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quinta-feira, 10 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9879: Memórias da minha comissão (João Martins, ex-alf mil art, BAC 1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69): Parte IV : Em Piche, com um Pel Art com 3 peças de 11.4


Foto nº 73/199 > Setembro de 1968 > Chegada da LDG a Bambadinca [Sobre a viagem de Bissau a Piche, vd. poste 9593]




Foto nº 85/199 > Setembro de 1968 > A caminho de Piche, antes de Nova Lamego > Furo em plena picada. Últimos da coluna. Sós. Aguardando ajuda ou o inimigo...



Foto nº 90/199 > > Paragem obrigatória para descansar... [Em primeiro plano, uma das 3 peças de artilharia, 11.4]




Foto nº 103/199 > Setembro de 1968 > Nova Lamego > Pedro Sá da Bandeira, antigo colega de turma no Liceu Nacional de Oeiras e vizinho da mesma rua em Algés.



Foto nº 98/199 > Setembro de 1968 > Piche > Os meus camaradas, alferes de cavalaria.




Foto nº 99/199> Setembro de 1968 > Piche > Em Piche nunca entrei em combate, mas tive encontros imediatos de grande perigo, porque facilitei em demasia... [Na foto, canhão s/r montado em jipe... Não era uma arma de acavalaria, mas uma arma pesada de infantaria...]




Foto nº 101/199> Setembro de 1968 > Piche > [O JoãoMartins com uma temível granada de canhão s/r]


Foto nº 109/199 > Piche > 1968 > Portugueses da Guiné solicitando a ajuda Nacional.


Foto nº 112/199 >  Piche  > 1968 > Mulher amamentando uma cabrinha (!)...


Foto nº 111/199 > Piche > [Fulas partilhando uma refeição]



Foto nº 108/199 > Piche > Setembro de 1968 > Régulo afirmando a sua amizade, veio cumprimentar-nos.




Foto nº 117/199 > Piche > s/d > [Uma bela paisagem, não tenho a certeza se é de Piche... ou de Catió por onde o autor passou, a caminho de Bedanda].



Fotos do álbum do João José Alves Martins, em grande parte disponíveis na sua página do Facebook... 


Fotos (e legendas): © João José Alves Martins (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. (Fotos editadas e parcialmente legendadas por L.G.)


Memórias da minha comissão na Província Ultramarina da Guiné - Parte IIV (*)

por João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69)

(Continuação)



___________

ÍNDICE

1 – Curso de Oficiais Milicianos
1.1 – Mafra – Escola Prática de Infantaria
1.2 – Vendas Novas – Escola Prática de Artilharia – Especialidade: PCT (Posto de Controlo de Tiro)
2 – Figueira da Foz – RAP 3 - Instrução a recrutas do CICA 2
3 –Viagem para a Guiné (10 de Dezembro de 1967)

4 – Chegada à Bateria de Artilharia de Campanha Nº. 1 (BAC 1) e partida para Bissum

9 – Gadamael-Porto

10 – Guilege

11 – Bigene e Ingoré
_____________________



7. Piche


Chegado a Bissau [, de férias na metrópole], novo pelotão e novo destino me esperavam, Piche, e em Setembro de 1968 embarquei numa Lancha de Desembarque Grande (LDG) com um pelotão constituído por três peças de Artilharia 11,4 cm.

Em Nova-Lamego encontrei um ex-colega de turma do Liceu Nacional de Oeiras, o Pedro Sá da Bandeira, a quem tirei uma fotografia.

A viagem estava a decorrer sem qualquer contacto com o IN, até parecia que já não estava em teatro de guerra, e, como tinha vindo da Metrópole, já tinha esquecido um pouco o que era entrar em combate.

Quase a chegar a Piche, depois de passadas Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego, indo eu na última viatura da coluna para me certificar que tudo à minha frente decorria da melhor maneira, a viatura teve um furo na roda esquerda dianteira,  como mostra a fotografia. Éramos dois ou três, isolados, sem armas, só com munições de artilharia que para o efeito não serviam para nada, e assim ficámos bastante tempo, parados na picada à espera que acontecesse alguma coisa.

Apareceram então elementos da população, muito simpáticos e prestáveis como são em geral os fulas e os futa-fulas. Prontificaram-se a remover algumas caixas de munições e a arranjar o pneu da viatura. Entretanto, chegou o auxílio vindo da coluna porque acabaram por dar pela nossa falta.

Por feitio, gosto de interagir com os outros, para mim, era essencial compreender as motivações, as queixas, o que ia na cabeça daquela gente, de modo que mantive sempre uma relação muito próxima, não só com os soldados dos meus pelotões mas também com os que tinham sido colocados circunstancialmente na sede, BAC 1, por começarem a especialidade, por irem ou regressarem de férias ou por estarem a terminar o serviço militar, na sua grande maioria recrutados de todas as etnias da Guiné, e ainda, com todos os que me rodeavam, muito particularmente, quis compreender o verdadeiro sentir das populações e a sua relação com aquela guerra.

O que me deixa verdadeiramente satisfeito, é ter conhecido aquelas gentes, melhor dizendo, aqueles portugueses, verdadeiros portugueses na medida em que, na sua maneira de ser, se aproximam muito de nós, muito provavelmente pela ação missionária e de evangelização a que todos nós, portugueses, fomos de algum modo chamados desde a “Fundação de Portugal”.

Assim como os portugueses da Metrópole têm ideologias diferentes, religiosidades específicas, modos de convivência diferenciados, com o sentimento do “amor ao próximo” vivido de maneiras diferentes, uns, mais crentes, portadores de uma religiosidade mais profunda, outros, menos crentes ou até ateus, também na Guiné fui encontrar as maiores disparidades, até porque não se trata de um povo, mas de uma miscelânea de povos das mais diversificadas origens com dialetos distintos, tendo inclusivamente alguma dificuldade em comunicar uns com os outros, pelo que têm o crioulo em comum que lhes permite entenderem-se. Inclusivamente, informaram-me que os membros de uma das etnias, os felupes, eram canibais.

A única característica comum para além de serem africanos era o fato de serem portugueses. Só esse facto os une, pelo que muito dificilmente se poderão constituir como uma Nação. Mais, o sentimento mais profundo que trago como recordação, é que, na Guiné, eu não estava no estrangeiro, mas em Portugal, e quando estou com alguém de lá, não posso deixar de lhe dar o meu abraço de “irmão”, porque vejo nele um português que vive no estrangeiro.

O mesmo não se passa com os espanhóis com os quais ainda temos um diferendo fronteiriço, o caso de Olivença, e recordamos que no passado, fomos uma região autónoma espanhola, nem temos afinidades com os franceses que nos invadiram no tempo do imperador Napoleão Bonaparte, cujas tropas “saquearam” o que puderam, e ainda menos, com os alemães, com os quais estivemos em guerra e recordo a batalha de “La Lys”, durante a 1ª Guerra Mundial, em que estivemos envolvidos sem grande justificação, entrando em combate em condições verdadeiramente desumanas e em que, em consequência, muitos portugueses perderam a vida.

Parte de mim ficou na Guiné, para sempre, não só pelo sentimento do dever cumprido que é independente do regime que vigorava na altura, mas sobretudo, pela experiência e pelo reconhecimento de cerca de 500 anos de convivência e de pertença à mesma Nação, e esta realidade não se esquece, não se apaga e não está à venda…

Em Piche, aconteceu-me um episódio que não esquecerei. Como não sentia qualquer animosidade por parte da população, nem pressentia qualquer perigo, não pensei que o perigo sempre espreita. Nem mesmo pensei nisso quando chegou ao aquartelamento um carregamento de garrafas de cerveja, e, como estava calor e tinha sede, dirigi-me ao bar para comprar uma; para meu espanto, informaram-me que já tinham sido todas vendidas; não queria acreditar, e perguntei como é que podia ser. Responderam-me que tinham sido vendidas a um libanês que tinha uma tasca a poucos metros do aquartelamento; fiquei sem saber quem é que lucrava com aquele “negócio”.

Sem alternativa, fui até lá e pude apreciar o ambiente. Realmente, sentíamo-nos fora do quartel, e como não estava acompanhado fui-me inteirando do que se passava à minha volta, reparei que havia quem conversava de uma forma muito discreta e pus-me a ouvir, falavam em francês, o que era estranho, mas mais estranho foi o facto de, quando repararam que eu os estava a escutar, terem-se posto em fuga. Realmente, podia concluir que, verdadeiramente, nenhum lugar era seguro, mas não dei demasiada importância.

Dias mais tarde, vieram-me dizer que havia falta de géneros e que era conveniente procurar nas tabancas das redondezas quem vendesse alguns frangos. Como não tinha muito que fazer, dispus-me a dar uma volta para ver se encontrava alguns e também para quebrar a monotonia. Meti-me num “jeep” e fui com um furriel, levava comigo uma G3 e uma pistola à cintura.

Andámos alguns quilómetros para Norte, passámos por uma palhota onde se encontrava uma mulher a dar de mamar a uma cabra, tirei-lhe uma fotografia, e continuámos na esperança de encontrarmos uma tabanca com galinhas.

A certa altura, chegámos a uma, mas só depois de muito andarmos; não se vislumbrava ninguém, o que achei muito estranho, pedi ao furriel que fosse à procura de alguém, e, como estava muito calor, sentei-me à sombra de uma árvore ficando descontraidamente à espera e a descansar de tanto solavanco a que nos obrigavam aquelas picadas.

Passados uns cinco a dez minutos, para espanto meu, vindos do fundo da tabanca, vejo a cerca de cinquenta metros, uns seis africanos cobertos de panos compridos a correrem para mim e a fazerem muito barulho, com catanas nas mãos e com ar de “poucos amigos”… Percebi que estava em “maus lençóis”, e que tinha que tomar rapidamente uma decisão.

Se fugisse, não ia longe porque algum deles correria mais do que eu, se puxasse pela pistola, também não me safava porque nem sabia se estava carregada, a solução só podia ser uma, rezar e encomendar a minha alma ao Senhor, entregando a minha vida nas sua mãos; e foi o que fiz, e serenamente, na “graça do Senhor”, fiquei à espera…

Face à serenidade que se apoderou de mim, e à “Luz” intensa que me envolvia, ficaram espantados, e resolveram espetar as catanas na árvore, mesmo por cima da minha cabeça, e foram-se embora.

É claro que não ganhei para o susto… Pouco depois, apareceu o furriel dizendo que estranhamente não tinha encontrado ninguém porque tinham fugido todos e a aldeia encontrava-se deserta.

Metemo-nos no “jeep” e viemo-nos embora. No caminho, deparámo-nos com uma árvore de pequeno porte a barrar a picada e uns tantos homens, mas poucos, “à nossa espera”. Tinha-me safado de uma vez e não quis abusar da sorte, disse ao furriel que acelerasse a viatura passando por cima da árvore, enquanto eu de G3 em posição e devidamente carregada, apontava para os nossos “amigos”, agora era eu que estava com “ar de poucos amigos”; é claro que nem se mexeram, passámos sem mais problemas e regressámos ao aquartelamento.

Dias mais tarde, por sinal, andando na mesma viatura, observei que algo de anormal se estava a passar; à entrada da povoação encontravam-se uns quatro homens vestidos com os tais panos, portanto, de uma forma diferente do que era normalmente usado pelo pessoal de Piche. Estavam rodeados por muitos populares, que olhavam para eles muito intrigados quanto às suas pretensões, e era bem visível a diferença de uns e de outros porque os habitantes locais, usavam regra geral, calções e camisas.

Por curiosidade e sentido de responsabilidade, aproximei-me convencido que havia problema, parei a viatura relativamente perto e nem queria acreditar no que via. Eram aqueles que tinham corrido para mim com as catanas na mão, sem dúvida sem as melhores das intenções, e que agora se dirigiam para mim.

Ficaram muito felizes quando me viram, demonstrando-o dando-me grandes abraços como se fossemos amigos de longa data que não se viam há muito tempo, o que não era propriamente o caso, e deixando atónitos os populares que apreciavam toda a cena; devem ter concluído que “eu estava feito com os turras”; não falavam português, provavelmente só o crioulo, mas deu para perceber que o que pretendiam era entrar na povoação para comprar agulhas e linhas para cozerem os seus panos; pelo menos, foi o que eu entendi por gestos e por algumas palavras. É claro que esta cena era completamente incompreensível para quem a observou, e devem ter transmitido isso mesmo ao comandante da companhia que mais tarde me perguntou o que se tinha passado.

Como a realidade era um pouco “sui generis”, resolvi dizer que aqueles homens me tinham salvado a vida, na verdade, devia ter dito que me tinham poupado a vida, de qualquer modo, o que quer que dissesse era pouco compreensível, pelo que não deve ter acreditado na minha versão e poucos dias depois tinha uma guia de marcha para me apresentar em Bissau. 

Lembro-me de ter regressado num “Dakota”, que parecia ser da última grande guerra tal era a vibração da fuselagem e o barulho que fazia o motor. (**)

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Nota do editor:

(*) Vd. último poste da série > Guiné 63/74 - P9857: Memórias da minha comissão (João Martins, ex-alf mil art, BAC 1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69): Parte III - BIssau e férias em São Martinho do Porto, em agosto de 1968


(**) Vd. ta,bém poste de 10 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9593: Álbum fotográfico de João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69) (1): Viagem de Bissau a Piche, pelo Geba e pela picada, com 3 peças de arilharia 11.4, em julho de 1968

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7306: Estórias avulsas (44): O dia em que o canhão sem recuo me mandou para o hospital militar de Bissau (José Gonçalves, ex-alf mik op esp, CCAÇ 4152/73, Gadamael e Cufar, 1974))

1. Texto de José Gonçalves (ex-Al Mil Op Esp da CCAÇ 4152/73, que vive actualmente no Canadá) [, foto à direita]:

Data: 19 de Novembro de 2010 02:12

Assunto: O dia em que o canhão sem recuo me mandou para o hospital militar de Bissau.

Foi já ao entardecer do dia 27 de Fevereiro 1974 quando recebemos uma mensagem para tomarmos as precauções defensivas necessárias pois havia informação indicando a possibilidade de Gadamael vir a ser atacado por tanques e carros de combate [possível referência às viaturas blindadas, de origem soviética, BRDMque o PAIGC estaria em condições de começar a utilizar em 1973 nos ataques aos nossos aquartelamentos fronteiriços ]. 

Como devem calcular não foi uma notícia que pudesse ser ignorada e assim todo o pessoal do comando reuniu-se para decidir o que fazer em relação à nossa segurança e à da população sob nossa protecção.

Defesa contra tanques e carros de combate era coisa que não tinha ideia nenhuma pois nunca tive este tipo de treinamento. Nem eu nem ninguém da minha companhia, mas não podíamos ficar de braços cruzados e decidimos então ir fazer uma inspecção a todos os postos de defesa e instruir os seus responsáveis do perigo que poderia em breve aparecer para que tomassem as devidas precauções em relação às munições e funcionamento das armas de defesa.

[Imagem à esquerda: Viatura blindada BRDM 2, utilizada pelo PAIGC em meados de 1973 no sul da Guiné: Desenho e especificações... 

Cortesia de Nuno Rubim (2009)




Visitámos os postos de metralhadoras pesadas e depois fomos visitar um posto de canhão sem recuo que ficava mesmo ao lado da enfermaria/messe de sargentos. O cabo responsável por esta arma mostrava-se muito entusiasmado pela atenção que lhe estava a ser prestada e queria mostrar-nos a todos nós como a sua arma funcionava . Entretanto o capitão, alferes e furriéis estavam todos à volta do canhão, dialogando sobre as melhores opções de defesa quando o cabo decidiu trazer uma munição para nos mostrar e introduziu-a na câmara do canhão. 

Fiquei preocupado pois sabia como tal peça funcionava e disse-lhe prontamente que com todo o pessoal à volta isso era perigoso avisando-o para não fechar a culatra. A resposta do mesmo foi que não havia perigo e fechou a culatra e quase instantaneamente se deu a percussão da mesma ferindo o cabo em estado muito grave pois apanhou-o em cheio nas suas partes privadas e a mim que estava ao seu lado queimou-me quase um terço do corpo principalmente perna esquerda, braço esquerdo e peito. Valeram-me os calções que protegeram a mercadoria. O coitado do cabo não teve a mesma sorte.

Com a explosão voei pelo ar e caí em cima do Alferes Lobo (que estava algures ao meu lado ou por trás de mim) que se queixava não enxergar nada. Olhei então para o Lobo e verifiquei que as pálpebras dos olhos dele se tinham chamuscado e colado não o deixando abrir os olhos correctamente. Ao mesmo tempo olhei para o meu braço e vi que estava todo preto e com sangue, tentei limpar o braço passando com a minha mão direita sobre ele e um bocado de pele automaticamente se descolou. Olhei então para a minha perna e também não estava lá muito católica e resolvi então correr para a enfermaria à procura de ajuda.

Quando cheguei ao abrigo onde os enfermeiros estavam alojados disse-lhes que tinha havido um acidente e que havia vários feridos. Com esta informação saíram todos correndo pela enfermaria a fora em direcção ao canhão e deixaram-me lá sozinho, por fim um voltou para trás para tomar conta de mim. Foi então que me disseram que o cabo tinha ficado mesmo muito mal e que felizmente tinha só sido eu e ele a ficarmos feridos e que teríamos de ser evacuados pata Bissau. Por sorte não estava ninguém em frente do canhão senão o resultado teria sido muito pior.

Começaram então os preparativos para nos evacuar e foi-nos prontamente dito que a evacuação teria que ser feita de Cacine porque os helis não vinham a Gadamael. O sol já estava posto quando nos meteram em dois sintexes do exército e lá fomos rumo a Cacine. Tive então o conhecimento real que a maresia em queimaduras dá dores horríveis e como não me tinham dado e não me deram nada para as dores, tive que aguentar até ser evacuado o que só aconteceu no outro dia de manhã. O cabo estava cheio de morfina mas apesar do meu pedido para me darem também morfina para as dores, foi-me recusado dizendo que os efeitos secundários da morfina não eram justificados no meu caso.

No sintex no meio do rio Cacine sentia um alívio enorme e um sentimento de sorte, apesar dos ferimentos que tinha, pois ia deixar o inferno de Gadamael para trás, os bombardeamentos diários e o suposto ataque   [de BRDM-2] que felizmente nunca chegou a acontecer. As minhas preocupações eram com os meus soldados e camaradas caso o ataque previsto se realizasse: será que tudo estaria bem com eles, será que o treinamento que lhes tinha dada e com o comando dos furriéis poderiam ser dignos militares e não porem a sua vida em risco ? 

Tudo isto me ia na cabeça e também uma grande preocupação de ficar muito cicatrizado (um pouco de vaidade que é normal de quem é novo) . Tinha que escrever aos meus pais e contar-lhes o sucedido mas como fazê-lo sem preocupar mais a minha mãe pois sabia que esta (já vivendo no Canadá com o resto da família), sofria de muitas emoções por me encontrar na Guiné a combater. 

Passei uma noite horrível na enfermaria de Cacine ao lado do meu companheiro,  1º cabo apontador de canhão s/r, pois este estava totalmente sedado com morfina mas com conhecimento do que lhe tinha acontecido. Passou a noite a chamar pela namorada e pela mãe. A uma certa altura pediu aos enfermeiros para urinar e estes diziam um para o outro que não encontravam nada com que ele o pudesse fazer. Foi uma noite horrível escutando aquele homem gemer e chamar pelos seus entes queridos e pedi aos enfermeiros para me mudarem para outro lado pois já não suportava mais a agonia do meu camarada que me causava mais transtorno que as minhas próprias dores. Também me foi dito que não podiam pois que eu tinha que ser monitorizado e que tinha que ficar perto deles. 

De madrugada lá apareceu um heli com uma enfermeira pára-quedista que nos evacuou para o hospital militar de Bissau onde passei os próximos dois meses só regressando a Gadamael no dia 21 ou 22 de April de 1974 (já não me recordo bem da data).

Quando cheguei a Bissau um dos enfermeiros na sala de recepção levantou o lençol que me tapava o corpo totalmente nu e disse : "pensei que era pior" o médico que se encontrava a seu lado olhou para mim e respondeu : "ainda querias pior?". Nunca mais me esqueci destas duas frases. Medicaram-me e puseram-me em soro todavia passadas umas boas horas comecei a ter convulsões que era o começo de envenenamento do corpo devido a quantidade de pele queimada. 

Tudo passou, e um dia apareceu na sala de cuidados intensivos o governador (general Bettencourt Rodrigues) que me perguntou como me estava a sentir e de imediato me ameaçou com um auto por andar a brincar com canhões. Respondi-lhe que agradecia ele mandar averiguar a situação pois eu também estava interessado em saber o que se tinha passado mas que tal acto não foi devido a nenhuma brincadeira com canhões. Não me deu resposta e lá se foi para a sua vida e eu fiquei mais mês e meio em Bissau a recuperar.

Lembro-me de várias vezes ouvir passar tropas cantando, (presumindo ser tropas especiais e talvez africanas) em camiões em direcção a Bissalanca , e logo pela manhã do dia seguinte começavam os helis a chegar com os feridos. Foi um tempo preocupante e interessante pois estive cerca de 3 semanas com alta do hospital (indo às consultas externas ao hospital 1 vez por semana ) nas instalações dos oficiais onde se comia e bebia bem, com piscina e até cinema ao ar livre tinha. 


Comparado com Gadamael,  era um paraíso mas tive alta no dia 21 de Abril e voltei de novo para o "inferno de Gadamael" pensando sempre que talvez fosse o meu último destino, o que não veio a acontecer devido ao 25 de Abril. 

Foi também em Bissau que comecei a conviver com outros oficiais mais experientes que ali se encontravam de baixa ou de passagem e que contavam as suas histórias e preocupações e o seu sentimento de revolta com tudo o que se estava a passar. Em Gadamael, no COP 5 falava-se pouco da situação em que estávamos talvez pelo choque e o pouco tempo que lá estive. Do tempo de Gadamael lembro-me das noites de Poker, dos uísques e dos gins tónicos e do fugir para os abrigos que podia ser várias vezes por dia. 

José Gonçalves | alf mil op esp | CCAÇ 4152/73,
Gadamael e Cufar, 1974)
______________


Nota de L.G.: 

Último poste da série > 16 de Novembro de 2010> Guiné 63/74 - P7291: Estórias avulsas (100): A mina, que seriam duas (António Branquinho)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7303: Álbum fotográfico de Jacinto Cristina, o padeiro da Ponte Caium, 3º Gr Comb da CCAÇ 3546, 1972/74 (4): Parabéns ao municiador (e às vezes apontador) do Morteiro 10.7, que fez 61 anos no passado dia 14...








Guiné > Zona Leste > Piche > Destacamento de Caium > CCAÇ 3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > 3º Gr Comb > O Jacinto Cristina, soldado, municiador (e às vezes apontador) do Morteiro 10,7... Na foto imediatamente acima, o Cristina posa para a fotografia junto de um canhão s/r 75 mm, m/52 (se não me engano...); esta arma era meramente decorativa, já que estava, de  há muito,  inoperacional (no TO da Guiné, usava-se ainda os calibres 57 mm e 106 mm, este sobretudo montado em jipes, e destinado a defesa a aquartelamentos e destacamentos; era uma arma pouco popular, perigosa para as guarnições por causa do cone de fogo, um dos meus camaradas de Bambadinca, o Sargento Parente, morreu, no Saltinho, com um disparo inadvertido de canhão s/r 82 mm, uma arma muito utilizada pelo IN, tal como o canhão s/r 75 mm).


Foto: © Jacinto Cristina (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


Jacinto Cristrina, um bravo de Caium,  fez 61 anos no dia 14, domingo. Este fim de semana vai comemorar com a família. Infelizmente, desta vez, não poderei sentar-me à mesa, com ele, a esposa Goretti, a filha Cristina, o genro Rui Silva, a neta (a Princesa)... Mais a Alice, a minha cara-metade.  O petisco vai ser borrego assado no forno do padeiro, como só a Goretti sabe fazer. 

Não podendo aceitar o convite, por razões de agenda, prometo que, na melhor ocasião, quando lá passar,  por Figueira de Cavaleiros, concelho de Ferreira do Alentejo, sentir-me-ei honrado e feliz por lhe poder dar, ao vivo  o abraço de parabéns (ou o quebra-costelas) que ele merece, de camarada para camarada. 

Aproveitarei ao mesmo tempo para dar-lhe notícias do Carlos Alexandre, outro caiumense, natural de Peniche que nos veio esclarecer sobre a história da concepção e construção do monumentos aos mortos do 3º Gr Comb... Acabo, entretanto, de transmitir por telefone o essencial desta história extraordinária de amizade e de camaradagem dos bravos de Caium, à Goretti, já que o noctívago do Jacinto estava a descansar; sei também que o Carlos, depois da publicação do seu primeiro poste,  telefonou ao Cristina, mas que este ainda não viu a foto que prova, por A + B, que o referido monumento foi colocado no tabuleiro da ponte da  ainda no tempo da malta do 3º Gr Comb da CCÇ 3546; o Carlos não compreende e tem dificuldade em aceitar a amnésia que deu a estes caiumenses, e nomeadamente aos alentejanos Cristina, Sobral e Barroca. 

Tenho comigo o outro álbum fotográfico que ele me emprestou, em Setembro passado, e que está pronto para lhe ser devolvido, depois de seleccionadas as fotos que me interessavam. É desse álbum que retiro as imagens, digitalizadas por mim, que documentam uma outra faceta do Jacinto, a do municiador (e, às vezes, apontador) do morteiro 10.7 (*).

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Nota de L.G.: