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quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18221: Bibliografia de uma guerra (83): “Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Este tratado de historiografia onde se contextualiza o pano de fundo que precede a guerra colonial possui todo os ingredientes para ser leitura obrigatória, nas próximas décadas. Contextualiza a posição do império português no final da II Guerra Mundial, releva a tentativa de arrancada das colónias para um estádio de desenvolvimento, na recuperação do pós-guerra aquelas matérias-primas eram preciosíssimas para o desenvolvimento das potências ocidentais.
Mesmo num plano muitíssimo subalterno ao que irá acontecer em Angola em Moçambique, Sarmento Rodrigues procura fazer da Guiné uma colónia modelo, o progresso é a grande consigna do novo estádio da mística imperial: infraestruturas, desenvolvimento agrícola, escolas, instâncias de saúde, novo modelo de administração colonial. Mas os perigos agigantam-se na Ásia, a União Indiana é a principal dor de cabeça. E em meados dos anos 1950 as independências chegam a África - é a grande vaga, Portugal posiciona-se contra a maré.

Um abraço do
Mário


Contra o vento: uma obra-prima da historiografia portuguesa (2)

Beja Santos

“Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017, é indubitavelmente um dos principais acontecimentos da edição historiográfica de 2017. O investigador Valentim Alexandre tem sobejas provas dadas na área da história colonial, este seu opulento (e a partir de agora incontornável) levantamento é o fecho de abóbada, a consagração da sua carreira. Passamos a dispor, a partir deste trabalho, de uma sequência bem articulada para a cronologia os principais eventos que contextualizam o Império Português no pós-guerra, ressaltando a primeira ameaça, a crise de Goa (1954-1955), segue-se a pormenorização dos dados da grande veja da descolonização e a resposta dada pelo Estado Novo: o luso-tropicalismo – a política indígena, uma incipiente industrialização, as formas precárias de deslocação da população branca, nomeadamente para colunatos, a ONU como a principal arena a confrontar o império português, os atritos com o Vaticano, a reorganização dos dispositivos militares; e a manutenção das inquietações no Oriente, um tanto à semelhança de que ocorrera no decurso da II Guerra Mundial, mas agora fruto das descolonizações: Goa, Macau e Timor, devido ao aparecimento da União Indiana, da República Popular da China e da República da Indonésia.

No texto anterior, desvelou-se o mundo do pós-guerra, a emergência do anticolonialismo, a entrada em cena da ONU, o Estado Novo pressagia novas ameaças, em primeiro lugar no Oriente, em Goa, Macau e Timor. Afastados os perigos das duas últimas colónias, Goa será ameaça permanente até que em Dezembro de 1961 os exércitos da União Indiana porão termo à presença portuguesa.

Há razões de sobra para impulsionar o desenvolvimento, sobretudo em Angola e Moçambique, o comércio mundial começa a crescer a muito bom ritmo e as matérias-primas africanas são disputadas. De Angola vêm diamantes, sisal e café; a produção de algodão e de açúcar cresce em Angola e Moçambique. Altera-se o modelo de relações económicas que interligavam a metrópole e as colónias, o espantalho do condicionalismo industrial limita o modelo de desenvolvimento colonial, a instalação de indústrias nas colónias é feita com a muita cautela: cimento e têxtil, fábricas de óleos alimentares, de calçado, de metalomecânica, de artigos de borracha, de pasta de papel e de mobiliário, surgirão confrontos como o da Companhia de Cimentos de Angola e a Secil. Os caminhos-de-ferro tornam-se estruturas fundamentais, ganham expressão internacional, o mesmo se dirá das estruturas portuárias, como o porto da beira. Na política externa, Salazar procura obter dividendos com a concessão de “facilidades” nos Açores, Portugal integrava-se na NATO, o que dava ainda maior realce à posição estratégica das Lajes.

O Estado da Índia é o enorme quebra-cabeças, em Nova Deli insiste-se na “Mãe-Índia”, não há exceções coloniais. Salazar responde: “Se geograficamente Goa é Índia, socialmente, religiosamente, culturalmente Goa é Europa. Se ali habitam ocidentais, indo-portugueses e indianos, politicamente só há cidadãos portugueses”. Salazar confia que o processo de integração da Índia iria ser moroso, teria que absorver as mais de cinco centenas de principados que o domínio britânico deixara subsistir. Mas deu-se a integração dos principados, um a um foram aderindo à União Europeia, em meados de 1948 o subcontinente ganhara coesão. Já não podíamos contar com a Grã-Bretanha e também o Vaticano já não podia privilegiar o Padroado do Oriente. A Santa Sé acabará por nomear um bispo indiano, o que compromete a jurisdição do arcebispo de Goa. Assim se pôs fim ao padroado e entrou-se diretamente na reivindicação do solo. O autor chama-nos à atenção para a interessante análise de Orlando Ribeiro no relatório de 1956, ele refere-se à coexistência em Goa de duas regiões e duas sociedades, a sociedade cristã e a sociedade hindu. Quatro séculos de cristianismo e um clero numeroso e zeloso criaram uma oposição entre cristãos e gentios, situação que dificultava em extremo a integração hindu na nação portuguesa já que todo o hindu via na Índia a sua pátria espiritual. E o distinto geógrafo observa: “Pátria para o goês é Goa, é nela que eles desejam gozar liberdades e proeminências. Aquilo que para alguns é uma espécie de dupla cidadania, goesa e portuguesa preferiam-no eles em relação à União Indiana”. As relações luso-indianas azedam-se. Em 1953, Nova Deli encerrou a sua Legação em Lisboa, não era um corte de relações diplomáticas, mas passava-se para outro nível da ofensiva. Em Macau e Timor, a República Popular da China e a Indonésia descansam Lisboa, não têm reivindicações a fazer, a China precisa de portas abertas para o exterior, o comércio está à frente da ideologia.

O sistema político imperial foi reformulado em 1951 com o Acto Colonial, Portugal é uno e indivisível, será a especificidade do caso português que na retórica procurará querer dizer que não há semelhanças entre o império português e as outras potências europeias. Valentim Alexandre recorda que a ideia de integração nacional imposta por decreto não irá contrariar o aparecimento da geração de Cabral que tinha como âncora a Casa dos Estudantes do Império. O trabalho forçado passara a ser visto com maus olhos nas instâncias internacionais. Henrique Galvão, no célebre Relatório que em 1947 apresentou na Assembleia Nacional, denunciou a extensão dos abusos e a desumanidade de mão-de-obra humana, eram parágrafos que incendiavam as consciências: “As autoridades castigam os chefes indígenas que não lhes apresentam o número exigido, tornam os sobas responsáveis pelos fugitivos, resolvem o caso mais drasticamente enviando os cipaios às povoações prender a torto e a direito até satisfação da quantidade. Os cipaios, por sua vez, fazem negócio com a missão que têm a cumprir, deixando escapar os que os gratificam (…) Se quisermos ser realistas, a situação é pelo menos tão desumana como era nos tempos da completa escravatura. Contudo, nesse tempo, o negro, comprado como um animal de trabalho, continuava a ser uma peça da propriedade pessoal que o seu dono tinha interesse em manter saudável e vigorosa, como fazia com o seu boi ou o seu cavalo. Atualmente, negro não é vendido mas simplesmente alugado ao Governo sem perder o rótulo de homem livre. O patrão importa-se pouco que o homem viva ou morra, desde que trabalhe enquanto puder; pois o patrão pode pedir que lhe forneçam outro trabalhador, se o primeiro ficar incapacitado ou se morrer. Há patrões que deixam morrer até 35% dos trabalhadores que recebem dos agentes governamentais durante aquilo a que se chama período do contrato de trabalho. Mas não há notícias de que a alguns deles tenham sido recusados novos trabalhadores para trabalharem nas mesmas condições”.

Mas não era só o trabalho forçado que servia de ónus à população nativa. Também a propriedade e posse de terra por parte dos indígenas estava em causa. O regime algodoeiro, por exemplo, era uma autêntica forma de escravatura, um contrato leonino a que o indígena ficava amarrado. Valentim Alexandre espraia-se sobre a queda de Dadrá e Nagar-Aveli. Quando a França deixa de poder aguentar a sua posição colonial em Pondichéry, retirou-se. O Estado da Índia é para Nehru o último escolho. Começa pelo mais fácil, toma conta de dois enclaves, houve uma imensa campanha nacional de protesto, a oposição portuguesa divide-se na resposta. É esse o tempo em que o PCP denuncia a campanha nacionalista como belicista ao invés de negociar com o povo indiano de Goa e com a União Indiana, Salazar estaria instigado pelos norte-americanos, queria um foco de guerra dentro do cenário que era o cerco à União Soviética e à China. O PCP denunciava a situação vivida nas colónias e procurava passar a ideia de que a natureza repressiva do Estado Novo o tornava especialmente inapto para resolver os problemas coloniais. O regime sente perder o pé junto do Vaticano: o Papa recebe Nehru em 8 de Julho de 1955, a questão de Goa irá atravessar um novo pico de tensão que culminará nos satiyagrahas de Agosto seguinte a manifestações aparentemente pacíficas de indianos que procurava ocupar o território, em jeito de invasão. A partir de então, Lisboa não tem ilusões: a qualquer momento haverá uma invasão, impossível de conter. A inquietante expectativa prolongar-se-á por anos.

Estamos na terceira parte da importantíssima obra de Valentim Alexandre: a grande vaga da descolonização (1955-1960). A Conferência de Bandung (1955) condenará explicitamente o colonialismo sob todas as suas manifestações. Observa o autor: “Esta fórmula era suficientemente lata para abranger o domínio exercido pela União Soviética nos países do Leste da Europa (que o Paquistão e as Filipinas pretendiam denunciar); mas, nas interpretações subsequentes, foi lida como uma referência aos impérios coloniais europeus e um apelo ao seu desmantelamento, nomeadamente em África”. O Norte de África muda de fisionomia política por esta época e acolhe de bom grado os ventos do nacionalismo africano. A independência do Sudão não teve as repercussões da independência do Gana, neste país, o seu dirigente, Nkrumah assumiu de paladino do anticolonialismo e do pan-africanismo, abriam-se as portas ao processo de descolonização de outro grande território da África Ocidental Britânica, a Nigéria. “As colónias inglesas da África Oriental (Tanganhica, Quénia, Uganda e Zanzibar) e da África Central (Rodésia do Sul, Rodésia do Norte e Niassalândia) não ficaram imunes à influência ao movimento que afetou as da África Ocidental a partir de 1957”. Analisando a outra poderosa potência colonial, escreve o autor: “As colónias francesas da África Negra tiveram uma evolução semelhante às da África Ocidental Britânica” e, mais adiante: “Pela sua natureza – a de territórios submetidos a tutela, por isso sujeitos a supervisão da ONU – o Togo e os Camarões Franceses tendiam a escapar a esta lógica uniformizadora. Em meados da década de 50, a França procurou sapar o terreno aos nacionalistas, fazendo concessões que iam no sentido da autonomia interna, mas no âmbito da União Francesa”. Mas a independência era o ar do tempo, irreversível. Cria-se a comunidade francesa, era a redefinição das relações entre a França e as suas colónias. Todos eles votaram afirmativamente, salvo a Guiné. É nisto que se ateia um incêndio que terá consequências em Angola, os incidentes do Congo. E depois o autor discreteia sobre o colonialismo missionário e uma espécie de “Portugalização” do Ultramar.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18198: Bibliografia de uma guerra (82): “Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18198: Bibliografia de uma guerra (82): “Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,

Temos finalmente um tratado científico sobre o pano de fundo dos 15 anos que precedem o início da guerra colonial.

O historiador Valentim Alexandre dá-nos uma moldura impressiva da mística imperial já num quadro de ameaças que despontavam com as latentes independências asiáticas e a crescente preocupação da chegada dos países africanos ao Palácio de Vidro, em Nova Iorque, Salazar sabe que só pode contar os Estados Unidos por causa da Guerra Fria, assiste à desarticulação dos velhos impérios, substituiu fórmulas, ensaiou colonatos, a industrialização. Mas o trabalho de Valentim Alexandre ocupa-se meticulosamente da crise de Goa e de tudo quanto se passa à volta de Macau e Timor.

Proponho a todos vós a leitura imediata deste soberbo documento.

Um abraço do
Mário


Contra o vento: uma obra-prima da historiografia portuguesa (1)

Beja Santos

“Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017, é indubitavelmente um dos principais acontecimentos da edição historiográfica de 2017.

O investigador Valentim Alexandre tem sobejas provas dadas na área da história colonial, este seu opulento (e a partir de agora incontornável) levantamento é o fecho de abóbada, a consagração da sua carreira. Passamos a dispor, a partir deste trabalho, de uma sequência bem articulada para a cronologia os principais eventos que contextualizam o Império Português no pós-guerra, ressaltando a primeira ameaça, a crise de Goa (1954-1955), segue-se a pormenorização dos dados da grande vaga da descolonização e a resposta dada pelo Estado Novo: o luso-tropicalismo – a política indígena, uma incipiente industrialização, as formas precárias de deslocação da população branca, nomeadamente para colunatos, a ONU como a principal arena a confrontar o império português, os atritos com o Vaticano, a reorganização dos dispositivos militares; e a manutenção das inquietações no Oriente, um tanto à semelhança de que ocorrera no decurso da II Guerra Mundial, mas agora fruto das descolonizações: Goa, Macau e Timor, devido ao aparecimento da União Indiana, da República Popular da China e da República da Indonésia.

Na introdução, Valentim Alexandre apresenta a configuração do império a partir da independência do Brasil, o projeto imperial centrado em África, a importância da legislação de Sá da Bandeira, a disputa por garantir a presença em territórios entre Angola e Moçambique, a ferida no orgulho nacional com o Ultimato, a conferência de Berlim e o imperativo da ocupação dos territórios, tarefa que irá prolongar-se por cerca de três dezenas de anos. O comentário do autor é pertinente:

“No seu conjunto, este processo consolidou o império, permitindo a extensão da soberania lusa e a ação do respetivo aparelho colonial a zonas até então não tocadas e reduzindo o perigo de intromissão a de outras potências. No entanto, tal como finalmente se constituiu, o sistema colonial português sofria de um pecado original – a sua dependência de uma metrópole débil, economicamente atrasada, de fracos recursos financeiros, sem dúvida o elo mais vulnerável de entre as potências imperiais europeias”

Chegados ao século XX, Portugal é alvo de acusações contra a “política indígena”, designadamente na questão do trabalho forçado: Angola, Moçambique e S. Tomé e Príncipe, sobretudo, eram o centro das atenções. Ciente das ameaças de partilha dos territórios africanos, cobiçados pela Alemanha, Portugal entra na primeira guerra. Na Conferência de Paz de 1919, assegura-se o império. Segue-se um período marcado pelo fracasso de planos de desenvolvimento rápidos do Ultramar. Com a queda da primeira república e com a ascensão do impulso nacionalista chega-se ao Ato Colonial, assim caraterizado pelo autor:

“Tratava-se de reafirmar de forma solene a soberania portuguesa no Ultramar, em documento com valor constitucional, dando-lhe um caráter permanente, numa altura em que se agudizavam as tensões com a Sociedade das Nações sobre a questão do trabalho indígena”.

E chama igualmente à atenção para a substância do artigo segundo:

“É da essência orgânica da nação portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que nelas se compreendem”

O regime de Salazar vai estar atento a novas investidas, a Alemanha de Hitler sonha retornar a África o autor comenta:

“Para finais de 1937, o governo britânico tinha por certo que a melhoria das relações com a Alemanha passava pela revisão da partilha colonial, abrangendo os territórios belgas e portugueses em África”.

Estas ameaças desapareceram com a derrota alemã, mas emergia outra, a descolonização da Ásia, primeiro, e de África, depois. É este o período analisado: 1945 a 1960. Porque tudo vai mudar a partir de 4 de Fevereiro de 1961.

É já durante o conflito da II Guerra Mundial que o regime de Salazar se inquieta com sinais eloquentes: a rutura nos sistemas coloniais da Holanda, Bélgica e França com a rápida ocupação dos exércitos alemães em 1940, em Vichy a França ocupada procura zelar pelos seus territórios ultramarinos, mas na Indochina houve bases japonesas e a África Equatorial Francesa tomaram partido do General de Gaulle; em 14 de Agosto de 1941 aumenta a inquietação com a “Carta do Atlântico” onde Roosevelt e Churchill deixaram claro que no futuro cabia aos povos escolherem a sua forma de governo, devendo ser restaurados os “direitos soberanos e o autogoverno daqueles que dele haviam sido privados pela força”. Não era claramente preocupante, sê-lo-á depois, no acesso da descolonização.

Apercebendo-se desta linha dominante da política externa norte-americana, Salazar volta-se para a Grã-Bretanha, só que o império britânico está a caminho da sua desarticulação. E assim chegamos à Carta das Nações Unidas, irão começar as dores de cabeça para a defesa do império português.

Salazar pôde contar com um elemento atenuante: a Guerra Fria. Washington e Moscovo assumiam, ao princípio uma posição anticolonialista, embora partindo de pressupostos diferentes. Os EUA, após a guerra, queriam conter o comunismo e simultaneamente ganhar a confiança junto dos países recentemente saídos de situações coloniais. Os EUA não podiam interferir no que se passava no Norte de África: Marrocos, Tunísia, Argélia, o Egipto. Muitas centenas de milhares de homens tinham sido enviados a combater na Europa, no Norte de África ou na Ásia, em nome da França ou da Grã-Bretanha. Várias cidades de África – Cairo, Dakar, Lagos, Freetown e a Cidade do Cabo, entre outras – serviram de pontos de apoio militar. Na Grã-Bretanha e na França estudavam e formavam-se africanos que irão rapidamente reivindicar a independências das colónias. Aos poucos, estas potências coloniais foram aceitando as independências.

Urgia, pois, reavivar a retórica imperial, melhorar as condições de vida dos timorenses e refazer os equipamentos destruídos pelos japoneses, manter uma relação aceitável com os comunistas chineses, que não reivindicavam nem Macau nem Hong Kong, ensaiou-se uma manobra de afetividade com a União Indiana, e no caso africano procurou-se melhorar a presença missionária e tornar a mística imperial como vetor ideológico incontestável.

Marcello Caetano é ministro das Colónias. Valentim Alexandre termina assim este capítulo:

“As atenções do governo de Lisboa, nos anos do após-guerra, centraram-se sobretudo no povoamento branco e no fomento da economia, que tinha finalmente condições para arrancar. No imediato, as ameaças à integridade do Império situavam-se no Oriente, dada a evolução política desta parte do mundo, com o ataque generalizado às posições europeias”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17794: Bibliografia de uma guerra (81): “A Guerra Civil em Angola - 1975-2002”, por Justin Pearce; Tinta da China, 2017 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17641: Lembrete (25): No próximo dia 4 de Agosto, às 18h00, o Clube de Leitura da Biblioteca Municipal Almeida Faria, Montemor-o-Novo, realizará a segunda sessão integrada no Ciclo de Leitura e Debate subordinada ao tema "A Guerra Colonial”, com a intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes (José Brás)



1. Mensagem do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68) com data de 28 de Junho de 2017:

No próximo dia 04 de Agosto (uma sexta-feira) às 18h00, o Clube de Leitura da Biblioteca Municipal Almeida Faria, Montemor-o-Novo, realizará a sua segunda sessão integrada num Ciclo de Leitura e Debate com pano de fundo a “Guerra Colonial” na Literatura portuguesa.

Esta sessão terá a apresentação do Coronel Carlos Matos Gomes que, a partir de “Nó Cego” abordará "África na Literatura Portuguesa - Um tema de uma geração".



A sessão tem entrada livre, aberta e incentivada à participação de membros e não membros do Clube de Leitura.

Integrado no ciclo, decorrerá no espaço da Biblioteca, uma exposição com mais de uma centena de títulos sob o tema da Guerra Colonial.
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 Nota do editor

Último poste da série de 8 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17557: Lembrete (23): Hoje, sábado, na Tabanca dos Melros (Fânzeres, Gondomar), apresentação do II volume do livro do José Ferreira, "Memórias Boas da Minha Guerra"... Daqui a um bocado, às 10h30, que de manhã é que se começa o dia... E como prenda o autor deixa aqui, em reedição, mais um dos seus microcontos, e que, não é por acaso, tem a ver com o tema da atualidade (do nosso blogue...), o Serviço Postal Militar (SPM), e as suas pequenas misérias e grandezas, já depois do 25 de Abril, no rescaldo da guerra colonial

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17627: Agenda cultural (576): Montemor o Novo, Biblioteca Municipal, Clube de Leitura, ciclo temático "A guerra colonial", 2ª sessão: "África na Literatura Portuguesa - Um tema de uma geração", por Carlos Matos Gomes, 4 de agosto, às 18h00. Entrada livre, aberta e incentivada à participação de todos/as.


Cartaz do evento

1.  Com pedido de divulgação, em 25 do corrente, por parte da  técnica responsável da biblioteca municipal de Montemor o Novo:


No próximo dia 04 de Agosto às 18h00, o Clube de Leitura da Biblioteca Municipal Almeida Faria, Montemor-o-Novo, realizará a sua segunda sessão integrada num ciclo de leitura e debate com pano de fundo a "Guerra Colonial" na Literatura Portuguesa".

Esta sessão terá a apresentação do Coronel Carlos Matos Gomes que, a partir de "Nó Cego", abordará "África na Literatura Portuguesa - Um tema de uma geração".

A sessão tem entrada livre, aberta e incentivada à participação de membros e não membros do Clube de Leitura.

Segue em anexo cartaz da sessão.

Com os melhores cumprimentos,

Liliana Pincante
Biblioteca Municipal Almeida Faria

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17597: Agenda cultural (575): Leiria, Biblioteca Municipal, sarau literário, comemorativo dos 100 anos do nascimento do capitão e escritor Manuel Ferreira (1917-1992)

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16639: Notas de leitura (895): "Guiné: crónicas de guerra e amor", de Paulo Salgado: texto da apresentação do livro, pelo poeta e jornalista Rogério Rodrigues


Lisboa > Associação 25 de Abril > 20 de outubro de 2016 > Sessão de lançamento do livro "Guiné: crónicas de guerra e amor", da autoria do Paulo Cordeiro Salgado (Lema d'Origem Editora, Carviçais, Torre de Moncorvo, 2016, 230 pp; coleção Palavra). Apresentação foi feita pelo poeta e jornalista Rogério Rodrigues, aqui na foto.

 

Lisboa > Associação 25 de Abril > 20 de outubro de 2016 > Sessão de lançamento do livro "Guiné: crónicas de guerra e amor", da autoria do Paulo Cordeiro Salgado (Lema d'Origem Editora, Carviçais, Torre de Moncorvo, 2016, 230 pp; coleção Palavra) > O autor autografando um dos exemplares do seu livro: à esquerda, os nossos grã-tabanqueiros. Hélder Sousa, Luís Graça e Alice Carneiro.

Fotos: © Conceição Salgado  (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Livro de Paulo Salgado
Capa do livro


por Rogério Rodrigues, 
poeta e jornalista


[Rogério Rodrigues nasceu em Peredo dos Castelhanos, concelho de Torre de Moncorvo; foi professor do Ensino Secundário;  trabalhou como jornalista no Diário de Lisboa, no Jornal, na revista Sábado, no Público, Visão: foi co fundador do Semanário O Ribatejo e fundou e dirigiu o semanário Grand'Amadora;  trabalhou em televisão; é  autor de diversos livros (poesia, ficção, reportagem), bem como séries televisivas).  [Fonte: Dicionário dos mais ilustres Transmontanos e Alto Durienses, coordenado por Barroso da Fonte, Vol. 3: 2003, 765 pp. Guimarães: Editora Cidade Berço, 2003]



Declaração de interesses: eu e o Paulo Salgado, autor destas Crónicas de Guerra e Amor somos amigos há mais de 50 anos. Pelo que, para mim, é um privilégio apresentar este livro. Ambos fomos marcados, embora de formas diferentes, pelo estigma da guerra.

O Paulo traz o corpo cheio de cicatrizes como milhares de jovens que passaram pelos caminhos duros das três colónias.

Alguns deles acharam que tinham de expor as suas cicatrizes, de explicar as suas feridas e sofrimento para memória futura. Como testemunho.

Talvez os primeiros textos em prosa que relatam o absurdo de gerações sacrificadas no altar de mito da existência de um Império, sejam A Lebre e Os Mastins de Álvaro Guerra, um dos poucos, senão o único, civil que teve contacto e conhecimento antecipado do 25 de Abril.

Proibido seria a o livro de poesia a cartas de José Bação Leal, morto em combate,  e o célebre Cancioneiro do Niassa, poemas e canções críticas dos soldados de comissão em Moçambique.

O Canto e as Armas de Manuel Alegre é o grande manifesto poético contra a guerra. O meu compadre Fernando Assis Pacheco escreve a novela Walt, a história dos dias que precedem o embarque para a guerra. Teve como primeiro título, não utilizado, “Uns gajos parados à beira do Rio”. Socorrer-se-ia com frequência de nomes e geografia da guerra do Vietnam, só mais tarde convertidos para uma realidade colonial, em português. O Cau Kien: um resumo, transforma-se depois do 25 de Abril em Katalabanza, Kilolo e Volta.

António Lobo Antunes começa a sua saga obsessiva de encontrar razões para o absurdo da guerra com Os Cus de Judas e a Memória de Elefante.

Tanto Lobo Antunes como Assis Pacheco, ainda que em comissões diferentes, fizeram parte de companhias do sartriano capitão Melo Antunes.

Livro fundamental, também porque escrito por um militar de carreira, o Nó Cego de Carlos Vale Ferraz, pseudónimo do coronel Matos Gomes, é o sinal de que algo, fosse uma febre militar, uma megalomania de velhos generais ou uma obstinação de políticos e ditadores em hora de despedida, se estava a passar no interior do Exército, sobretudo entre capitães.

Surgem e vão surgindo ainda testemunhos vibrantes sobre o que foi a guerra nas colónias, desde a Autópsia de um Mar em Ruinas de João de Melo até à Costa dos Murmúrio de Lídia Jorge.

Matos Gomes e Aniceto Afonso sistematizam as contradições, factos e conflitos da guerra com documentação vária, escrita e fotográfica, mais os trabalhos de Joaquim Vieira e a série televisiva fundamental da Joaquim Furtado, as crónicas, publicadas postumamente, de Salgueiro Maia, em comissões da Guiné e Moçambique e o livro de Vasco Lourenço, também respeitante à Guiné, No Regresso Vinham todos.

Dessacralizaram o que durante muito tempo foi tema tabu e algo que tivéssemos que esconder. Nesta libertação do passado, sem que tenhamos vergonha de participar em algo de que discordámos, levou Paulo Salgado a escrever estas crónicas em sua memória, em lembrança dos seus soldados, na esperança de sobreviver suportada pelas cartas de amor, mas também na sedução da Guiné a que regressaria já como cooperante 20 anos depois, a Olossato (a Maconde de Paulo Salgado) onde não foi feliz, mas que o seduziu. Foi redescobrir os cheiros e a paisagem que lhe tatuaram o corpo e o espírito; o Poilão, a árvore centenária onde se reuniram os homens bons da tribo, os militares em descanso, como se fossem druidas transpostos para Guiné, absortos e convertidos ao animismo, num panteísmo tropical, sendo a árvore a sua referência de Deus.

Da guerra, Paulo Salgado desafia-nos com a leitura da condição humana dos seus soldados que o ruído das armas não silencia.

Chegado a Olossato, 20 anos depois, reencontra o Seidi que estivera ao serviço do Exército português e que hoje tem de sofrer as consequências do novo poder.

Recorda Bakar, milícia na tropa portuguesa, usado na despistagem de minas. Tantas despistou que ficou sem uma perna num rebentamento, num tempo em que recebera a promessa de que nada lhe aconteceria se regressasse ao PAIGC. Tinha que optar entre as agruras da guerrilha ou a comida para a família que a tropa portuguesa lhe garantia. Que opção Bakar tomaria?

Os soldados do pelotão, os camaradas alferes da companhia, são o objecto da sua escrita, essencial e substantiva, não necessitando da adjectivação para classificar as pessoas e os acontecimentos. Licenciado em Direito é mais o gestor de emoções que mestre da retórica.

Não esquece os seus. Nem as emboscadas, provavelmente a primeira, em que relata, e passo a citar, “dentro da bolsa, caído ao lado da espingarda, um passarinho morto. Para dar sorte. Naquele carreiro de morte, em Bissancage”. Fim de citação.

As suas crónicas têm a tensão de contos curtos. Só que aqui é a realidade que vence a ficção. Controla a palavra, administra de forma sábia a emoção até ao remate final, quase sempre surpreendente.

As figuras dos soldados conhecemo-las sobretudo aqueles que, como eu e o Paulo Salgado, têm vivências rurais. É a história do alentejano de alcunha o Toucinho, guardador de porcos que se quer vingar do Bezerra, filho do patrão que abusou da sua mãe. É a balanta Rosa por quem o alferes Pereira está perdido de desejo, enquanto se interroga, porquê a guerra?

Mas Rosa prefere o soldado de sentinela, com o qual faz amor fora do arame farpado do quartel. O alferes vê o enlace. E, passo a citar: “A bajuda Rosa acabava de o convencer que ele era um sonhador impenitente”. Fim de citação.

No amor não há hierarquias.

Kadi, capturada, consegue fugir. É enfermeira do Partido, com o marido guerrilheiro na Guiné -Conacri.

Mas Olossato é também um espaço concentracionário em que o álcool e a tensão erótica intensos são usados e abusados para amenizar o medo e a solidão.

Como registo de quem não morre com balas, mas morre pelo esquecimento, a história, angústia de um alferes cuja mulher há muito que lhe não escreve. Suicidou-se.

O soldado Moita é casado. Os aerogramas deixaram de chegar. E passo a citar:” pegou na G3 e meteu-se no mato. Nunca mais foi visto”. Uma repetição suavizada de um episódio da História Trágico- Marítima.

Julião, soldado, antes de a Guiné o ter sufocado, vivia com a mãe viúva, que o pai morrera entre Espanha e a França no drama ou epopeia do salto de um povo à procura de melhor vida.

Julião era um homem simples e generoso mas que os camaradas não levavam a sério. Julião é apanhado por uma granada. Fragmentos penetram nas costas. Está a morrer e diz as últimas palavras ao seu camarada Costeira: “Escreve à minha mãe e diz-lhe que estarei junto dela muito em breve”.

Nestas crónicas não há heróis nem anti-heróis, muito menos convicções de que a guerra é o caminho certo para a paz. O caminho certo para a paz é, e será sempre, a liberdade.

Com as longas noites de espera que nem o álcool e o jogo amenizam, na sua incapacidade de saída, ouvindo Ray Charles e José Feliciano, ou lendo O Vermelho e o Negro de Stendhal, há tempo para reflectir, transmitir ou debater ideologia, seja num jornal de caserna, se assim podemos dizer, O Tabanca, seja num texto escrito a tinta vermelha que surgiu no quartel e que é uma espécie de magna carta da recusa do status quo da condição do militar na Guiné e da colonização. Relata o papel ao rubro:

“Aqui onde permanecemos por obrigação, onde nos defendemos para continuarmos vivos; aqui, na terra das febres, onde o chão está por lavrar, o mato por desbravar, as muitas tabancas por reconstruir; aqui onde a camaradagem é arrimo da sobrevivência; aqui, onde cada palavra e cada gesto são medidos e apreciados até ao ínfimo pormenor; aqui—meu alferes—os homens sentem-se ‘filhos da puta’ ".

O texto terá o dedo do cabo Meireles, altamente politizado, como muitos jovens do PCP, que era contra a deserção, mas que aconselhava os seus filiados que em teatro de guerra tentassem politizar os camaradas. Quando o cabo Meireles acabou a sua comissão em Olossato e se prepara para regressar a Lisboa, uma rapariga oferece-lhe um colar, porque tinha sido sempre muito digno para com ela.

Vinte nos depois, o autor das Crónicas regressa a Olossato, com a mulher, num Fiat Uno. É cooperante na área da saúde, ele que é gestor hospitalar e tem levado e sua solidariedade e conhecimento de ofício à Guiné e a Angola.

Vai encontrar um branco caçador que ficou na Guiné depois de cumprida a comissão. Quando ficou ainda havia guerra. Além de caçador é também parteiro. Fala as línguas indígenas.

Vai encontrar um guerrilheiro que se tornou médico e que verte lágrimas perante uma criança que não consegue curar. E, com frequência, por falta de meios.

No meio da guerra ainda há finais felizes, como o do jovem alentejano que se insurge contra a escravatura e é largado sozinho nas matas da Guiné. Feito prisioneiro, é a preta Kali que o alimenta. Casam. Enriquece. E nunca mais voltou ao Crato.

Este regresso de Paulo Salgado à Guiné, mais do que um gesto de solidariedade, é o reconhecimento de uma identidade, a guineense. Estudou com profundidade a história daquele país, da sua descoberta e povoamento, desde a escravatura até à cristianização, na procura de especiarias sob a capa da demanda do Prestes João.

Durante séculos as várias etnias da Guiné combateram o opressor, fosse ele português, espanhol ou francês.

Para terminar, que a conversa já vai longa, para exemplo extremo do amor à liberdade, Paulo Salgado recorda o facto histórico da pilhagem de Antão Gonçalves aos povos da Guiné e vizinhança. Embarca para Lisboa com escravos guineenses que, no alto mar, se suicidam-se lançando-se às águas. Escolhem a liberdade à escravatura, mesmo que ela passe pela morte.

Rogério Rodrigues

Lisboa (Associação 25 de Abril), 20 Outubro 2016.


2. Informação do editor António Lopes, 
com data de 24 do corrente:

Caro Luís,

Hoje telefonou-me o Paulo dizendo que necessitavas das condições de venda pelo correio. As condições são simples:

O custo é de 15 €. Os portes são por nossa conta. O pagamento por transferência bancária.
Contacto: editora@lemadorigem.pt

Abraço,


Lema d'Origem - Editora, Ldª
NIPC: 509 059 473
E/ editora@lemadorigem.pt
URL/ http://lemadorigem.pt
Facebook: https://www.facebook.com/LemadOrigem
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Nota do editor:

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16558: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (19): Ainda a definição de literatura da Guerra Colonial ... e a crítica do filme "Cartas da Guerra"

 
1. Em mensagem de 30 de Setembro de 2016, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos o seu ponto de vista acerca da literatura e cinema dedicados à Guerra Colonial para integrar a sua série: "A Minha Guerra a Petróleo".



A Minha Guerra Petróleo (19)

Ainda a definição de literatura da Guerra Colonial

Aqui há uns posts atrás, o Branquinho levantou uma questão pertinente que se prende com a definição de literatura da “Guerra Colonial”. Poderá parecer uma questão secundária, mas só agora, já que, para o futuro, ela deverá ser claramente estabelecida, sob pena de se tomarem obras sérias por refugo e vice-versa. E já agora, tendo em conta a recente estreia do filme “Cartas da Guerra”, parece-me oportuno estabelecer o que se deverá entender por Cinema “da Guerra Colonial”. Podemos também juntar-lhe o teatro sobre o mesmo tema, embora esta forma de arte não tenha tido a “guerra” como tema, por razões que será difícil concluir.

Tenho para mim que estas três formas de arte: literatura, cinema e teatro revestem características documentais – registo, tratamento objectivo e exposição à consideração do espectador/leitor de factos ocorridos – que não estão presentes noutras, o que lhes permite serem mais aptas para a reanálise e reconstituição do sucedido num dado momento histórico. O Livro descreve detalhadamente os factos ocorridos, enquanto o Cinema mostra-os. E, enquanto o primeiro deixa ao leitor uma liberdade de interpretação, o segundo, através da imagem móvel, permite uma maior latitude de interpretação. Quer isto dizer que o espectador dá mais de seu na interpretação e apreciação de um filme do que o leitor de uma obra literária ou até (porque não) poética. Ambos estão sempre disponíveis para a consulta, o que não sucede com o teatro – essencialmente efémero – em que cada representação é sempre uma nova narrativa, quase sempre melhor a cada exibição… Mas o teatro, por si só merece uma análise mais detalhada.

O Branquinho[1] começa por apresentar uma premissa que também considero fundamental para a definição do que é "literatura da guerra colonial" e à qual dou o meu acordo total: deixando de lado toda e qualquer postura política ou ideológica.

Das cinco definições que apresenta considero a primeira (todo e qualquer escrito sobre a guerra) demasiado vaga, aberta e imprecisa. Nela cabe tudo, até os estudos científicos ulteriores, de qualquer tipo, sempre necessários sobre uma guerra ou outro qualquer facto histórico. Convirá que seja mais precisa, de modo a que o que se define seja claramente caracterizado, pois, de outro modo não valerá a pena sequer esboçar a definição. Com efeito, a guerra pode ser abordada, especialmente por estudiosos, segundo diversos ângulos, hoje ou em qualquer outro momento do futuro. Pode ser também abordada de modo algo fantasioso, o que, se não houver aviso prévio, poderá induzir o leitor a interpretações erróneas e opiniões inexactas. Bem bastam as que surgirem, com o passar dos anos!

Também não considero relevantes as três seguintes definições que propõe, considerando que todos ou quase todos sofremos a guerra à distância, bastando para tal sermos portugueses, vivendo ou não em Portugal. Igualmente era suficiente sermos portugueses para que sofrêssemos a guerra nos espaços de guerra ou longe dos espaços de guerra. Se, para escrevermos sobre a guerra, basta termos sido portugueses num momento histórico, teremos de concordar que, mesmo tendo vivido nos espaços de guerra, tudo não passará de uma recordação que, por vezes, não vai muito para além do “ouvi dizer que”. Tratar-se-á de uma evocação da memória, mas que não se fundamenta na experiência directa do facto. A “Guerra Colonial” será assim, mais uma envolvente, mais um elemento caracterizador do ambiente que enquadra a história que o autor quer narrar. Cabem neste caso as histórias das mulheres que esperaram os maridos ou namorados, as mães e pais que sofreram com a partida e tiveram ou não a alegria do regresso ou as experiências dos que residiam nos “TO daquelas PU”.

E resta a última, que considero a mais válida pela autenticidade do relato, mesmo prevendo que cada um de nós terá a “sua” verdade, expressa na narrativa que apresentar. É dado adquirido que, o modo como se viu e viveu uma dada situação e o respectivo relato posterior, podem estar marcados pela subjectividade. Isto pode criar dúvidas ou até suspeitas sobre se as coisas terão mesmo ocorrido assim e serve, muitas vezes, de argumento para que a respectiva credibilidade seja diminuída. Porém, não é menos verdade que o abuso do recurso a esse tipo de argumento não é nada conveniente. Chamo a vossa atenção para a grande coincidência entre as descrições do mesmo facto ou situação que se viveu e que está bem patente em muitos posts do blog, escritos por vários camaradas que viveram a mesma situação. É por isso que considero que literatura de guerra colonial é aquela escrita feita somente por quem fez a guerra. Às outras, falta a experiência vivida que nada pode substituir, mesmo que o narrador se esforce muito.

Esclareço que não pretendo vedar a ninguém o direito de escrever sobre a “guerra”, mas não haja dúvidas, de que uma coisa é fazer a guerra outra coisa é sofrer (de vários modos) com a guerra. E muito mais se o que se pretende é transmitir informação sobre o sucedido. A literatura baseada no "consta que" ou no "ouvi dizer" é deficiente e nunca poderá ser aceite nem em relação a esta guerra, a outra qualquer ou a um dado facto histórico.

Fico satisfeito quando encontro estudos sobre a “guerra”, mas não podemos tomar um estudo científico como literatura. Venham eles, objectivos e bem elaborados para que tenhamos (ao menos agora) uma perspectiva do que sucedeu!

Nada nos impede de escrever um romance sobre a guerra colonial. Porém, para além da trama que fica toda ao critério do escritor (ou até cineasta e dramaturgo) tem de haver um escrúpulo muito grande, de forma a criar um ambiente autêntico onde a acção se passe. É assim que se escreve bem e não faltam exemplos no nosso país e na literatura estrangeira. Quem escreve sobre o passado deverá ter sempre realizado previamente um estudo sobre o ambiente onde a acção decorre. Sei que esse trabalho é cansativo, especialmente se for detalhado e preciso. Ainda não escrevemos nada e já nos fartámos de ler e consultar fontes. Estas actuam sobre quem escreve como linhas a não transpor, sob pena de se faltar à verdade e, consequentemente, transmitir informação falsa a quem ler o livro ou vir o filme. É como pôr soldados romanos a combater os lusitanos, usando relógios de pulso. Nada nos impede mas, se calhar não era bem assim…

Voltando agora ao cinema, chamo a atenção dos camaradas para a reconstituição de ambientes feita pelos cineastas das séries inglesas que passam na TV. É um exemplo a seguir. No que respeita à literatura poderia citar, “Guerra e Paz”, “Adeus às Armas” e tantos outros que acabaram por se eternizar, principalmente pela veracidade de tudo o que rodeia a história que o leitor “devora”.

 E acabei por vir ter ao filme “Cartas da Guerra”! Não conheço o realizador, mas vejo cinema há alguns anos. Também não sei nada de música, mas não sou surdo. E só por estas duas frases já podem ver que não gostei, mesmo nada do filme. 

Poderia perder-me em pormenores técnicos como a voz da artista que fala em voz off e que, ou necessita de regressar ao Conservatório para aprender a dizer, ou o som da sua voz foi mal captado. Por mim, desmobilizei de tentar entender o que ela dizia. Não conheço as cartas que estão na base do filme e não estive nunca em Angola.

E ditas estas “declarações de interesses” passemos àquilo que mais me desagradou, por forte suspeita de falta à verdade. Chamo a atenção dos camaradas para o fardamento utilizado, as viaturas – aquela do Unimog 1300 com as guardas levantadas e o pessoal sentado daquele modo – os oficiais com a pistola “à banda” dentro do quartel, aquele quartel… que parecenças terá com aqueles em vivemos? Em suma: a reconstituição dos ambientes está – em minha opinião – imprecisa, mesmo que tal se deva à falta de meios.

Achei, no mínimo ridículo aquela cena em que os militares progridem numa área alagada com o terreno seco ao lado. Mas o pior é o médico com a G-3 e a bolsa de primeiros socorros a tiracolo. Conheci quatro médicos em companhias operacionais, dois deles viveram mesmo no aquartelamento da companhia e nem sequer tinham arma distribuída. Nunca vi nenhum deles com a bolsa a tiracolo, embora possa aceitar que se deslocassem a aldeias para exercerem a sua arte. Aceito que as intenções do realizador tenham sido as melhores, (é óptimo que alguém vá pegando este tema) mas os resultados não foram nem sequer modestos.

Parece-me portanto que deveremos considerar como “literatura da Guerra Colonial” os textos e só estes produzidos por ex-combatentes. Aqueles textos em que a guerra esteja presente, como elemento enquadrante da acção dos personagens, serão uma forma de literatura obviamente válida, mas não me consta que os escritores americanos (por exemplo) escrevam sobre a Guerra do Viet-Nam ou a da Coreia, quando escrevem um romance cuja acção se passa nos Estados Unidos, naquelas alturas e a elas façam referências.

Em relação ao cinema entendo e dou o máximo valor ao modo como o realizador “descreve” o ambiente em que a acção decorre reconstituindo o que as personagens veriam, os utensílios que usavam, o modo como vestiam, enfim tudo o que permita que quem vê o filme se sinta dentro da cena.

Podemos considerar que as “Cartas da Guerra” poderão ser um filme sobre a Guerra Colonial, mas não creio que tenha prestado um grande serviço à divulgação e à manutenção da respectiva memória.
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Notas do editor

[1] - Vd poste de 2 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16440: Contraponto (Alberto Branquinho) (54): Literatura da guerra colonial, o que é?

Poste anterior da série de 29 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16248: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (18): Resposta ao Manuel Luís Lomba

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16440: Contraponto (Alberto Branquinho) (54): Literatura da guerra colonial, o que é?

1. Comentário do dia 1 de Setembro de 2016, do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), deixado no Poste Guiné 63/74 - P16433: Agenda cultural (489): Amanhã, dia de 1 setembro, estreia nos cinemas o filme, de Ivo M. Ferreira, "Cartas da Guerra", baseado nas cartas de amor e guerra de António Lobo Antunes, ex-alf mil médico, da CART 3313 (Angola, 1971/73), inserido aqui na sua série Contraponto:


CONTRAPONTO

54 - LITERATURA DA GUERRA COLONIAL

A - Deixando de lado toda e qualquer postura política ou ideológica, o que é "literatura da guerra colonial"?

1 - É TODO E QUALQUER ESCRITO SOBRE A GUERRA?
2 - É aquela escrita feita por QUEM SOFREU A GUERRA À DISTÂNCIA?
3 - É aquela escrita feita por QUEM SOFREU A GUERRA NOS ESPAÇOS DE GUERRA?
4 - É aquela escrita feita por QUEM SOFREU COM A GUERRA LONGE DOS ESPAÇOS DE GUERRA?
5 - É aquela escrita feita SOMENTE POR QUEM FEZ A GUERRA?


B - Fazer a guerra

Deixando de lado toda e qualquer postura política ou ideológica

- Uma coisa é FAZER A GUERRA outra coisa é SOFRER COM A GUERRA. Daí que eu diga que as ÚNICAS MULHERES que FIZERAM A GUERRA foram as nossas Enfermeiras para-quedistas "(vide livro "NÓS, Enfermeiras para-quedistas", onde algumas delas relatam algumas das suas experiências de guerra)"; muitas outras mulheres (nesses tempos, mas não todas) sofreram com a guerra, mas não fizeram a guerra.


C - Das respostas às questões em A acima se poderão clarificar os EQUÍVOCOS em atribuir o epíteto de literatura de guerra colonial a uma literatura baseada no "consta que" ou no "ouvi dizer":

- No consultório médico ou no posto de socorros;
- Nas messes de oficiais e espaços anexos (incluindo piscinas);
- No cabeleireiro e em outros espaços civis ou militares;
- Etc. etc.

EVITEMOS, portanto, "modas" e atitudes de "Maria vai com as outras".


D - QUESTÃO FINAL

- Por que é que não se fala, escreve, filma sobre os livros do MELHOR escritor da guerra colonial - Carlos Vale Ferraz - que aborda desde a temática da guerra (vivida e sofrida) pura e simples, desde os riscos e os sofrimentos presentes ao planeamento operacional e, até, temática pícara e herói-cómica?

Saudações
Alberto Branquinho
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14119: Contraponto (Alberto Branquinho) (53): "A Malta das Trincheiras" de André Brun

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16140: Nota de leitura (842): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
O trabalho de investigação de João de Melo foi tão rigoroso e cuidado, que publicados estes dois volumes sobre a literatura das três frentes em 1988 a sua leitura continua a ser imprescindível, bem entendido para quem pretenda conhecer as primeiras décadas da literatura da guerra.
O jornalista e escritor Joaquim Vieira contextualiza os acontecimentos, seguem-se as antologias.
Deixamos para a próxima incursão a revelação de um conto de Álvaro de Guerra de altíssima qualidade, e até agora não divulgado entre nós, "O Tempo em Uane".

Um abraço do
Mário


Os Anos da Guerra, por João de Melo (2)

Beja Santos

“Os Anos da Guerra”, com organização de João de Melo, dois volumes, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988, constitui o primeiro e até agora o mais significativo levantamento sobre a literatura da guerra colonial, nas suas três frentes. No primeiro volume, o escritor João de Melo passa em revista as principais etapas que conduziram os movimentos de libertação à luta armada, percorrem-se os itinerários da preparação militar e analisa-se a literatura de Angola. Este segundo volume integra as literaturas de Moçambique e da Guiné e diferentes olhares sobre e no regresso da guerra. Como sempre, Joaquim Vieira procede às introduções dos respetivos conflitos. No caso de Moçambique, refere que em 1964 a FRELIMO procurou lançar a insurreição em cinco distritos, descobrirá que não possuía forças suficientes e concentra-se em Cabo Delgado e Niassa, aproveita-se dos apoios situados na Tanzânia. A FRELIMO demorou a impor-se, sofreu divergências internas, tinha no seu seio duas grandes correntes, a pró-ocidental e a francamente pró-chinesa. O projeto de Cahora Bassa, no distrito de Tete alterou por completo o ruma da situação em Moçambique. Eduardo Mondlane foi assassinado nos escritórios da FRELIMO em Dar-es-Salam, Samora Machel sucede-lhe na presidência no ano seguinte e a ala mais moderada do partido é afastada, tendo-se alguns dos seus dirigentes entregue às autoridades coloniais. O período do Comandante-Chefe Kaúlza de Arriaga irá ficar assinalado pela operação Nó Górdio, proclama que a guerrilha está à beira do aniquilamento, numa altura em que a FRELIMO se concentra no distrito de Tete e ameaça a construção da barragem de Cahora Bassa. A guerra avança, o equipamento da FRELIMO melhora e em 11 de Abril é disparado o primeiro míssil Strella. Escreve Joaquim Vieira:
“O relatório do quartel-general da Região Militar de Moçambique, referente aos quatro primeiros meses de 1974, indica um acréscimo global da atividade da guerrilha, um pouco por toda a parte. Impressionado pela deterioração da situação, Costa Gomes decide afastar o Comandante-Chefe”.

Vários são os autores referenciados, mas a figura principal é necessariamente Carlos Vale Ferraz e o seu “Nó Cego”, aqui fica um estrato:
“Ao Passos pareceu-lhe distinguir silhuetas de palhotas, de gente entre os arbustos. Parou, avisou os soldados da sua equipa, o alferes e o capitão. Agachados, dispostos num rosário de contas ao longo do trilho, pressentindo a chegada do momento, retida a respiração, os homens, em equipas de cinco, foram-se desfiando em linha.
Prontos? Interrogaram os olhos antes de se lançarem ao assalto correndo e disparando sobre tudo o que bulisse, sombras e corpos. Atiravam as granadas de mão para o interior das palhotas como garotas assustando galinhas, rebentavam a pontapé as frágeis portas enquanto atravessavam o pequeno aldeamento, agarravam pelos panos os corpos dos negros que não tinam conseguido fugir.
- Encosta esse par de jarras aí a essa árvore para lhes retirar o retrato! – gritava o Pierre o para o Vergas, que passava arrastando um casal de negros velhos, ela, a cocuana, de tronco nu, as mamas descaídas quase até à cintura, a pele cinzenta escamada do calor e da sujidade, ele, curvado e dorido, as articulações deformadas.
O Vergas hesitou em entregá-los ao Pierre, sentia-se estranho, já não possuía as mesmas certezas dos primeiros meses de guerra, abriu a mão para os deixar entregues ao pequeno tripeiro e ficou de olhos parados vendo-o colocá-los a jeito antes de disparar uma rajada curta. Seguiu o descair lento deles até se enrolaram sobre a terra nos últimos estertores.
- Esta não! – rugiu o Passos, com uma negra jovem agarrada por um braço, para o Pierre a rir-se ainda com a G3 a fumegar, preparando-se para repetir a cena. 
– Esta vai pagar-mas doutra maneira! Puxou-a para trás de um arbusto enquanto os homens da companhia continuavam a disparar e a partir os potes de barro. Deitou-a sobre o capim seco, escutando deliciado os gritos e os tiros, arregaçou-lhe o pano da saia, abriu-lhe as pernas e enfiou-se nela. Resfolgou que nem um toiro cobridor.
A negra continua deitada depois de ele se levantar limpando-se antes de apertar as calças, os panos enrolados na cintura, os olhos parados, muito abertos, apenas os músculos tensos do pescoço erguiam ligeiramente a cabeça fixando inexpressiva, a cara dos soldados que se aproximavam.
- Vá, ó Transmissões de um cabrão, vá, agora tu! – berrava o furriel.
O Brandão, pálido como sempre, cuspiu e passou adiante. Foi o Freixo quem lhe tomou a vez, deitou a G3 ao lado do corpo e bombeou-se para cima e para baixo, rápido a despachar antes que outros viessem ou o capitão passasse por aquele canto escondido na periferia do aldeamento assaltado”.

E chegamos ao contexto da Guiné, Joaquim Vieira fala do significado comercial da colónia, da pujança da ofensiva rebelde, da desarticulação do território, da chegada de Spínola, da sua ofensiva psicológica e militar, são informações que todos nós já dispomos no blogue. A escolha de João de Melo para a literatura inclui nomes grados como Álvaro Guerra e José Martins Garcia. Começa logo por destacar o conto “O Tempo em Uane”, que veio incluído em Histórias Breves de Escritores Ribatejanos, antologia organizada por António Borga, Lisboa, 1968, mas que apareceu também numa antologia de literatura ultramarina organizada por Amândio César em 1966. É uma narrativa belíssima, merece destaque no próximo texto, nunca dela se falou aqui. Uma das razões fundamentais por que se deve procurar conhecer os textos que João de Melo escolheu para esta obra incontornável é a visão do depois da guerra a diferentes vozes e aí depõem escritores como Olga Gonçalves, António Lobo Antunes e Lídia Jorge, entre outros. “Os Anos da Guerra” incluem a bibliografia geral sobre a guerra colonial e a cronologia sobre as lutas de libertação, evidentemente tudo reportado a 1988. É ocioso dizer que muitíssima água correu depois sob as pontes.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Foi graças a "Os Anos da Guerra", de João de Melo que encontrei azimute para me abalançar a escrever o livro "Adeus, até ao meu regresso", um percurso da literatura da guerra da Guiné.
João de Melo foi muitíssimo bem-sucedido na investigação a que procedeu sobre os escritos das três frentes, inventariou ao tempo o que havia de melhor. Acertou em cheio com os três escritores que combateram na Guiné. Álvaro Guerra, José Martins Garcia e Álamo Oliveira. Estranhamente, reduziu Armor Pires Mota a uma mera referência, justiça incompreensível.
Não hesitem em comprar ou procurar nas bibliotecas públicas esta preciosidade.

Um abraço do
Mário


Os Anos da Guerra, por João de Melo (1)

Beja Santos

“Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988, dois volumes, continua a ser a obra de referência para toda a literatura da guerra que travámos em África, até ao fim do império. Meticulosamente, ao longo de seis anos da década de 1980, João de Melo procedeu a um levantamento das vozes, e Joaquim Vieira fez o estudo de localização histórica e política.

João de Melo arranca os dois volumes com o seguinte ensaio:
“A guerra colonial e as lutas de libertação nacional nas literaturas de língua portuguesa". Fala-se de toda a literatura de colonização, do espírito civilizador, questiona-se a seguir o que é uma literatura de guerra e se, mesmo aqueles que contestavam a guerra e não foram combatentes não tiveram um papel pioneiro na construção de uma cultura conducente a um ideal de libertação. E depois João de Melo pergunta se há uma geração literária de guerra colonial, responde positivamente e apresenta uma listagem desde os percursores até aos anos 1980. Termina assim este seu ensaio sobre a literatura de guerra:
“Ela é um dos únicos meios de expressão que não faz silêncio nem tábua rasa sobre o enorme logro do nosso passado colonial. Daí que ela seja muito discriminada entre nós. E daí também que a sociedade do presente, parecendo enjeitar os seus males de guerra, continue a produzir a comprazer-se com o espetáculo da sua própria violência interior”.

Joaquim Vieira contextualiza a África nos anos de 1960 e a multiplicação das frentes. E chegamos à Gare Marítima de Alcântara e às atividades militares que a precedem. Logo um magnífico texto de Filipe Leandro Martins intitulado “O couro selvagem das botas”, que assim começa:
“O comboio deixou-nos na cidade com mais ou menos 20 anos. Saímos aos trambolhões, entre malas e saquinhos, berrando uns pelos outros com a solidariedade de bairro, de vila ou de escola. Eu vinha só com a mala pesadíssima que trazia de casa para a caserna que nos esperava, velhaca. Arrastávamo-nos com pressa, desancados pela viagem, pelas bagagens, pelo sol provinciano à uma da tarde no largo amarelo da estação e ouvia alguém gritar o meu nome uma porrada de vezes antes de voltar. Não me apetecia partilhar o que ia ser a vida dali em diante”.

Álvaro Guerra fala da sua recruta, tal como José Martins Garcia, e depois Álamo Oliveira descreve o cais de Alcântara:
“Talvez fosse febre aquele arder de Julho em Lisboa. O sol esgazeante e bravo. Meio-dia. João à beira do desmaio: uma dor nos olhos que cega. Do alto, na amorada do Uige, esforça-se por distinguir os corpos que enforma aquela pequena multidão, que se mexe e confunde, água oleosa batida por ventos sensuais, bailada, traindo os olhos, sempre o calor imperturbável, o corpo empastado de suor febril. A cabeça cresceu e pesa como nunca. João não consegue estar lúcido e, no entanto, sabe que não está louco. Ainda. Embaraça-se nos tentáculos do polvo, a multidão uivante, espasmódica. Lisboa ao fundo, postal quieto, enorme. O navio atracado. As escadas de acesso, altas e trémulas, enchem-se de soldados, as mãos a abanar, com fúria, com tristeza, olhos vermelhos como peixe-rei, os gritos da multidão lá em baixo a morrerem de afastamento e de cansaço”.

Joaquim Vieira dá-nos uma moldura dos acontecimentos angolanos de 1961, e depois o nacionalismo e o tribalismo, o aparecimento da Frente Leste, a guerrilha angolana dividida em três movimentos, seguem-se as narrativas dos escritores que em Angola combateram, ou sobre a guerra falaram: Manuel Alegre, Octaviano Correia, Manuel dos Santos Lima, José Luandino Vieira, Jofre Rocha, Wanda Ramos, David Mestre, Abílio Teixeira Mendes, Mário Varela Soares, Costa Andrade, António Lobo Antunes, Pepetela, João de Melo, Vergílio Alberto Vieira. A palavra a Mário Varela Soares no texto “O gajo de Cinfães”:
“O rapaz estava caído, branco, de um branco sujo onde se viam as riscas do suor cortando a poeira que tinha na cara. Um dos ombros estava descaído ao peso do sangue e do buraco negro que se avizinhava junto ao pescoço. E o borbulhar de sangue ouvia-se cavernoso e profundo como se viesse mesmo das entranhas do seu peito magro.
- O gajo tem a clavícula perfurada; não é grave mas precisa de ser evacuado…
O cabo enfermeiro quase soletrava as palavras, na importância da sua sapiência. O homem que se podia gabar de ser o tipo que mais mal dava injeções em todo o mundo. O rapaz olhava para todos sem perceber nada mais para além da sua dor e da surpresa de ter sido apanhado pelo único disparo nesse dia e nessa sua primeira guerra. A sua cara, de olhos esbugalhados, andava de um lado para o outro seguindo os movimentos lentos do cabo enfermeiro e do seu ajudante improvisado, o guia bailundo (…) Apeteceu-lhe dar uma das suas mãos para que o gajo de Cinfães a agarrasse no estertor das suas convulsões dolorosas. Nos seus olhos lia-se já o desmaio próximo; a camisa interior toda esfarrapada deixava à mostra a placa de sangue coagulado que era constantemente lavado por pequenas golfadas de sangue novo e brilhante. O buraco da bala persistia, negro e aberto, de bordos queimados.
- Tem orifício de saída – explicava o cabo enfermeiro ao guia bailundo.
O que seria o orifício de saída? As caras interrogavam-se numa mudez de desconhecimento. O que seria o orifício de saída. Os olhos do gajo de Cinfães reviraram-se ficando estrábicos numa incontinência de controlo; um vómito sobreveio ao desmaio encharcando com plaquetas brancas – o leite em pó do pequeno-almoço era sempre intragável – os braços do enfermeiro”.

E vamos despedir-nos com um texto de João de Melo, extraído de uma das obras incontornáveis da literatura da guerra, “Autópsia de Um Mar de Ruínas”:
“O furriel enfermeiro sacou rapidamente da faca-de-mato e cortou-lhe as calças, o dólman e a camisa. Fazia-o com a determinação dos olhos perdidos, dos homens que não iriam, nunca mais, perder a sua memória dos outros e de si mesmos. Cortava grandes pedaços de tecidos à navalhada e estava já ensopado daquele suor de lágrimas que tem a espessura da chuva e o salitre de uma navegação brutal. Ao ver os intestinos espalhados por todo o baixo-ventre do ferido, abri muito os olhos e disse três caralhos à vida, duas porras e três conas de madrinha-de-guerra aos capitães do Norte e, pondo-se a coçar a cabeça, sem saber o que faria àquele balão fumegante, começou por tomar as mãos do Gonçalves e disse: - Juro que não te vou deixar morrer, irmãozinho”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16113: Nota de leitura (840): “Outro Olhar, Guiné 1971-1973”, por Francisco Gamelas, edição de autor, 2016 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 13 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14359: Notas de leitura (691): “As Mulheres e a Guerra Colonial”, por Sofia Branco, A Esfera dos Livros, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Os elogios são merecidos, é uma reportagem em grande ecrã, relevam-se os principais tipos de protagonistas, nada nem ninguém fica descriminado nestas mulheres que têm pano de fundo histórico, valores, princípios e afetos.
Há casos visados que conhecemos bem, outros não tanto. Mulheres marcadas pela educação, pelo quadro ideológico, pela extrema dedicação, do princípio ao fim, e muitas delas ainda hoje vivem em estado de guerra, assediadas pelo fantasma do stresse pós-traumático.
E, obviamente, vistos no espelho, estamos todos lá, em todas as fases da guerra. Não sei o que são livros indispensáveis, mas este é verdadeiramente indispensável na marcha dos corações e dos agradecimentos pela ternura recebida ou vivida.

Um abraço do
Mário


As Mulheres e a Guerra Colonial, por Sofia Branco

Beja Santos

Tanto quanto me é dado saber, é a mais longa e detalhada viagem ao comportamento das mulheres durante a guerra, degrau a degrau, e numa rotação prismática onde vemos apoiantes entusiásticas, mães, mulheres e namoradas resignadas que esperam vestidas de preto os seu entes queridos, mulheres de oposição, mulheres que acompanham militares, enfermeiras paraquedistas, em “As Mulheres e a Guerra Colonial”, por Sofia Branco, A Esfera dos Livros, 2015, estão inúmeras formas de representar, de pontuar, valores, sentimentos, até o próprio termómetro com que se media o entusiasmo e depois o desfalecimento, na hora do regresso com a descolonização.

Veja-se o Traje do Ultramar em Glória do Ribatejo: “Quando os homens partem para a tropa, mães, mulheres ou namoradas passam a vestir roupa mais escura, enquanto pagam promessas a Nossa Senhora da Glória, que segue para as províncias ultramarinas em formato de postal para guardar na algibeira da farda militar. Isenta de serviço militar até à segunda metade do século XIX, Glória do Ribatejo adota um conjunto de rituais relacionados com a guerra. Os rapazes estreiam fato na inspeção militar, levam lenços oferecidos pelas namoradas, seguem cantando e tocando concertina, na camioneta, até Salvaterra de Magos. As glorianas preparam os comes com que vão recebê-los na volta”.

Temos aqui o MNF – Movimento Nacional Feminino em corpo inteiro, com ideologia e também sentida dádiva, exemplos de abnegação não faltavam.

Há as mulheres que abraçaram a clandestinidade e que protestam contra a guerra colonial e as que partem para o exílio com os seus companheiros, permanecerão em Paris, Londres, Lovaina, Lund, entre tantos outros destinos. E há as mulheres que ficam em franca oposição, manifestando-se no catolicismo de vanguarda, como Conceição Moita. As mulheres dos militares sempre com o credo na boca, os maridos partem para missão e às vezes não haverá regresso. Há até aquelas, como Dulcinea que acompanham o marido em Bissorã, experimentou uma flagelação brutal. Em Junho de 74 ela regressa a Lisboa, Henrique regressa a Bissorã mais um mês, despedida dolorosa: “Despede-se à pressa, com tristeza, de Inhatna Biofa, o rapaz órfão da guerra, de origem Balanta, que o acompanhara sempre, para todo o lado. Começara por trabalhar para a tropa em troca de comida, mas era tão especial que Henrique tomara-o por seu mainato. Acompanhava-o para todo o lado e era tratado como membro de família.
Henrique deixa-lhe o relógio Citizen, com cronómetro e de ponteiros brilhantes que se iluminam de noite”.

Há a história de Deonilde e Manuel Joaquim, dois anos de separação, ele regressa em 1967 e traz um órfão de guerra: “Quando o paquete Uíge chega ao Cais da Rocha do Conde de Óbidos, o menino vem fardado, segurando uma bandeira nacional”. A mãe de Manuel Joaquim embevece-se com a criança e apresenta às vizinhas a prenda que o seu Manel lhe trouxera da Guiné. Manuel e Deonilde casam e o menino será educado por a família, terá duas irmãs brancas. O menino, de nome Adilan, voltou à Guiné em 1978. Ficou desiludido, era já um “africano com educação europeia”. E há Natércia e Fernando Salgueiro Maia. Em Maio de 1973, quando Salgueiro Maia está pronto para regressar à metrópole, tem que partir numa emergência, Guidage está cercada: “Natércia fica 18 dias sem notícias de Fernando. Há chegada, Fernando repara como Natércia envelhecera”.

Há as filhas dos militares de carreira, acompanhando a guerra do princípio ao fim. Há as mulheres que pressentem o desastre, caso da Manuela, mulher de Fernando José, aviador. O General Fernando Neto bate à porta da casa de Manuela em 7 de Março de 1974, ela está a ajudar a filha mais velha nos trabalhos da escola. O sexto sentido feminino dá-lhe para perceber tudo, o General abraça-a e comunica que Fernando José fora abatido por um tiro direto, durante uma operação em Tenente Valadim, na província do Niassa.

Para muitas mulheres, a guerra não acabou com a descolonização, ficam os feridos, os deficientes e há o stresse pós-traumático, Sofia Branco é bem-sucedida a percorrer todas as tonalidades da palheta, ao sintetizar contextos históricos, usou de extrema correção não descriminando quaisquer protagonistas, as madrinhas de guerra, as que trataram deles quando voltaram, mutilados e traumatizados. E a autora tem razão quando nos diz: “Cada uma à sua maneira, as protagonistas deste livro foram pioneiras, desbravando caminhos outrora vedados às mulheres. Mães, irmãs, filhas, amantes, companheiras, amigas, muitas mulheres viveram a guerra colonial como se também elas tivessem sido mobilizadas. Depois da guerra, também para elas nada foi como dantes”.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14343: Notas de leitura (690): "Neste mar é sempre inverno", romance de Tibério Paradela (edição de autor, 2014) (Parte I): a epopeia da pesca do bacalhau à linha, em plena guerra colonial (Luís Graça)

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12629: Notas de leitura (556): "Soldadó", por Carlos Vale Ferraz (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Agosto de 2013:

Queridos amigos,
É facto que a paródia, a gargalhada e o dito inconveniente deixam de pé atrás todos aqueles que entendem que a guerra é um assunto muito sério, insuscetível de dichotes e paródias.
Facto é que a gargalhada saudável não se deixa impressionar por esses espíritos que exigem uma associação clara e perfeita entre a geografia da guerra e a panóplia de virtudes militares.
“Soldadó” é uma gema literária da literatura de guerra, sente-se quando se lê ou relê que já não se compadece com o figurino temporal, é uma derrisão que pertence ao melhor que a literatura de guerra produziu entre nós.

Um abraço do
Mário


Relendo uma obra-prima: Soldadó, por Carlos Vale Ferraz

Beja Santos

A derrisão, a chacota, o divertimento quase ilimitado em torno da guerra é uma permanente tentação literária. Perante o tratamento sério, a agitação de valores, o discurso sobre a bravura, o heroísmo, a plena abnegação de si, o escritor que se pauta pelo burlesco, a chalaça, a paródia e o chocarreiro modela a trama narrativa como se virasse a guerra do avesso, e quanto maior é a inspiração e o talento a prosa comediante torna-se plausível, o leitor é tomado por um humor cáustico e, no final, sabe bem medir as consequências da carga metafórica de tudo quanto leu. Quando lemos aqui no blogue o Jorge Cabral ou o Alberto Branquinho, dois alquimistas do riso, ficamos com a noção de que a gargalhada é o perfeito contraluz para estes teatros de guerra onde tudo corre ao contrário e a valentia tem outro significado.

Vem este apontamento para localizar “Soldadó”, de Carlos Vale Ferraz, ao que sei a sua única incursão pela graça fértil, esfuziante (Editorial Notícias, 1997). A contracapa é esclarecedora: “Soldadó é um militar destacado para África, em plena guerra colonial. Pouco dotado de inteligência e obediente que nem um cão, Soldadó sente-se às mil maravilhas nas suas funções militares. De um combate misterioso que ninguém sabe ao certo como começou, Soldadó foi o único ferido. Abre-se um inquérito para tentar esclarecer os factos ocorridos. É neste inquérito que os sargentos vão contando ao comandante encarregado do relatório a história incrível de Soldadó – o seu nascimento em cabeça seca, a sua incursão na vida militar, a viagem para África a bordo do Niassa, as suas funções militares em África. Com muito humor, são também relatados pitorescos e caricatos acontecimentos militares, pondo em causa toda a instituição militar e, muito particularmente, a guerra colonial”. É literatura tão universal quanto “Lugar de Massacre”, de José Martins Garcia, outro monumento literário, já com dois doutoramentos à sua custa, e de aqui já se fez referência. É certo que o autor transfere toda esta pirotecnia, todo este humor em fogo preso para Moçambique, mas cabe ali qualquer teatro de operações.

O nosso herói chama-se Fergusinho do Ó, não sabia ler nem escrever, era básico, mas não havia ninguém mais disponível do que ele: cangalheiro, sacristão, fiel de armazém, projecionista de filmes pornográficos, estivador e até piloto e guarda-costas de cíclicas excursões de prostitutas, vindas para animar os infortunados guerreiros.

Tudo se passa em Mueleka, um comandante recém-chegado promove uma reunião para apreciar o insólito caso do Soldadó. É este processo delirante que se vai desenovelando como portentosa comédia de costumes de corporação militar. Estão presentes o tenente-coronel, comandante de Mueleka, o segundo comandante e mais uma data de gente, como é o caso do narrador. O comandante quer tudo em pratos limpos, ao capitão Gorgulho cabe as primícias, Fergusinho do Ó nasceu em Cabeça Seca, terra de hereges, lá no ermo nortenho. O Soldadó foi apurado para as fileiras se bem que completamente blindado de inteligência, coube-lhe como escola o Regimento de Infantaria 13. Ficou demonstrado que não lhe podiam entregar uma G3, o Soldadó, por artes mágicas, disparava em todas as direções, só a boa sorte evitou acidentes mortais, foi assim que o reclassificaram em soldado básico, não sentiu qualquer pesar, depois foi mobilizado para a guerra.

Passo a passo, o Soldadó aparece associado a peripécias descomunais: durante uma missa campal deitou no cálice da consagração bagaço da intendência, o capelão contorcia-se de sufocação, com a goela em chamas. O tenente-coronel mais congestionado fica com a descrição das gentes de Cabeça Seca, a chegada das putas de Kampuka e a missão do Soldadó em receber as verbas pela prestação de serviço, controlando os tempos da mesma. A trama narrativa é uma delícia e não deixa desfalecer o leitor, à volta daquele tenente-coronel desfilam oficiais e sargentos de vária ordem, cada um é mais hílare que o outro, a facécia seguinte é mais divertida e descomposta que a anterior. Os testemunhos prosseguem, é preciso descobrir-se como é que o Soldadó está prestes a acabar a segunda comissão em Mueleka, querem fazer do Soldadó um herói e acabam por descobrir esta terrível irregularidade que em termos de justiça militar vai custar uns bons castigos a uma certa hierarquia negligente.

O Soldadó impôs-se, não há missão em que não se revele imprescindível e não dê bom andamento ao serviço, já zelou pelas meninas que visitam regularmente o quartel, foi cangalheiro, é exemplar como fiel de armazém, eis senão quando uma visita à habitação do Soldadó revelou algo de surpreendente: aqui se descobriram fios de ouro e de prata, carteiras todas limpas de dinheiro, algumas contendo fotografias de familiares, enfim, coisas que o soldado achara um desperdício irem para o fundo da terra numa urna de pinho, havia até mesmo dinheiro enrolado em notas o que indiciava que o Soldadó também descobrira as delícias com as meninas vindas de Kampuka. E não menos impressionante foi descobrir-se uma metralhadora HK, uma caixa de cinco dúzias de granadas de mão, uma G3, uma faca de mato e uns binóculos que ninguém soube como tinham ali ido parar. Acontece que este material terá tido muita utilidade quando começou um misterioso ataque a Mueleka, saiu do quarto, disparou infatigavelmente até ser ferido por um estilhaço.

Aquele ato veio mesmo a calhar, Mueleka estava nesse dia a ser visitada pelos altos comandos, aquele herói dava jeito, ainda por cima o general tinha ouvido o farto fogachal, o comandante viu ali a boa circunstância para conquistar uma medalha. Iniciado o processo para a condecoração, descobre-se que o soldado anda por ali há quase duas comissões, desaparecera a nota de substituição, ninguém deu por nada quanto à falta de rendição do Soldadó. Voltara-se o feitiço contra o feiticeiro. Quem fez o relatório do foguetório descobriu que este fora uma brincadeira combinada entre a companhia de caçadores e a artilharia para assustar o general e os oficiais do Estado-maior. O comandante tudo ouvia, já com os olhos revirados e exigiu que constasse que a guarnição de Mueleka sofrera um violento ataque do inimigo, do qual resultara um ferido e danos em instalações. E foi perentório, quem afirmasse o contrário iria a tribunal militar por traição. Atendendo ao tempo de serviço, disseram-lhe que iria rapidamente para casa, ele opôs-se: “Meu alferes, eu fico cá e o exército escusa de mandar vir outro soldado da metrópole para me substituir!”. Quis o destino cruel que a história, até agora pícara, tivesse um desfecho truculento, mesmo o comportamento dos soldados obedientes é imprevisível, e depois do que aconteceu o comando, oficiais e sargentos estavam radiantes, não percebiam a dor daquele Soldadó que se afeiçoara, de alma e coração, a Mueleka.

É uma novela espantosa, este “Soldadó”, pela arquitetura da irreverência, pela graça transbordante, pela galeria de gente pícara. Não dá para entender o silêncio à volta desta obra-prima, tão necessitada está de reedição.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12622: Notas de leitura (555): “Magrheb/Machrek – Olhares luso-marroquinos sobre a Primavera Árabe”, por Raul M. Braga Pires (Francisco Henriques da Silva)

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11366: Agenda cultural (258): Tertúlia Fim do Império no Porto: 5ª feira, dia 11 de abril, às 16h, na Messe da Batalha: apresentação do romance "As hienas também choram" (Papiro Editora, 2006), de João Carlos Sarabando, ex-alf mil em Moçambique (1972/74), e hoje arquiteto




1. Através do nosso coeditor Magalhães Ribeiro, recebemos este convite e pedido de divulgação, remetido  pelo nosso camarada de armas e escritor Manuel Barão da Cunha, animador da Tertúlia Fim do Império:

Assunto - Tertúlia

Caros camaradas e amigos da Tabanca e outros, espero que estejais bem e possais participar no próximo e 6.º encontro da nossa tertúlia «Fim do Império», na Invicta, desta vez sobre o livro do arquitecto João Carlos Sarabando, ex-alferes miliciano ["As hienas também choram", Porto: Papiro Editora, 2006, romance, 456 pp].(*)

Será dia 11, 5ª feira, na Messe da Batalha, com início às 16h00, presidido, como habitualmente, pelo nosso general Luís Medeiros, oriundo de Cavalaria.


A vossa presença é importante. Quem puder traga um amigo, serão bem-vindos. Desta vez espero também poder participar. Aliás nas 64 sessões até agora realizadas em vários locais de Portugal, só falhei uma.


Abraços de M. Barão da Cunha, coordenador em regime de voluntariado. (**)
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Notas do editor

(*) Sinopse da editora: "O livro ficciona as vivências de um punhado de soldados que entre 1972 e 1974 participou na guerra colonial, no Norte de Moçambique. Numa linguagem crua, quase de caserna, e sempre na perspectiva do homem ainda em formação e do soldado miliciano carne para canhão regista um universo de histórias/contradições/conflitos, quase sempre marginais à história."