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sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20182: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte V: O que nos fizeram foi criminoso (pp. 43-48)


"De tudo quanto vejo me acrescento", Fernando de Sousa Ribeiro dixit, 
citando a grande poetisa do Porto (e de Portugal) Sophia de Mello Breyner Andresen, 
cujo centenário se celebra este ano.


Foto (e legenda) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;
(v) vive no Porto, mas também tem boas recordações de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vi) tem página no Facebook;

(vii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974; esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(viii) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo;  as outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(ix) o ficheiro, em formato pdf, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.


Dignidade e Ignomínia 
(Episódios do Meu Serviço Militar)

por Fernando de Sousa Ribeiro




O QUE NOS FIZERAM FOI CRIMINOSO (pp. 43-48)(*)


Que finalmente seja reconhecido o extraordinário valor dos operacionais do nosso batalhão, cujas vidas estiveram nas mãos de gente, no mínimo, sem escrúpulos... Depois de tudo o que suportou, o Batalhão de Caçadores 3880 mostrou ser o melhor do mundo. Mostrou mesmo.

Em Santa Margarida, onde estivemos durante cerca de dois meses antes de partirmos para Angola, não tivemos Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO). Diziam-nos os nossos superiores hierárquicos que só iríamos ter IAO em Angola, quando o batalhão ficasse completo com a integração dos angolanos que iriam constituir o chamado Grupo de Mesclagem. 


Por isso, o que o nosso pessoal teve em Santa Margarida foi uma instrução meio a sério e meio a brincar, apenas para ir mantendo a malta ocupada e minimamente ativa até ao dia da partida para Angola. Enquanto isso, o Batalhão de Caçadores 3885, que também se encontrava em Santa Margarida e estava mobilizado para Moçambique, passou o tempo todo em IAO, numa atividade frenética que contrastava de forma chocante com a semi-indolência do nosso. 

Se eu próprio não tivesse tomado a iniciativa, que foi exclusivamente minha e de mais ninguém, de dar uma instrução intensiva aos meus próprios subordinados em Santa Margarida, ter-me-ia visto em situações muito complicadas em Angola. Ninguém, em todo o comando do nosso batalhão, parecia estar minimamente preocupado com a nossa preparação para a guerra.

Em Angola também acabamos por não ter IAO nenhuma. À nossa chegada disseram-nos que ela iria acontecer no Úcua, que era onde os cursos de Comandos costumavam fazer as semanas de campo, mas isso não aconteceu. Não houve IAO no Úcua, nem houve em lado nenhum. Partimos do Grafanil diretamente para a guerra, sem qualquer IAO que se visse.

Aos nossos magníficos companheiros angolanos ainda fizeram pior do que a nós. Mal aqueles nossos camaradas acabaram a especialidade, em Sá da Bandeira, foram levados diretamente para o Grafanil, para se nos juntarem e irem para a guerra connosco. Em janeiro de 1972, eles tinham começado a recruta; cinco meses depois já estavam na guerra! Tal como aconteceu connosco, também eles não receberam nenhuma instrução que se parecesse com uma IAO. Fomos todos para a guerra com uma preparação de merda, brancos, negros e mestiços. Poucas unidades terão partido para a guerra tão mal preparadas como o nosso batalhão.

Se o que se passou até então foi de uma imperdoável gravidade (e foi), o que dizer do que nos fizeram a seguir? 

O que nos fizeram a seguir foi simplesmente isto: durante os primeiros seis meses de comissão, obrigaram-nos a fazer a guerra completamente sozinhos. Exatamente, sozinhos, como se não houvesse mais tropas ou apoios em todo o território de Angola! Não, não estou a exagerar nem um bocadinho. Desde junho de 1972 até janeiro de 1973, as companhias operacionais do nosso batalhão foram as únicas (!) forças militares que combateram nas zonas de Zemba, Cambamba e Mucondo. 

Repito, para que não restem dúvidas. Ao longo dos nossos primeiros seis meses de comissão, nenhuma outra força atuou na área do nosso batalhão, além das companhias operacionais do próprio batalhão. Não houve qualquer intervenção de Comandos, nem de Paraquedistas, nem de companhias de intervenção, nem de TE, nem de GE, nem de "Flechas", nem de Artilharia, nem de Aviação, nem de nada! Nada de nada!

Estivemos completamente sozinhos (!) frente aos guerrilheiros da FNLA e do MPLA, que eram mais numerosos do que nós e atuavam num terreno que nós não conhecíamos e que era de uma extrema dificuldade. Durante esses primeiros seis meses, só a Força Aérea é que deu sinais de vida, e foi só para evacuar os nossos infelizes companheiros feridos! 

Acho que até hoje ainda ninguém chamou a atenção devida para a gravíssima situação em que nós nos encontramos durante esse tempo e nesse lugar, situação ocorrida precisamente numa ocasião em qua ainda éramos inexperientes e, ainda por cima, estávamos mal e porcamente preparados. Numa altura em que, mais do que nunca, deveríamos ter recebido apoio, não tivemos apoio absolutamente nenhum, fosse de quem fosse, fosse de que forma fosse. O que nos fizeram foi criminoso.

Foi ainda mais criminoso porque foi deliberado. Sim, esta solidão forçada a que estivemos sujeitos durante os primeiros seis meses de comissão foi propositada, por vontade do próprio comandante do nosso batalhão, o então tenente-coronel Azevedo. 


Foi lá mesmo, em Zemba, que eu tive conhecimento desta vontade do comandante. Ouvi-a revelada por um alferes da CCS, já não me lembro de qual. Talvez tenha sido o Sousa. Ou então foi o Rico. Enfim, não importa saber qual foi. O que importa é que o comandante conseguiu convencer o brigadeiro de Santa Eulália a não enviar tropas de intervenção ou quaisquer outras forças para o subsetor de Zemba. E, pelos vistos, o brigadeiro era um banana e satisfez a vontade ao ten cor Azevedo.

Inacreditável! E porque é que o Azevedo não queria que forças estranhas ao batalhão atuassem no subsetor? Porque queria ser ele a ficar com os louros e mais ninguém. Todos os êxitos militares que acontecessem no subsetor seriam da exclusiva responsabilidade do batalhão; logo, dele mesmo, como comandante do batalhão que era. [ O 
comandante do Batalhão de Caçadores 3880 foi promovido a coronel quando ainda só tinha passado um ano de comissão, mas manteve-se no comando do batalhão até ao fim.]

Se o comandante e o segundo comandante do batalhão, tenente-coronel Azevedo e major Lacerda, fossem bons comandantes, teriam pelo menos tentado apoiar-nos e animar-nos. Mas não só não fizeram nada disso, como fizeram precisamente o contrário. O comandante, sobretudo, não fazia outra coisa que não fosse ofender-nos e insultar-nos, chamando-nos coirões, sacanas e, nas nossas costas, outros nomes menos reproduzíveis, aqui, em público. Salvo uma única e solitária vez, nunca ele reconheceu o nosso esforço e o nosso sacrifício. Para ele, fizéssemos o que fizéssemos ou deixássemos de fazer, éramos sempre uns sacanas de uns coirões!

O major não nos insultava, é verdade que não, mas não só nunca manifestou o mais pequeno reconhecimento pelo esforço sobre-humano que estávamos a empreender, como fez ainda pior: não contente com os feridos que a minha companhia tinha sofrido, exigiu que sofresse ainda mais baixas!!! Ainda mais! 

Por mais inacreditável que isto possa parecer, aconteceu mesmo! Juro! Ele não exigiu que causássemos mais baixas ao inimigo, como seria de esperar que um militar fizesse. O homem exigiu que fôssemos nós a sofrê-las!!! Juro que ele o fez! Juro mesmo! 

Custa a acreditar? Eu sei que custa, mas é absolutamente verdadeiro! Ele disse-me pessoalmente, em duas ocasiões distintas, no meio da parada de Zemba, o seguinte, textualmente, tal e qual: «Exijo que vocês sofram mais baixas. Não se ganham guerras sem sofrer mortos e feridos. Por isso exijo que vocês sofram mais baixas». E repetiu, martelando as sílabas: « E... XI... J O !». Tais palavras ficaram gravadas a ferro em brasa na minha memória.Os guerrilheiros que nos combatiam eram chamados terroristas. Com razão ou sem ela, a verdade é que os guerrilheiros lutavam por uma causa e estavam dispostos a matar-nos por ela. O comandante e o major, por outro lado, não lutavam nem defendiam causa nenhuma, mas estavam dispostos a matar-nos para receber louvores, medalhas e promoções. Queriam mostrar ao mundo uma elevada estatística de mortos e de feridos sofridos pelo batalhão, à semelhança de um velho leão que exibe as suas cicatrizes como testemunho de lutas e de vitórias passadas. A diferença em relação ao leão é que, enquanto os leões lutam, o comandante e o major não queriam lutar e não lutaram, nem quando tiveram a obrigação de o fazer.

Queriam que fôssemos NÓS a lutar e a morrer, para que eles pudessem exibir as "cicatrizes" e receber os louros por elas. Os verdadeiros terroristas não estavam na mata; estavam dentro do quartel de Zemba.

Em janeiro de 1973, deu-se uma reviravolta na guerra do nosso batalhão. O brigadeiro de Santa Eulália (um tal Rebelo de Andrade, que veio transferido do setor do Cuanza Norte) resolveu criar um comando operacional só para combater o MPLA.

Foi chamado COP1 (Comando Operacional nº 1) e nele foram integrados o batalhão de Quicabo e as companhias de Santa Eulália e do Mucondo. Ficando com a companhia 3537, do Mucondo, fora da sua alçada operacional, o nosso batalhão passou apenas a poder contar com a 3535 e a 3536. 

Além disso, as regiões da FNLA que tinham sido da responsabilidade da companhia do Mucondo (concretamente as regiões do Catoca e do Mufuque) passaram também para a 3535 e a 3536. Como a partir de então só podia contar com duas companhias, o tenente-coronel não teve outro remédio senão aceitar a intervenção de forças estranhas ao batalhão no subsetor. 

Foi então que vieram os Paraquedistas, vieram os "Flechas", veio a Artilharia, vieram os aviões e vieram os helicópteros. Finalmente! Foi o fim do nosso isolamento operacional. Deixamos de estar sozinhos e submetidos apenas ao terrorismo psicológico do Azevedo e do Lacerda.

As operações a nível de batalhão deviam ser comandadas pelo comandante ou pelo segundo comandante do batalhão, como é evidente. Não era por acaso que elas eram chamadas «a nível de batalhão». No entanto, no Batalhão de Caçadores 3880 tais operações nunca foram comandadas por nenhum dos dois. Nem uma só! O tenente-coronel ou o major atribuíam a responsabilidade pelo comando de uma tal operação a um capitão ou a um alferes (chegaram a atribuí-lo a mim mesmo) e
ficavam refastelados à espera dos resultados, bebendo whisky, o major,  e insultando-nos pelas costas, o tenente-coronel. 

Como é evidente, nenhum capitão nem nenhum alferes, com pouco mais de vinte anos de idade e ainda por cima miliciano, tinha conhecimentos ou preparação suficientes para poder comandar cem e mais homens num teatro de guerra! Comandaram como souberam e puderam, só Deus sabe em que condições. 

Em contraste, as operações a nível de batalhão que eram feitas no subsetor de Quitexe, pelo Batalhão de Caçadores 3879 (vizinho do nosso na geografia e na numeração), eram efetivamente comandadas pelo próprio comandante do batalhão em pessoa, e assim é que devia ser. 

No nosso caso, depois de terminada uma operação a nível de batalhão, o tenente-coronel ou o major exigiam ao alferes ou ao capitão, que a tivesse comandado, que escrevesse um relatório sobre a mesma. Este era um relatório sem qualquer valor, que se destinava apenas a servir de rascunho a um outro relatório, este sim oficial, a ser enviado ao brigadeiro de Santa Eulália e onde era contado um grande filme, no qual o tenente-coronel ou o major é que tinham comandado a operação!

Em ocasiões diferentes, a CCaç 3535 foi comandada pelo capitão Lamas da Silva, pelo alferes Arrifana, por mim e pelo capitão Antunes. As pessoas podem ter gostado ou não do capitão Lamas da Silva. Podem ter gostado ou não do alferes Arrifana. Podem ter gostado ou não do alferes Ribeiro. Mas se houve alguma coisa que o Lamas da Silva, o Arrifana e o Ribeiro fizeram, de meritório, foi defenderem e protegerem os militares da CCaç 3535 dos caprichos do comandante, sempre e em todas as circunstâncias. 

Com efeito, o comandante do batalhão estava decididamente apostado em fazer dos militares da 3535, e só os da 3535 (já se vai ver porquê), uns escravos às suas ordens e para todo o serviço, por mais absurdo que fosse este serviço, e muitas vezes era. 

Como se não bastasse a intensíssima atividade operacional da companhia, que esgotava até extremos inimagináveis os seus elementos, tanto do ponto de vista físico como psicológico, o comandante queria que eles fizessem todo o tipo de tarefas e de trabalhos enquanto estivessem no quartel, por mais penosos e desnecessários que fossem. 

Ao mesmo tempo, os militares da CCS mantinham-se de costas ao alto. Nem saíam para a mata, nem trabalhavam como uns desgraçados no quartel, porque o seu comandante de companhia, capitão Óscar, protegia os seus subordinados e não aceitava que o tenente-coronel interferisse nas competências que ele considerava serem suas. 

O capitão Óscar era um homem carismático, que só com a sua presença infundia respeito. Nem o próprio comandante tinha coragem para se lhe impor. Assim, como não se atrevia a impor-se ao capitão Óscar, insistia em querer impor-se a quem estivesse à frente da C. Caç. 3535.

[Foto à esquerda: Capitão Óscar Augusto de Oliveira, o carismático comandante da Companhia de Comandos e Serviços (CCS) do Batalhão de Caçadores 3880]

O que aqui fica escrito pode parecer de uma violência verbal excessiva. Dir-me-ão que estou a exagerar. Não estou. Juro que não estou. Esta minha violência verbal nada é, comparada com o tratamento que recebemos da parte de quem teve os nossos destinos nas mãos durante o nosso serviço militar obrigatório.

Ora vamos lá ver se nos entendemos. Quem tivesse enveredado por uma carreira de oficial das Forças Armadas, então seguiu uma carreira para a qual a vida humana pouco ou nada valia. Isto dito assim parece uma ofensa gratuita dirigida aos oficiais do quadro permanente, mas não é. É a verdade, tirando algumas exceções (algumas delas insuspeitas), que eram muito honrosas, sem dúvida nenhuma, e às quais presto a minha homenagem mais sincera, mas eram exceções. 

De resto, sempre que acontecia algum incidente do qual resultassem baixas, por exemplo, a primeira pergunta que os oficiais do quadro permanente faziam era: «Quantos mortos? Quantos feridos?» Números. 

«Exijo que vocês sofram mais baixas», dizia-me o major Lacerda com toda a brutalidade. Números. «Quantos hectares de lavras foram destruídos?», perguntavam o tenente-coronel e o oficial de operações em Zemba, assim como o brigadeiro em Santa Eulália, que queriam provocar a fome à população civil e obrigá-la a entregar-se. Números. 

Era verdadeiramente chocante verificar até que ponto podia chegar a fria insensibilidade perante a morte e o sofrimento dos outros, mesmo dos mais inocentes, da parte destes oficiais oficiais de carreira.

Aliás, a palavra "carreira" era, sem qualquer sombra de dúvida, a palavra mais usada por eles nas suas conversas. A propósito de tudo e de nada, lá falavam eles na sua carreira militar. Nada lhes interessava a não ser a sua progressão na carreira. Em face deste seu desígnio supremo, todos os valores morais e humanos se apagavam
para eles. Mortos e feridos? Números.


(Continua)

[Fixação / revisão de texto para efeitos de edição no blogue: LG]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 26 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20096: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte IV: O respeito pelos homens que comandei (pp. 33-42)

domingo, 25 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20094: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte III: O respeito pelos homens que comandei (pp. 27-32)


Évora > Fachada do quartel do antigo Regimento de Infantaria 16, atual sede do Comando da Instrução e Doutrina do Exército


Campo Militar de Santa Margarida >  Tem cerca de quatro quilómetros de comprimento. O Batalhão de Caçadores 3880 esteve aquartelado muito aproximadamente a meio deste complexo militar



Angola > Ao centro, o capitão miliciano de infantaria João Manuel de Morais Lamas de Mendonça e Silva, que comandou a CCaç 3535 até à primeira quinzena de janeiro de 1973. Foi substituído pelo cap  mil inf José António Pouille Nobre Antunes. O cap mil inf Mendonça e Silva ingressou no QP e está hoje reformado como coronel de infantaria.


Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;

(v) vive no Porto;

(vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vii) tem página no Facebook.

(viii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974: esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(ix) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(x) o ficheiro, em formato, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.


Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)(*)


por Fernando de Sousa Ribeiro



O RESPEITO PELOS HOMENS QUE COMANDEI (pp. 27-32)


O texto que se segue não é a história da minha vida militar, embora pareça. Ele é, isso sim, a explicação para o imenso respeito que me merecem os homens que tive o privilégio único de comandar. Homens que, no princípio, pareciam ser uma cambada de básicos irrecuperáveis, que ninguém quis e que eram considerados a escória da companhia, mas que acabaram por se tornar nos mais valentes, sacrificados, esforçados e generosos combatentes do mundo: o 2º grupo de combate da Companhia de Caçadores 3535.

Os factos que aqui se relatam são absolutamente verdadeiros, sem qualquer ponta de fantasia. A mim mesmo, quando agora os recordo, eles me parecem incríveis, impossíveis de ter acontecido. Mas aconteceram assim mesmo, tal e qual. Juro por tudo quanto tenho de mais sagrado.

Aquilo que viria a resultar no Batalhão de Caçadores 3880 começou por ser um batalhão de instrução no Regimento de Infantaria 16, em Évora. Nessa altura, na minha qualidade de aspirante, fui encarregado de ministrar a especialidade de apontador de metralhadora, enquanto o aspirante Araújo (que viria a ser alferes na Companhia de Caçadores 3536) deu a de apontador de morteiro médio e os restantes aspirantes operacionais deram a especialidade de atirador de Infantaria.

O pessoal ao qual o Araújo e eu demos instrução tinha como destino as mais diversas companhias mobilizadas para o então Ultramar. Terminada a especialidade, portanto, os nossos instruendos foram para as unidades que superiormente lhes foram atribuídas e nós os dois, Araújo e eu, ficamos apenas com os nossos cabos milicianos e mais ninguém.

Deste modo, no início da constituição do nosso batalhão, eu não conhecia nenhum dos soldados e cabos que vieram a integrar a minha companhia. Os outros três aspirantes da companhia, pelo contrário, conheciam quase todos aqueles homens, porque lhes tinham dado a especialidade de atiradores. Já lhes conheciam os méritos e os deméritos, as qualidades e os defeitos, mas eu não conhecia.

No momento inicial de proceder à distribuição dos homens pelos quatro grupos de combate da companhia, o comandante desta, o então tenente miliciano Lamas da Silva, mandou que o pessoal fizesse uma formatura em linha e ordenou:

— Agora os senhores aspirantes façam o favor de escolher os homens que querem.

Eu tentei objetar, procurando dizer ao Lamas que não estava em condições de fazer uma tal escolha, porque não conhecia aqueles homens, contrariamente ao que sucedia com os outros aspirantes. O Lamas da Silva não me deixou falar, interrompendo-me continuamente e insistindo repetidamente comigo:

— Escolhe! Tens de escolher os homens que queres. Os outros aspirantes já estão a escolher. Tu também tens que escolher. Olha que assim ficas com os piores!…

Quanto mais eu procurava explicar-lhe que não estava nas mesmas condições que os outros aspirantes para poder escolher, mais ele me interrompia:

— Escolhe, já disse! Tens de escolher! Sou eu que te mando!

A dado momento, os outros aspirantes deram por finda a sua escolha, sem que eu tivesse escolhido quem quer que fosse e sem que o comandante da companhia me tivesse dado ouvidos. Disse-me este:

— Estás a ver o resultado? Os outros aspirantes já escolheram e tu acabaste por ficar com os piores. Quer gostes, quer não gostes, vai ser com esses que vais ficar. Foste tu que assim quiseste. E não esperes nenhum tratamento de favor da minha parte.

Já só me limitei a responder:

— Pode ter a certeza absoluta de que nunca lhe irei pedir favor nenhum.

Olhei para os soldados e cabos que me estavam destinados e senti-me desfalecer.

Pensei: «Sou um homem morto! É com este pessoal que eu vou para a guerra? Estou morto. Eu com homens neste estado não vou durar nem uma semana em Angola! Já me estou a imaginar a regressar dentro de um caixão…»

O aspeto dos meus novos subordinados metropolitanos era arrepiante. Não admirava que aqueles homens tivessem sido rejeitados pelos outros aspirantes. Alguns deles pareciam atrasados mentais; outros pareciam sifilíticos ou coisa parecida. Todos eles pareciam completamente impróprios para servirem como combatentes numa guerra. Nem um só se aproveitava. Os meus três excelentes cabos milicianos (Silva, Macedo e Santos) pareciam tão aterrados como eu.

«Isto só a mim! Que mal é que eu fiz para merecer isto?», pensava eu e pensavam, certamente, os cabos milicianos. «O que é que vai ser de nós, na guerra, com homens assim? Isto não pode ser verdade. Eu devo estar a sonhar e isto é um pesadelo». Mas não era pesadelo nenhum. Era a realidade, que eu tinha que enfrentar custasse o que custasse.

Completado o batalhão no que à sua parte europeia dizia respeito, fomos enviados para o Campo Militar de Santa Margarida, onde iríamos aguardar o dia da nossa partida para Angola, o que deveria acontecer dentro de perto de dois meses. Achei que, durante esse tempo, talvez ainda fosse possível fazer algum esforço para melhorar a preparação dos soldados e cabos que me tinham calhado em sorte, mas as coisas não se passaram tal como eu esperava.

Naquele tempo, os batalhões e companhias que estavam aquartelados em Santa Margarida, à espera de embarque para as colónias, eram habitualmente ocupados com uma intensa atividade de preparação para a guerrilha, que era a chamada IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). Mas o nosso batalhão estava incompleto e, por isso, não podia receber a IAO em Santa Margarida; só depois, já em Angola, é que poderia recebê-la. Assim, enquanto permaneceu em Santa Margarida, o nosso batalhão não teve qualquer atividade superiormente programada, nem qualquer orçamento atribuído para esse efeito. Apenas lhe foram reservados os alojamentos que ocupou até ao dia do embarque e mais nada.

Nestas condições, ao pessoal do batalhão foi sendo dada uma instruçãozinha de meia-tigela, que tinha como única finalidade mantê-lo ocupado com alguma atividade até ao dia do embarque. Fazia-se alguma ginástica, dava-se uma ou outra lição de tática, faziam-se muitas e longas pausas e gastavam-se muitas e longas horas a fazer ordem unida. Ordem unida, imagine-se! Pôr soldados que vão para uma guerra no mato africano a marchar para a frente e para trás, um-dois-esquerdo-direito, durante horas a fio, não lembrava ao diabo! Quem nos visse, diria que íamos para Angola fazer desfiles em parada diante do inimigo! Eu estava exasperado. O tempo urgia cada vez mais e nós estávamos a desperdiçá-lo com aquelas mariquices!

Resolvi então atuar por minha conta e risco, mandar o batalhão à fava e ser eu sozinho a dar aos meus subordinados a instrução de que eles necessitavam com tanta urgência. Se eu viesse a ser punido por não seguir o programa determinado pelo comando do batalhão, pouco me importava. Eu ia para a guerra, pior não me poderia acontecer.

Foi por acaso que descobri uma maneira de levar os meus homens para fora do Campo Militar, para a charneca vizinha, onde lhes poderia ensinar tática militar sem sofrer interferências dos meus superiores hierárquicos. Descobri também que poderia usar a carreira de tiro do Campo, onde o meu pessoal poderia gastar algumas das muitas munições excedentárias que, como vim também a descobrir, havia na arrecadação de material de guerra.

Afastados assim os possíveis obstáculos à minha decisão de ministrar uma espécie de IAO privativa aos meus subordinados, passei a pôr diariamente em prática um programa de atividades, que incluía muita preparação física, muito tiro e, sobretudo, muita tática de guerrilha. Devidamente apoiado pelos meus excelentes cabos milicianos, procurei ensinar-lhes tudo quanto eu próprio tinha aprendido em Mafra.

Aquelas semanas em Santa Margarida foram muito duras para mim. Muitas e muitas vezes me senti profundamente desanimado e com vontade de desistir, pois dificilmente eu conseguia vislumbrar algum progresso na preparação militar dos meus homens. Quando vim gozar os dias de licença que era costume dar, pouco tempo antes do embarque, aos militares que estavam mobilizados para a guerra, ao abrigo das chamadas Normas de Nomeação e de Apoio às Províncias Ultramarinas (NNAPU), sentia-me profundamente deprimido, quase à beira do desespero. Todo o esforço despendido naquela corrida contra o tempo me parecia ter sido inútil.

Mas quando regressei a Santa Margarida no fim da licença e voltei a encontrar os meus subordinados, eu nem queria acreditar no que os meus olhos viam. Foi só após aqueles dez dias de ausência que eu me apercebi, com grande espanto meu, que eles tinham mesmo evoluído, e até de forma verdadeiramente espetacular. Pareceram-me mais aprumados do que os outros, mais rijos do que os outros e mais confiantes do que os outros. Os "sifilíticos" e os "atrasados mentais" de outrora já não existiam mais. «Tenho homens!», pensei, espantado com tão grande transformação. «Como é possível que eu não me tenha apercebido deste milagre antes? Tenho homens!»

De entre os meus subordinados, o soldado Francisco António Danado 
Vaqueirinho [, foto à direita,]  foi o que maior transformação sofreu em Santa Margarida. Ao princípio, parecia um deficiente mental irrecuperável. Depois da licença ao abrigo das normas, nem sequer o reconheci. Tinha-se tornado vivo e esperto como poucos. Ainda hoje me pergunto como foi possível não me ter apercebido da sua evolução.


Um dia, ainda em Santa Margarida, os aspirantes das três companhias operacionais do batalhão, incluindo eu próprio, tomaram em conjunto uma resolução que iria pautar a sua conduta ao longo de toda a sua estadia em Angola. Foi uma resolução tomada espontaneamente e não de forma organizada, mas que valeu como um juramento, em que cada um de nós ficou como testemunha e como futuro juiz dos restantes. Uns perante os outros, tomamos então a seguinte resolução:

«Nós não sabemos o que nos espera na guerra. Não sabemos que perigos é que iremos enfrentar, nem que horrores é que iremos testemunhar. Não sabemos sequer se estaremos no lado certo ou no lado errado da guerra. Só em Angola é que viremos a saber. Mas independentemente de estarmos ou não no lado certo, independentemente de tudo o que nos vier a acontecer, iremos procurar agir sempre dentro dos limites morais que a nossa consciência nos impuser. Talvez esta seja uma tarefa impossível de cumprir no meio de uma guerra, não sabemos, mas pelo menos iremos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para agir de acordo com a nossa consciência, custe o que custar. CUSTE O QUE CUSTAR».

Quando embarquei no avião da Força Aérea com destino a Angola, juntamente com a parte europeia da minha companhia, eu sentia-me fortalecido com a resolução tomada, que estava disposto a cumprir. O mesmo se passava com os outros alferes.

(Continua, "O respeito pelos homens que comandei", pp. 33-42)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]
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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

1 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20050: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte I: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 5-16)

12 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20053: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte II: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 17-26)

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20053: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte II: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 17-26)


Encosta sudeste da serra de Montejunto, que subi desde o sopé até ao cume nas circunstâncias descritas no texto.


Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

 (iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;

(v) vive no Porto;

(vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vii) tem página no Facebook.

(viii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974. Esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes. Pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu).




Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)(*)

por Fernando de Sousa Ribeiro

(Continuação, pp. 17-26)


A semana de campo teve lugar na região envolvente da serra de Montejunto e incluía uma subida ao alto da serra no último dia. A cada dia da semana de campo, o alferes nomeava um soldado-cadete diferente para "comandar" o pelotão, isto é, para treinar o comando de um pelotão sob a supervisão dele. 

No primeiro dia, o alferes disse: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Fulano» (não era eu). No segundo dia: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Sicrano» (também
não era eu). No terceiro dia: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Beltrano» (continuava a não ser eu). E assim sucessivamente, até que chegou o sétimo e último dia e o alferes disse: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Ribeiro». Tinha chegado a minha vez. Esperei o pior.

Anunciava-se um dia extraordinariamente quente, como se veio a confrmar. «Até o S. Pedro está contra mim», pensei. Mas a manhã passou-se sem novidades de maior. Eu, pelo menos, não me lembro de ter acontecido algo de especial. À tarde, pelo contrário, o caso mudou completamente de fgura.

Depois de termos almoçado (ração de combate, é claro), dirigimo-nos para a encosta sudeste da serra de Montejunto, a fim de subi-la a corta-mato até ao cimo. Tínhamos que vencer um desnível de 600 metros na vertical, às duas horas da tarde, quando o calor era mais forte e o sol, bem alto no céu, era mais escaldante. Encharcados de suor, a ponto de termos as fardas molhadas e coladas ao corpo difcultando os movimentos, e bebendo sofregamente a água que levávamos nos cantis até ela se
esgotar, subimos penosamente a serra, passo a passo, quase fazendo alpinismo. 

A meio da subida, ouviu-se uma voz:
— Meu alferes, não aguento mais! Não sou capaz de subir mais. Estou completamente esgotado!

Era um soldado-cadete açoriano que pesava mais de 90 quilos que tinha falado, quase a desfalecer. Depois de ter incitado o soldado-cadete a continuar a subida, sem resultado, o Lourenço virou-se para mim e ordenou-me:
— Sr. Ribeiro, ajude o seu camarada! O sr. Ribeiro é que é o "comandante" do pelotão e um comandante não pode deixar nenhum homem para trás. Vamos! Do que é que está à espera?! Não podemos ficar aqui parados!

Tirei a arma e a mochila ao açoriano e, quando me preparava para entregá-las a outros soldados-cadetes para as levarem, o alferes interveio:
— Não, não! O sr. Ribeiro é que vai levar a arma e a mochila e vai ajudar o seu camarada a subir!

Fiz então um dos maiores esforços de toda a minha vida. Só em Angola, durante as operações em Zemba, é que fiz esforços equivalentes. Com duas armas ao ombro e duas mochilas às costas, reboquei literalmente o gordo açoriano pela encosta acima, debaixo do sol implacável daquele dia escaldante de verão. Eu, que não tinha sequer cinquenta quilos de peso, transportei pelo Montejunto acima um peso que era duplo do meu próprio. Eu via tudo vermelho e sentia tudo a andar à roda. O ar escaldante que eu inspirava às golfadas pela boca aberta parecia não ser suficiente para me encher os pulmões. O meu coração batia a um ritmo alucinante. A boca, completamente seca por já ter bebido a água toda que havia no cantil, sabia-me a papel de música. Pensei: «Se eu não morrer agora, nunca mais morro; sou eterno». 

E continuava a subir, mecanicamente, pondo um pé à frente do outro, sem ver nada, a não ser vermelho, e sem sentir nada, a não ser o peso do camarada açoriano e das mochilas e das armas que eu trazia. No preciso momento em que esgotei todas as minhas forças e me senti desfalecer, com os joelhos a dobrar-se, alguém me disse:
— Já chegamos ao cimo. Não precisas de puxar mais.

Foi então que reparei que já não sentia o peso do açoriano, que me tinha largado a mão. Parei. Voltei a ver. Recuperei a consciência de onde estava e do que fazia, isto é, recuperei totalmente os sentidos. Eu tinha acabado de atingir o limite mais extremo das minhas forças. Mas tinha conseguido! Estava no alto da serra, onde uma brisa fresca me reanimava. Se o Lourenço esperava vergar-me e obrigar-me a pedir-lhe perdão, enganou-se. Não cedi, não dobrei, não fraquejei. Mantive o meu orgulho
intacto.

Entreguei a arma e a mochila ao açoriano, que já podia deslocar-se pelos seus próprios meios, pois agora iríamos seguir por um caminho horizontal, e o Lourenço conduziu o pelotão para o interior de um pinhal, que havia um pouco mais para diante e para baixo. Mal chegámos ao pinhal, atirámo-nos logo todos para o chão, ompletamente esbaforidos. Gritou-me o alferes:
— O sr. Ribeiro não pode descansar! O sr. Ribeiro tem muito que fazer! O sr. Ribeiro vai encher os cantis dos seus camaradas numa fonte que há lá adiante, ao pé dos radares da Força Aérea. E vai a pé! Vai e vem as vezes que forem necessárias até que todos os seus camaradas tenham os cantis cheios.

A fonte fcava a cerca de 500 metros do local em que nos encontrávamos. Estava eu a recolher os primeiros cantis dos meus camaradas, para os levar à fonte, quando chegou a minha salvação, sob a forma de um major ao volante de um jipe.

Era o comandante do batalhão de instrução que chegava. Depois de ter trocado algumas palavras em voz baixa com o alferes, o major perguntou a este o que é que eu estava a fazer. O alferes disse-lhe que eu estava a recolher os cantis do pelotão para ir enchê-los à fonte.
— E vai a pé?! — perguntou o major.
— Claro — respondeu o alferes. — Vai as vezes que forem necessárias.
— Não vai nada a pé — retorquiu o major. — Vai comigo no jipe.

Virando-se para mim, disse o major:
— Nosso cadete, recolha os cantis todos e ponha-os aqui no jipe. Vamos à fonte num instante encher isso tudo.

Depois de eu ter colocado os cantis no jipe, o major mandou-me subir para a viatura e fui com ele encher os cantis na fonte. Finalmente pude descansar um bocadinho, sentado no jipe! E que bem me soube a água da fonte, tão fresca e tão saborosa!

Quando acabamos de encher os cantis, o major disse-me:
— Esta madrugada, o pessoal todo vai fazer um "golpe-de-mão", para concluir a semana de campo, e você é que vai comandá-lo.
— Eu?!!! — exclamei, espantado.
— Sim, você — confrmou o major. — O nosso alferes Lourenço propôs-me o seu nome e eu aceitei. Para mim, é completamente indiferente. Tanto me faz que seja você ou outro qualquer.

E acrescentou:
— Mas primeiro vamos levar os cantis. Depois tratamos do "golpe-de-mão".

Entregues os cantis aos seus donos, o major e eu fomos no jipe até ao local previsto para o "golpe-de-mão". À chegada, estavam à nossa espera os comandantes das duas companhias de instrução do 2.º ciclo do COM (a 2.ª e a 4.ª companhias), mais um ou dois oficiais que me eram desconhecidos e de cujos postos já não me lembro.

Diante de nós estava uma aldeia abandonada, situada num recôncavo da serra que era muito grosseiramente circular. Disse-me o major:
— Esta madrugada vamos fazer um "golpe-de-mão" a esta aldeia. Dentro dela vão estar alguns soldados da EPI [Escola Prática de Infantaria], que irão fazer de inimigo. Você vai ter à sua disposição oito pelotões, quatro de cada companhia, que irão desencadear o "golpe-de-mão". Você vai ter que reservar um pelotão para fazer o "assalto" ao objetivo, mais um pelotão que deverá fazer a "proteção" à retaguarda. Os outros seis pelotões farão o que você melhor entender. Você é que vai determinar que papel é que eles irão desempenhar. Fica ao seu critério.

Apontando para a aldeia e zona envolvente, o major acrescentou:
— O cenário em que tudo se vai desenrolar é este. Agora você vai decidir que dispositivo é que quer montar para a "operação".

Armado em Napoleão seguido pelos seus ajudantes de campo, avancei para o alto de um monte, dos vários que envolviam a aldeia, a fm de observar melhor o terreno. Como eu disse, a aldeia fcava num recôncavo vagamente circular, o qual estava rodeado por algumas cristas de montes pouco elevados. Os montes eram pouco elevados mas, mesmo assim, dominavam o recôncavo e cercavam-no. Entre dois desses montes havia uma espécie de vale, por onde passava a estrada que conduzia à aldeia.

Disse eu ao major:
— Eu proponho que se faça um cerco à aldeia.
— Porquê? — perguntou o major.
— Porque o terreno é favorável a um cerco e assim apanhamos o inimigo todo dentro do objetivo, sem lhe dar hipótese de escapar — respondi.
— Muito bem. — disse o major — Faz-se então um cerco.

E perguntou:
— Concretamente, onde é que vão ser colocadas as nossas forças e a partir de onde é que vai ser desencadeado o "assalto"?

Eu pensei em voz alta:
— O "assalto" deverá ser tão rápido quanto possível, para apanhar o inimigo de surpresa.

E decidi:
— Acho que vou lançá-lo a partir daquele vale, por onde passa a estrada. Ali, praticamente não há obstáculos à progressão das nossas tropas, que assim poderão entrar no objetivo e "apoderar-se" dele rapidamente, sem dar tempo ao "inimigo" para reagir.
— Muito bem, sim senhor! É isso mesmo. — comentou o major com evidente satisfação. — Então é ali que o grupo de "assalto" vai fcar. E quem é que vai desencadear o "assalto"?

Respondi:
— Proponho que seja o pelotão do CCC.

O pelotão do CCC  (Curso de Comandantes de Companhia) era o pelotão dos futuros capitães milicianos, onde estava o Antunes [, futuro cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes, o último comandante da CCAÇ 3535].
— Há alguma razão especial para ser esse pelotão a fazer o "assalto" e não outro? — perguntou-me o major.

 Respondi:
— Há, sim, senhor. Como eles vão ser comandantes de companhia, e nessa qualidade vão ter responsabilidades acrescidas no futuro, precisam de ter uma preparação mais cuidada e, portanto, deverão desempenhar o papel mais importante nesta "operação".
— Muito bem, sim, senhor! É isso mesmo! — exclamou o major. — E quem é que vai
fazer a "proteção" à retaguarda?
— A "proteção" à retaguarda poderá ser feita pelo pelotão menos operacional, pois em princípio não deverá intervir no "golpe-de-mão". Proponho que seja o quarto pelotão da 4.ª Companhia.

O quarto pelotão da 4.ª Companhia era composto por soldados-cadetes que estavam destinados a ter diversas especialidades não operacionais ou pouco operacionais.
— Sim, senhor. Muito bem. E onde é que os vai colocar?

Aqui eu hesitei. Pensei em espalhar o pelotão pelas cristas dos montes, mas virado para fora. Reparei no entanto que não fazia muito sentido fazê-lo pois, se eventuais "reforços" "inimigos" vindos do exterior "atacassem" algum dos montes pela retaguarda, estariam em desvantagem logo à partida, pois estariam a "atacar" de baixo para cima. Certamente não fariam tal. O que fariam com certeza, seria "atacar" pelo ponto mais vulnerável, que era o vale por onde passava a estrada de acesso à aldeia e onde eu tinha colocado o pelotão de "assalto".

Disse isto mesmo ao major, acrescentando que colocaria o pelotão de "proteção" virado para fora e protegendo as costas do pelotão de "assalto". Assim este poderia concentrar-se na sua tarefa sem se preocupar com o que lhe viesse por trás.
— Exatamente! — exclamou o major com entusiasmo. — É isso mesmo! Muito bem! Sim, senhor!

A seguir, o major mandou-me indicar-lhe o que eu faria com os restantes pelotões. Respondi que faria com eles um cerco ao "objetivo", colocando «um pelotão neste monte, outro naquele, outro naquele monte acolá», etc.
— Há alguma razão específica para você colocar os pelotões nessas posições e não noutras? — perguntou-me o major.

Respondi:
— Eu tenho que ter o cuidado de evitar que fquem dois pelotões frente a frente, em posições diametralmente opostas relativamente ao "objetivo", para que não se alvejem mutuamente. Tenho que os distribuir de forma desencontrada. Cada pelotão não pode ter outro do lado de lá. Por isso os coloco nestas posições.

O major, ainda mais entusiasmado, repetiu:
— Muito bem! É isso mesmo! É preciso minimizar as baixas causadas pelo fogo "amigo"! Muito bem! Agora diga-me que pelotões é que vai colocar nessas posições.

Respondi-lhe que podia colocar «o pelotão de minas e armadilhas aqui, o das transmissões ali, o primeiro pelotão da 2.ª Companhia acolá, o segundo pelotão mais para o outro lado», etc.
— Está bem. Fica então assim — concordou o major. — Está definido o dispositivo para o "golpe de mão". Agora vou mandar chamar os cadetes que vão "comandar" cada um dos pelotões, para você lhes dar as instruções correspondentes aos lugares e tarefas que irão desempenhar. Eles precisam de saber onde é que vão estar e o que é que vão fazer.

Ao fim de algum tempo, os "comandantes" dos vários pelotões juntaram-se-nos e eu indiquei a cada um deles a posição que iria ocupar e o papel que teria que desempenhar no "golpe de mão". Quando acabei de dar as instruções, o major disse-nos:
— Agora vamos tratar das transmissões.

Mandou que nos entregassem rádios AVP-1, a cada um dos "comandantes" de pelotão e a mim próprio, e no fim disse-me:
— Agora você vai escolher os canais de rádio que vai utilizar. Vai escolher um canal principal e um de reserva. Pode escolher como quiser. Cada canal é tão bom como qualquer outro; isso é completamente indiferente. A seguir, vai escolher os nomes de código que vai corresponder a cada pelotão, para quando os chamar pelo rádio. Isso fica também ao seu critério. Quaisquer nomes são bons.

Eu lá indiquei uns canais escolhidos à sorte e também os nomes, do género Águia 1, Águia 2, Águia 3, etc.
— Pronto — concluiu o major. — Já está tudo decidido. Mas antes de se irem embora, quero dizer-lhes que o "golpe de mão" vai ter lugar às cinco horas da madrugada em ponto. À meia-noite, quero que comecem a ocupar já os seus lugares. Aqui o nosso cadete [eu próprio] vai estar aqui à espera, para orientar os pelotões no que for preciso. De hora a hora, o nosso cadete [outra vez eu] vai entrar em contacto com cada um dos pelotões pelo rádio, para saber se está tudo bem e pronto a entrar em
ação. Às cinco horas em ponto, ele dará a ordem de fogo e o "golpe de mão" será executado.

Procedeu-se tudo como o major determinou. Estava uma noite fantástica. Depois de um dia escaldante, a noite estava morna, mesmo apetecível para se estar ao ar livre. Uma maravilha. Nem quero imaginar como seria estar parado durante umas horas no meio daquela serra, numa noite fria de inverno e com chuva ainda por cima…

Às cinco horas em ponto, assim que dei a ordem de fogo pelo rádio, desencadeou-se um estrondo tão grande, com perto de duas centenas de G3 a disparar todas ao mesmo tempo no meio do silêncio da noite, que apanhei um valentíssimo susto. Mesmo estando à espera dos disparos, não imaginava que o barulho pudesse ser tão grande. Devemos ter acordado toda a gente num raio de 100 km ou mais… Parecia que a serra vinha abaixo.

Terminado todo aquele estardalhaço, o major veio ter comigo dar-me os parabéns, porque, disse ele, «a operação foi um êxito completo. Apanhamos o inimigo todo dentro do objetivo e capturamos x espingardas, y metralhadoras e z morteiros». E disse isto com tanta convicção, que quem o ouvisse julgaria que tinha sido a sério! Os oficiais de carreira muito gostam de manobras militares! Eles pelam-se por estas coboiadas.

E assim acabou o 2.º ciclo do Curso de Ofciais Milicianos atiradores de Infantaria da minha incorporação. Regressamos a Mafra para dormirmos e a seguir fomos para nossas casas, não sem antes nos terem dito que no dia tal deveríamos estar de volta, para sabermos as nossas notas finais, qual o teatro de guerra para onde iríamos ser mobilizados, qual a unidade em que seríamos colocados e para nos serem impostas as novas divisas de aspirantes.

Quando regressei a Mafra no dia marcado e olhei para a pauta onde as notas estavam afixadas, nem queria acreditar na nota que me tinha sido atribuída: treze valores vírgula zero zero. Era a nota máxima! A nota 13 era o limite que separava os simples oficiais atiradores, como eu, dos oficiais de Operações Especiais.

Os oficiais de Operações Especiais não podiam ter menos de 13 valores; os oficiais atiradores, em princípio, não podiam ter mais de 13, a menos que fossem verdadeiramente extraordinários, caso em que rebentariam a escala. Na minha incorporação houve mais dois ou três atiradores que tiraram 13 valores como eu e houve um que rebentou a escala, tendo recebido à volta de 15. Chamava-se Poças, era uma jóia de moço e como "prémio" foi mobilizado para a Guiné em rendição individual.

E foi assim que um (futuro) alferes comandou o seu próprio (futuro) comandante de companhia, mais uma data de outros (futuros) capitães!

[Foto à esquerda: 

Capitão miliciano José António Pouille Nobre Antunes, que comandei no fim da semana de campo do 2.º ciclo do COM, quando ambos éramos soldados-cadetes. Posteriormente, já com o posto de capitão miliciano, foi ele que me comandou, assim como toda a CCaç 3535, a partir da segunda quinzena de abril de 1973]


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Nota do editor:

domingo, 11 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20050: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro. CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte I: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 5-16)





(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74); (ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780];  (iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto; (iv) está reformado; (v) vive no Porto; (vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou; (vii) tem página no Facebook.

A CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974. Esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes. 

Pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu).

Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de 14 de julho dr 2019, do nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro

Caro Luís Graça,

1) Junto te envio o meu "livro" de memórias completo sobre a minha guerra. Como podes ver, não fui nenhum herói. Se alguma coisa poderei dizer em minha defesa, é que dei o máximo de mim mesmo pelos meus homens. Dei mesmo. Se não dei mais, foi porque não pude. Se leres o que está escrito, poderás dizer que tive uma tropa um bocado fora do comum. Vivi situações muito estranhas, sobretudo em Mafra, Santa Margarida e nos primeiros seis meses de comissão, em parte por culpa minha, em parte por culpa de quem me comandou, mas nunca por culpa de quem eu comandei. Em relação a estes, só posso fazer os maiores elogios. Estou a ser absolutamente sincero.

2) Quando acabei a minha comissão e antes de regressar a Portugal, destruí quase tudo o que me pudesse recordar os dois anos e três meses que passei em Angola. Rasguei fotografias, queimei documentos, deitei tudo para o lixo, porque queria começar uma vida nova quando regressasse, sem os fantasmas da guerra. Como se tal fosse possível, vê lá tu! É claro que agora estou arrependidíssimo. Só escaparam à minha fúria destruidora três ou quatro fotografias e duas cassetes com gravações que fiz. Uma das cassetes está completamente estragada e irrecuperável, mas da outra consegui recuperar três canções e espero recuperar mais uma ou duas. A fita da cassete parte-se quase sempre que a ponho a tocar e, por isso, tenho que ter o máximo cuidado para poder digitalizar o que falta dela. Há alguns anos, digitalizei duas canções e há alguns meses tentei digitalizar uma terceira, mas com resultados desastrosos, porque a fita voltou a partir-se. A pedido de um camarada, abri uma conta no Youtube e publiquei as canções lá, ilustradas com algumas imagens roubadas à página do meu batalhão no Facebook.

3) Uma palavra devo dizer-te em relação ao intérprete da primeira canção [ver aqui no You Tube].  Chamava-se Gabriel António e era filho de um casal de trabalhadores de uma fazenda de café, naturais da região do Bailundo, no centro de Angola. Quando começou a guerra em 1961 e o Gabriel ainda era pequeno, a UPA assassinou o pai e a mãe dele, à semelhança do que fez à maioria dos trabalhadores bailundos das fazendas no norte de Angola, numa clara manifestação de ódio tribal. O Gabriel cresceu na mata, no seio de uma família adotiva, e quando atingiu a idade adulta apresentou-se às NT, em Zemba. Dois ou três meses depois da sua apresentação, ofereceu-se para nos servir de guia nas operações, porque queria ajudar-nos a combater o movimento que lhe matou o pai e a mãe. Foi um guia extraordinariamente leal e dedicado e deixou imensas saudades em quem o conheceu. Não era um indivíduo rancoroso nem amargo. Bem pelo contrário, o Gabriel António era afável e caloroso como poucos. 

Quando se deu a descolonização, o Gabriel foi para Luanda, juntamente com o último batalhão que esteve em Zemba, o BCaç. 5017/74 . Constou aos militares deste batalhão que o Gabriel foi morto em Luanda. Ninguém o viu morto, é verdade que não, mas também nunca mais ninguém o viu vivo. A situação em Luanda era caótica em 1975, ano em que os três movimentos independentistas lutavam entre si pelo domínio da cidade. O Gabriel poderá ter sido apanhado no meio de uma qualquer troca de tiros. Nesse tempo, bastava sair à rua em Luanda ou em qualquer outra cidade de Angola para se correr o risco de levar um tiro. O Gabriel António é a pessoa que se vê logo no princípio do meu "vídeo". Fardado e armado com uma G3, para se parecer com os nossos soldados, o Gabriel traz também, na fotografia, uma arma a tiracolo que foi capturada ao IN.

4) Depois de ter gravado uma canção com o Gabriel António a solo, apareceu um outro habitante local, chamado Gonçalo, que se prontificou a gravar uma outra canção juntamente com o Gabriel. Arranjou-se uma segunda viola, para o Gonçalo tocar, e a gravação fez-se. Esta outra canção está em disponível aqui, também no You Tube.

5) Há poucos meses, tentei passar para o computador uma outra canção pelo Gabriel e o Gonçalo que está na mesma cassete, mas tão desastradamente o fiz que a fita partiu-se e enrolou-se toda no mecanismo do gravador. Esta parte da fita ficou irremediavelmente estragada. Mesmo assim, coloquei a canção no Youtube, assim mesmo estragada e tudo, no endereço. Se eu quiser digitalizar o resto da cassete, vou ter que tomar as maiores precauções, para que a fita não se volte a partir. Não sei quando é que poderei fazê-lo, mas acredito que vou conseguir.

6) Eu ando nisto da internet desde há cerca de vinte e cinco anos, quando intervinha frequentemente nos "newsgroups", que eram as redes sociais dos anos 90. Depois disso, passei a publicar um blog pessoal, que continuo a atualizar com bastante regularidade, mas no qual a guerra só muito esporadicamente é abordada. Quem for à procura de guerra, perde o seu tempo, porque muito pouco encontrará.

Um grande abraço
Fernando de Sousa Ribeiro,
ex-alferes miliciano da CCaç 3535 / BCaç 3880, 
Angola, 1972-74


Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)
 por Fernando de Sousa Ribeiro

INTRODUÇÃO

Este é um conjunto de textos escritos por Fernando de Sousa Ribeiro, antigo alferes miliciano da Companhia de Caçadores 3535, do Batalhão de Caçadores 3880. O autor esteve no norte de Angola entre 1972 e 1974, concretamente em Zemba, na região dos Dembos, a noroeste de Luanda, e em Ponte do Zádi, Banza Sosso e Malele, na região de Maquela do Zombo, junto à fronteira norte de Angola.

Quase todos estes textos foram originalmente publicados pelo autor na página do seu batalhão no Facebook, tendo sofrido posteriormente algumas alterações com vista a torná-los mais compreensíveis a pessoas estranhas ao batalhão.

Os factos relatados nos textos aqui reunidos são rigorosamente verdadeiros, tanto quanto a memória do seu autor lhe permitiu. Nada do que aqui está foi inventado. Ficaram por escrever alguns episódios, porque:
— são demasiado pessoais;
— são de interesse (ainda mais) reduzido;
— são de tal modo fragmentários, que com eles o autor não consegue elaborar uma narrativa que tenha princípio, meio e fim;
— o autor não consegue escrever sobre eles, por mais que o deseje, por causa da rofunda marca que lhe deixaram no espírito; foi o caso da queda de um avião em Zemba, em que morreram três pessoas, que tiveram uma agonia lenta e atroz nos seus corpos destroçados, perante a mais desesperada impotência do autor.

Uma homenagem especial deve o autor prestar ao primeiro-cabo Domingos Amado Neto, que foi um moço extraordinário. Até na cor da pele Neto era extraordinário, pois contava-se entre os negros mais negros de todos os negros que existem. Neto devia ter a maior concentração de melanina na pele que é possível haver. Quando Neto chegava, parecia que ficava de noite. Ele era tão negro que dava a ideia de que absorvia toda a luz que o rodeava. Mas a cor da pele de Neto era um pormenor sem importância, uma simples curiosidade, pois ele era dotado de uma inteligência, de um sentido de justiça, de um bom-senso e de um espírito crítico que foram verdadeiramente preciosos para o autor.

Ao contrário de todos os outros subordinados, tanto portugueses como angolanos, que sempre colocaram as suas vidas nas mãos do autor, obedecendo-lhe cegamente, Neto nunca confiou inteiramente em quem o comandava. Desde o primeiro até ao último dia, manteve sempre uma atitude crítica em relação às decisões tomadas pelo autor, mesmo que só se manifestasse através do olhar. Fê-lo, não de um ponto de vista militar, mas sim de um ponto de vista ético e humano, desempenhando um papel de consciência moral do autor destas linhas. O autor ficou com uma dívida por pagar a Domingos Amado Neto.

ÍNDICE

O meu Curso de Oficiais Milicianos_____5
O respeito pelos homens que comandei____27
O que nos fizeram foi criminoso____43
Crimes de guerra____51
À noite, em Zemba____63
Máquinas de costura____65
Discriminação racial____67
Natal de 1972____73
O guerrilheiro Didi____79
A vida nas matas____83
A operação que me fez tremer____93
Abandonados___107
Os trabalhadores ditos bailundos___119
Uma lição___125
Uma emboscada cobarde___133
Batuque___135
A bebedeira do sargento Madeira___137
A revolta do capitão Jardim___141
Ida à Psiquiatria___147
O Afonso___151
O destacamento de Malele e os refugiados angolanos___153
A seca___159
Despedida___161


O MEU CURSO DE OFICIAIS MILICIANOS 
(pp. 5-16)


Convento de Mafra, que era na sua quase totalidade ocupado pela Escola Prática de Infantaria, atual Escola das Armas. Naquele tempo, só não estava sob tutela militar a frente do convento, com exceção do torreão mais à esquerda, em cujo 3.º piso se encontrava a minha caserna do 2.º ciclo do Curso de Oficiais Milicianos. Entre o referido torreão e a Basílica, que está ao centro, ficava (e fica) o Palácio Nacional de Mafra. Entre a Basílica e o torreão da direita ficava, no rés-do-chão e no primeiro andar, a Câmara Municipal de Mafra, enquanto o segundo andar também pertencia ao Palácio Nacional. No torreão da direita estava instalado o Tribunal da comarca. O convento é tão grande que cabia lá tudo: quartel militar, museu, Câmara, Tribunal e, se fosse preciso, também se arranjaria espaço para os Bombeiros… Atualmente, o Tribunal e a Câmara Municipal ocupam edifícios próprios na vila de Mafra. De toda esta gigantesca edificação, só merecem ser visitadas a Basílica e a fabulosa Biblioteca do convento, à qual se acede pelo Palácio Nacional. O resto não passa de uma monstruosidade que não tem ponta por onde se lhe pegue.

Nas traseiras do edifício fcava a parada principal da Escola Prática de Infantaria. Mais para trás estende-se a tapada de Mafra. 


A minha companhia, CCaç 3535, teve dois capitães. O segundo capitão foi José António Pouille Nobre Antunes que, por coincidência, tinha feito parte do mesmo pelotão de instrução que eu, no 1.º ciclo do Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra,juntamente com o ex alferes Peixoto. Mal sabíamos nós que, mais tarde, os três nos iríamos encontrar na mesma companhia de caçadores em Angola, o Antunes como capitão e o Peixoto e eu como alferes. Estivemos, portanto, os três no mesmo pelotão de instrução, sob o comando de um alferes do quadro permanente chamado Carvalhão. Este alferes, que era de uma enorme ingenuidade, sofreu uma grande evolução e veio mais tarde a ser um ativo "capitão" de Abril (embora ainda só fosse tenente à data da Revolução dos Cravos), estando agora reformado no posto de tenente-coronel. 


Tenente-coronel Carlos Manuel Gonçalves Abreu Carvalhão

Durante o meu serviço militar, houve um tempo em que o Antunes me comandou (a mim e à CCaç 3535 toda), em Angola. Houve um tempo, também, em que o Antunes e eu (e o Peixoto) estivemos em pé de igualdade, na qualidade de soldados-cadetes em Mafra. E houve um tempo em que fui eu que comandei o Antunes.

É verdade, comandei o Antunes! Isto aconteceu na última noite da semana de campo do 2.º ciclo do COM, a qual decorreu na serra de Montejunto. Para ser mais rigoroso, eu não só comandei o Antunes, como comandei mais quase 30 futuros capitães e cerca de 150 futuros alferes, todos ao mesmo tempo!

Aposto em como eles não souberam nunca que eu alguma vez os comandei. Devem ter pensado que as decisões tomadas e as ordens dadas naquela noite no Montejunto tinham provindo dos instrutores, mas não, elas provieram de mim.

Como foi isto possível? Aviso desde já que esta história é muito comprida e muito chata. O meu 1.º ciclo do COM foi traumático, sobretudo para os soldados-cadetes da 6.ª companhia de instrução, a que pertencemos o Peixoto, o Antunes e eu. Foi uma companhia que, só na instrução, sofreu, em três meses, três mortos e dois feridos, um dos quais ficou cego de uma vista. Os mortos foram vítimas de afogamento numa lagoa que havia na tapada de Mafra.

No momento em que eles se afogaram, eu mesmo estava metido numa outra lagoa até ao pescoço, mas mesmo até ao pescoço, com a água a tocar-me na base do queixo. Tinham-nos ordenado que entrássemos na lagoa em fila indiana e eu era o segundo da fila, atrás de um soldado-cadete que era mais alto do que eu. Eu estava fardado, de botas de cabedal e com uma G3 nas mãos, que transportava com os braços levantados para não a molhar. O peso da espingarda, acima da cabeça, agravava ainda mais o meu precário equilíbrio. Avançávamos cautelosamente pelo fundo escorregadio e irregular da lagoa, mas sempre que abrandávamos a marcha éramos logo alvo de berros por parte do instrutor, que exigia que avançássemos sempre mais e mais. Assim, mesmo quando os da frente da fila abrandavam, os de trás continuavam a avançar e empurravam os que estavam à frente. Eu mesmo me sentia empurrado pelo soldado-cadete que estava atrás de mim.

À medida que avançávamos, o movimento dos nossos pés no fundo da lagoa ia levantando lodo, o qual ia tornando a água cada vez mais turva. Toda a água ficou turva de lodo. Se eu caísse, nunca mais me conseguiria levantar e dificilmente me encontrariam a tempo de me salvar, porque não se via um palmo abaixo da superfície da água.

O afogamento dos três camaradas provocou uma onda de revolta de todos os soldados-cadetes que estavam então em Mafra, os quais fizeram um levantamento de rancho, tal como foi noticiado pelo clandestino jornal Avante!


Recorte do jornal Avante!,  Ano 41, Série VI, n.º 431, de julho de 1971, pag. 4, em que é referida a morte de 4 cadetes. Na verdade morreram 3. Quanto ao resto, a notícia aqui relatada é verdadeira, independentemente do tom revolucionário em que está escrita. Nenhum outro jornal noticiou este facto, porque a censura não permitiu.


O modo como decorreu o levantamento de rancho está muito bem descrito no livro "Capitães do Fim… do Quarto Império", de António Inácio Nogueira. Passo a reproduzir a seguinte passagem, que está na pág. 323, de um depoimento de Vasco Augusto Rodrigues da Gama, que veio a ser capitão miliciano e comandante da Companhia de Cavalaria 8351/72, na Guiné, e que também viveu o acontecimento. [É membro da nossa Tabanca Grande.]

" (…) Nós, simples soldados-cadetes, homens arrancados aos estudos, outros com os cursos já feitos, que de um momento para o outro passaram a ser números de uma máquina sem coração, não fomos soldados-cadetes, fomos Homens.

Com o refeitório cheio de algumas centenas de nós preparados para o almoço, na posição de sentido obrigatório como era da praxe, recebemos a ordem, talvez do oficial de dia:

SENTAR!

Como fez barulho o silêncio que se seguiu!

Ninguém, ninguém se mexeu! Impávidos, serenos, comovidos, com os olhos brilhantes, ninguém, ninguém obedeceu! Músculos retesados, firmes no nosso querer e na nossa razão, pêlos eriçados, ninguém, ninguém, nem os 'engraxadores' hesitaram.

Foi chamado o comandante maior:

SENTAR!

Trovejou uma voz ainda mais potente, como se a estridência do grito fosse directamente proporcional ao número de riscos amarelos que o ombro suportava.

Ninguém, ninguém cumpriu a ordem.

DESTROÇAR!

E lá foram os soldados-cadetes, olhando-se com respeito, olhos nos olhos. Não me apercebi de medo em nenhum rosto.

O meu íntimo regozijava. Fomos para a sala número dez, todos, sem excepção, para uma reunião espontânea que foi interrompida quando recebemos ordem para irmos de fim-de-semana.

Seria quarta ou quinta-feira, não me recordo, sei apenas que o rigor, muitas vezes despropositado, da revista às armas, foi substituído pelo deixa andar.

Era preciso mandar estes gajos para fim-de-semana em passo de corrida. Como foi isto possível?

Afinal… era possível."


Capa do livro "Capitães do Fim… do Quarto Império", de António Inácio Correia Nogueira, onde se encontra o relato, feito por Vasco Augusto Rodrigues da Gama, do levantamento de rancho ocorrido em Mafra


A reação do comandante da Escola Prática de Infantaria, coronel Hilário Marques da Gama [, 1921-2012], foi miserável. O homem entrou em pânico quando verificou que não era obedecido, gaguejou umas palavras em que disse que não tinha culpa de nada e fugiu apavorado. O comandante da minha companhia, que era o então tenente Aguda — o qual participou no 25 de Abril como capitão, é agora major-general (o mesmo que brigadeiro), é vice-presidente da Liga dos Combatentes — assumiu perante nós, de olhos nos olhos, a responsabilidade pelo sucedido.

Esta atitude do Aguda caiu muito bem na nossa consideração. «Finalmente aparece alguém que não tem medo de assumir s suas responsabilidades», pensei. Porém, apesar da admiração que o Aguda passou a merecer da nossa parte, ele manteve os métodos de instrução completamente inalteráveis, tal e qual, como se não tivesse acontecido absolutamente nada. Como resultado, um novo incidente grave veio ensombrar a companhia.




Com efeito, algum tempo mais tarde, a minha companhia de instrução sofreu mais dois feridos, atingidos por estilhaços na cara que provocaram a cegueira num olho a um deles. Um alferes instrutor mandou os seus homens rastejar, enquanto ele fazia disparos de G3 com bala real, fazendo-lhes tangentes. Uma bala bateu numa pedra e estilhaçou-a. Os estilhaços atingiram dois soldados-cadetes na cara. Como desta vez não houve mortos, aconteceu numa sexta-feira (quando a malta já estava a pensar no fm de semana) e nos foi dito que os ferimentos não tinham gravidade, o caso acabou por passar despercebido à generalidade do pessoal. Só mais tarde, já depois do fm do 1.º ciclo do COM, é que se soube que um dos feridos tinha ficado cego de um olho.

Ainda antes da conclusão do 1.º ciclo, fui convocado para ser submetido a um exame médico e para prestar provas físicas e outras, com vista a uma possível admissão minha no curso de Operações Especiais, a decorrer em Lamego no 2.º ciclo. Fiquei logo a saber, portanto, que a participação ativa na guerra colonial iria ser o meu destino, qualquer que fosse a especialidade que me viesse a ser atribuída. Só faltava saber para que teatro de guerra é que eu iria ser encaminhado: Angola, Moçambique ou Guiné. Para começar, fui ao exame médico.
— O que é que você está aqui a fazer? — perguntou-me o médico, assim que me viu entrar no consultório. — Não me diga que estes gajos querem que você vá para os Comandos! Com esse físico?! Está tudo doido! Vá-se embora, vá-se embora!

Assim que virei as costas para me retirar, o médico chamou-me:
— Espere aí! Vamos só ver quanto é que você pesa. Ora suba para aquela balança 

Subi.
— Eu logo vi! — exclamou o médico. — Você só pesa 48 quilos! E estes gajos querem que você vá para os Comandos?! Está tudo doido! Estes gajos não sabem o que é que andam a fazer! Vá-se embora, vá-se embora.

Desta vez fui-me mesmo embora, enquanto o médico comentava com os seus botões:
— Com 48 quilos nos Comandos! Estes gajos não sabem o que é que andam a fazer! Está tudo doido!

E não fui para Operações Especiais. Para o médico, que devia ser miliciano, Comandos ou Operações Especiais era tudo a mesma coisa.

O nosso juramento de bandeira foi muito tenso. Como tínhamos feito um levantamento de rancho, éramos tidos como subversivos. Para evitar que nos revoltássemos ou tomássemos alguma outra atitude que saísse fora do estipulado numa tal cerimónia, a nossa formatura esteve enquadrada por soldados da própria guarnição da Escola Prática de Infantaria, armados de G3 e municiados com balas reais. Alguma atitude da nossa parte que fosse considerada como uma revolta seria imediatamente reprimida a tiro. Mas não aconteceu nada, a não ser o silêncio que imperou durante o pronunciamento da fórmula de juramento, o que em Mafra não era inédito. Já tinha acontecido antes e voltou a acontecer depois. Assim, dos cerca de 500 soldados-cadetes que estavam presentes para prestar juramento, só meia-dúzia é que disse «Juro» e o resto da fórmula que desconheço. A esmagadora maioria, eu incluído, manteve-se totalmente silenciosa.

Terminado o 1.º ciclo do COM., fiquei a saber, sem surpresa, que iria ser atirador de Infantaria e que, por isso, continuaria em Mafra, para frequentar o 2.º ciclo. Queria isto dizer que eu permaneceria mais três meses naquele tenebroso convento e continuaria a receber instrução naquela sinistra tapada. Continuaria no local do crime, portanto. Ainda por cima, o meu instrutor era outra vez um alferes do quadro permanente. Chamava-se Lourenço, já tinha o tirocínio feito e estava à espera de ser promovido a tenente a qualquer momento.

Posteriormente, já com o posto de capitão, o Lourenço veio a ser comandante da 112.ª Companhia de Comandos, que foi a principal protagonista da última operação efetuada pelas Forças Armadas Portuguesas em Angola: o assalto ao Comando Militar das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola, o braço armado do MPLA), no bairro da Vila Alice, em Luanda, no dia 27 de julho de 1975, de que resultaram 15 mortos e 22 feridos, entre os militares das FAPLA, e 5 feridos, entre os militares portugueses. O Lourenço terminou a sua carreira por volta de 2005 com a patente de major-general, quando desempenhava as funções de comandante da Brigada de Trânsito da GNR.  

Quando iniciei o 2.º ciclo do COM, o meu estado de espírito não podia ser pior. Eu encontrava-me profundamente desmoralizado, em consequência dos acontecimentos ocorridos no 1.º ciclo. Ainda por cima, estava outra vez entregue a um alferes do quadro permanente, isto é, estava entregue a alguém por quem eu não sentia qualquer espécie de respeito, depois de ter assistido, no 1.º ciclo, aos vergonhosos comportamentos de cobardia e de desprezo pela vida humana da parte de militares de carreira como ele. Para mim, naquele momento, todos os oficiais do quadro permanente eram desprezíveis cobardes ou cruéis psicopatas, que não mereciam que eu me esforçasse, e muito menos que me deixasse matar, só para lhes satisfazer a vontade.

A instrução que tive no 2.º ciclo do COM foi muito mais branda do que a estúpida instrução recebida no 1.º ciclo. Mas dado o estado de espírito com que eu estava, quase não fz nada durante o 2.º ciclo. Profundamente desmotivado, eu não me esforçava durante a instrução, não estudava para os testes, baldava-me nos exercícios físicos e por aí adiante.

Nos testes, por exemplo, eu tirava negativas atrás de negativas. Pura e simplesmente eu não estudava, nem sequer me sentia em condições mentais de estudar. Havia matérias, de resto, pelas quais eu não tinha o menor interesse. Leis, normas E regulamentos, por exemplo, com a linguagem árida e burocrática que lhes era própria, eram matérias deste tipo, que me davam vontade de vomitar. Outras matérias eram tão fáceis e tão primárias, que eu pensava: «Estes gajos só podem estar a gozar connosco. Julgarão eles que nós somos burros?» Outras matérias, ainda, estavam ultrapassadíssimas; estudá-las era a mais completa perda de tempo.

Por exemplo, tínhamos que estudar o rádio de campanha AN/GRC-9, um antepassado do rádio AN/PRC-10, que por si só já era uma peça de museu. Ambos ainda funcionavam a válvulas. Na guerra colonial já estava generalizado o uso do TR-28, que era um rádio de campanha transistorizado. Enfim, que nós estudássemos o AN/PRC-10, ainda se poderia compreender, agora o outro…


Um dos manuais utilizados no Curso de Oficiais Milicianos em Mafra. A maior parte destes manuais parecia ter sido escrita para semianalfabetos e não para universitários, que os soldados-cadetes de facto eram.

Decididamente, eu não tinha motivação nenhuma para estudar e as matérias não me interessavam absolutamente para nada. Em resultado, eu ia colecionando notas negativas, o que me levava a passar os fins de semana em Mafra, de castigo. Isto não me incomodou muito porque, como era verão, eu ia até à praia da Ericeira espairecer e esquecia aquela merda toda.

O meu instrutor, o tal alferes Lourenço, começou a multiplicar os avisos dirigidos à minha pessoa, à medida que o tempo ia passando, dizendo-me: «O sr. Ribeiro não estuda nada. O sr. Ribeiro anda a brincar com isto e ainda vai acabar mal. Ou passa a estudar e tira positivas nos testes, ou eu vou ser obrigado a chumbá-lo e o sr. Ribeiro vai para sargento. Ai vai, vai! Ou eu não me chame Lourenço!» E eu continuava sem estudar.

Foi só quase no fim da instrução que eu me dei verdadeiramente conta da situação em que me encontrava. Nos testes, eu quase só tinha negativas e agora era tarde demais para corrigir a situação. A avaliação da minha pessoa por parte do instrutor, no que respeitava a motivação e força de vontade, devia ser negativíssima também.

A única disciplina em que eu tinha uma boa nota, e que era mesmo muito boa, era o tiro. Apesar da minha falta de visão estereoscópica, por causa de um estrabismo de origem traumática adquirido na primeira infância, eu conseguia acertar quase sempre no centro dos alvos. Não me lembro da nota final que tive no tiro; só sei que ela foi muito alta e correspondeu à classificação de "atirador especial".

Em face deste balanço predominantemente negativo, só me restava a possibilidade de fazer um esforço suplementar nas provas físicas finais, dando tudo por tudo para ter uma nota tão positiva quanto possível, de modo a que eu pudesse vir a ser ofIcial e não sargento.

Como já disse atrás, ao longo do 2º ciclo eu não tinha feito esforço nenhum nos exercícios físicos. Valendo-me do meu aspeto franzino e magricelas, eu fingia que não aguentava o esforço exigido nos exercícios e punha-me de fora. Por exemplo, em vez de fazer todas as flexões de braços que o alferes queria, eu só fazia meia dúzia e fingia-me muito cansado, caindo para o lado. Nos crosses, eu chegava a meio e desistia, fingindo estar estourado; durante aqueles três meses, nunca corri um cross até ao fim. Resultado: eu encontrava-me num estado físico pouco consentâneo com o esforço que  teria que fazer nas provas físicas finais para ter positiva.

Custou-me muito, mesmo muito, conseguir boas notas nos exercícios físicos. Mas obtive alguns êxitos notáveis. Nas flexões abdominais, sobretudo, tive vinte valores; fiz as sessenta ou oitenta flexões abdominais (já não me lembro ao certo de quantas eram) necessárias para conseguir a nota máxima. Na pista de obstáculos tive uma nota um bocado mais fraca, mas mesmo assim muito positiva também. E nas outras provas fui sempre tendo notas igualmente positivas, umas mais altas, outras mais baixas. Até que chegou a última prova, que era o cross, que por si só valia tanto como
as outras provas físicas todas juntas. Esta eu não podia deixar de fazer até ao fim, nem que chegasse à meta de gatas!

O cross final consistia em correr de Mafra até  Sobreiro e voltar. Sobreiro é uma povoação situada a meio caminho entre Mafra e a Ericeira. É no Sobreiro que fica a Casa-Museu de José Franco, onde existe um modelo de aldeia saloia em miniatura, todo feito de barro, que o falecido oleiro criou com as suas próprias mãos e que atrai inúmeros visitantes. Naquele tempo, José Franco ainda era um ilustre desconhecido, que ainda não tinha criado a sua aldeia de barro, e o Sobreiro era uma povoação igual a muitas outras existentes na região saloia.

Eu tive uma enorme dificuldade em fazer o cross, por causa da falta de treino. Por mais do que uma vez, senti as pernas fraquejar. Mas com grande esforço consegui manter o ritmo da passada, sempre igual do princípio ao fim, de tal maneira que cheguei a Mafra em segundo lugar!
— O quê?! O sr. Ribeiro fez o cross todo?! E chegou em segundo lugar?! — exclamou
o Lourenço, que estava junto à meta, quando me viu chegar. — Então eu estava cheio de pena do sr. Ribeiro, porque julgava que era tão fraco que não conseguia completar um cross, e agora completa um e chega em segundo  lugar?! Nem sequer veio no meio do pelotão; chegou logo em segundo ?! Quer dizer que o sr. Ribeiro andou a fingir este tempo todo?! Andou a gozar comigo, foi?! O sr. Ribeiro vai pagá-las! Se há coisa que eu não tolero é que façam pouco de mim! O sr. Ribeiro não vai esperar pela demora! Na semana de campo vamos ajustar contas! Vai ver como
elas lhe mordem! O sr. Ribeiro vai arrepender-se de ter nascido!

Ao longo dos dias seguintes, o Lourenço repetia-me:
— O sr. Ribeiro não pense que eu me esqueço do que se passou no cross! Eu nunca esqueço uma ofensa! E o sr. Ribeiro ofendeu-me! Eu estava cheio de pena de si e afinal o sr. Ribeiro andava a gozar-me.  Na semana de campo o sr. Ribeiro vai pagá-las todas juntas, vai, vai! Não admito que me gozem! Vai pagar com língua de palmo!

 (Continua: O meu curso de oficiais milicianos, pp. 17-26)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG]