Mostrar mensagens com a etiqueta antologia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta antologia. Mostrar todas as mensagens

sábado, 5 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24534: Antologia (96): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte VII

 


Alimentos e propaganda: Sardinhas da Suécia com etiqueta do PAIGC (Stig Lövgren) (Fonte: Tor Sellström, 2008, op cit, pág. 159).

100 toneladas de "sardinhas" (ou arenques juvenis ?)  deram cerca de 400 mil latas de conservas, de 225 gr cada uma (peso líquido).   Na tampa, lè-se: 

"Sardinha em óleo de soja | PAIGC | Guiné-Bissau | Zonas Libertas (sic) | Strömstad Canning CO AB | Strömstad, Suécia | País de origem: Suécia | Peso líquido: 225 gramas."

Um observador independente teria de concluir que esta ajuda alimentar sueca ao PAIGC foi então meramente simbólica: 400 mil latas de "conservas de sardinha" a distribuir por  "400 mil pessoas a viver nas zonas libertadas" (segundo a propaganda do PAIGC, e que os suecos replicavam)  dava  uma lata..."per capita"!

Por outro lado pode-se perguntar: será que os guineenses ficaram fâs das "sardinhas suecas em óleo de soja" ? ... Talvez o nosso correspondente no círculo polar ártico, José Belo,  nos possa responder a esta questão do domínio do sexo dos anjos,  mesmo que a esta hora esteja em Key West, Florida, a gozar a sua merecida licença de férias... (LG)



1.  Tor Sellström, do Instituto Nórdico de Estudos Africanos, é autor de um livro,  de 290 páginas, sobre "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau" (publicado em 2008, em versão portuguesa). (Vd. ficha técnica a seguir.)


Nessa publicação conta-nos como é que certas organizações suecas de solidariedade com a luta dos povos da África Austral (e nomeadamente c9ntra o apartheid) e o governo sueco começaram a interessar-se pelo que se estava a passar na Guiné-Bissau, no fianl dos anos 60.  O território,  sob administração portuguesa, com um escasso meio milhão de habitantes,  e com um pequeno partido nacionalista, o PAIGC; a lutar pela sua independência, eras então praticamente desconmhecido do público sueco.

A partir de 1969, a Suécia começou a dar, ao PAIGC, uma "ajuda humanitária" substancial, primeiro em géneros, depois em dinheiro,  que se prolongou muito para além da independência, até meados dos anos 90. 

"As exportações financiadas com doações da Suécia representavam, durante este período, entre 5 por cento e 10 por cento do total das importações da Guiné-Bissau". Estamos a falar de valores que chegaram aos 2,5 mil milhões (!) de coroas suecas [c. 269,5 milhões de euros] durante o período de 1974/75-1994/95 (sendo de 53,5 milhöes de coroas suecas, ao valor actual, ou sejam, cerca de 5, 8 milhões de euros, de 1969/70 até 1976/77).

Sáo factos que já pertencem ao domínio da História. Mas, passados estes anos todos, julgamos que ainda pode ter algum interesse, para os nossos leitores, saber um pouco mais sobre o envolvimento da Suécia, mesmo que indireto, na gueerra colonial. 

Vamos continuar a seguir esta narrativa, reproduzindo, com a devida vénia, mais um excerto do livro de Tor Sellström. Já chamámos, logo no início, a atenção para alguns factos e dados que merecem a nossa contestação ou reparo crítico, nomeadamente quando o autor fala do trajeto do PAIGC e do seu líder histórico, não citando fontes independentes e socorrendo-se no essencial da propaganda do PAIGC (ou de fontes que lhe estavam próximas)...

Já apontámos, nos postes anteriores, para alguns exemplos desse enviesamento político-ideológico: (1) a greve dos trabalhadores portuários do Pijiguiti e o papel do PAIGC; (ii) a batalha do Como: (iii) o controlo de 2/3 do território e de 400 mil. habitantes por parte do PAIGC; (iv) as escolas, as clínicas e as lojas do povo nas "áreas libertadas"; (v) a morte de Amílcar Cabral e o seu contexto. etc. 

O texto (na parte que nos interessa, a ajuda sueca ao PAIGC, pp. 138-172) tem demasiadas notas de pé de página, que podem ser úteis do ponto de vista documental mas sáo extremamente fastidiosas para a generalidade dos nossos leitores. (Vamos mantê-las, para não truncar a narrativa; podem ser lidas na diagonal)

Os negritos são nossos: ajudam a destacar alguns dos pontos importantes do texto. O "bold" a vermelho são passagens controversas, são uma chamada de atenção para o leitor, devendo merecer um comentário crítico (ou o recurso a leituras suplementares).

Corrigimos os excertos seguindo o Acordo Ortográfico em vigor.

Para já aqui ficam os nossos agradecimentos ao autor e ao editor, Nordiska Afrikainstitutekl (em inglês, The Nordic Africa Institute).

Ficha técnica:

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Nordiska Afrikainstitutekl, Uppsala, 2008, 290 pp. Tradução: Júlio Monteiros. Revisão: António Lourenço e Dulce Åberg. Impresso na Suécia por Bulls Graphic, Halmstad 2008ISBN 978–91–7106–612–1.

Disponível em 
https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:275247/FULLTEXT01.pdf

(Também disponível na biblioteca Nordiska Afrikainstitutekl (ou Instituto Nórdico de Estudos Africanos) aqui, em "open acess" .)


Resumo dos excertos anteriores (*):

Com base numa decisão parlamentar aprovada por uma larga maioria, a Suécia tornou-se em 1969 o primeiro país ocidental a dar ajuda oficial aos movimentos nacionalistas das colónias portugueses (MPLA, PAIGC, FRELIMO). O PAIGC vai-se tornar o principal beneficiário dessa ajuda (humanitária, não-militar). Muito também por mérito de Amílcar Cabral e da sua habilidade diplomática. Até então, e sobretudo na primeira metade da década de sessenta, o debate na Suécia sobre a África Austral tinha quase exclusivamente sido centrado na situação na África do Sul, onde vigorava o apartheid.

O êxito da campanha contra a participação da empresa sueca ASEA no projecto de Cahora Bassa em Moçambique, por volta de 1968–69, na altura em que decorria a guerra do Vietname, levou a que os principais grupos de pressão (“Grupos de África”, oriundos de cidade como Arvika, Gotemburgo, Lund, Estocolmo e Uppsala) se ocupassem quase em exclusivo da luta armada nas colónias portuguesas, com destaque para a Guiné-Bissau(Parte I).

Em 3 páginas (pp. 141-143), o autor faz um resumo da "luta de libertação na Guiné-Bissau", usando unilatereal e acriticameente informaçáo propagandística do PAIGC, alguma particularmente grosseira como a pretensão deste de controlar 400 mil habitantes... (Parte II).

Nas páguinas 144-147, fala-se dos primeiros contactos com o PAIGC e das primeiras visitas ao território (Parte III).

Nas páginas 148-152, é referido a primeira visita (de muitas) de Amílcar Cabral à Suécia em novembro de 1968 (Parte IV).

As conversações de Ström com o PAIGC foram bastante simples. No seu relatório, descreveu Amílcar Cabral, secretário geral do PAIGC, como ”um jovem agrónomo bastante jovial, elegante, intelectual e um conversador desenvolto e muito animado. Nada de apelos patéticos nem declarações solenes. As suas intervenções eram objectivas, claras e concisas” (Parte V, pp. 152-154).

Os suecos quiseram, na sua ajuda "não-militar", privilegiar os sectores da educação e a saúde. onde o PAIGC estava confrontado com "enormes desafios". O pressuposto era de que em 1971, calculava-se que viviam 400.000 pessoas nas zonas libertadas da Guiné-Bissau, (...) na sua maioria artesãos e camponeses (sic) (Parte VI, pp. 154-157).



Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau: o caso da ajuda ao PAIGC - Parte VII:

Definição da ajuda humanitárioa (pp. 157-161)

 Excerto do índice (pág. 4)

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno

Pág.

As colónias portuguesas no centro das atenções

138

A luta de libertação na Guiné-Bissau

141

Primeiros contactos

144

Caminho para o apoio oficial ao PAIGC

147

Uma rutura decisiva

152

Necessidades civis e respostas suecas

154

Definição de ajuda humanitária

157

Amílcar Cabral e a ajuda sueca

161

A independência e para além dela

168

 

Definição de ajuda humanitária

A ajuda oficial sueca foi a pedido do PAIGC, e ao longo dos anos, quase exclusivamente prestada sob a forma de ajuda em géneros. Não incluiu bcomponentes importantes de ajuda técnica, actividades de projectos nem dinheiro (110). 

Uma vez que não havia uma representação da ASDI em Conacri, as negociações anuais da ajuda realizavam-se sobretudo em Estocolmo. Amílcar Cabral tinha um interesse muito particular nos debates, nos quais participava pessoalmente e, a princípio, chefiava ele mesmo as sucessivas delegações do PAIGC. 

Stig Lövgren recordaria mais tarde a forma como Cabral vinha a Estocolmo. Alojava-se num hotel com um nome falso, por razões de segurança e trabalhava connosco, na ASDI, para fazer uma lista de bens, de mercadorias, equipamentos, etc. de que o movimento necessitava. 

Era um procedimento muito simples e nada controverso porque, na altura, a lista incluía apenas alimentos, medicamentos, equipamento escolar e hospitalar e coisas desse género. [...] Amílcar Cabral participava de uma forma muito activa neste tipo de trabalho minucioso. Achava que era um trabalho no qual ele tinha de participar. Nós não levantávamos grandes questões quanto àquilo de que diziam precisar. Afinal, os fundos atribuídos nessa época não eram muito avultados e Curt Ström, a pessoa oficialmente encarregueda ASDI, achava que não devíamos levantar grandes questões (111).

Uma vez finalizada a lista de produtos, a ASDI funcionava como uma organizadora de concursos públicos para o PAIGC, convidando diferentes fornecedores a apresentar propostas, tanto na Suécia como a nível internacional. O representante do PAIGC na Suécia participava amiúde neste trabalho. Uma vez encontrado o fornecedor, a ASDI pagava a mercadoria e organizava o seu envio para Conacri (112).

Era importante que a ajuda não fosse vista como apoio à luta militar. No caso do PAIGC, essa destrinça não era nada óbvia. A parte mais importante da ajuda ia para as zonas libertadas no interior da Guiné-Bissau, onde a população participava numa guerra.

Tanto os combatentes pela liberdade quanto os aldeões beneficiavam das escolas, clínicas de saúde e armazéns do povo que o PAIGC tinha em funcionamento e que, de forma importante, eram fornecidos com ajuda sueca. 

Para além disso, a posição da ASDI não lhe permitia fazer visitas regulares às zonas libertadas nem verificar se os utilizadores finais eram militares ou civis (113). A linha divisória entre ajuda ”humanitária” e ajuda ”militar” era traçada à medida que as listas de mercadorias eram elaboradas. O principal critério era o do carácter da mercadoria. No início, este princípio levou a reflexões que roçavam o absurdo a saber, por exemplo, se archotes de encaixe (114) ou um determinado tipo de botas (115) podiam ser considerados material militar ou não. 

Stig Lövgren deu um bom exemplo deste tipo de dilema:

(...)  a questão dos artigos militares e não-militares era discutida em profundidade nos primeiros anos. Curt Ström era a pessoa que mais nervosa se mostrava com a possibilidade de estarmos a enviar coisas que pudessem ser utilizadas para fins militares. 

Lembro-me perfeitamente duma reunião com Amílcar Cabral na ASDI. Estávamos a discutir as listas previamente preparadas e que teriam de ser aprovadas por Ström e, quando chegámos às catanas, estávamos preocupados com a possibilidade de serem usadas para matar pessoas e dissemo-lo. Amílcar Cabral pegou numa caneta e escreveu: ”Isto é também uma arma...” (116).(..:)

Que até uma mercadoria tão obviamente não-militar como a sardinha pudesse ter um papel importante a desempenhar, num sentido mais lato, na luta de libertação, era algo que ficaria bastante claro mais adiante. Numa entrevista dada em 1996, Lövgren chamava a atenção para o seguinte:

(...) Fornecemos uma grande quantidade de alimentos ao PAIGC, especialmente comida enlatada. A uma dada altura comprámos cerca de cem toneladas de peixe enlatado, uma quantidade significativa, a uma fábrica sueca. O fornecedor, a Strömstad Canning, perguntou-me se queríamos pôr algum rótulo especial neste lote. Pensei que não era má ideia e contactei o Onésimo Silveira que, na altura, era o representante do PAIGC na Suécia. Ele ficou entusiasmadíssimo com a ideia! Só depois percebi o porquê de tanta alegria. Ele decidiu colocar no rótulo a bandeira do PAIGC e o texto ”das zonas libertadas da Guiné-Bissau”. 

Anos depois, disseram que o PAIGC tinha arranjado maneira destas latas aparecerem em vários locais ainda na posse dos portugueses. Até conseguiram distribuir algumas latas na capital, Bissau. Podem imaginar a eficácia desta arma psicológica (117). (...)

As autoridades suecas não tardariam contudo a, ”de uma forma aproximada, equacionar ajuda humanitária com ajuda civil” (118) e, segundo Lövgren, ”ao fim e ao cabo, não demos qualquer atenção ao problema. De facto, nós não fornecíamos armas nem munições” (119).

Afinal, a definição de ajuda ”civil”, ou ”não-militar” era feita de forma abrangente. Quando Amílcar Cabral pediu à ASDI, em julho de 1971, que fornecesse uma estação móvel de rádio para ajudar os esforços de educação do PAIGC (120), o pedido foi aprovado sem desconfiança. 

A estação viria a ser montada em dois camiões Mercedes Benz, também fornecidos pela Suécia. Os dois transmissores e o equipamento de estúdio respectivo foram adquiridos em março de 1972. Depois de instalado e da firma de consultoria oficial (a SWEDTEL) (121) ter dado formação ao pessoal do PAIGC, o movimento de libertação pôde iniciar, a 19 de Setembro de 1972, as emissões regulares para a Guiné-Bissau e Cabo Verde, a partir de vários locais no norte da Guiné (122).

Contudo, no início da ajuda aos movimentos de libertação, deu-se uma discussãomais importante quanto ao fornecimento de veículos, nomeadamente de camiões. Anders Möllander, o secretário do Comité Consultivo para a Ajuda Humanitária, acompanhou de perto esse debate, e escreveu mais tarde que ”alguns argumentavam que meios de transporte tais como camiões poderiam sempre ser usados para fins militares e que, por isso mesmo, não deveriam ser incluídos na ajuda sueca” (123).

O contra-argumento do PAIGC e dos movimentos de libertação na África Austral era que não poderiam deslocar nem distribuir os bens recebidos sem uma capacidade de transporte adequada. Este último ponto de vista vingou e Lövgren comentou depois:

(...) A principal razão pela qual acabámos por fornecer camiões foi porque as mercadorias fornecidas pela ASDI tinham de ser transportadas de uma forma ou doutra, dos portos para os armazéns nas bases do PAIGC. 

Afinal, chegámos à conclusão de que seria razoável disponibilizar um número limitado de camiões ao mesmo tempo que fornecíamos grandes quantidades decomida. [...] 

Daí que tenhamos fornecido Land Rovers e outros veículos de tracção às quatro rodas. Decorridos alguns anos, esse assunto deixou de merecer discussão, e até fornecemos veículos das marcas Volvo e Scania, especialmente concebidos para as forças armadas suecas, mas que também estavam disponíveis em versão ”civil” (124).

Na verdade, a disponibilização de veículos ocupava um lugar relevante, e muito apreciado, no contexto da ajuda do governo sueco aos movimentos de libertação (125). No caso do PAIGC, a componente dos transportes representava já em 1970–71 cerca de 11 por cento do valor total da ajuda (126).

Três anos mais tarde, ou seja, em 1973–74, essa percentagem tinha aumentado para os 18 por cento (127). Do ponto de vista dos custos, o transporte era, na altura, a segunda maior componente do programa de ajuda, a seguir aos alimentos, mas acima dos medicamentos e do equipamento escolar (128). 

Só nesse ano, incluiu a disponibilização de doze camiões de grande porte (Volvo) e seis de pequeno (GAZ 66), 15 jipes (Unimog) com atrelado, 2 ambulâncias (Peugeot) e duas carrinhas (Peugeot), bem como peças sobressalentes, pneus, óleos e lubrificantes, etc. (129). 

Além disso, foram também fornecidos dez motores fora de bordo para transporte fluvial por meio de piroga e quinhentas bicicletas (130).

_____________

Notas do autor:

110. A questão da ajuda em dinheiro viria a ser levantada em particular pela FRELIMO de Moçambique. Em Novembro  de 1972, a ASDI decidiu que 5 por cento das verbas anualmente afetadas aos movimentos de libertação poderia ser transferidas, sob a forma de ajuda em numerário, para a aquisição de bens a nível local e para financiar custos de exploração. No caso do PAIGC, essa percentagem correspondia, em 1972–73 a quinhentas mil coroas suecas.

111. Entrevista com Stig Lövgren, pp. 309–12.

112. Com a sua vasta rede de contactos e considerável experiência, a divisão de aprovisionamento da ASDI conseguia identificar os melhores fornecedores e obter os melhores preços para o PAIGC e os movimentos de libertação da África Austral. Mais tarde, viria a organizar cursos de formação em concursos públicos internacionais para os movimentos. Reconhecendo a importância de rotinas de contratação pública bem definidas, em geral, e o contributo significativo dado ao PAIGC, em particular por Stig Lövgren, pouco tempo depois da independência Luís Cabral, o primeiro presidente da Guiné-Bissau, convidou Lövgren para ser o responsável pelas importações e concursos públicos do novo país (Anders Möllander: Sverige i Södra Afrika: Minnesanteckningar 1970–80 (”A Suécia na África Austral: Memórias 1970–80”), ASDI, Estocolmo, 1982, p. 19 e entrevista com Stig Lövgren, 313).

113. Entrevista com Stig Lövgren, p. 311: ”Não visitávamos nem podíamos visitar as zonas libertadas. Tentámos fazê-lo mas, na maior parte dos casos, o PAIGC arranjou uma desculpa, muito educada, para não nos deixar lá ir. ”Sobretudo, é claro, por razões de segurança”.

114. Möllander op. cit., p. 17.

115. Entrevista com Mishake Muyongo (ex-SWAPO), p. 87.

116. Entrevista com Stig Lövgren, p. 310.

117. Ibid. Uma das muitas ironias da guerra na Guiné-Bissau era que as sardinhas em lata, um produto tipicamente português, tinham de ser adquiridas na Suécia e enviadas para este país, tão rico em peixe. As latas pesavam 225 gramas cada. 

A ”remessa de propaganda” com a bandeira do PAIGC era composta por cerca de 400.000 latas. 

Não é portanto de admirar que o PAIGC tenha reencaminhado parte do lote dos armazéns do povo para as zonas detidas pelos portugueses. 

Para além de estar mal escrita (”zonas libertas” em vez da expressão correta, que seria ”zonas libertadas”) a etiqueta identificava claramente o fornecedor sueco, mas também a Suécia como país de origem. 

Os armazéns do povo recebiam também cigarros, produzidos na Suécia com o rótulo propagandístico Nô Pintcha, tendo o PAIGC sido também, neste caso, o autor da embalagem. O fornecimento deste produto não de primeira necessidade à luz do protocolo de ajuda humanitária foi fortemente criticado. 

A Associação Nacional Sueca de Informação sobre os Malefícios do Tabaco (Nationalföreningen för upplysning om tobakens skadeverkningar, NTS) enviou uma carta ao Ministro sueco para a Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, a Sra. Gertrud Sigurdsen, exigindo que ”instruísse imediatamente a ASDI para que substituísse a planeada operação de exportação de cigarros para a Guiné-Bissau por ajuda em bens mais de primeira necessidade” (Carta de Eric Carlens e Lars Ramström, NTS, a Gertrud Sigurdsen, Estocolmo, 25 de Junho de 1974) (SDA). 

Vendo que os cigarros representavam apenas 185.000 coroas suecas, de uma dotação total para o PAIGC de 15 milhões, e vendo também que desempenhavam um papel importante na economia de troca directa dos armazéns do povo, a ministra respondeu que os bens para os armazéns do povo faziam parte integrante do ”apoio explícito dado pela Suécia ao trabalho dos movimentos de libertação” e que ”em todos os casos deste tipo, tem de ficar à responsabilidade da ASDI a avaliação da adequação ou não do fornecimento de tais produtos” (Carta de Gertrud Sigurdsen a NTS, Estocolmo, 2 de Julho de 1974) (SDA). Cf. Möllander op. cit., pp. 16–17 e entrevista com Stig Lövgren, pp. 310–11).

118. Möllander op. cit., p. 17.

119. Entrevista com Stig Lövgren, p. 310. Em Portugal, onde se registaram as reacções mais veementes contra o alargamento da ajuda aos movimentos de libertação, nunca se aceitou o carácter humanitário da ajuda. 

O jornal Diário de Notícias dava nota, por exemplo, no início de 1971, que as exportações suecas de canivetes aos ”terroristas” em África tinha aumentado consideravelmente (Diário de Notícias, 16 de Janeiro de 1971). Pegou-se nisso como provadas intenções beligerantes da Suécia (consultar o editorial ”O apoio do Sr. Olof Palme ao terrorismo em África” em Diário de Notícias, 19 de Janeiro de 1971).

120. Carta de Amílcar Cabral à ASDI, Conacri, 28 de Julho de 1971 (SDA).

121. Swedish Telecommunication Consulting AB, uma subsidiária da Swedish Telecommunications Administration.

122. SWEDTEL: ”Estações de radiodifusão na Guiné: Relatório final”, Estocolmo, Dezembro de 1972 (SDA). Em consequência, centenas de rádio-transmissores foram fornecidos pela ASDI às zonas libertadas na Guiné-Bissau.

123. Möllander op. cit., p. 18.

124. Entrevista com Stig Lövgren, p. 310.

125. Consultar, por exemplo, as entrevistas com Aaron Mushimba da SWAPO (p. 84) e com Kumbirai Kangai da ZANU (p. 213–14). Apesar de não estar ligado à parte da aquisição por concurso público na Suécia, o apoio aos transportes viria a beneficiar, ao longo dos anos, empresas como a Scania e a Volvo, às quais os movimentos de libertação davam muitas vezes preferência sobre outras empresas. 

Por exemplo, quando o presidente do MPLA, Agostinho Neto e o primeiro ministro Olof Palme se encontraram em Lusaca, na Zâmbia, em setembro de 1971, Neto reagiu às notícias que diziam que a ASDI iria fornecer camiões alemães ou franceses ao seu movimento, dizendo ”não entender porque não iriam ser entregues veículos  suecos em vez desses” (Pierre Schori: Memorando, Estocolmo, 1 de outubro de 1971) (MFA). 

Para além de camiões Scania e Volvo, a ASDI fornecia muitos veículos pesados alemães (Mercedes Benz) e franceses (Berliet). Os fabricantes britânicos (Land Rover) e japoneses (Toyota) dominavam o sector dos veículos ligeiros de tracção às quarto rodas. 

Em retrospectiva, o antigo chefe do departamento de aprovisionamento da ASDI, Stig Lövgren, fez o seguinte comentário em 1996: 

”Se há uma coisa que lamento bastante foi o facto de termos fornecido camiões suecos aos movimentos de libertação, pois devíamos ter fornecido camiões russos. Na altura, podíamos obter quase três camiões russos pelo preço de um sueco [...]. Foi um verdadeiro desperdício de dinheiro. Eles não deviam ter recebido um número tão elevado destas máquinas suecas, tão técnicas e tão sofisticadas, mas sim camiões o mais simples possível” (Entrevista com Stig Lövgren, p. 315).

127. SIDA: ”Stöd till PAIGC” / ASDI; ”Ajuda ao PAIGC”, Estocolmo, 22 de Agosto de 1973 (SDA).

128. De uma dotação total de 15 milhões de coroas suecas, as principais oito componentes da ajuda sueca ao PAIGC em 1973–74 eram: 

  • alimentos (20 por cento)
  • transporte (18 por cento)
  • têxteis e máquinas de costura (15 por cento)
  • mercadoria para os armazéns do povo (13 por cento)
  • vestuário e calçado (11 por cento)
  • medicamentos (5 por cento)
  • artigos de higiene (3 por cento) 
  • e equipamento escolar (2,5 por cento) (ibid.).

129. SIDA: ”Stöd till PAIGC” / ASDI: ”Ajuda ao PAIGC”, Estocolmo, 25 de Junho de 1974 (SDA).

130. Ibid.

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / itálicos / bold, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G ]

____________

Nota do editor:

(*) Último poste da série >  
31 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24521: Antologia (95): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte VI

Postes anteriores:


28 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24510 Antologia (93): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte IV

24 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24502: Antologia (92): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte III

19 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24489: Antologia (91): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte II

17 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24482: Antologia (90): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte I

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24521: Antologia (95): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte VI

 Foto nº 1 

Foto nº 2


Foto nº 3

S/l > PAIGC > Alegadamente numa "região libertada", talvez no sul  ou na fronteira com a Guiné-Conacri > Visita de uma delegação escandinava  > Novembro de 1970 >  Trasnporte de sacos de arroz  (Fotos nº 1 e 2)... 

As autoridades militares portugueses subestimaram, inicialmente, o "génio organizativo" de Amílcar Cabral e dos demais dirigentes e militantes do PAIGC. Em 1971, num documento produzido pela inteligência militar do Estado-Maior de Spínola, reconhecia-se a real importância da logística do PAIGC, mesmo não tendo os meios (navais, aéreos e terrestres) das NT...

Na foto nº 3, uma consulta médica, ao ar livre. Em primeiro plano, um enfermeiro (presume-se) e a "farmácia ambulante"  (?) (um "caixote")..

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI, de acordo com a resposta que nos deu oportunamente Webmaster do NAI:

Dear Luís Graça, I am glad to hear that you like the photos and that you use them. Best regards,

Agneta Rodling | Information/Webb | Nordiska Afrikainstitutet | The Nordic Africa Institute
Box 1703 | SE-751 47 UPPSALA | Tel +46-18 56 22 21

Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)





Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74) > População sob controlo do PAIGC, no subsetor do Xime, capturada no decurso da Acção Garlopa, em 19 de julho de 1972, num total de 10 elementos. Seguramente que os suecos nunca puseram aqui os pés, nas "áreas libertadas" do Xime, na margem direita do rio Corubal...

Foto (e legenda): © Sousa de Castro (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem conplementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Tor Sellström, do Instituto Nórdico de Estudos Africanos, é autor de um livro,  de 290 páginas, sobre "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau" (publicado em 2008, em versão portuguesa). (Vd. ficha técnica a seguir.)

Nessa publicação conta-nos como é que de repente certas organizações suecas de solidariedade com a luta dos povos da África Austral (e nomeadamente c9ntra o apartheid) e o governo sueco começaram a interessar-se pelo que se estava a passar na Guiné-Bissau, um território então sob administração portuguesa, com um escasso meio milhão de habitantes, e com um pequeno partido nacionalista, o PAIGC; a lutar pela sua independência, praticame nte desconmhecidos do público sueco até ao final da década de 1960.

Apartir de 1969, a Suécia começou a dar, ao PAIGC, uma "ajuda humanitária", substancial, que se prolongou muito para além da independência, até meados dos anos 90. "As exportações financiadas com doações da Suécia representavam, durante este período, entre 5 por cento e 10 por cento do total das importações da Guiné-Bissau". Estamos a falar de valores que chegaram aos 2,5 mil milhões (!) de coroas suecas [c. 269,5 milhões de euros] durante o período de 1974/75-1994/95 (sendo de 53,5 milhöes de coroas suecas, ao valor actual, ou sejam, cerca de 5, 8 milhões de euros, de 1969/70 até 1976/77).

Estes factos ká pertencem ao domíbnio da História. Mas, oassados estes anos todos, julgamos que ainda tem algum interesse, para os nossos leitores, saber um pouco mais sobre o envolvimento da Suécia 

Vamos continuar a seguir esta narrativa, reproduzindo, com a devida vénia, mais um excerto do livro de Tor Sellström. Já chamámos, logo no início, a atenção para alguns factos e dados que merecem a nossa contestação ou reparo crítico, nomeaadamente quando o autor fala do trajeto do PAIGC e do seu líder histórico, não citando fontes independentes e socorrendo-se no essencial da propaganda do PAIGC (ou de fontes que lhe estavam próximas)...

Já apontámos, nos postes anteriores, para alguns exemplos desse enviesamento político-ideológico: (1) a greve dos trabalhadores portuários do Pijiguiti e o papel do PAIGC; (ii) a batalha do Como: (iii) o controlo de 2/3 do território e de 400 mil. habitantes por parte do PAIGC; (iv) as escolas, as clínicas e as lojas do povo nas "áreas libertadas"; (v) o assassassinato de Amílcar Cabral. etc. .

O texto (na parte que nos interessa, a ajuda sueca ao PAIGC, pp. 138-172) tem demasiadas notas de pé de página, que podem ser úteis do ponto de vista documental mas sáo extremamente fastidiosas para a generalidade dos nossos leitores. (Vamos mantê-las, para não truncar a narrativa; podem ser lidas na diagonal)

Os negritos são nossos: ajudam a destacar alguns dos pontos importantes do texto. O "bold" a vermelho são passagens controversas, são uma chamada de atenção para o leitor, devendo merecer um comentário crítico (ou o recurso a leituras suplementares).

Corrigimos os excertos seguindo o Acordo Ortográfico em vigor.

Para já aqui ficam os nossos agradecimentos ao autor e ao editor, Nordiska Afrikainstitutekl (em inglês, The Nordic Africa Institute).

Ficha técnica:

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Nordiska Afrikainstitutekl, Uppsala, 2008, 290 pp. Tradução: Júlio Monteiros. Revisão: António Lourenço e Dulce Åberg. Impresso na Suécia por Bulls Graphic, Halmstad 2008ISBN 978–91–7106–612–1.

Disponível em https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:275247/FULLTEXT01.pdf

(Também disponível na biblioteca Nordiska Afrikainstitutekl (ou Instituto Nórdico de Estudos Africanos) aqui, em "open acess" .)


Resumo dos excertos anteriores (*):

Com base numa decisão parlamentar aprovada por uma larga maioria, a Suécia tornou-se em 1969 o primeiro país ocidental a dar ajuda oficial aos movimentos nacionalistas das colónias portugueses (MPLA, PAIGC, FRELIMO). O PAIGC vai-se tornar o principal beneficiário dessa ajuda (humanitária, não-militar). Muito também por mérito de Amílcar Cabral e da sua habilidade diplomática. Até então, e sobretudo na primeira metade da década de sessenta, o debate na Suécia sobre a África Austral tinha quase exclusivamente sido centrado na situação na África do Sul, onde vigorava o apartheid.

O êxito da campanha contra a participação da empresa sueca ASEA no projecto de Cahora Bassa em Moçambique, por volta de 1968–69, na altura em que decorria a guerra do Vietname, levou a que os principais grupos de pressão (“Grupos de África”, oriundos de cidade como Arvika, Gotemburgo, Lund, Estocolmo e Uppsala) se ocupassem quase em exclusivo da luta armada nas colónias portuguesas, com destaque para a Guiné-Bissau(Parte I).

Em 3 páginas (pp. 141-143), o autor faz um resumo da "luta de libertação na Guiné-Bissau", usando unilatereal e acriticameente informaçáo propagandística do PAIGC, alguma particularmente grosseira como a pretensão deste de controlar 400 mil habitantes... (Parte II).

Nas páguinas 144-147, fala-se dos primeiros contactos com o PAIGC e das primeiras visitas ao território (Parte III).

Nas páginas 148-152, é referido a primeira visita (de muitas) de Amílcar Cabral à Suécia em novembro de 1968 (Parte IV).

As conversações de Ström com o PAIGC foram bastante simples. No seu relatório, descreveu Amílcar Cabral, secretário geral do PAIGC, como ”um jovem agrónomo bastante jovial, elegante, intelectual e um conversador desenvolto e muito animado. Nada de apelos patéticos nem declarações solenes. As suas intervenções eram objectivas, claras e concisas” (Parte V, pp. 152-154).

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau: o caso da ajuda ao PAIGC - Parte VI:

Necessidades civis e respostas suecas (pp. 154-157)

 Excerto do índice (pág. 4)

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno

Pág.

As colónias portuguesas no centro das atenções

138

A luta de libertação na Guiné-Bissau

141

Primeiros contactos

144

Caminho para o apoio oficial ao PAIGC

147

Uma rutura decisiva

152

Necessidades civis e respostas suecas

154

Definição de ajuda humanitária

157

Amílcar Cabral e a ajuda sueca

161

A independência e para além dela

168

 


Necessidades civis e respostas suecas (pp. 154-157)

O PAIGC deu, desde a primeira hora, mostras de uma grande eficácia relativamente  â administração, distribuição e listagem dos bens recebidos da Suécia. Depois de uma visita de uma delegação da ASDI a Conacri no final de 1971, concluía-se num memorando destinado ao Comité Consultivo para a Ajuda Humanitária que, por exemplo, ”o apoio sob a forma de bens, dado pela Suécia, está a ser utilizado de forma ideal. O PAIGC é sinónimo de rapidez na tomada de decisões, encomenda pormenorizada de mercadorias, bom armazenamento e contabilização” (91). 

Os relatórios escritos pelo PAIGC à ASDI eram, também eles, da maior qualidade. Anualmente, o próprio Amílcar Cabral e, depois a sua morte em 1973, Aristides Pereira, apresentavam comentários gerais quanto à ajuda e listas detalhadas de produtos recebidos, apresentadas com uma decomposição da distribuição pelas várias escolas, clínicas e armazéns do povo nas zonas libertadas (92). De acordo com Stig Lövgren da ASDI, ”o PAIGC era, para nós, uma espécie de organização ideal” (93).

Enquanto isso, o PAIGC estava confrontado com enormes desafios. Em 1971, calcula-se que viviam 400.000 pessoas nas zonas libertadas da Guiné-Bissau (94). na sua maioria artesãos e camponeses.

A taxa de analfabetismo era de cerca de 80 por cento e a situação geral em termos de saúde era complicada. Largos extractos populacionais, nomeadamente as crianças, sofriam de desnutrição (95). Ao tentar construir uma sociedade nova nas zonas libertadas, pela via da disponibilização de serviços sociais e desenvolvendo a economia, o PAIGC (que, antes de mais, estava empenhado numa guerra generalizada contra Portugal, que era apoiado pela OTAN) assumia o papel de um governo e de uma administração de um estado independente (96).

 Em contraste vincado com um estado independente, o movimentode libertação não controlava os recursos nacionais nem podia conduzir operações de comércio internacional (97). Pelo contrário, num país com um enorme potencial para as pescas, a população que vivia nas zonas libertadas sofria de falta de proteínas o que, paradoxalmente, levou o PAIGC a incluir no pacote de ajuda humanitária sueca pedidos de grandes quantidades de conservas de peixe. 

Para além disso, o PAIGC não podia cobrar impostos à população residente nas zonas libertadas porque, para já, não havia matéria tributável e também porque, de forma ainda mais clara, a economia de base monetária tinha sido abolida e substituída por um sistema de trocas directas, no qual os bens daspessoas tinham um papel economicamente crucial e politicamente delicado.

Os armazéns do povo tinham como função servir de centros de comércio ou depósitos,onde os aldeões podiam trocar os seus produtos agrícolas por outros bens de primeira necessidade e de consumo, como têxteis, óleo de cozinha, sabão, fósforos, utensílios domésticos e agrícolas ou cigarros (98).(**)

 Como notou Rudebeck, tratava-se de uma ”função altamente política. Caso não fosse realizada a contento da população, toda a credibilidade do PAIGC sairia diminuída aos olhos do povo” (99). O sistema que consistia em regatear a aquisição de produtos só poderia funcionar devidamente se as lojas do PAIGC dispusessem de stocks suficientes de produtos (100).

Beneficiando de um amplo apoio político, com necessidades quase ilimitadas e dando provas de uma boa capacidade administrativa, o PAIGC conseguiria tornar-se numa força dominante entre os movimentos de libertação africanos durante a década de setenta, recebendo ajuda oficial sueca. 

O valor inicialmente concedido foi de um milhão de coroas suecas, depois aumentado para 1,75 milhões em 1970–71, 4,5 em 1971–72, 10 em 1972–73, 15 em 1973–74 e 22 milhões em 1974–75.101 

Tal como foi dito acima, dos 67,5 milhões de coroas suecas realmente gastos pela Suécia como ajuda humanitária directa aos movimentos de libertação na África Austral e ao PAIGC entre 1969–70 e 1974–75, 64,5 milhões (ou seja, 96 por cento do valor total) foi pago ao MPLA de Angola, à FRELIMO de Moçambique e ao PAIGC da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, o que indica uma clara concentração nas colónias portuguesas. 

Desse total, uns surpreendentes 45,2 milhões foram pagos ao PAIGC. Durante os primeiros seis anos da ajuda oficial aos movimentos de libertação, o PAIGC recebeu dois terços dos fundos pagos, daí que não surpreenda que os movimentos de libertação da África Austral com os quais a Suécia tinha relações estreitas há já mais tempo, se sentissem prejudicados.

Entrevistado em 1996, o líder do MPLA Lúcio Lara declarou que o apoio ao PAIGC ”até nos deixou com algum ciúme”, acrescentando que ”comparámos os valores e constatámos a diferença” (102).

Relativamente à ajuda não-militar, o governo sueco tornou-se muito provavelmente o maior doador ao PAIGC (103).  A liderança guineense reconheceu isso mesmo muitas vezes ao longo dos anos, nomeadamente ao comparar a postura da Suécia com a de outros países ocidentais (104).

Constatando que os Estados Unidos tinham aumentado a ajuda a Portugal em quase 500 milhões de dólares, Cabral escreveu, por exemplo, em 1972 que ”o belo exemplo do povo sueco e do seu governo influencia e influenciará cada vez mais, a atitude de outros povos e de outros Governos, em prol da luta contra o domínio, o colonialismo e o racismo estrangeiros no nosso continente” (105).

 No caso do PAIGC era, contudo, bastante fácil para o governo sueco tomar uma posição. A luta de libertação não constituía uma ameaça à segurança nacional do país e a afinidade com os objectivos do PAIGC era forte. 

Além disso, não existiam conflitos de interesses relativamente à oportunidade económica (106).

Por fim, e do ponto de vista da legitimidade pública, a política oficial tinha uma grande base de apoio popular

Dito isto, e vista de um ponto de vista da Guerra Fria, que vigorava desde os anos setenta, a ajuda sueca ao PAIGC era mais política do que sugeriria uma interpretação pura e simples do termo ”ajuda humanitária”(107 )o que tem a sua importância em termos de cooperação com os movimentos de libertação na África Austral.

Para além de levar a cabo a luta militar, o PAIGC tinha entrado, por via do sistema de troca directa centrado nas lojas do povo, numa batalha económica contra Portugal.

Cabral  estava também determinado em afirmar que ”com hospitais e escolas podemos vencer a guerra”(108).

 Longe de constituírem uma reacção defensiva contra o colonialismo e a opressão, os sectores produtivo, de saúde e de educação eram vitais, fazendo parte integrante e muito activa do esforço de libertação. A maior parte da ajuda sueca era exactamente canalizada para estes sectores. 

Limitada inicialmente a bens puramente humanitários, a lista alargar-se-ia paralelamente ao ”engordar” do pacote de ajuda, por forma a permitir que necessidades de índole política fossem supridas, tendência que se foi acentuando (109). Os programas foram concebidos em conjunto pelo PAIGC e pela ASDI.

O Comité Consultivo para a Ajuda Humanitária e o governo sueco seguiam, por norma,as recomendações feitas pela ASDI.

 ___________

Notas do autor:

91 . SIDA: ”Fortsatt stöd till Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC)”/ASDI: ”Continuação do apoio ao PAIGC”, Estocolmo, 5 de Setembro de 1972 (SDA).

92. Os relatórios eram escritos em francês. A ajuda sueca era também enviada ao PAIGC na República da Guiné, nomeadamente para as escolas do PAIGC e, sobretudo, para o Hospital da Solidariedade em Boké, no norte do país. A ajuda incluía, para além disso, veículos e equipamento de escritório para o quartel-general do PAIGC em Conacri.

93. Entrevista com Stig Lövgren, p. 312.

94. SIDA: ”Fortsatt svenskt stöd till Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde”/ASDI: ”Continuação do apoio sueco ao PAIGC”, Estocolmo, 28 de outubro de 1971 (SDA).

95. Ibid.

96. PAIGC: ”Sur l’aide humanitaire de la Suède à notre parti: Rapport bref et proposition d’aide” (”Ajuda humanitária da Suécia ao nosso partido: Breve relatório e proposta de ajuda”), Conacri, maio de 1972 (SDA).

97. No âmbito da economia baseada nas lojas do povo, o PAIGC conseguiu, apesar de tudo, organizar uma quantidade limitada de exportações para os países vizinhos, nomeadamente de nozes de cola e arroz, mas também de amendoim, óleo de palma e outros produtos agrícolas. (***)

98. O sistema destinava-se também a conseguir justiça económica, mantendo os preços por troca directa mais baixos do que os preços a dinheiro praticados nas lojas portuguesas das zonas não libertadas. O primeiro armazém do povo foi criado em 1964 e por volta de 1968 já havia quinze lojas desse tipo nas zonas libertadas. Em 1973 já haveria mais do dobro de lojas.

99. Rudebeck op. cit., p. 179.

100. Sobre os armazéns do povo, ver Rudebeck op. cit., pp. 178–86 e Chabal op. cit., pp. 112–14.

101. SIDA: ”Stöd till PAIGC”/ ASDI: ”Ajuda ao PAIGC”, Estocolmo, 25 de Junho de 1974 (SDA).

102. Entrevista com Lúcio Lara, p. 19. O apoio sueco ao MPLA durante esse mesmo período não ultrapassava os 2,3 milhões de coroas suecas, ou seja, 5 por cento do apoio dado ao PAIGC. Lara atribuía a diferença às qualidades do secretário geral do PAIGC: ”A razão era a presença de Amílcar Cabral. Ele era muito dinâmico e estava sempre ”em cima” dos acontecimentos” (ibid.).

103. À falta de contabilidade global no PAIGC, esta questão fica por provar com base documental. A conclusão retirada baseia-se em declarações do PAIGC, da ASDI e das Nações Unidas.

104. Lövgren comentaria depois que a ajuda em mercadorias dada pela Suécia era, de acordo com Cabral ”a melhor forma de ajuda que a Suécia nos poderia dar. [...] Não precisavam de dinheiro naquela altura. Aquilo de que precisavam para a guerra era-lhes fornecido pelo bloco socialista, mas não tinham quaisquer recursos no que diz respeito a alimentação, medicamentos e equipamento escolar, etc. para a parte civil da luta. Dependiam totalmente de países como a Suécia para conseguir esses bens, porque não os adquiriam no mercado internacional” (Entrevista com Stig Lövgren, p. 310)

105. PAIGC: ”Sur l’aide humanitaire de la Suède à notre parti: Rapport bref et proposition d’aide” (”Sobre a ajuda humanitária da Suécia ao nosso partido: Breve relatório e proposta de ajuda”), Conacri, maio de 1972 (SDA).

106. Ver a entrevista com Bengt Säve-Söderbergh, na qual o antigo subsecretário de estado social-democrata dos Negócios Estrangeiros (1985–91) declara que ”Angola tinha interesse para quem procurava dinheiro. Sabíamos que ninguém se preocupava realmente com a Guiné-Bissau e que alguns se preocupavam, mas apenas marginalmente, com Moçambique. Angola era o foco de interesse e, por isso mesmo o país mais ”quente”, em termos da clivagem  Leste-Ocidente” (p. 338).

107. Para Cabral, toda a ajuda ao PAIGC era humanitária, ”independentemente da forma e do conteúdo da ajuda, porque é dada em prol do progresso político, económico, social e cultural da humanidade e da paz” (Carta de Amílcar Cabral à ASDI, Conacri, 28 de Julho de 1971) (SDA).

108. Cabral citado em Chabal op. cit., p. 114.

109. No início dos anos setenta, o movimento sueco de solidariedade era essencial para definir os contornos da ajuda oficial aos movimentos de libertação. Num livro publicado pelos Grupos de África dizia-se, em ~janeiro de 1972, que ”a contribuição da ASDI não era dada de forma incondicional aos movimentos de libertação, sendo dada para ’fins humanitários’ como, por exemplo, a saúde, a educação e afins, o que significava que os movimentos não eram reconhecidos como representantes dos respectivos povos e que o aspecto militar da actividade dos movimentos de libertação não recebia qualquer apoio” (AGIS op. cit., p. 194). 

Mais ou menos na mesma altura, num documento elaborado pelos Grupos de África em Inglaterra para uma conferência sobre solidariedade internacional para com a FRELIMO, o MPLA e o PAIGC, realizada em Lund no início de 1972, dizia-se que ”ao recusar-se a ver o aspecto militar como parte integrante da luta, o governo sueco está a dar uma imagem deturpada da situação. Outra das limitações é que a ajuda prestada pela ASDI é dada em géneros, seleccionados de uma lista e comprados (na Suécia) por funcionários da ASDI. Trata-se de uma forma grave de paternalismo, o que se poderá talvez explicar apenas pelo desejo de manter vínculos económicos importantes com Portugal durante o máximo de tempo possível e também pelo desejo de encontrar uma solução neo-colonialista para as colónias portuguesas” (Versão preliminar: ”Imperialismo sueco em Portugal e em África”, Conferência da Páscoa, Lund, 1972) (AGA). 

Deve notar-se que a ajuda oficial não estava vinculada à obtenção dos produtos na Suécia, nem a ASDI tentava obter mercadorias em Portugal para os movimentos de libertação nas colónias portuguesas (Entrevista com Stig Lövgren, p. 314).


[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / itálicos / bold, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G ]

____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 30 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24518: Antologia (94): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte V

(**) Vd. poste de 12 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23609: (D)o outro lado do combate (68): os "Armazéns do Povo", mito ou realidade ?

(***) Veja-se o poste de 2 de maio de  2010 > Guiné 63/74 - P6296: PAIGC: Como se vivia nas regiões libertadas (1): Chegam descalças, andrajosas, às vezes com filhos pequenos às costas a chupar os peitos secos e mirrados... (António Graça de Abreu, Alf Mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa, Cufar, 1972/74)

(...) António Graça de Abreu > Mansoa, 3 de Maio de 1973

Na região de Mansoa, as NT capturam mais elementos IN, ou aparentados com os guerrilheiros, do que em Canchungo. Normalmente chegam ao nosso CAOP com um aspecto lastimável, a subnutrição, as doenças, a miséria têm tomado conta deste pobre povo que vive nas regiões libertadas.

Os prisioneiros são quase sempre mulheres que se deslocam às povoações controladas pelas NT, a fim de venderem por exemplo mancarra (amendoim), óleo ou vinho de palma, e são capturadas nas estradas ou nos caminhos em volta dos nossos aquartelamentos.

Chegam descalças, andrajosas, às vezes com filhos pequenos às costas a chupar os peitos secos e mirrados. Dói, só de olhar. 

São interrogadas, é-lhes pedido todo o tipo de informações sobre os acampamentos, o armamento, as aldeias controladas pelo IN onde vivem os seus maridos, os seus familiares. Como é natural, estas mulheres falam muito pouco e também magoa o coração ver como são tratadas. 

É minha tarefa comprar-lhes uns trapinhos novos para tapar o corpo, umas sandálias de plástico para protegerem os pés. (...)

Fonte: António Graça de Abreu – Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra e Paz, Editores, SA, 2007, p. 94.

domingo, 30 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24518: Antologia (94): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte V


1. A Suécia (então parceiro comercial de Portugal desde o ano de 1960, no âmbito da EFTA - Associação Europeia do Comércio Livre) e a Guiné-Bissau nunca tiveram, até ao final da década de 1960, praticamente quaisquer ligações (históricas, comerciais, ou outras).


Tor Sellström, do Instituto Nórdico de Estudos Africanos, é autor de um livro,  de 290 páginas, sobre "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau" (publicado em 2008, em versão portuguesa). (Vd. ficha técnica a seguir.)

Nessa publicação conta-nos como é que de repente certas organizações suecas de solidariedade com a luta dos povos da África Austral e o governo sueco começaram a interessar-se pelo que se estava a passar naquele pequeno país de África Ocidental, que era/é a Guiné-Bissau, um território então sob administração portuguesa, com um escasso meio milhão de habitantes, e com um pequeno partido nacionalista, o PAIGC; a lutar pela sua independência.

E não apenas a interessar-se: a partir de 1969, a Suécia a dar uma "ajuda humanitária", substancial, que se prolongou muito para além da independência, até meados dos anos 90. 

"As exportações financiadas com doações da Suécia representavam, durante este período, entre 5 por cento e 10 por cento do total das importações da Guiné-Bissau". Estamos a falar de valores que chegaram aos 2,5 mil milhões (!) de coroas suecas [c. 269,5 milhões de euros] durante o período de 1974/75-1994/95 (sendo de 53,5 milhöes de coroas suecas, ao valor actual, ou sejam, cerca de 5, 8 milhões de euros, de 1969/70 até 1976/77).

Passados estes anos todos, julgamos que ainda tem algum interesse, para os nossos leitores, saber um pouco mais desta história e dos seus meandros

Vamos continuar a seguir esta narrativa, reproduzindo, com a devida vénia, mais um excerto do livro de Tor Sellström. Já chamámos, logo no início, a atenção para alguns factos e dados que merecem a nossa contestação ou reparo crítico, nomeaadamente quando o autor fala do trajeto do PAIGC e do seu líder histórico, não citando fontes independentes e socorrendo-se no essencial da propaganda do PAIGC (ou de fontes que lhe estavam próximas)...

Já apontámos, nos postes anteriores, para alguns exemplos desse enviesamento político-ideológico: (1) a greve dos trabalhadores portuários do Pijiguiti e o papel do PAIGC; (ii) a batalha do Como: (iii) o controlo de 2/3 do território e de 400 mil. habitantes por parte do PAIGC; (iv) as escolas, as clínicas e as lojas do povo nas "áreas libertadas"; (v) o assassassinato de Amílcar Cabral. etc. .

O texto (na parte que nos interessa, a ajuda sueca ao PAIGC, pp. 138-172) tem demasiadas notas de pé de página, que podem ser úteis do ponto de vista documental mas sáo extremamente fastidiosas para a generalidade dos nossos leitores. (Vamos mantê-las, para não truncar a narrativa; podem ser lidas na diagonal)

Os negritos são nossos: ajudam a destacar alguns dos pontos importantes do texto. O "bold" a vermelho são passagens controversas, são uma chamada de atenção para o leitor, devendo merecer um comentário crítico (ou o recurso a leituras suplementares).

Corrigimos os excertos seguindo o Acordo Ortográfico em vigor.

Para já aqui ficam os nossos agradecimentos ao autor e ao editor, Nordiska Afrikainstitutekl (em inglês, The Nordic Africa Institute).

Ficha técnica:

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Nordiska Afrikainstitutekl, Uppsala, 2008, 290 pp. Tradução: Júlio Monteiros. Revisão: António Lourenço e Dulce Åberg. Impresso na Suécia por Bulls Graphic, Halmstad 2008ISBN 978–91–7106–612–1.

Disponível em https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:275247/FULLTEXT01.pdf

(Também disponível na biblioteca Nordiska Afrikainstitutekl (ou Instituto Nórdico de Estudos Africanos) aqui, em "open acess" .)


Resumo dos excertos anteriores (*):

Com base numa decisão parlamentar aprovada por uma larga maioria, a Suécia tornou-se em 1969 o primeiro país ocidental a dar ajuda oficial aos movimentos nacionalistas das colónias portugueses (MPLA, PAIGC, FRELIMO). O PAIGC vai-se tornar o principal beneficiário dessa ajuda (humanitária, não-militar). Muito também por mérito de Amílcar Cabral e da sua habilidade diplomática. Até então, e sobretudo na primeira metade da década de sessenta, o debate na Suécia sobre a África Austral tinha quase exclusivamente sido centrado na situação na África do Sul, onde vigorava o apartheid.

O êxito da campanha contra a participação da empresa sueca ASEA no projecto de Cahora Bassa em Moçambique, por volta de 1968–69, na altura em que decorria a guerra do Vietname, levou a que os principais grupos de pressão (“Grupos de África”, oriundos de cidade como Arvika, Gotemburgo, Lund, Estocolmo e Uppsala) se ocupassem quase em exclusivo da luta armada nas colónias portuguesas, com destaque para a Guiné-Bissau(Parte I).

Em 3 páginas (pp. 141-143), o autor faz um resumo da "luta de libertação na Guiné-Bissau", usando unilatereal e acriticameente informaçáo propagandística do PAIGC, alguma particularmente grosseira como a pretensão deste de controlar 400 mil habitantes... (Parte II).

Nas páguinas 144-147, fala-se dos primeiros contactos com o PAIGC e das primeiras visitas ao território (Parte III).

Nas páginas 148-152, é referido a primeira visita (de muitas) de Amílcar Cabral à Suécia em novembro de 1968 (Parte IV).

 Excerto do índice (pág. 4)

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno

Pág.

As colónias portuguesas no centro das atenções

138

A luta de libertação na Guiné-Bissau

141

Primeiros contactos

144

Caminho para o apoio oficial ao PAIGC

147

Uma rutura decisiva

152

Necessidades civis e respostas suecas

154

Definição de ajuda humanitária

157

Amílcar Cabral e a ajuda sueca

161

A independência e para além dela

168



O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno
(pp. 138-172)

Uma ruptura decisiva (pp. 152-154)


A missão de apuramento de factos de Curt Ström em maio de 1969 moldou de uma forma geral a futura ajuda sueca ao PAIGC. A caminho da Guiné-Conacri, Ström começou por visitar o Senegal, onde viviam na altura mais de 50.000 refugiados da Guiné-Bissau (70).

Constatou que os refugiados eram bem recebidos pelas autoridades senegalesas. Além disso o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados financiara a construção de trinta escolas para crianças refugiadas (71). Foi este o pano de fundo que serviu a Ström para concluir que ”não há razão para a ASDI apoiar as atividades de ajuda em prol dos refugiados no Senegal” (72).

A Suécia não dispunha de representação oficial na Guiné-Conacri (73) e a ajuda que dava ao desenvolvimento não cobria esta antiga colónia francesa. As primeiras conversações de Ström com as autoridades em Conacri realizaram-se num contexto ”não isento de fricções” (74). 

Ao mesmo tempo que confirmavam que a ajuda ao PAIGC seria bem-vinda, ndeixavam bem claro que a Guiné-Conacri  esperava, como compensação, algum apoio. 

No seu relatório, o representante da ASDI concluiu que ”as contribuições a favor do PAIGC que não satisfaçam algumas das muitas necessidades enumeradas pelo governo da Guiné não parecem muito aconselháveis” (75). 

O governo sueco acabou por concordar com este ponto de vista, dando um apoio limitado ao sector da educação da República da Guiné.

De acordo com Stig Lövgren, que viria a ser responsável pelo programa de concursos públicos da ASDI para aprovisionamento de bens para o PAIGC, ”tivemos de criar um compromisso especial com a Guiné-Conacri, que permitisse pôr as coisas a funcionar.

[...] O preço que a Suécia teve de pagar foi o fornecimento de uma tipografia totalmente equipada, a ser usada no sector da educação” (76).

As conversações de Ström com o PAIGC foram bastante simples. No seu relatório, descreveu Amílcar Cabral, secretário geral do PAIGC, como ”um jovem agrónomo bastante jovial, elegante, intelectual e um conversador desenvolto e muito animado. Nada de apelos patéticos nem declarações solenes. As suas intervenções eram objectivas, claras e concisas” (77). 

Ström ficou também impressionado com o ambiente no quartel-general do PAIGC em Conacri:

”O trabalho era, tanto quanto nos era possível avaliar, marcado pela determinação e pela eficiência” (78). 

O representante da ASDI não entrou nas zonas libertadas da Guiné-Bissau, e uma visita planeada ao hospital do PAIGC em Boké no norte da República da Guiné teve de ser cancelada, seguindo instruções do governo do país nfitrião. Teve, contudo, oportunidade de avaliar a situação de duas escolas do PAIGC em Conacri, onde constatou a falta de condições materiais, mas um espírito e ambiente geral ”digno de louvor” (79).

As conversações sobre uma possível ajuda futura da Suécia ao PAIGC foram conduzidas diretamente por Cabral que, de acordo com o relatório escrito por Ström, sublinhava que precisava de quase tudo e que ”era mais fácil dizer à Suécia aquilo de que não precisava” (80). 

Dessa lista faziam parte, de forma assinalável, armas, material militar bem como bolsas de estudo (81), que o PAIGC podia obter de outras fontes (82). Fazendo referência ao pedido discutido com a ASDI aquando da visita de Cabral à Suécia em Novembro de 1968, as partes acabaram por chegar a acordo quanto a uma proposta nas áreas da saúde. educação e bens de primeira necessidade ”dentro e fora das zonas de combate” (83). 

O apoio pretendido era constituído por remessas de bens e equipamento, a serem enviadas para o PAIGC em Conacri (84). O PAIGC tinha, de acordo com informações fornecidas por Cabral, a capacidade de armazenamento necessária na capital da Guiné, sendo depois a ajuda material transportada para a Guiné-Bissau pelo departamento de logística do PAIGC, que integrava cerca de 150 pessoas e que dispunha de alguns camiões, doados pela OUA e pela União Soviética (85).

Antes de Ström regressar à Suécia, recebeu do PAIGC listas pormenorizadas dos artigos a fornecer. Quanto a bens de primeira necessidade, figuravam da lista alimentos como leite em pó e conservas de carne e de peixe, além de bens de consumo, como têxteis, cobertores, utensílios domésticos e ferramentas agrícolas. 

A mercadoria destinava-se aaos ”armazéns do povo”, criados pelo PAIGC nas zonas libertadas. Ficou desde o início patente que a maior parte dos artigos a fornecer pela proposta ajuda humanitária sueca se destinava às atividades civis do movimento de libertação no território da Guiné-Bissau.

Apesar dos problemas encontrados junto das autoridades de Conacri, no relatório de Ström ao director geral da ASDI recomendava-se, em junho de 1969 que, no seguimento de uma declaração de esclarecimento feita pelo parlamento sueco, fosse atribuído ao PAIGC um milhão de coroas suecas para aquisição de vários artigos nas áreas indicadas, durante o ano fiscal de 1969–70 (86).

Com o apoio do Comité Consultivo para a Ajuda Humanitária (87), Michanek enviou em julho de 1969, uma recomendação ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Nilsson, que lhe pôs o seu selo de aprovação. 

A primeira remessa no âmbito do programa global oficial sueco de ajuda a um movimento de libertação africano saiu de Roterdão, na Holanda, com destino ao PAIGC, a 29 de setembro de 1969 (88). Amílcar Cabral estava nessa altura a realizar mais uma visita à Suécia, desta feita com o objetivo de marcar presença no congresso do Partido Social-Democrata (89).

Dez meses após a sua primeira visita à Suécia, pôde constatar no terreno os frutos dos seus esforços diplomáticos (90).

______________

Notas do autor:

70. Curt Ström: ”Reserapport” (”Relato de viagem”), ASDI, Estocolmo, 13 de junho de 1969 (SDA).

71. Ibid. Quinze das escolas foram construídas com contribuições da Noruega.

72. Ibid. Durante a sua visita ao Senegal, Ström encontrou-se com Benjamin Pinto-Bull, o líder da organização de libertação rival da Guiné, a FLING. Pinto-Bull afirmava que a sua organização tinha ”um apoio mais forte junto do povo da Guiné-Bissau do que o PAIGC”, mas Ström nunca ficou disso convencido nem muito impressionado com o líder da FLING.

73. Durante as suas reuniões em Conacri, Ström descobriu que o governo da República da Guiné e o PAIGC tinham ”fortes suspeitas” sobre o cônsul sueco no local. Amílcar Cabral afirmou que não queria que o cônsul tivesse qualquer participação numa eventual futura ajuda sueca (ibid)

74. Ibid.

75. Ibid.

76. Entrevista com Stig Lövgren, p. 314. O governo sueco não recebeu pedidos semelhantes na África Austral, onde havia representações diplomáticas e onde os países anfitriões recebiam importantes ajudas suecas para o desenvolvimento.  

77. Curt Ström: ”Reserapport” (”Relatório de viagem”), ASDI, Estocolmo, 13 de Junho de 1969 (SDA).

78. Ibid.

79. Ibid.

80. Ibid.

81. O PAIGC havia, mais tarde, de abrir exceções a esta posição geral quanto às bolsas. Utilizando fundos da ASDI, o irmão mais novo de Amílcar Cabral, Fernando Cabral, iniciou estudos de medicina, na área da cirurgia torácica, em Estocolmo, em finais de 1972 (Carta de Onésimo Silveira a Marianne Rappe, Uppsala, 21 de Outubro de 1972) (SDA).

82. No seu relato, Ström declara que os doadores mais importantes do PAIGC eram a Organização de Unidade Africana, a União Soviética, a República Democrática Alemã e a Checoslováquia. 

A ajuda da República Popular da China terminara cerca de cinco anos antes, facto que mereceu o seguinte comentário de Cabral: ”É verdade que precisamos de ajuda, mas não precisamos de Senhores” (Curt Ström: ”Reserapport”/”Relato de viagem”, ASDI, Estocolmo, 13 de junho de 1969) (SDA).

83. Ibid.

84. Havia muito poucas ligações entre a Suécia e a República da Guiné. No início, a ASDI teve dificuldade em encontrar uma companhia de navegação que fizesse viagens regulares para esse país mas acabou por utilizar os serviços de uma empresa dinamarquesa, que fazia ligações regulares com alguns portos da África Ocidental, entre os quais Conacri (Entrevista com Stig Lövgren, p. 314).

85. Curt Ström: ”Reserapport” (”Relatório de viagem”), ASDI, Estocolmo, 13 de Junho de 1969 (SDA).

 86. Curt Ström: ”Reserapport” (”Relatório de viagem”), ASDI, Estocolmo, 13 de Junho de 1969 (SDA).

87. CCAH: ”Protokoll” (”Actas”), Estocolmo, 5 de junho de 1969 (SDA). Nesta ocasião, Curt Ström fez uma exposição oral das conclusões a que chegou durante as visitas ao Senegal e à República da Guiné.

88. ASDI: ”Fortsatt svenskt stöd till Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde” (”Continuação do apoio sueco ao PAIGC”), Estocolmo, 19 de novembro de 1970 (SDA). Como se verá nas tabelas em anexo, as contas da ASDI não reflectem quaisquer pagamentos ao PAIGC durante o ano fiscal de 1969–70. As entregas feitas em 1969–70 foram debitadas pela primeira vez em 1970–71. 

Num relatório exaustivo, datado de maio de 1970, Cabral acusava, contudo, receção e registava a distribuição de ajuda sueca durante o ano fiscal de 1969–70 (PAIGC: ”Sur l’aide humanitaire de la Suède à notre parti: Rapport bref et proposition d’aide” (”Informações sobre a ajuda humanitária da Suécia ao nosso partido: Breve relatório e proposta de ajuda”), Conacri, 19 de maio de 1970) (SDA).

89. O Congresso elegeu Olof Palme como líder do partido e primeiro ministro. Menos de um mês antes, a ASEA retirara-se do controverso projecto de Cahora Bassa em Moçambique. 

O Partido Social-Democrata no poder tinha agora a possibilidade de assumir verdadeiros compromissos com a causa da libertação de África, tanto junto do líder convidado da FRELIMO. Marcelino dos Santos, quanto do secretário geral do PAIGC, Amílcar Cabral. 

Para Palme, tratava-se de algo de enorme significado. Deu início ao seu mandato como primeiro ministro sueco, sem grandescomplicações económicas relativas à África Austral, pois dispunha de uma declaração do parlamento a favor da ajuda oficial directa aos movimentos de libertação em África, e dispondo já dos primeiros exemplos concretos dessa ajuda.

Com este pano de fundo não surpreende que, enquanto indivíduo, se tenha identificado muito com a ajuda dada pela Suécia aos movimentos de libertação em África.

90. Cabral voltou a Estocolmo em junho de 1970 para discutir o pedido do PAIGC no sentido de a ajuda sueca se prolongar para 1970–71 (SIDA: ”Fortsatt svenskt stöd till Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde”/ASDI: ”Continuação do apoio sueca para o PAIGC”, Estocolmo, 19 de Novembro de 1970) (SDA).

 [ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / itálicos / bold, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G ]

________________

Nota do editor:

(*) Último poste da série >  28 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24510 Antologia (93): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte IV