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quarta-feira, 21 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13171: Efemérides (155): O baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau na Associação Comercial, Industrial e Agrícola, em 5 de junho de 1965: "Alto lá e pára o baile!" (depoimentos de Virgínio Briote, João Parreira e Luís Rainha)



Guiné > Bissalanca > 1966 > Comandos a caminho de Bafatá, junto ao Dakota para operações na região do Xitole.


Marcelino da Matam, então 1º cabo,  é o primeiro da esquerda, na segunda fila, de pe.  O alf mil Briote é o segundo, a contar da esquerda, da primeira fila. O Capitão Rubim (hoje cor art na reserva) é o 6º da primeira fila, também a contar da esquerda.

Guiné > Bissalanca > 1966 > Comandos a caminho de Bafatá, junto ao Dakota para operações na região do Xitole. São essencialmente elementos do Gr Cmds Diabólicos, de que era comandante o nosso querido amigo, camarada, grã-tabanqueiro e editor (jubilado) Virgínio Briote, para quem mandamos um xicoração fraterno e que esperemos reencontrar em Monte Real, no dia 14 de junho próximo.


Foto: © Virgínio Briote (2005). Todos os direitios reservados [Edução: LG]


1. Vai fazer 50 anos, para o ano, o célebre baile dos finalista da Escola Técnica de Bissau (e não propriamente do Liceu  Honório Barreto), que ficou bem gravado na memória de alguns dos camaradas que pertenceram aos comandos do CTIG (Brá, 1965/66) como foi o caso dos nosso grã-tabanqueiros Virgínio Briote (, um histórico do nosso blogue, como autor e coeditor), João Parreira e Luís Raínha...

O Virgínio e o João já publicarm, na I Série, em 2005, a sua versão dos acontecimentos dessa noite, em que um grupo de militares, comandos e outros, forçaram a entrada no baile, por vol,ta das 2 h da manhã, e travaram-se de razões com os organizadores.  Os desacatos que se seguiram obrigaram à intervenção da Polícia Militar e da PSP. No final, acabou tudo à boa maneira portugesa, com umas porradas para uns bodes expiatórios e pedidos de desculpa do governador Schulz à Associação.

Não nos compete julgar o comportamento de nenhuma camarada nosso, de acordo com o espírito e a letra das nossas  normas editoriais.  Cenas destas passaram-se na metrópole, envolvendo civis e militares. Mas. neste caso, estamos num território em guerra, e numa cidade, Bissau, ainda em pleno desenvolvimento, mas com sinais de crispação entre os militares, metropolitanos, e a elite crioula...

Juntamos aqui 3 depoimentos, de camaradas nossos que estavam lá nessa noite: além do Virgínio e do João, o Luís Rainha (que é também o fundador., administrador e editor principal do blogue Comandos da Guiné- 1964 a 1966, co-editores: Júlio Abreu e João Parreira, os três também membros da nossa Tabanca Grande).

Os acontecimentos tiveram lugar na Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau, mesmo nas barbas do Governador Arnaldo Schulz.

Não encontrámos até à data nenhuma versão da parte dos civis,  organizadores do baile ou da direção da associação, muito menos do PAIGC (que ocupa hoje este edifício, de resto o melhor edifício da Bissau colonial, segundo a conceituada especialista em arquitetura colonial  estadonovista, a Ana Vaz Milheiro, já aqui vátias vezes falada).

Não sabemos de eventuais ligações, nesta época, ao PAIGC; por parte da direção ou de alguns membros dos corpos sociais da Associação Comercial e Industrial de Bissau, como parece insinuar o Luís Rainha no seu depoimento. O EliséeTurpin foi secretário-geral desta  Associação, de 1973 a 1976,  e não em 1965 (como já escreveu algures o Virgínio Briote), O que é mais espantoso é como é que o homem conseguiu escapar às malhas da PIDE/DGS, vivendo à luz do dia em Bissau... Nunca foi preso... Afinal tratava-se, nada mais nada menos, de um dos fundadores do PAIGC, em 1956!... Só há uma explicação, quanto a mim: a escola de resistência do PCP-Partido Comunista Português, de que o Elisée Turpin também era (ou tinha sido) militante...

Esta junção dos três textos, para além de uma homenagem aos seus autores (e muito em particular ao nosso editor jubilado Virgínio Briote que superou um grave 'roblema de saúde, do foro oftalmológico, ainda não há muito tempo) , é também uma forma de dar a conhecer melhor, aos nossos leitores mais recentes (ou "piras"),  o ambiente que se vivia em Bissau, em meados de 1965,  no tempo do Arnaldo Schulz, o general que antecedeu o António Spínola.



Guiné > Bissau > s/d > Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 144". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal). O melhor edifício da cidade, segundo Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura colonial estadonovista. É hoje sede... do PAIGC!

Foto: © Agostinho Gaspar / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine   (20q0). Todos os direitios reservados [Edução: LG]



Guiné > Brá (?) > Setembro de 1965 >  Virgínio Briote, ao centro, tendo à sua esquerda o Marcelino da Mata e o Azecedo e *a sua direita o Black e o Valente

Foto: © Virgínio Briote (2005). Todos os direitios reservados [Edução: LG]


(i) A versão (ligeiramente ficcionada) do Virgínio Briote
ex-alf mil, comando, cmdt do Gr Cmds
Diabólicos (CTIG, Brá, 1965/66)

[Os parênteses retos, em itálico,  são da responsabilidade do editor,  LG]

Morreu um tipo de um país qualquer, o Salazar decretou 3 dias de luto e lá estamos nós a ouvir música de mortos com a nossa bandeira a meia haste. Custa-me engolir estas histórias quando os nossos mortos estão a ser ignorados.

Fala-se no próximo baile de finalistas, que vai ser uma festa de arromba! Alguns dos nossos vão roncar com as namoradas ou com os arranjinhos. O Uva   [, João Parreira,] anda todo satisfeito, até o Quintanilha, aquele alferes dos páras, mandou vir da metrópole um fato de cerimónia.

Quando estive de férias na metrópole logo a seguir à formação dos grupos, os Fantasmas accionaram uma mina e foi o que se sabe, 9 dos nossos já lá estão. Entre eles,  o meu grande amigo Artur. Morrem-nos 9 homens e a Emissora Nacional continua a twist e ié-ié. É isto que me custa engolir, estão a ouvir? E ainda por cima, cabo-verdianos e alguns sectores guineenses não vêem com bons olhos a nossa presença nas festas deles!

Mas que raio estava aqui a fazer? A Guiné não lhe estava a dizer nada, não a sentia como sua, até se sentia um intruso. Até com os civis brancos, poucos, duas dúzias se tanto, sentia-se sem convite.

Na esplanada do Bento, a 5ª Rep, como também era conhecida , bebia cerveja com mancarra, num grupo de 5 ou 6 comandos e páras. Um terá dito que naquela noite, na Associação Comercial de Bissau, havia o baile dos finalistas do Liceu [,  ou melhor, Escola Técnica de Bissau]. Outro lembrou-se de perguntar se alguém recebera convite. Eu não, tu não, aquele também não…Ninguém se lembrou de nós, como pode ser? Queres ir?

Dentro da Associação, no enorme salão de baile, finalistas e familiares todos animados a dançarem, com o Toni ao piano. Quando os viram entrar em fila, alto lá e pára o baile!... Depois, ninguém soube bem como tudo começou…

A princípio, as frentes pareciam bem delimitadas, os participantes em festa de um lado e a meia dúzia de intrusos do outro. Com o decorrer das hostilidades, as duas partes em confronto clarificaram-se ainda mais. Entre vivas ao camarada Presidente Amílcar, um pelotão da PM  entrou por ali dentro, despachou tudo o que lhe apareceu pela frente, trinta e tal tipos com escoriações para o hospital, a polícia civil e a pide também metidas. Vidros e loiças em cacos, cadeiras e mesas partidas, uma noite que nunca mais acabava.

Mesmo em frente ao Palácio do Governo, onde, soube-se depois, da janela, o Governador [, gen Arnaldo Schulz,] via aqueles gajos darem-lhe cabo da psico. Uma vergonha!

Os acontecimentos na Associação Comercial alteraram o ambiente na cidade. A desconfiança entre a população negra, cabo-verdiana e a tropa, os nervos crispados, a porcaria mais ou menos submersa, subiu tudo. Tentava-se levar a vida normal, mas via-se pouca gente nas ruas, sobretudo à noite. A PM aumentara os patrulhamentos. O PAIGC, como lhe competia, aproveitava e tirava dividendos.

Nos dias a seguir ao sucedido choveram exposições no Palácio, sete, dissera todo cheio de importância o ajudante de campo do Governador. O General Shulz recebera numerosas individualidades civis, apresentara desculpas formais à Associação Comercial e aos finalistas, prometera pagar os prejuízos, tomar providências enérgicas, o habitual nestes casos.

Em Brá, o capitão [, da CCmds / CTIG, Nuno Rubim,]  interrompeu os desenhos que estava a fazer quando o viu entrar. Começou por lhe dizer que as saídas para a cidade estavam proibidas. Depois, pediu-lhe explicações. Que se tudo tinha acontecido como se contava, que não tivesse dúvidas que haveria consequências. O Governo da Província estava a ver o programa de pacificação a andar para trás, que aguardasse o auto de averiguações, que era tudo, chutara o capitão, cada vez mais longe dele e dos outros. Logo a seguir deu-lhe ordem para ir para o Xitole, o grupo deveria manter-se lá até nova ordem, sem mais detalhes. Bater a zona, procurar o IN, dar-lhe caça, para que é que havia de ser?

Embarcaram num Dakota até Bafatá, depois apanharam boleia numa coluna auto que os levou para Fá, rumo ao Xitole, numa coluna a abarrotar de abastecimentos.

Até Fá Mandinga o percurso foi-se fazendo. Depois, até ao Xitole, foram sempre debaixo de chuva, os quilóemtros nunca mais acabavam, as viaturas civis que aproveitaram a boleia não estavam preparadas, metiam-se na lama até à carroçaria. O Corubal parecia o Atlântico quando o atravessaram. Chegaram no outro dia à noite, com os reabastecimentos reduzidos a metade, alguns destruídos pelas águas, outros desapareceram, ninguém soube dizer como.

Mantiveram-se lá quase 3 semanas, contactaram com o IN nas proximidades do Galo Corubal, em Satecuta [, subsetor do Xitole, na maregm direita do Rio Corubal]  , sem consequências para além de trocas de tiros à distância.

Da estadia no Xitole o que os marcou mais foi a chuva. E o toque a silêncio, tocado à noite por um profissional da corneta. Um solo de requinta, de arrepiar!

Percurso inverso, quase a mesma história, com a diferença de ter sido feito a pé até Bambadinca.

Dias depois em Brá, um capitão procurou-o, queria ouvi-lo para o tal processo que estava a decorrer, já tinha ouvido os outros, só faltava ele. O que tinha acontecido, como, quando, porque é que, quem fora o cabecilha, leia, assine aí em baixo, alferes Gil Duarte [, alter ego do autor.,]se estiver de acordo.

À noite fora até Bissau, encontrar-se com os companheiros do costume. Passaram-lhe para as mãos a Plateia, uma revista de cinema que saía em Lisboa. Folheou-a, os olhos na Brigitte Bardot a fazer festas no focinho de um burro, um pé da Sofia Loren num banco a tirar a meia preta com um tipo qualquer deitado numa cama, à espera. Parou numa página. Crónica da Guiné na Plateia, ora deixa ver! Uns arruaceiros tinham invadido as instalações da Associação, interromperam a festa dos finalistas e partiram tudo, à boa maneira dos teddy-boys de Liverpool e Manchester, escrevia escandalizado o correspondente [, que assinava Joaão Benamor]. Olharam uns para os outros, calados.

Fica assim, perguntou alguém? Que não, que era melhor falar com o correspondente, esclarecê-lo, tirar-lhe as dúvidas. Bissau era pequeno, foram até à esplanada do [Café] Bento [, a 5ª Rep], disseram que ele devia estar lá para cima, no café Império.

Encontraram-no, estiveram com ele, explicaram-se uns aos outros. Não foi logo na Plateia seguinte, mas a rectificação leram-na dois meses mais tarde, acompanhada de um cartão com os melhores cumprimentos.

Entraram no gabinete, fizeram-lhe a continência e puseram-se os 5 em linha, aprumados [, 2 alferes e 3 furrieis, todos dos Cmds / CTIG]. O Brigadeiro Sá Carneiro, Comandante Militar, mexia nuns papéis em cima da secretária, não encontrava, abriu gavetas, ah, estão aqui, satisfeito. Quando levantou os olhos para eles, mudou de cara.

Ora bem, meus senhores, antes de mais, devo manifestar-lhes a pena que tenho de os ter aqui nestas circunstâncias. Já tive convosco manifestações de apreço, quando o mereceram, o que não é o caso desta vez, infelizmente. Relatar aquilo que ficou apurado, é desnecessário…

Puno o alferes comando…., olhava primeiro para o citado, escrevia depois, três, cinco dias de prisão simples, o critério nunca se soube, porque no dia tal, às tantas horas,…grave prejuízo para a tranquilidade e bem-estar públicos…contrariando os esforços que o governo da Província…a lenga-lenga igual para todos.

Não sabia porquê, tinha apanhado três dias de prisão, a pena mínima, sabia lá, cara fechada para o Justo [1º cabo, guineense, do Gr Cmds Diabólicos, mais tarde, oficial graduado da 1º CCmds Africanos] que lhe perguntava porquê uma pena tão reduzida.

Desciam a escadaria quando o ouviu chamar outra vez, ó Gil, então, quando vais de férias?


(ii)   Depoimento do João Parreira  (ex-fur mil comando, Gr Cmds Fantasmas, CTIG, Brá, 1965/66)


[Foto à esquerda: O Joâo Parreira e o Vassalo Miranda, Bél+e, mo dia 10 de junho de 2010. Fotp de L,.G..]

[Os parênteses retos, em itálico,  são da responsabilidade do editor,  LG]



Conforme o prometido, passo a descrever a minha participação e os acontecimentos que deram origem à narração do V. Briote em 13/11/05 (*) sobre o baile dos Finalistas da Escola Secundária [, Escola Técnica, e não Lice«u],  realizado em Bissau, no Sábado, em 5 de Junho de 1965.

Na manhã daquele dia para me descontrair tinha ido com alguns camaradas para Quinhamel, uma vez que estava com grandes projectos para aquela noite. Semanas antes tinha conhecido a Helena,  uma moça cabo-verdeana, que era o que se costuma dizer uma “brasa” e andava todo entusiasmado.

Na véspera do baile, a Helena que era finalista, disse-me que me ia arranjar um convite para assim poder ir com ela . No próprio dia encontrei-me com ela da parte da tarde e ela disse-me que não tinha conseguido obter um convite, mas que me tinha comprado um bilhete. Assim dei-lhe os 100 pesos correspondentes ao preço do bilhete.

Estava a dançar com ela, já devia ser madrugada quando ouvi um grande borburinho, virei-me e reparei que o motivo era a entrada sem bilhete de vários militares desconhecidos e logo a seguir uma cara conhecida.

A música não parava de tocar e os pares continuavam a dançar. Várias finalistas e familiares encontravam-se sentadas em cadeiras que tinham sido colocadas junto às paredes. Alguns dos recém-chegados dirigiram-se de imediato a estas finalistas a pedir para dançar, mas não tiveram sorte.

No salão enorme, junto a uma das janelas encontrava-se uma mesa rectangular bastante comprida que dominava todo o salão e que estava totalmente ocupada com africanos e cabo-verdeanos que presumi serem os professores e o Principal [ , diretor] da Escola [Técnica].

Guiné > Bissau > Fevereiro de 1965 > O Furriel Miliciano Comando João Parreira, já depois de ter saído da CART 730... "Esta foto foi tirada numa esplanada em frente ao Hotel Portugal, creio que se chamava Café Universal".

Foto: © João Parreira (2005).Todos os direitos reservados


Notava-se que os ocupantes desta mesa ficaram furibundos com a intrusão. O alf Godinho, um dos “velhinhos”, foi um dos últimos a entrar, pelo que dirigiu-se logo para essa mesa e foi falar calmamente com um dos que se encontravam sentados no centro da mesa.

Desconheço o teor da conversa, mas o certo, pois eu estava a dançar perto, é que um deles lhe atirou com uma garrafa à cabeça. De imediato,  vindo da mesma mesa,  ouviu-se um deles gritar e logo a seguir outros a fazerem coro: "Se o nosso chefe estivesse aqui, e não em Conacri, nada disto acontecia”.

Com esta agressão e com as palavras insultuosas o ambiente ficou desde logo muito tenso.

Com todo este reboliço entraram de rompante 2 ou 3 camaradas que tinham ficado à porta do edifício, já que o porteiro não os tinha deixado entrar.

O Furriel V[assalo] Miranda alheio à situação e que na altura andava a passear o seu inseparável whisky, deixou-o ficar no hall de entrada à guarda de um porteiro, e também entrou.

O contacto físico em vários pontos do salão, não muito distante da pista de dança, começou já passava das 03h00 e prolongou-se por bastante tempo.

Apesar do que se estava a passar, a música não parava de tocar e parecia que todos os pares queriam estar alheios à situação. Como não podia deixar de ser, parei de dançar e pedi à Helena para não sair da pista pois ia ajudar os meus camaradas, e depois voltava.

Ela, que foi fantástica, disse-me para não ir pois podia ficar magoado, mas eu tranquilizei-a dizendo-lhe que em Lisboa tinha praticado boxe em clubes e tinha entrado em vários combates públicos.

Assim , por 3 ou 4 vezes, dava um pezinho de dança, atravessava a pista por entre os pares, ia a uma das zonas da pancadaria, envolvia-me como podia no meio de um dos grupos em contenda dava uns bons pares de murros e, quando me sentia satisfeito lá voltava novamente para junto da moça para continuar a dançar.

Dado o reboliço que se gerou também entraram no salão vários paraquedistas para darem uma ajuda aos que se encontravam em minoria. Entretanto alguém deve ter chamado a PM que entrou mais tarde e começou logo a tirar os nomes à rapaziada.

Tive mais sorte que o VB [, Virgínio Briote,]
e os outros camaradas pois logo que vi a PM entrar na nossa direcção apressei-me, sorrateiramente, a atravessar o salão pelo meio dos pares, a fim de ir ter com a Helena (a minha tábua de salvação) que estava a dançar sòzinha e agarrei-me logo a ela, pelo que a PM não deve ter percebido que eu também tinha andado no barulho.

Acabado o baile fui levar a Helena a casa, mas depois destes acontecimentos o ambiente não era propício pelo que vi gorados os projectos que tinha idealizado em Quinhamel.

Ao fim e ao cabo, feitas as contas tive sorte a dobrar pois livrei-me de ser punido e como tal de ter que ir passar uns tempos ao mato.

Domingo, 6 de Junho de 1965, às 19h00 dirigi-me com o V [assalo] Miranda e alguns fuzileiros para a Praça do Império onde se encontravam vários grupos de africanos em atitudes provocadoras e hostis, para tentarem tirar, talvez, ainda mais dividendos dos acontecimentos daquela madrugada.

Não sei bem como tudo começou, mas um deles apanhou o Miranda distraído e aplicou-lhe um tremendo murro que fez com que ele vacilasse, e depois fugiu. Corremos atrás dele mas não o apanhámos na rua pois foi refugiar-se no cinema UDIB. O porteiro, cabo-verdeano, que estava já a correr a porta de lagartas para o proteger não o conseguiu fazer, já que, com a ajuda do meu cinturão foi persuadido a não a fechar, e assim o Miranda entrou e ficou a sós com o seu agressor.

Voltámos para a Praça do Império onde o número de africanos tinha aumentado de uma forma incrível e notavam-se as mesmas atitudes agressivas. Como estávamos, mais uma vez, em grande desvantagem numérica, e com o intuito de os intimidar e evitar o confronto, mandei pedir a Brá para quem nessa altura estivesse disponível viesse ao nosso encontro.

Passada meia-hora chegou um jeep com o condutor e um Alferes (o único que vinha armado para o que desse e viesse) e logo atrás uma Mercedes com mais pessoal.

Infelizmente a intenção não deu resultado pois, ao aperceberem-se da chegada,  os africanos atiraram-se a nós à tareia usando os punhos e os pés.

Assim cada um de nós estava a ser agredido por 3 ou 4 pelo que, para evitar o pior, decidimos resolver o assunto com a máxima rapidez, e para esse fim usámos os nossos cinturões a torto e a direito, o que teve o condão de os obrigar a fugir. 

Com a Praça vazia usámos os mesmos veículos e regressámos a Brá.


(iii) Depoimento do Luís Raínha, ex-alf mil, comando, 
cmdt do  Gr Comandos Centuriões, CTIG,
Brá, 1965/66  (***)

A minha narrativa vai ser um pouco diferente, pois, eu fui ao baile convidado por uma Família de um dos finalistas, ou seja, todo o mundo sabia, sabe e sempre soube que eu tive uma grande paixão e amor por uma moça da família Barbosa. Uma das famílias mais importantes da Guinè, a Lu, como carinhosamente a tratava e ainda hoje a lembro com saudade.

Muitas coisas se fizeram contra este amor, a tudo ele foi resistindo, mas houve uma altura que caíu.
Bem, vamos ao que interessa, que é o Baile de Finalisatas do Liceu Honório Barreto de Bissau. Já lá vão cerca de quarenta e cinco anos e ainda me parece que foi ontem.

Pelas 19H00 do dia 05Jun65, o condutor do meu Grupo foi-me levar a Bissau e perguntou-me se era necessário ir-me buscar. Respondi que não, pois eu me arranjaria. Deixou-me junto à porta de casa de minha namorada e foi-se embora, dizendo um breve , até amanhã.

Fui buscar a Lu e fomos jantar ao Grande Hotel e de lá fomos para o baile. Não há que  contar novamente tudo, pois os meus camaradas já o fizeram e como tal interessa só o que se passou connosco, o que vi e ouvi. 

Já durante a jantar fui ouvindo que se estava preparar algo contra os brancos, informo que a minha Companheira era morena - muito bonita, pois não os iam deixar entrar no referido baile, como mais tarde aconteceu.

Depois do jantar, como era cedo ainda passámos por casa e os rumores continuavam; chegando ao ponto da própria me alertar de que podia ir descansado pois estava convidado. Chegados ao baile fomos à mesa que nos estava reservada e a seguir fomos dançar, mas o ambiente era tenso e ainda nem sequer se via nada de anormal. Cerca das duas horas da manhã é que as coisas começaram a azedar com a entrada em cena da tropa branca, que logo foi rodeada pelos cabo-verdianos aos gritos e insultos.

Estava declarada a guerra há tanto tempo esperada pelos cabo-verdianos. O pior de tudo é que os nossos Chefes não viram ou não quiseram ver as coisas como elas eram e estavam a acontecer. Enviaram as PM e a Policia civil para dar em tudo que fosse branco.

Eu, a única coisa que fiz foi proteger a senhora que estava comigo, por consequência à minha guarda. Colocando um dos meus braços por cima dos seus ombros e com o cartão de oficial do exército lá fui abrindo caminho pelo meio da multidão e dos Policias, estes distribuindo cacetada por tudo quanto era sítio, não poupando ninguém, tentavam aclamar os ânimos.

Quando íamos a caminho de casa vimos o General Shulz à varanda em pijama a ver o espectáculo.
Claro, que quando os cabo-verdianos quiseram a coisa acabou.

De tudo isto, podem-se tirar várias conclusões, mas duas  há que saltam logo aos olhos de qualquer pessoa medianamente inteligente. Toda a barraca foi muito bem preparada pelo PAIGC e os nossos Chefes da altura caíram que nem uns patinhos. E porquê? Por causa da ''psico-social', uma palermice em que os nossos governantes acreditavam ou queriam acreditar.

[Luis Rainha, foto atual à esquerda] 

Assim, acabou um episódio (****)que podia ter facturado para o nosso lado, mas pela incompreensão dos Chefes Militares foi o adversários que ficou com os louros.

Mas, sempre foi assim, nós havemos de ser os eternos coitadinhos.

(iv) Punições a que  foram sujeitos 4 dos 5 comandos alegadamente envolvidos nos incidentes do "baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau" (*****)  

(Felizmente,  estes incidentes entre nuilitares e civis não pocdem ser comparados com os que tiveram lugar, em Bissau, precisamente dois anos depois, envolvendo paraquedistas e fuzileiros, e de que resultaram 2 mortos) (******).





Cópias da Ordem de Serviço nº 70, de 27 de agosto de 1965, do CTIG em que são punidos com prisão disciplinar 3 furrieis milicianos e um alferes miliciano da CCmds / CTIG, Brá, 1965/66. Rasurados os seus nomes. (Cortesia do blogue Comandos da Guiné- 1964 a 1966).

________________

Notas do editor:

(*) Vd. I Série  do nosso blogue > 13 de novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVII: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial [Virgínio Briote]

(**) Vd. I Série do nosso blogue > 13 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXIII: O baile dos finalistas do Liceu de Bissau de 1965 (João Parreira)

(***) Vd. blogue Comandos Guiné - 1964 a 1966 > 24 de abril de 2010 >  G.C.G. - A0032: Uma histórica verídca de vez em quando- 2ª Parte > O Celebérrimo "Baile na Associação Comercail de Bissau"

(****) Último poste da série > 4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P12094: Efemérides (151): Dia da Mãe... Para celebrar, hoje como ontem, com poesia (Joaquim Luís Fernandes)

(*****) Recorde.se aqui a criação e a extinção da CCmds / CTIG, Brá, 1965/66

 Para dar continuidade à formação de Grupos de Comandos é criada a Companhia de Comandos do CTIG (CCmds / CTIG) sendo nomeado seu comandante o Cap Art "Cmd"  Nuno Varela Rubim. Em 20 de Fevereiro de 1966 é nomeado comandante da CCmds / CTIG o Cap Art.«Cmd» José Eduardo Garcia Leandro.

O 2º.Curso de Comandos tem início em 7 de Julho de 1965, terminando em 4 de Setembro do mesmo ano, com a formação de 4 Grupos de Comandos designados por:

«Diabólicos» Alf. Mil. «Cmd» Virgínio Silva Briote
«Centuriões» Alf. Mil. «Cmd» Luís Almeida Rainha
«Apaches» Alf. Mil. «Cmd»  Neves da Silva
«Vampiros» Alf. Mil. «Cmd» Pereira Vilaça

O 3º. Curso de Comandos, realizado pela CCmds / CTIG aquartela da em Brá, tem início em 9 de Março de 1966 terminando a 28 de Abril de 1966, constituído por militares voluntários pertencentes a Unidades sediadas na Guiné e que se destinavam a recompletamento de Grupos de Comandos.

(...) Com a chegada a Bissau da 3ª.Companhia de Comandos, vindos do CIOE - Lamego, é extinta em 30 de Junho de 1966, a CCmds / CTIG, ficando, somente em actividade, até finais de Setembro de 1966 o Grupo de Comandos «Diabólicos»,  data em que a maioria dos militares que o integravam terminava a sua comissão de serviço.

Fonte:  Regimento de Comandos > História dos Comandos > CCmds / CTIG,  Brá, Guiné

(******) Vd. poste de 2 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5580: FAP (44): A verdade sobre os incidentes, em Bissau, em 3 de Junho de 1967, entre páras e fuzos... (Nuno Vaz Mira, BCP 12)

(...) Na noite de 3 de Junho de 1967, no final dum jogo que parecia ter decorrido de forma idêntica a tantos outros, entre o ASA – acrónimo de Atlético Sport Aviação, o clube dos militares da Força Aérea – e a equipa onde alinhavam os marinheiros, sucedeu o inesperado: estes, depois de trocarem insultos e provocações com os pára-quedistas, como era hábito, abandonaram o recinto desportivo, numa atitude pouco consentânea com os seus comportamentos recentes.

Os páras correram atrás deles pelas ruas da cidade, não imaginando que, algumas centenas de metros à frente, emboscado num prédio em construção, um grupo de fuzileiros armados com G-3 se preparava para os atacar a tiro. Custa a entender onde aqueles homens foram buscar ânimo para levar a cabo semelhante acto, mas a verdade é que foram capazes de abrir fogo à queima-roupa sobre camaradas de armas desarmados, matando de imediato o 1.º cabo Ismael Santos e o sold. Fernando Marques, para além de terem provocado ferimentos noutros soldados. (...)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12399: Notas de leitura (541): "Contos de Guerra", de Guilherme Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Ainda hesitei se não devia prolongar esta recensão, tais e tantos são os bons parágrafos destes contos em que Alpoim Calvão escreveu na primeira pessoa, estão aqui os feitos das suas duas comissões da Guiné.
Tudo respira sinceridade: a agilidade dos homens a penetrar na mata, as sensações de sede cansaço, contagiantes, a vigilância de tigres antes do ataque, os redutos do inimigo que, afinal, não são inexpugnáveis.
Há para ali uma arte em saber abrir o conto, desenvolvê-lo e concluí-lo, uma exultação do comandante à vontade indómita dos seus homens. Palavra de honra, estão ali contos que mereciam ser reorganizados, tanta é a inspiração e o talento de quem o escreveu.
Que grandes contos!
Que desperdício cultural não os republicar!

Um abraço do
Mário


Alpoim Calvão na primeira pessoa (2)

Beja Santos

Um dos mais brilhantes oficiais da Armada, altamente condecorado e louvado, nomeadamente pelos seus feitos em duas comissões na Guiné, polémico, por vezes irascível, manifestamente dotado para a escrita, como já comprovara nos seus relatórios logo a partir dos acontecimentos em que esteve envolvido na Operação Tridente, andou décadas a prestar esclarecimentos sobre a Operação Mar Verde, o seu contributo no MDLP, operações avulsas, levando a crer que se recusava a redigir a versão dos acontecimentos. Faz comentários, dá entrevistas, colabora em livros escritos pelos outros, no entanto parece tímido em não se expor na primeira pessoa. E, no entanto, em 1994, numa edição de autor, Guilherme Alpoim Calvão falou de si, embora camuflado através de um alter-ego. Em “Contos de Guerra” podemos sentir que se perdeu um escritor, embora seja de admitir que Calvão temesse deixar-se subjugar pela onda emocional, caso tomasse a resolução de escrever, de fio a pavio, todas as suas memórias de campanha. Em “Contos de Guerra” sente-se que por vezes deixa essa emoção à rédea solta. Ele é o comandante que aparece em todos os contos. Esse comandante, à vista de Lisboa, no regresso da comissão militar, sente uma angústia a oprimir-lhe o peito: está a chegar a hora da separação. A memória parece uma hélice em vertigem, recorda tudo o que deve aos seus homens, recorda a sua bravura, o espírito de sacrifício, a sã camaradagem, a alegria do cumprimento da missão. Este relato será muito provavelmente a imagem que Calvão tem de si, no final da obra:
“Sorri, ao lembrar-se da irreverência respeitosa de alguns e da permanente boa disposição de todos. Vê-os mais uma vez, debaixo de fogo, os dentes serrados e avançando sempre. Quantas vezes, foi o exemplo dos homens que o fez seguir!
E sente-se unido a eles por laços imarcescíveis; sente-se amalgamado com eles, no indefinível espírito da unidade. Obrigado, meus amigos!
A noite caiu completamente. À popa, olhando a esteira luminosa que o navio ia tecendo, o comandante sentiu um ronco de choro a farfalhar-lhe na glote. Lágrimas de emoção rolaram-lhe pelas faces. Não sentiu pejo nelas. Porque às vezes as lágrimas não envergonham os homens. Antes os engradecem!”

Ao longo dos contos, a parte mais sólida da obra – já que as reflexões atribuídas a um capelão são mal confecionadas, muitas vezes desajustadas, chegando mesmo ao ridículo – os homens estão em combate, ou a caminho e por vezes na espera. E há combates que demoram horas. No rescaldo, o comandante sente-se recompensado, acredita na nobreza daquela guerra, a ela se entrega nos limites da generosidade. É provável que o que escreveu aqui se baseie em acontecimentos reais vividos na ilha do Como, faz todo o sentido: 
“No acampamento, o comandante contemplava o pôr-do-sol. Pinceladas mágicas enchiam de maravilhosos tons (ouro e vermelho) o céu lá, para as bandas do poente.
Alguns pássaros, saltitando e esvoaçando nos ramos das árvores, cantavam arrebatadamente as benesses e os encantos da criação. Olhou para as palavras que acabara de escrever em amarrotada folha de papel: nelas procurara exprimir toda a veneração, toda a fraternal amizade que lhe mereciam os seus homens. Chamou-os e fê-los sentar à sua volta: simples, humildes e bons. Mas também grandes, heróicos e generosos. Com a voz escurecida pela emoção do momento, leu os louvores que lhes concedera”.

É um contista exímio, tem a noção exata do que é um bom arranque e como se dá uma contextualização:
“A base estava muito bem escondida no meio da mata frondosa e verde. Mais de quarenta casas, alinhadas e vivas, enquadravam uma parada de terra batida, tudo completamente protegido pelas árvores, longe de olhares indiscretos dos aviadores que, como abelhas teimosas zumbiam às vezes por cima, num esforço de penetrar visualmente as massas da folhagem.
Era uma base de treino e de repouso. Situada na forquilha de dois rios, estava praticamente ao abrigo de ser atacada pela tropa. Além do mais, todos os acessos dispunham de postos de vigias, e só efetivos muito grandes poderiam criar dificuldades aos numerosos grupos de guerrilheiros que ali vinham a aprender táticas e armamentos novos e descansar”. O ataque à base será um êxito, levarão de vencida a resistência inimiga, indiferentes ao vendaval de fogo os fuzileiros irão vencer, encontrarão na base armas, munições, medicamentos e mantimentos. E assim se conclui:
“Fora violado o santuário e desfazia-se assim o mito. Esse ente sublime e belo, desejado porque difícil de encontrar, querido porque faz palpitar de alegria o coração dos homens, a vitória, sorrira mais uma vez à nossa gente”.

Haverá uma noite de Natal, celebrada na Guiné, dá nova oportunidade a que conheçamos a têmpera do comandante quando este faz uma alocução aos seus homens:
“A nossa unidade não é apenas mais um destacamento de fuzileiros. Não! A nossa unidade vive, palpita, respira e tem vontade própria! Tem um querer enorme, irresistível, poderoso, que vocês criaram, numa realização admirável! Vós, que vindos de todos os recantos da nação, sois bem os representantes do nosso povo, desse povo bom, sofredor, nobre e simples, capaz dos mais extremos sacrifícios e das mais belas ações! Vós sois o povo! Vos sois a Pátria!”.
Os fuzileiros rejubilam e gritam hosanas ao seu comandante.

Vejamos um outro conto e como arranca, tão fluído, logo a cativar o leitor:
“Agachados no capim, observavam os movimentos dos dois vigias que se aproximavam com ar atento e desconfiado. Deviam ter ouvido o ruído da lancha e vinham averiguar o facto. Os homens continuavam imóveis e alguns deles mantinham sob a visada das armas os dois inimigos que, a cada passo, encurtavam a distância que os separava do fim”.

“Contos de África” é um livro injustamente esquecido, quando possui parágrafos belíssimos, autobiográficos, vigorosos. Há sempre lanchas que percorrem os rios, desembarques, envolvimentos, tiroteios, assaltos. São contos dedicados a atos heroicos de fuzileiros. Por vezes, o comandante erra, descura regras de segurança e nesses momentos fica muito só. Aqueles militares são solidários. O autor, a propósito, explica ao leitor a especificidade daquela guerra, assim:
“Quem já andou na Guiné, quer por prazer cinegético, quer por obrigação militar, sabe o que significa andar no lodo. Põe-se o pé com toda a cautela na superfície escura e escorregadia e afundamo-nos até à coxa. Sente-se uma ventosa que suga as pernas e as prende ciosamente. O esforço necessário para dar um passo é violentíssimo e muitas vezes a prisão do lodo apodera-se das botas e há que caminhar descalço. Se por acaso o lodo é mais fluido e o homem se enterra até ao peito, é preciso desatolá-lo e ensinar-lhe a nadar no lodaçal que se agarra à roupa e à pele, cobrindo de uma estranha película que o calor do Sol transforma em carapaça quebradiça e a água tem dificuldade em lavar”.

Que bom seria que Alpoim Calvão refizesse e tonificasse estas memórias plenas de sinceridade e primorosamente escritas!
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12377: Notas de leitura (540): "Contos de Guerra", de Guilherme Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12377: Notas de leitura (540): "Contos de Guerra", de Guilherme Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Assim, inesperadamente, num alfarrabista da rua do Século, a contemplar estantes com os imensos dossiês de Silva Cunha, então ministro do Ultramar, topo com uma raridade há tantos anos procurada, os contos escritos por Alpoim Calvão, da sua lavra, contando façanhas de fuzileiros destemidos e do seu comandante, um guerreiro incomum.
Há para aqui páginas indispensáveis entre as melhores que se escreveram. Lido e relido, também se percebe como Alpoim Calvão nunca mais se interessou por aquele que deve ser o seu único livro só por si escrito.
O que é pena, a qualquer tempo se pode retocar um livro para benefício da História e dos créditos da literatura.

Um abraço do
Mário


Alpoim Calvão na primeira pessoa (1)

Beja Santos

É facto que ao longo dos anos Guilherme Alpoim Calvão concedeu entrevistas, prestou esclarecimentos, desdobrou-se em depoimentos. Escrito do seu próprio punho só há notícia de um livro publicado em edição apagada, 1994, com o título “Contos de Guerra”. E no entanto esta obra encerra parágrafos excecionais de inclusão obrigatória nas antologias da literatura da guerra colonial.

“Contos de Guerra” tem como autores G. Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira. O que se prende com a estrutura que o brilhante oficial da Armada delineou. Alguém, metaforicamente, morrera: “António Pedro de Albuquerque morreu. Morreu no dia em que terminou o Ultramar”. Legou escritos, impunha-se a sua publicação para se saber, na plenitude a guerra que se travara. Este António Pedro de Albuquerque entregou “um punhado de papéis amarrotados” a alguém que fora capelão, Sérgio Augusto. E assim, ao longo da obra, há os contos de António Pedro (o alter ego de Alpoim Calvão) entremeados por cartas de Sérgio Augusto (porventura o mesmo Alpoim Calvão revelando a sua cultura, vasta e diversa). A estrutura não é convincente, sente-se sem esforço que é o mesmo escritor e a matriz cultural que subjaz a toda a narrativa, compreende-se que o autor pretenda invocar e lançar na reflexão as questões da guerra e os valores do soldados lusitano, o produto final é fruste e tão mais dececionante quanto há nos contos matéria suficiente para a sua reedição obrigatória. Pode também ter acontecido que Alpoim Calvão tenha sentido a falta de calibre no produto final, remetendo para um silêncio injusto o que há de soberbo em “Contos de Guerra”.

Escreve, pois, é indispensável que os outros conheçam aquela guerra. A partir de que representação? Da sua experiência de fuzileiro, como é óbvio. Mas dentro de uma moldura de valores, misturada com a sua sensibilidade e o molde do seu carácter, de que se orgulha: “A guerra é muito mais do que tiros. O isolamento é guerra; as longas vigílias e as intermináveis esperas também são guerra, assim como o desejo, que devora a carne dos homens jovens que a fazem. É guerra o constante esforço de autodomínio com que o homem se norteia, numa atmosfera desequilibrada por muitos fatores. Na guerra, não há uniformes bonitos nem dinheiros fáceis. A lama e o bedum dos corpos, são uniforme que a todos identifica e iguala. O dinheiro não paga o sangue que se verte, nem os terrores da noite e da morte. Na guerra conhecem-se os homens e a palavra fraternidade é qualquer coisa mais do que uma hipérbole literária”.

A generalidade dos contos anda à volta de operações ofensivas, fuzileiros emboscados, conseguindo tantas vezes ter do seu lado o fator-surpresa. Logo no golpe de mão em Canjaja: “Sentia que o adversário o esperaria no caminho que ligava a povoação ao Porto. Sabia que neste existia uma sentinela. E a partir daqui gizou uma traça muito simples: passar em frente do porto, numa lancha de desembarque, com máquina devagar avante para não fazer ruído em demasia, dar à sentinela a ilusão de seguir para a foz e desembarcar sorrateiramente no meio do tarrafe, num local impossível, cerca de um quilómetro para jusante”. Para se compreender aquela gesta que se viveu nas florestas, lalas e mangais, é também importante desenhar os protagonistas. Por exemplo, aquele jovem tenente que apenas há um ano era mais um licenciado em Económicas e que era um condutor de homens, com exato sentido das suas responsabilidades. Está tudo cronometrado para entrar de surpresa na casa de mato, já se ludibriou quem lá vive, eles julgam que as embarcações rumam para longe. Mas o barco será emboscado e há um bravo grumete que não perdeu o ânimo quando viu ali num charco de sangue o oficial comandante da emboscada, pegou em todas as sus forças e a peito descoberto despejou carregador sobre carregador protegendo a guarnição da peça. Um ano mais tarde, tenente e grumete receberão a medalha da Cruz de Guerra. A seguir a peças tão belas, que faz o antigo capelão? Disserta e protesta sobre maldades e calúnias: “Quem ainda não ouviu dizer que a guerra continuava por conveniência dos militares? A verdade, contudo, é que a comissão militar no Ultramar não enriqueceu ninguém. Para ganhar dinheiro muito poucos iriam para a guerra, se é que alguém se ofereceria. Também não foi para enriquecer que os militares portugueses se bateram”. O antigo capelão, mais adiante, reflete sob a condição de herói e covarde: “Tantas vezes se pensa que ser herói é sinónimo de irresponsável. Esse poderá ser herói se for empurrado. Só um néscio é que se pode permitir afirmar que não sabe o que é o medo. Sentir medo não envergonha ninguém. Medo não é covardia, mas sentido das realidades. Covardia será que um homem se deixe dominar pelo medo”.

Naquele dia o comandante tomou posição perto de uma pequena base avançada, o corpo de fuzileiros está em progressão, e é nisto que estralejam as metralhadoras inimigas. É aqui que se revela o homem da ação: “O comandante procurou referenciar as metralhadoras inimigas e conseguiu distinguir sete, colocadas em meia-lua. Percebendo a manobra, fez avançar a secção da retaguarda para a direita, em contra-envolvimento. Os homens lançaram-se em frente, mas foram obrigados a parar pois a enorme frente adversária deslocara-se ligeiramente, para manter as posições relativas. O comandante voltou-se para o tenente que o acompanhava e disse-lhe em voz aparentemente calma: - Tens de arrancar com a seção da direita; estamos em má posição. Com efeito, agarrados ao solo num espaço a descoberto, os homens tinham parado e o poderoso fogo inimigo revolvia a terra à volta, causando os primeiros feridos. O tenente empalideceu profundamente e teve um momento de hesitação. – Se não fores tu tenho de ir eu”.

A ofensiva não pôde ser travada. Há para ali um pormenor, está presente um oficial, “cujos galões e funções não o obrigavam a estar ali, mas que viera para ver”. É admissível que tenha sido o comandante da defesa marítima da Guiné em pessoa, aparece num outro escrito sobre a vida de Alpoim Calvão. O inimigo irá recuar. Este comandante emociona-se, nunca esconde que os seus olhos se marejam de lágrimas e que tem saudades dos seus bravos. E assim se escreve: “O comandante sentia um nó na garganta. Ali, à frente dos seus olhos, estava o inimigo, na iminência de se apoderar de um dos seus homens. Apoiou-se a uma árvore, pesando o dilema: arriscar mais vidas para tentar recuperar o corpo ou ver mãos ávidas arrastarem-no aos poucos para as densas sombras da mata, onde serviriam depois de troféu de propaganda? Subitamente viu alguns homens destacarem-se do perímetro defensivo. Distinguiu perfeitamente as largas espáduas do sargento André, a achaboucada figura do Fonseca, o Botelho, o Dias da Rosa, o ágil perfil de lobo do Piedade Grumete e outros mais. Símbolos da mais pura camaradagem e da mais viril fraternidade – a das armas. Avançaram resolutos, pelo limiar da eternidade, em direção ao camarada morto. Alcançaram-no esmagando as sombras que o queriam levar. Regressaram às linhas. Aos ombros, em vez de um, traziam dois cadáveres: a dádiva generosa do Botelho fora total".

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12359: Notas de leitura (539): "Guiné-Bissau Tera Sabi", Edição Tiniguena (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11920: Notas de leitura (509): "Fuzileiros, Força de Elite", por Ilídio Neves, José Manuel Parreira e Mário Henriques Manso (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Abril de 2013:

Queridos amigos,
Trata-se do testemunho, narrado na primeira pessoa, de um conjunto de fuzileiros que conheceu os três teatros de operações.
Dois deles, Zé da Vinha e Xaitinho, estiveram na Guiné, onde Xaitninho se cobriu de glória e é um dos militares portugueses mais condecorado.
Temos aqui a trajetória das suas vidas, as suas infâncias paupérrimas, a vontade de desbravar horizontes, assim chegaram a fuzileiros, por vezes adolescentes, ofereceram-se como voluntários, punham assim termo a vidas incolores. Não esqueceram a instrução dura que tiveram, guardam os nomes dos camaradas, cedem à emoção na lembrança dos que tombaram, por vezes a seu lado.
Cobre-se assim uma lacuna que tínhamos nas recensões.

Um abraço do
Mário


Fuzileiros, força de elite

Beja Santos

Ficaram conhecidos por o Esquelas, o Zé da Vinha, o Naine e o Xaitinho. Tinham em comum infâncias muito duras, confiaram na Marinha para a abertura de horizontes. Conheceram-se cedo ou tarde, nalguns casos nunca se encontraram em teatros de operações. Foi a Associação de Fuzileiros que os juntou. Sempre que podem elogiam os fuzileiros, com orgulho e mística. Resolveram passar a limpo reminiscências, reproduzir em linguagem de caserna acontecimentos vividos. O resultado é “Fuzileiros, força de elite”, por Ilídio Neves Luís, José Manuel Parreira e Mário Henriques Manso (Clássica Editora, 2007).

O Esquelas comeu o pão que o diabo amassou, veio lá dos confins de Pedrógão Grande, a capital atraiu-o, começou por marçano, alombava com grandes cargas às costas. Sonhou com a marinha, ofereceu-se como voluntário, era um adolescente. Em 1962 chegou a Vale de Zebro: ordem unida, aprender a bater a continência, instrução versátil. Os instrutores não eram complacentes: “Eram gritos, insultos e castigos de toda a ordem, que deixavam os mais humildes e vulneráveis completamente estarrecidos". Fez a instrução técnica complementar, depois o curso de fuzileiros especiais. Os aspetos traquinas e brejeiros nunca foram esquecidos. Em 1963, parte para Angola no Destacamento n.º 6 de Fuzileiros Especiais, a sua missão era o Zaire. Fez duas comissões em Angola. Saiu da marinha em 1969, após o que ingressou na TAP, onde trabalhou durante 36 anos.

O Zé da Vinha veio de Ermidas do Sado. Nunca esqueceu a brutalidade dos mestres-escolas e a dureza doméstica, concluída a 4.ª classe foi logo para a ceifa. Foi empregado de balcão de mercearia e vinhos. Pelos 11 anos, resolveu mudar de vida, voltou aos trabalhos de campo, suportou a muito custo as agruras dessa vida isolada e depois partiu para a margem sul do Tejo, tinha um emprego à espera numa pequena casa comercial, seguiram-se os maus tratos. Um dia, dois marinheiros, naturais de Ermidas do Sado, fizeram-lhe ver que tinham uma saída. Concorreu para a Armada, assentou praça em 1961, já com 18 anos, na Escola de Alunos Marinheiros, em Vila Franca de Xira. Acabada a recruta, entrou no curso de eletricista. Reprovou no curso de primeiro grau, concorreu a fuzileiro. Seguem-se páginas sobre os rigores da instrução. Em Fevereiro de 1964, fazendo parte da Secção Delta, rumou para a Guiné. Durante o mês de adaptação, deu apoio e fez segurança navio hidrográfico de Pedro Nunes, em Cacine. Vai descrever as operações em que participou, a sul de Bissau, nos rios Geba e Corubal, em Cafine, Cantanhez e nas áreas do rio Cacine. As operações sucedem-se, a um ritmo frenético. Diz que o rio Corubal foi trilho frequente para muitas incursões até à Ponta do Inglês e palco de sucessivos festivais de tiros, com utilização das metralhadoras Oerlikon e MG-42, instaladas nas LDM. Inevitavelmente, falava de operações bem-sucedidas e outras menos. Ao tempo, o PAIGC estava de pedra e cal na região de Cumbijã, era detentora de grande potencial de armamento, os guerrilheiros estavam bem preparados. A operação Remate, em Outubro de 1964, deixou-os desconsolados, morreram o sargento Calado e o grumete Maia. Zé da Vinha, em Março de 1967, foi gravemente ferido numa emboscada em Pedra do Feitiço, Angola, passou largos meses internado, foi dado como incapacitado para todo o serviço militar.

O Naine veio de Ancião. Nunca esqueceu o chilreio das aves, as bonitas melodias interpretadas por pintassilgos, milheiriças, cotovias, tentilhões e papa-figos. Na escola, ficaram-lhe gravados na memória os períodos de merenda e do recreio, jogar às caricas, à cabra cega e ao pião e a conduzir um arco extraído de um velho pneu de automóvel. Esteve num seminário por pouco tempo. Depois foi trabalhar para as terras do Marão, será aí que irá conhecer o Xaitinho, aqui despontou a líbido, teve uma paixoneta, regressou à terra natal, chegou a integrar um rancho folclórico e por portas travessas chegou à Marinha, queria ser fuzileiro. Fará comissões em Angola e Moçambique, estudou, licenciou-se em Direito, chegou a posto elevado na Polícia Judiciária, escreveu romances.

O Xaitinho será um dos militares mais condecorados, até chegar à base naval do Alfeite nunca tinha saído da sua aldeia, perdida entre montanhas. Viveu em Vale do Zebro, depois integrou um Destacamento de Fuzileiros Especiais, a Guiné era o seu destino. Não esqueceu as operações Tesoura, Coqueiro, Túlipa. Na Tesoura foi até à mata de Cafine. Não dispararam um tiro, encontraram a barraca vazia, pejada de equipamento de guerra. Escreve: “Os guerrilheiros do PAIGC transformaram esta terrível mata de Cafine numa autêntica fortaleza, com estruturas defensivas impressionantes, incluindo abrigos subterrâneos, a partir dos quais acionavam sofisticadas peças de artilharia que visavam os navios e as lanchas de fiscalização e desembarque que navegavam ao longo do rio Cumbijã". Na Coqueiro, voltaram à mata de Cafine, desta vez houve forte tiroteio, distinguiu-se o Câmara Lenta, parecia um atirador furtivo, calmo e destemido, alvejava os guerrilheiros um a um, não cedia a emoções. A Túlipa decorreu no Corubal, destruiu-se um acampamento, depois emboscaram perto do rio, ouviram os remos de uma canoa, escutaram guerrilheiros, atiraram granadas para o rio, dispararam muito fogo. Perto do fim da comissão, uma última operação em que estiveram o Xaitinho e o Zé da Vinha, foram até ao Poindom, entre Xime e Ponta do Inglês. Foi aqui que morreu o Mosquito. O Xaitinho revelou-se um combatente extraordinário, recebe louvores e condecorações. Voltará à Guiné, de novo integrado num destacamento, em 1972. Mais louvores e condecorações, sempre a exaltar as suas qualidades de homem e militar, o destemor e a abnegação. Ostenta a Torre e Espada, três cruzes de guerra individuais, medalhas de comportamento exemplar, foi distinguido com o prémio Governador da Guiné. Os outros fuzileiros admiram-no profundamente, como alguém escreveu: “Parece inconcebível como um homem desta grandeza, depois de tudo o que se passou, mantenha intacta aquela singular genuinidade e simplicidade, optando com serena humildade e bondade por ser intrínseca e eternamente pequeno”.

Não é de mais referir que os autores se ufanam de ter pertencido a uma força especial de elite, e dizem ter passado a limpo estes episódios em que estiveram nas antecâmaras da morte, sentiram indiscritíveis sensações da dor física e psicológica, enfatizam e repisam as imagens que guardam os camaradas despedaçados, porque pretendem que esta dádiva de juventude também só foi possível por terem pertencido a um corpo de elite da Marinha, de que se sentem devedores, mantendo-se irmanados na Associação de Fuzileiros.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11906: Notas de leitura (508): "Das Guerras Africanas à Diàspora Americana", organização de Adelino Cabral e Eduardo Mayone Dias (Mário Beja Santos)

sábado, 1 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10746: Tabanca Grande (369): Mário Ferreira de Oliveira, 1º Cabo Condutor de Máquinas (na situação de reforma), Vedeta de Fiscalização Bellatrix, 1961/63, grã-tabanqueiro nº 589


NRP Sal - Foto enviada pelo nosso camarada Manuel Lema Santos (MLS),  com a seguinte nota datada de 27 de novembro último: "Para que nada falte mesmo ao camarada (Cabo de Manobra) que escreveu o artigo que li, aqui envio o navio-patrulha Sal, P584. Aliás, bela imagem que sugiro ser enviada ao autor do artigo. É uma imagem oficial, cedência da Revista da Armada".


1. Mensagem do nosso novo grã-tabanqueiro, Mário Ferreira de Oliveira, em dia de grande significado histórico e patriótica que hoje comemoramos (e continuaremos a comemorar, com ou sem feriado nacional):

De: Mário Oliveira
Data: 1 de Dezembro de 2012 10:09
Assunto: pedido de adesão á Tabanca Grande

Nhô Luis Graça! Home Grande,
Corpo di bó stá bom?
Bó casa tudo stá bom?
Tabanca Grandi stá bom?
Amim fala mantanhas pra bó e pra bó casa e pra camaradas di Tabanca Grandi.


Isto foi só um pequeno teste ao crioulo, em que, in ilo tempore, dava um jeito, mas agora dou é barraca.

Agradeço a tua rápida resposta e peço desculpa pelo meu atraso em responder, mas acontece que em informática sou um nabo e tive de esperar que o meu filho estivesse disponível para me ensinar a digitalizar e a enviar por email as fotos.

Espero ter aprendido e que este histórico email chegue em boas condições.

Solicito a todos os camaradas do Grande Fórum de Camaradagem que é a Tabanca Grande, que me seja concedida a Subida Honra de ser um de vós. Para o efeito junto as duas fotos da "praxe".

Sou natural de Cantanhede, onde nasci em 13-10-1936, casado com a Maria Fernanda, também de Cantanhede, sou pai de dois filhos, a Margarida, arquiteta, e o Paulo, técnico de eletrónica naval, e  resido em Vale de Milhaços, Seixal.

A minha comissão de serviço na Guiné teve a duração de 28 meses, e foi cumprida em 61/63 na Vedeta de Fiscalização "Bellatrix" onde para além de "pau para toda a obra" fui fogueiro-motorista, eram assim designados naquele tempo os actuais CM [. Cabos de Manobra]..

Quanto à minha expressão "infeliz" capitão G3,  utilizei-a porque o tristemente lendário fuzileiro, conhecido entre outros epítetos nada abonatórios por capitão G3, na Guiné, tendo como pano de fundo operações militares, onde diariamente militares dos três ramos faziam inimagináveis sacrifícios e de armas na mão morriam e matavam, o tal G3 passou-se para o IN, levando com ele conhecimentos e técnicas de combate, que lhe valeram a promoção a oficial e um posto de comando. Mas a infelicidade dele não se ficou por aqui: enviado com outros guerrilheiros para a Argélia, frequentar um curso que daria (se não fosse entretanto caçado) promoção quem sabe a general, teve a infelicidade de ver a carreira interrompida por um golpe de Estado de sinal contrário.

Tempos depois, isto para abreviar o que se sabe, responde em tribunal militar, e cumpriu a pena a que foi condenado. Não deve portanto nada à sociedade. Tem direito à sua privacidade, e fazer da sua vida o que entender. Que na madrugada libertadora que foi o 25 de Abril tenha finalmente encontrado a paz e a felicidade que não teve nos tempos conturbados do fascismo.

Agradeço a foto do NRP Sal, e irei retribuir com uma foto da proa do Sal, rasgando as vagas de uma enorme tempestade no dia 25 de dezembro de 1960, que há Natais inesquecíveis, ai isso há, até para os homens do mar!

Para todos um abraço amigo, do grato
Mário Oliveira

2. Comentário do L.G.:

Mário:
A tua juventude e jovialidade não passam despercebidas, são dignas de registo e de regozijo. O teu pedido de adesão já tinha sido aceite pelo régulo e adjuntos da Tabanca Grande [vd,. poste P10728]. Espero agora que os muitos e dignos representantes, na nossa Tabanca Grande, dos três ramos das forças armadas que bateram com os quatro costados na Guiné, de 1961 a 1974, abram alas e te recebam com ramos de palma em arco, festivamente...

Toma boa nota: és o grã-tabanqueiro (ou membro da Tabanca Grande) nº 589 (*)... Não és o grã-tabanqueiro mais velho, à tua frente e com quase 98 aninhos vai a nossa decana Clara Schwarz...De qualquer modo, rapazes da tua boa colheita de 1936 não temos muitos, e para mais marinheiros, dos bravos, como tu. Felizmente que venceste a barreira da "literacia" informática. com a ajuda do teu filho. Estás de parabéns, guarda esse mail, histórico, para mostrares aos teus filhos, netos e bisnetos.

A honra é toda nossa, a tua presença é também é uma recompensa para aqueles de nós, grã-tabanqueiros, amigos e camaradas da Guiné, que fazemos  todos os dias este blogue, desde 23 de abril de 2004, e que já ultrapassou os 4,3 milhões de visualizações. O mês passado tivemos 116 mil visitas, o que dá uma média diária de 3850... Vê estes números também como uma oportunidade para comunicares com esta vasta comunidade virtual (e real) que vai de Portugal ao Brasil, e de Cabo Verde à Lapónia... A rapaziada está por todo o lado, e ainda mexe como tu as falanges, falanginhas, falangetas, pernas, pernetas, neurónios...

Quanto ao teu crioulo, pá!, bate a bota com a perdigota: só mostra que os anos que constam do teu BI ou CU,  podem ser de calendário (manga de luas, as tuas) mas não são anos  mentais... Neste annus horribilis de 2012 alegra-nos e honra-nos a tua jovial presença sob o nosso mágico, secular, frondoso e fraterno poilão da Tabanca Grande!...

PS - A história do tal capitão G3, o ex-fuzileiro António Tavares Trindade,  já aqui foi evocada pelo nosso camarada Mário Pinto (**).

Por outro lado, saiu há dias um livro autobiográfico do António Tavares Trindade, com o título O homem a quem chamaram G3.

Vd. aqui, no Sítio do Livro, da editora Vírgula, a referência à obra e ao autor (nascido em 1944, em Lisboa).

(**) Vd. poste de 19 de janeiro de 201o > Guiné 63/74 – P5678: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (34): O turra branco "Capitão G3" (Mário G R Pinto)

terça-feira, 29 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9961: Efemérides (96): Guidaje foi há 39 anos: a coluna que rompeu o cerco, em 10 de maio de 1973 (Amílcar Mendes, ex-1º Cabo Cmd, 38ª CCmds, 1972/74)


02 Novembro 2005

Guiné 63/74 - CCLXV: Apresenta-se o 1º Cabo Comando Mendes (38ª CCmds, 1972/74)

Caro Luis Graça, camarada comando Briote:

Vou-vos falar um pouco de mim. Assentei praça no longínquo ano de 1971 no antigo RAL 1, em Outubro. Ofereci-me para os Comandos onde cheguei em Dezembro de 1971 (CIOE/ Lamego). Completei o curso em Junho de 1972, mês a que cheguei à Guiné, a 26. Iniciei a 2ª parte do curso em Mansoa, na mata do Morés, onde tive o primeiro contacto com o IN. Recebi o crachá de Comando em Agosto, com o posto de 1º cabo.

Em Fevereiro de 1974 terminei a comissão mas só regressei a Portugal em Julho de 1974. As histórias pelo meio ficam para outra altura, e tambem as fotos, neste momento tenho o scanner fora de serviço.

Se quiserem saber mais alguma coisa é só perguntarem.

Um grande abraço para todos os ex-combatentes, em especial os Comandos.

Só mais um pormenor, a minha companhia foi a 38ª Companhia de Comandos, os Leopardos.A. Mendes
1. Amílcar Mendes é um dos nossos mais antigos 
grã-tabanqueiros. Publica-se acima uma cópia do poste de 2 de novembro de 2005 em que ele se apresentou ao pessoal do blogue, que na altura ainda só eram umas escassas dezenas de "tertulianos", como então chamávamos aos membros da nossa "tertúlia", hoje Tabanca Grande.  

O  ex-1º Cabo Comando,  depois de ter estado na 38ª CCmds (Guiné, 1972/74), ficou no Regimento de Comandos da Amadora até 1980, dando instrução.  Hoje tem um táxi na Praça de Lisboa. Há tempos confidenciou-nos: "Enquanto estive na Guiné fui escrevendo uma espécie de diário que, com muito gosto, irei aqui partilhar com toda a tertúlia, porque sei que muito do que escrevi apenas fará sentido para aqueles que trilharam os mesmos caminhos nesses longínquos, difíceis e já saudosos anos".


São o seu caderno de notas e as memória ainda bem vivas da sua atividade operacional no TO da Guiné que lhe permitem falar com autoridade da coluna que "rompeu" o cerco a Guidaje, em 10 de maio de 1973. Há questões de pormenor que ele pode ainda esclarecer, com a ajuda de outros camaradas "que estavam lá"... Por exemplo,  no portal da Liga dos Combatentes não há registo de mortos, em combate, no dia 11 de maio de 1973, por que ao que parece o PAIGC estava também ocupado em tratar dos seus mortos e feridos (,segundo a versão de Moura Calheiros).  Por outro lado, os cadáveres em decomposição na zona do Cufeu (o A. Mendes diz que contou 15 quando lá passou em 10 de maio de 1973, a caminho de Guidaje) (*) tanto seriam das NT como do PAIGC (, já que a zona fora bombardeada antes pela FAP, possivelmente a 8). 

Por outro lado, confirma-se que os 2 gr comb da valorosa 38ª CCmds regressaram a Mansoa, ao CAOP 1, não a 13, ao fim da tarde.  

Sobre esta coluna, vd. o que o Moura Calheiros escreveu no seu livro, A Última Missão, pp. 444/445; este autor diz que esta coluna, com 8 grupos de combate - incluindo os 2 da 38ª CCmds - partiu de Binta a 10, de madrugada; o mesmo diz o José Manuel Pechorro e a história da 38ª CCmds; o Amílcar também já me confirmar a data, que é 10 e não 11, como aparece por lapso nos postes de outubro de 2006. A 12, morrem  o Raimundo e o Viegas morrem a 12...).

De resto, só com a triangulação de fontes e uma aprofundada pesquisa de arquivo podemos esclarecer pontos sobre os quais pode haver pequenas divergências factuais (por ex, nº e data das colunas; nº total de baixas, mortos e feridos; forças que integraram as escoltas às diversas colunas). O objetivo da publicação destes postes sobre os 39 anos da batalha de Guidaje (uma das mais duras da toda a história da guerra colonial nos três teatros de operações) é também a de suscitar o aparecimento de novos depoimentos, de colmatar lacunas de informação e de sobretudo de homenagear os vivos e os mortos, todos os nossos camaradas que deram melhor de si  (algumas dezenas, a sua própria vida) no "inferno de Guidaje".

Juntamos aqui os 4 postes do A. Mendes sobre o "inferno de Guidaje" (*), publicados em outubro de 2006. Foram feitas correções de datas.







38ª CCmds (1972/74) > História da unidade > Excertos (documento disponibilizado pelo Amílcar Mendes)


 A CAMINHO DE GUIDAJE

por Amílcar Mendes
Resumo:

9 de Maio de 1973 > O 2º e o 4º grupos [da 38ª Cmds] vão hoje fazer uma escolta a uma coluna de Mansoa para Farim.

13 de Maio de 1973 > Regressei hoje a Mansoa. Cinco dias fora. Meu Deus, foram os piores dias da minha vida. Irei tentar descrever tudo o que passei. Os horrores da guerra! Nunca pensei que fosse possível acontecer o que vi. Terrível de mais para ser verdade.  




9 de Maio de 1973

Saímos de Mansoa [, sede do CAOP1,]  com destino a Farim, com uma coluna que leva abastecimentos para a fronteira. Íamos só com a missão de chegar a Farim e voltar. Passámos a noite em Farim, mas fala-se já que não iremos voltar. A coluna que viemos acompanhar, destina-se a Guidaje.


Guidaje, onde nenhuma coluna consegue chegar. Fala-se aqui que da útima coluna que tentou passar: ficaram pelo caminho mais de 20 mortos. Guidaje onde a situação é caótica, onde a aviação já não dá cobertura. 

Em Farim assisti à chegada do que restou da última coluna que tentou passar. Vi militares chegarem a pé, sozinhos, completamente aterrados com o que passaram.

Continuamos em Farim e com a chegada da noite ficamos a saber que somos nós quem vai seguir com a coluna para Guidaje.



pelido  Nome  Posto  Ramo  Teatro de operações  Data  Motivo  
GERALDES MANUEL MARIA RODRIGUES GERALDES SoldExércitoGuiné10/05/1973  Combate  
MANÉ ABDULAI MANÉ 1CabExércitoGuiné10/05/1973  Combate  
REDONDO ANTÓNIO JÚLIO CARVALHO REDONDO SoldExércitoGuiné10/05/1973  Combate  
SADJÓ SADJÓ SADJÓ SoldExércitoGuiné10/05/1973  Combate  
SANHÁ MAMADU LAMINE SANHÁ SoldExércitoGuiné10/05/1973  Combate  
TURÉ JANCON TURÉ SoldExércitoGuiné10/05/1973  Combate  
ApelidoNomePostoRamoTeatro de operaçõesDataMotivo

 Fonte: Liga dos Combatentes > Mortos no Ultramar













10 de Maio de 1973

Saímos de madrugada de Farim com destino a Guidaje. Primeiro a Binta, onde os picadores se irão juntar aos nossos grupos. Daí entramos na maldita da picada. Os picadores seguem na frente.

Nota-se na picada o efeito das minas, autênticas crateras. Serão 16 km de picada até Guidaje. Um pelotão de Binta irá conosco até meio do percurso, depois iremos sós. Na frente os picadores lá vão detectando e rebentando minas, a cada hora apenas andamos para aí 2 km. Sabemos que de Guidaje saiu a CCAÇ 19, africana, para vir ao nosso encontro.


Passar na bolanha do Cufeu é impossível descrever o que encontramos sem sentir um aperto na alma: dezenas de viaturas trucidadas pelas minas. Os cadáveres pelo chão são festim para os abutres. É uma loucura. Pedaços das viaturas projetadas a ezenas de metros pela acção das minas. Estrada cheia de abatizes. Tentamos não olhar. Nunca vi tanto morto, nossos e do IN, deixados para trás ao longo da picada.

A coluna, à saída da bolanha do Cufeu, pára. Ouve-se ao longe tiros e rebentamentos. A companhia que vinha ao nosso encontro [, a CCAÇ 19,], caiu numa emboscada na ponte. Pelo rádio ouvimos o oficial que comanda a companhia emboscada pedir apoio aéreo, porque o IN é em muito maior número e ele diz que está a ser dizimado. Chegam dois Fiats e tentam dar cobertura à companhia emboscada mas dizem que é impossível porque o IN esta demasiado próximo.


Ouço então o apelo mais dramático, ouvido em toda a minha vida: Pela rádio o oficial que comandava a companhia emboscada apela à aviação:

- BOMBARDEIEM TUDO! A NÓS, INCLUINDO! A SITUAÇÃO É DESESPERADA! ESTAMOS A SER TODOS MORTOS, POIS OS GAJOS SÃO EM NÚMERO MUITO SUPERIOR!

A aviação nega-se a cumprir o apelo. Nós estamos a cerca de 3 km da emboscada. Nem pensar em lá chegar para ajudar. Demasiado longe num local cheio de minas e outros obstáculos. Os Fiats sobrevoam-nos e avisam-nos de que o IN está próximo. Faz isso para evitar ser bombardeado.



Continuamos a caminho de Guidaje. Quem ainda seguia nas viaturas salta para o chão. Ouve-se um rebentamento! Foi uma mina! O 1º cabo Filipe ao saltar pisou uma mina! Ficou logo ali sem um pé! Recebe os primeiros cuidados na picada e é posto numa viatura.

Seguimos, seguimos a um ritmo alucinante para chegar antes da noite.

Mais um morto na picada. Pisou uma mina. Ficou irreconhecível, metade do tamanho. É enrolado num poncho, posto no estrado de uma viatura. E continuamos (Esse morto mais tarde iria ser sepultado em Guidaje onde ficou).


Uma viatura pisa uma mina mas só ficou sem o rodado e continua assim mesmo.

Chegamos ao local da emboscada da CCAÇ 19 (**). Só encontramos mortos. Mortos e mais mortos. Nossos e do IN. Ficam para trás. E ali irão ficar para sempre. Já andámos há cerca de 10h na picada e Guidage já não está longe.

Já com Guidaje à vista subimos para as viaturas e eu sigo naquela só com três rodados, e onde segue o morto.

Chegamos a Guidaje! É a primeira coluna a chegar de há três semanas a este tempo. A população vem receber-nos com gritos de alegria, dá-nos água, trata-nos com carinho, sentem que o isolamento acabou.


Assim que entramos no destacamento, somos brindados com um ataque de morteirada. Com a noite vamos para as valas, que é onde se vive em Guidaje! O Filipe está num abrigo a soro, fui vê-lo e ele delirava a chamar pela família.

Durante a noite iremos sofrer mais 4 ataques e um deles será mortal.

Chega a noite. Mais um ataque. Desta vez e canhão sem recuo e morteirada. O IN sabe que esta uma Companhia de Comandos na vala e vai tentar a todo o custo causar-nos baixas, o que infelizmente vai conseguir. Nas valas, em estado de alerta, é impossível dormir. De bom em Guidaje só o facto de não haver mosquitos.

[No dia 11 de Maio de 1973, não há registo de mortos no portal da Liga dos Combatentes > Mortos no Ultramar. ]

12 de Maio de 1973

Cerca das três horas da manhã rebenta um violento ataque ao destacamento que é de meter medo. O IN deve ter as coordenadas das valas pois o fogo acerta todo dentro das valas. O barulho rebenta com os ouvidos. Dura cerca de 30 m. São centenas de projécteis. É de dar em doido!

A nossa artilharia [, Pel Art 24, de Guidaje] (**) responde ao fogo e lá se consegue parar o ataque. Terminado o ataque vamos fazer a contagem e duas vozes não respondem. Um, o Soldado Comando Raimundo, meu camarada de grupo, um moço da [Azambuja], a quem nunca mais ouvirei a sua voz; outro, um soldado condutor [, o Viegas, do CAOP 1] que tinha vindo connosco. Ficaram os dois desfeitos na vala com morteirada 120 mm.



Apelido  Nome  Posto  Ramo  Teatro de operações  Data  Motivo  
RAIMUNDO JOSÉ LUIS INÁCIO RAIMUNDO SoldExércitoGuiné12/05/1973  Combate  
VIEGAS DAVID FERREIRA VIEGAS SoldExércitoGuiné12/05/1973  Combate  
ApelidoNomePostoRamoTeatro de operaçõesDataMotivo

Fonte: Liga dos Combatentes > Mortos no Ultramar  









Ainda durante a noite iremos sofrer novo ataque mas mais ligeiro. Com a chegada da manhã os rostos de tristeza vão-se descobrindo mas é preciso reagir. Com um ano de guerra, o factor morte já não nos afecta assim tanto, já aprendemos a conviver com ela de perto, só temos de arranjar maneira de a ir iludindo.

Recebemos ordens para sair para a mata. Vem outra coluna a caminho, escoltada pelo Fuzos [ 1 gr comb da DFE 1 e um gr comb do DFE 4, comandados pelo 1º ten Meireles de Amorim, mais um gr comb da CCAÇ 3,] e nós vamos ao seu encontro para lhes dar apoio até  Guidaje. 

Antes de sair, fui ao abrigo-enfermaria (?) ver o Filipe: continua inconsciente, a perna começa a gangrenar e tem que ser evacuado com urgência, mas isso está fora de questão pois os misseis Strela estão à espreita da nossa aviação.

Fomos ao encontro da coluna e,  assim que chegamos ao destacamento, novo ataque. Pelas minhas contas tera sido o 6º. Com a noite voltamos para as valas.


O estado psicológico era tal que quando no silêncio se ouvia um barulho de alguma coisa a bater corríamos logo para a vala. No ataque à chegada dos fuzileiros, o furriel Marchão do meu grupo ficou crivado de estilhaços mas sobreviveu.

 
Amanhece em Guidaje. Logo ao alvorecer sofremos mais um ataque (o 8º). Recebemos ordem de saída para a mata. Vamos montar uma emboscada nos trilhos, já dentro do território do Senegal. Parece uma auto-estrada este trilho tal é o movimento de população. Revistamos ao acaso. Numa mulher encontramos documentação militar que apreendemos. Depois de cerca de três horas de controlo, retiramo-nos para o quartel.

A coluna vai hoje [, 13,] regressar a Binta-Farim. Ao meio do dia mais um ataque ao destacamento. A meio da tarde começa-se a organizar a coluna para o regresso mas durante os preparativos sofremos mais dois ataques e é a confusão, com as viaturas paradas no meio do destacamento e a morteirada a cair.


Assisti durante os ataques a um espectáculo insólito: enquanto durava o fogo, um oficial, nesta caso o Comandante, caminhava sereno pelo meio da confusão dando ordens e tentando manter a calma, alheio aos ataques e aos gritos. Esse senhor era o [Tenente-] Coronel Correia de Campos, que comandava o COP 3, ao qual a minha companhia ficou dependente enquanto esteve em Guidaje.

O Comandante achou perigoso a coluna seguir nesse dia [, 12,] pois fazia-se noite e concerteza o IN iria estar emboscado à nossa espera. Durante a noite sofremos mais ataques. Creio que no total e no curto tempo que aqui estivemos, sofremos pelo menos 15 ataques ao destacamento.

13 de maio de 1973


Logo ao alvorecer [, pelas 6h00,] a coluna põe-se a caminho. Fazemos a picada de volta e à medida que avançamos, voltamos a passar pelos cenários de morte. Os corpos estão a caminho de esqueletos, devorados pelos jagudis. O cheiro é insuportável, por vezes dá náuseas. Acho que pelo resto da minha vida nunca mais vou esquecer este local maldito!

Ao fim da manhã já estamos a chegar a Binta quando surge mais um acidente: um militar da tropa da Província pisa uma mina, dá por ela e fica com o pé lá em cima... É uma mina de descompressão e poucas hipóteses tem de lá sair com vida.

Põe-se areia a volta. Cobre-se o corpo de roupa mas ele salta rápido. Não morre mas fica sem o pé. Durante a minha viajem de regresso na Berliet que seguia à minha frente, ia o Filipe com a perna já em adiantado estado de gangrena. Irá sobreviver. Somos amigos, ele vive no Porto e ainda hoje recordamos esse tempo, o que nos dá vontade de chorar!


Chegamos a Binta e o Filipe é logo evacuado! A coluna não pára. Seguimos para Farim e daí logo em direção a Mansoa.

É a alegria geral! Que saudades da rapaziada! Chegamos a casa!...
- FORAM OS PIORES DIAS DA MINHA VIDA!- Pensava eu. 


A malta faz perguntas mas a nós não nos apetecia responder, só para não voltarmos a pensar naquele inferno. Ao diabo com Guidaje!~(Como eu estava enganado, mas ainda não o sabia!). [O Amílcar Mendes voltará lá em 29 de maio, na escolta a uma outra coluna logística].

Comentário: Ainda hoje sonho com Guidaje! Algumas coisas do que aconteceram foram tão reais que iriam ficar gravadas na minha memória até chegar ao STRESS!

Sentir na carne não é o mesmo que me sentar a escrever sobre um acontecimento. Isso é ficção e, pelo que vou lendo, há muitos ficcionistas que se arvoram em paladinos da verdade. Paz à sua alma!... (**)

A. Mendes


Texto e fotos: © Amilcar Mendes (2006). / Blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

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Notas do editor:

(*) Vd. este e os postes anexos a este > 4 de abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2719: Guidaje, Maio de 1973: Só na bolanha de Cufeu, contámos 15 cadáveres de camaradas nossos (Amílcar Mendes)

(**) Segundo informação do nosso camarada José Manuel Pechorro, o pessoal da CCAÇ 19, do recrutamento local, era de etnia mandinga. O Pel Art 24, por sua vez, era constituído sobretudo por pessoal balanta.

Do José Manuel Pechorro, vd. também os seguintes postes:

19 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5300: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - I Parte (José Manuel Pechorrro)

21 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5310: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - II Parte (José Manuel Pechorrro)

16 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5479: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - Agradecimento e algumas informações (José Manuel Pechorro)

4 de Abril de 2010 Guiné 63/74 - P6105: (Ex)citações (63): O Ten Cor Correia de Campos foi um dos heróis de Guidaje (José Manuel Pechorro)


(***) Último poste da série > 28 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9954: Efemérides (61): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (2): Desenrolar da emboscada na zona do Cufeu (António Dâmaso)