ética dos virtuosos)8 e nestes termos os suecos nunca admitem fazer menos que o melhor, em quaisquer circunstâncias. É por isso que mesmo perante um insucesso um sueco dificilmente reconhece que errou. Este singular comportamento pode ser retratado da seguinte maneira: basicamente “os suecos não têm perguntas sobre os problemas do Mundo mas apenas respostas, que julgam serem as melhores e universais, configurando-se como modelo. Presumidamente, esse modelo poderá conduzir o resto do mundo ao estádio a que eles chegaram, no pressuposto de que isso seria possível e bom para todos”9.

Por estas razões instalou-se um pendor missionário na cultura sueca que foi reforçado por altura da nomeação, em 1953, de Dag Hammarskjöl para Secretário-Geral das Nações Unidas. O povo sueco passou então a sentir a orientação política e os programas civis e militares da ONU como uma responsabilidade também sua, como foi o caso do programa de descolonização. Psicologicamente, terá sido um lema do tipo “a ONU somos nós” um dos factores que mais influenciaram, nessa altura, a motivação internacionalista da comunicação social, juventudes universitárias, sindicatos e partidos políticos suecos. A acção de Dag Hammarskjöld à frente das Nações Unidas foi avidamente assumida como uma extensão da política externa da Suécia a qual se considerava moralmente responsável por resolver os problemas do mundo, tal como a ONU10. Foi tão intensa essa motivação que a longínqua e pouco africana Suécia resolveu participar, logo em Dezembro de 1958, na I Conferência de Povos Africanos em Acra, no Gana, claramente em busca de oportunidades de realização. Foi nessa conferência que o Partido Social Democrata sueco, então no governo, estabeleceu os primeiros contactos com os movimentos de libertação africanos os quais constituíram os alicerces do subsequente apoio sob a eufemística capa de “ajuda humanitária”.

É claro que esse ideal de “olhos azuis”, como os suecos gostam de classificar as suas “boas intenções”, a “inocência” e aparente “ingenuidade” das suas iniciativas extra-muros, nunca deu ao Mundo novas Suécias pela simples razão de que o que sustenta o estado social e as liberdades suecas é o potencial económico. São tudo coisas muito caras que não são obtidas por ideologias, nem por pretensas boas intenções mas sim com recursos e esses só podem ser gerados por um estado eficaz, investimento, educação e trabalho. Nada disso alguma vez acabou por acontecer nos países seleccionados pela ajuda humanitária sueca e em particular na Guiné-Bissau11.

Outro aspecto marcante, já referido atrás, foi a clara cumplicidade entre o Estado e a sociedade civil. A explicação para isso parece decorrer do conceito de “solidariedade” que, em sueco, não só se refere à coesão social mas também ao empenhamento e responsabilidade (tanto na Suécia como externamente) quanto a questões humanitárias12 e desenvolvimentos de natureza política. Essa atitude contribuiu para reforçar a auto-identificação dos suecos como um povo tradicionalmente avançado moral e tecnologicamente e começou a ganhar visibilidade por altura da Segunda Guerra Mundial, período que colocou em risco os valores civilizados, cabendo à Suécia, acreditam eles, o papel de sua guardiã13.

É tudo isto que justifica a paranóia missionária do povo sueco e o fervor no apoio, logo a partir de 1961, através dos OCS, organizações estudantis e partidos políticos, numa altura em que o PAIGC ainda não tinha sequer iniciado as hostilidades (excepto a casca de banana no cais do Pindjiguiti em 3 de Agosto de 1959)14 e a política oficial do Estado ainda estava longe de acometer Portugal.
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Notas:
3 - Tor Sellström, Sweden and National Liberation in Southern Africa, pág 64: “...Cabral himself who was the chief architect behind the commodity programme. Supplied with arms from the Soviet Union and its allies, he had from the outset ruled out the idea of military support from Sweden, designing instead a programme of civilian cooperation that at the close of the 1960s was met by no other country”...“Sweden and the Soviet Union were the largest donors to PAIGC. While the former was predominant on the civilian side, the latter was the leading supplier to the military struggle.
4 - Noruega, Finlândia, Dinamarca, Holanda e Islândia.
5 - Tudo terá começado com a Igreja Luterana que, em 1734, lançou as primeiras pedras na construção do Estado Social sueco ao instituir a obrigação de cada paróquia ter um asilo para os mais desfavorecidos e economicamente carenciados - O mito do "socialismo sueco", João José Horta Nobre, Mestre em História Contemporânea, 07 maio 2014.
6 - Mises Daily, Stefan Karlsson, August 7, 2006.
7 - In the Swedish religious and political tradition, the connection between Lutheranism and Swedish national identity stayed relevant long after the disappearance of religion as an all-encompassing norm in daily life. Catholicism and the Idea of Public Legitimacy in Sweden, ACADEMIC JOURNAL ARTICLE By Harvard, Jonas, European Studies , No. 31 , January 1, 2013.
8 - Até ao ano 2000, a religião Luterana foi a religião oficial do Estado sueco. O luteranismo atribui significado religioso ao trabalho mundano do dia a dia, por meio do qual se pode expressar o amor ao próximo e, consequentemente, agradar a Deus.
9 - Why Swedes would talk about themselves?, Astréia Soares, Doutora em Sociologia pelo IFCS/UFRJ, professora da Universidade Fumec/MG.
10 - Gustafsson, 1964, pág. 115.
11 - Returning to Guinea-Bissau twenty years after his visit to PAIGC’s liberated areas, in 1993 Anders Ehnmark reflected upon liberation and liberty, independence and development, dreams and realities, in his essay ‘The Trip to Kilimanjaro’, concluding that “something which was not predicted has taken place” (Ehnmark (1993) op. cit., pág. 113).
12 - Brian Palmer (1996).
13 - Why Swedes would talk about themselves?, Astréia Soares, Doutora em Sociologia pelo IFCS/UFRJ, professora da Universidade Fumec/MG.
14 - O “massacre do Pindjiguiti” foi intencionalmente provocado especialmente pelo PAI (depois PAIGC) que se tinha organizado três anos antes sob a direcção de Amílcar Cabral. A título de exemplo, para mostrar a mistura explosiva então instalada em Bissau, alguns dos membros do PAI eram membros do PCP na clandestinidade (Elysée Turpin, Carlos Correia, Abílio Duarte e Rafael Barbosa), outros eram empregados da Casa Gouveia (Elysée Turpin e Carlos Correia estes com duplo chapéu e Luís Cabral). Existiam ainda outros grupos, alguns também dinamizados por Amílcar Cabral e Rafael Barbosa. Toda esta gente conspirava e andava em bicos dos pés para provocar os “colonialistas” e foram eles que manipularam os marinheiros manjacos até à confrontação com a polícia. Basicamente tratou-se de uma greve por razões salariais, que já tinha sido ensaiada antes, e que se foi exarcebando até que em 3 Agosto 1959 deu-se uma inevitável confrontação com a polícia. Nessa altura, os grevistas picados pelos agitadores quiseram assaltar a Casa Gouveia tendo atacado os polícias (papéis) com arpões, paus, barras de ferro e remos na tentativa de os desarmar. Obviamente isto resultou em mortes. A partir desse lamentável desfecho, o desejado “massacre” passou a ser, imediata e incessantemente, utilizado no estrangeiro e em particular na Suécia como bandeira para a luta de libertação. Os mortos do Pindjiguiti ficaram para a história da libertação como um crime dos colonialistas e aos companheiros de Amílcar Cabral nunca nada lhes pesou na consciência. Tudo se justificava na lógica marxista que os iluminava. Ver também “Sweden and National Liberation in Southern Africa: Solidarity and assistance”, Tor Sellström, pág. 45.

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A escapatória ética da ajuda humanitária sueca

Os suecos podem querer convencer o Mundo de que, eticamente, são “de olhos azuis” mas todos sabemos que o estado de desenvolvimento e bem-estar que conseguiram15 são indicadores que não permitem outra interpretação das suas atitudes que não seja a da intencionalidade fundamentada e objectiva. Tinham certamente consciência de que todas as formas de apoio aos movimentos de libertação e em particular ao PAIGC que, dentre eles foi o mais beneficiado, eram letais e redundavam em mortos, feridos e destruição quer entre as forças portuguesas, incluindo as de recrutamento local e ainda as populações civis. De facto, não interessava que a ajuda sueca apenas fosse direccionada para a propaganda, para melhorar e manter as bases no Senegal e na Guiné-Conacri, para fornecer meios de transporte, para o tratamento de doentes e feridos, para financiar deslocações dos dirigentes, etc. Toda a ajuda contribuía para a capacitação do movimento cujo objectivo último era fazer a guerra e acabar com a presença portuguesa pela força. Não pode ter sido, nem foi outra, a motivação dos suecos.

Ciosos do seu estatuto como país de referência viram-se, por isso, obrigados a arranjar uma forma subtil de conferir uma aura de bondade às suas acções de modo a conservar as consciências impolutas e, em particular, não pôr em causa os preceitos que exigiam não patrocinar ou promover nada que implicasse perda de vidas ou mais sofrimento. Apresentando-se como “um país muito escrupuloso quanto aos princípios”, a ajuda aos movimentos de libertação e em particular ao PAIGC teve que ser justificada de modo a encobrir a sua finalidade última e as respectivas consequências.

Atentemos por isso no termo escolhido para designar esse apoio, precisamente o de “ajuda humanitária”. Efectivamente, esta designação não só dava a ideia de inocuidade como soava bem (para os pouco avisados que eram a generalidade dentro e fora de portas) e transpirava bondade. Outro factor muito utilizado foi a classificação do regime português como sendo uma ditadura fascista e portanto tudo o que dele emanasse estava automaticamente condenado. Por politicamente correcta validava todo o tipo de iniciativas contra Portugal, promovia a unidade de esforço com as oposições ao regime português e com a comunidade internacional democrática e, também com a não democrática, desde que não fosse ocidental ou, por exemplo, pertencesse ao bloco soviético. O problema é que o que estava em jogo era o projecto e futuro de uma sociedade pluricontinental e multirracial e não a sobrevivência do regime que transitoriamente a governava. A Suécia justificava assim a “ajuda humanitária” aos movimentos de libertação fazendo de conta que estava a combater um regime político quando, na realidade, estava a influenciar decisivamente o futuro de uma comunidade que em termos humanos se projectava muito mais avançada que as que hoje temos. As pessoas não contavam, o que importava eram os “amanhãs que cantam” das ideologias em voga16 com consequências terríveis como a conflitualidade, a ingovernabilidade ou as actuais avalanches emigratórias. Também eles, suecos, sopraram os ventos da história contra Portugal e condicionaram a seu belo prazer o futuro dos povos que habitavam os territórios então portugueses. É por isso que entre as características já inventariadas na mentalidade sueca não tenho dúvidas em acrescentar mais uma e esta bem negativa: a hipocrisia, nua e crua.

Mas não eram apenas estes os argumentos falaciosos que os suecos coligiram para justificar a sua “ajuda humanitária”. Outros que pareceriam “não ter pernas para andar” mas foram prontamente validados pelo imaculado povo “dos olhos azuis” foram a invocação do atraso português em termos económicos e o facto da colonização estar a ser feita com pessoas de baixa ou média condição social. Tanto o primeiro como o segundo argumento queriam apenas dizer que os povos africanos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau mereciam colonos mais ricos, mais educados e de mais elevada condição social. Presumivelmente, se esses colonos fossem suecos então estaria tudo bem e esses territórios já seriam uma espécie de Suécias dos Trópicos. No entanto, enquanto nós sentíamos que as características da população portuguesa presente em África nos aproximavam mais das populações autóctones e por isso conferiam melhores condições de entrosamento, convivência e uma evolução comum mais equilibrada e eficaz, para os nossos detractores era tudo negativo e justificava a guerra que promoviam.

Para além destas considerações é no relato escrito por Tör Sellström, em 200817, que se pode perceber melhor grande parte do racional sueco para justificar o apoio aos movimentos de libertação anti-Portugal:

Declarava-se que essa ajuda não poderia entrar em conflito com o primado do direito internacional, no âmbito do qual se define que nenhum estado tem o direito de interferir nos assuntos internos de outro. Contudo, relativamente aos movimentos de libertação em África, a ajuda humanitária e o apoio à formação académica não devem ser interpretados como estando em conflito com as referidas normas internacionais nos casos em que as Nações Unidas tenham tomado uma posição inequívoca contra a opressão dos povos que lutam pela liberdade nacional. Considera-se que a África Austral ocidental, a Rodésia e os territórios africanos sob suserania portuguesa estão abarcados por essa definição.

Passaremos a seguir a explicar o processo que levou a esta decisão. Entretanto, é de notar que poucos países ocidentais eram tão diferentes entre si como Portugal e a Suécia no período pós-guerra e que as ligações económicas eram inicialmente fracas.

Apesar de ambos os países terem passado à margem da segunda guerra mundial, o fosso, que separava a ditadura fascista do Portugal católico da social-democracia da Suécia protestante, era abissal. Na arena internacional, Portugal via-se como um importante portador do estandarte do destino imperial e tinha aderido à OTAN, enquanto a Suécia fazia gala do seu passado não-colonial. Em termos nacionais, o regime de Lisboa seguia uma via ultra-proteccionista, que administrava uma economia retrógrada e estagnada, baseada no sector primário, enquanto que o governo social democrata da Suécia registava um crescimento económico acelerado e era um país cada vez mais exportador, em resultado directo duma política de transformação industrial assente na qualificação. No prisma social, as políticas elitistas praticadas em Portugal criaram taxas de analfabetismo e má saúde pública que colocavam o país mais no terceiro mundo, enquanto as práticas igualitárias do "modelo sueco" colocavam este país na vanguarda da educação e da saúde. 

As relações comerciais entre Suécia e Portugal eram bastante marginais até meados dos anos 60. Em 1950, o valor das exportações suecas para Portugal chegava a 28,3 milhões de coroas suecas, ou seja 0,5 por cento do total de exportações. Os números correspondentes para as importações suecas feitas por Portugal representavam nesse mesmo ano 25,1 milhões de coroas suecas, ou seja 0,4 por cento. Dez anos mais tarde o valor das exportações suecas tinha aumentado para 60,9 milhões de coroas suecas, mas a parte de Portugal no total de exportações ficou estável, enquanto a proporção relativa das importações de Portugal diminuiu para 0,3 por cento. Era fácil de ver que o comércio externo que a Suécia tinha com Portugal era muito menos relevante do que o que tinha com a antiga colónia portuguesa, o Brasil. Os investimentos directos em Portugal foram, durante muito tempo, apenas de relevância marginal. Apenas algumas empresas suecas, como a SKF e a Electrolux tinham estabelecido sucursais em Portugal nos anos 20, ao passo que algumas empresas têxteis viriam, mais tarde, a fazer investimentos directos. Por junto, havia apenas cerca de cinco empresas suecas em Portugal em 1960 e os seus produtos combinados eram bastante reduzidos.

Esta é uma pequena amostra do convencimento e arrogância sueca em relação a Portugal. A construção ética apenas visou dar cobertura ao que desejavam fazer a todo o custo e que tinha começado a ganhar momento ao tempo de Dag Hammarskjöl nas Nações Unidas. Sentiram-se, assim, com base em análises claramente preconceituosas, auto-mandatados a dar-nos uma lição. Todavia, tudo o que acima se transcreveu pode agora, que a guerra acabou há muito, ser contra-argumentado. Para não me alongar demasiado limitar-me-ei a comentar a invocação da virgindade sueca em relação ao colonialismo e ao facto do Estado-Novo “criar taxas de analfabetismo e má saúde pública que colocavam o país mais no terceiro mundo”. Em relação ao primeiro ponto é preciso frisar que, no passado, os interesses da Suécia assentaram no comércio marítimo e na indústria do ferro. Por essa razão nunca estiveram muito interessados em ocupar território mas sim em garantir o acesso dos seus navios a pontos de carga e descarga em África e em vender ferro trabalhado. Para além disso, estabeleceram, embora por um curto período, diversos entrepostos na costa do Ghana destinados à aquisição e trânsito de escravos com destino às Américas. Em paralelo com esse comércio avultava o fornecimento das barras de ferro para lastro dos navios negreiros e as argolas e grilhetas com que os escravos eram sujeitos a bordo e nos pontos de embarque e desembarque. Também mantiveram uma colónia de escravos em Saint-Berthélemy desde 1787 até Outubro de 184718. Por último, em finais do Séc XIX a Suécia participou na Conferência de Berlin com o mesmo estatuto e as mesmas intenções das restantes potências europeias. Não parece por tudo isto que a Suécia se possa distanciar agora, em termos morais, nem dos portugueses nem dos outros países que colonizaram África.

Sobre “as políticas elitistas praticadas em Portugal que criaram taxas de analfabetismo e má saúde pública” este argumento difundido na opinião pública sueca era claramente mal intencionado. Dava a impressão que o regime era tão mau que estava a fazer o país “andar para trás”. A verdade é que o regime português, apesar de tudo, fazia o que podia depois do descalabro da 1.ª República e havia evolução. Não tão rápida como seria desejável, ou não tão rápida como a da Suécia, mas isso decorria do que se pudesse considerar como a situação de referência para efeitos de comparação, por exemplo, à data da instauração do Estado Novo. Também resulta claro, bastando para isso olhar para as fotografias da época, que o país de 1926 era completamente diferente do país de 1960. Este alegado retrocesso invocado pelos suecos parece ser resultado da propaganda dos opositores ao regime e dos líderes dos movimentos de libertação, em particular de Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane e Holden Roberto, que foi de quem os suecos se aproximaram mais. Outra coisa não seria de esperar.
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Notas:
15 - A admissão de que a ingenuidade seja um traço da cultura sueca contrasta com a imagem da Suécia moderna, secular e tecnologicamente avançada e com um alto índice de informação sobre questões internacionais (Why Swedes would talk about themselves?, Astréia Soares, Doutora em Sociologia pelo IFCS/UFRJ, professora da Universidade Fumec/MG).16 - Nada mais elucidativo do que comparar as projecções de liberdade e desenvolvimento de Amílcar Cabral para a Guiné-Bissau e a situação real do país após quarenta anos de independência.
17 - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, Tor Sellström, Nordiska Afrikainstitutet, Uppsala 2008
18 - Up until the 9th of October 1847 Sweden had a colony in the West Indies called Saint-Berthélemy where there were thousands of slaves. When Gustav III was asked to end slavery in the beginning of the 19th century by Great Britain where the abolitionist movement had grown strong the Swedish king firmly neglected that Sweden had had any participation in having slaves. This denial has lived to our days in Sweden as well on the former Swedish colony Saint-Berthélemy, Pan African Visions » Afro-Swedish Perspectives, Blogs » Living in Denial: Sweden and the slave trade, October 16th, 2012

(Continua)

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Nota do editor

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