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sábado, 19 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2776: Poemário do José Manuel (9): Nós e os outros, as duas faces da guerra



Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > Maio de 1974 > "Um bigrupo do PAIGC, a chegar para um encontro connosco em Mampatá e depois de partida".
Fotos e poema: © José Manuel (2008). Direitos reservados.



As duas faces da verdade (1)

a outra face da verdade
é só
o outro lado da história
é apenas
outra maneira de sentir
é só
o reverso da medalha
o outro ângulo
outra maneira de ver
e põe em causa
a minha razão
mas terei nunca
vergonha
desta farda que me cobre
quero sim é entender
a outra face da verdade.

Mampatá 1974

josema

________
Nota de L.G.:

sábado, 5 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2723: Poemário do José Manuel (6): Napalm, que pões branca a negra pele, quem te inventou ?


Uma das célebres fotos de Bara István, o fotógrafo húngaro que esteve embebed com forças do PAIGC, no mato, em 1969/70. Nesta imagem, da sua fotogaleria, mostram-se os efeitos do napalm... Presume-se que seja uma vítima dos nossos bombardeamentos. Não se diz exactamente onde foi tirada. A legenda (em húngaro) é a seguinte: Bara István: Napalm áldozata.Guinea-Bissau, 1969. Julgamos tratar-se de uma imagem copyleft... De qualquer modo, reproduzimo-la com a devida vénia e agradecimento ao autor e citando a sua página (comercial).

Foto: Foto Bara (com a devida vénia...)


Napalm
que pões branca
a negra pele
quem te inventou?
que queimas árvores centenárias
que fazes em sal
a terra arável
quem te soltou?
tu...
de quem nasce
a luz que cega
e o som que ensurdece
e causas dor
sem saber a quem
se ao homem que guerreia
se à criança que brinca
ou à mulher que semeia
quem te apaga a luz?
e não te deixe voar
quem te vai silenciar?


Salancaur 1974

josema (2)
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...

(2) José Manuel Lopes, o José Manuel, muito simplesmente... Foi Fur Mil, Op Esp, CART 6250 (Mampatá, 1972/74), e sobretudo é um grande poeta, além de produtor de excelentes néctares... na sua Quinta da Graça, no Douro.

Este poema que ele acaba de me mandar, há quatro horas atrás, vem justamente a propósito do último poste do Nuno Rubim, e por isso o publico de imediato, preterindo os anteriores, que serão oportunamente divulgados (recordam-se que ele prometeu, e tem cumprido, mandar-me todos os dias um poema da Guiné, escrito na Guiné).

Vd. poste do Nuno Rubim: 5 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2722: Fórum Guileje (12): Bombas de napalm e outras curiosidades da nossa visita ao Cantanhez (Nuno Rubim)

sexta-feira, 28 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cananime > Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Um grupo de participantes do Simpósio Internacional de Guileje (1 a 7 de Março de 2008) atravessam, de canoa motorizada, o Rio Cacine, entre Cananime e Cacine... De cima para baixo: o barqueiro, ao entardecer; o José Carlos Marques, jornalista do Correio da Manhã, em primeiro plano, do lado esquerdo; a discretíssima Catarina Santos, da Fundação Mário Soares, com a sua inseparável máquina fotográfica...

Fotos: ©
Luís Graça (2008). Direitos reservados.



1. Mais poemas do dia, do José Manuel Lopes, da Quinta da Graça, no Douro, o José Manuel, muito simplesmente (como era conhecido em Mampatá)... Poemas de um imenso poemário, recebidos, dia a dia, ao longo de uma quinzena, de 16 a 28 de Março de 2008. Foram escritos na Guiné, um por dia.

Por detrás da máscara do José Manuel (que eu não conheço pessoalmente, nem por fotografia, só por voz e por mail), que foi Fur Mil, Op Esp, CART 6250 (Mampatá, 1972/74), há uma voz muito original, pessoal, uma surpreendente revelação da escrita poética sobre a guerra colonial na Guiné... Até agora guardada o baú do sótão...

Muitos dos poemas (assinados por josema) que temos recebido, por e-mail, todos os dias, não têm título. E alguns não estão datados. Vão-se publicando (1), ao sabor da espuma dos dias, e das remessas do poeta, e dos humores do(s) editor(es)... Que já conquistou leitores fiéis aqui, na nossa Tabanca Grande... Eu, o Torcato Mendonça e, seguramente, muitos outros camaradas... Pode morder, que esta poesia é para morder, para comer, para trincar.... (LG).


Calor, cansaço, suor
saudades de tudo
e de um rio...
mas podia ser pior
pois há ali o Corubal
com sombras e água boa
nem tudo é mau afinal
não é o Douro, eu sei
nem o Tejo de Lisboa
são outros os horizontes
falta o xisto e o granito
as encostas e os montes
mas diga-se na verdade
há o Carvalho, há o Rosa
há um hino à amizade
há o Gomes e o Vieira
a sonhar com a Madeira
há o Farinha e o Polónia
gestos e solidariedade
há o Esteves e o Pinheiro
amigos e sinceridade
há o Nina e até amor
também sofrimento e dor
há o desejo de voltar
e um apelo à liberdade.

Josema
Mampatá 1974


Ouve-se um violão
numa noite de luar
tocado pelo Gastão
p'ra algo comemorar
cantigas de Zeca Afonso
de raíz popular
põem magia no ar
mas eis
outro som a chegar
mais grave e persistente
é Guiledje a embrulhar
é a guerra noutra frente
até que o ataque acabe
a festa é interrompida
e recomeça num brinde
à vida da nossa gente.

s/d


As brincadeiras loucas
acabam por ter sentido
se as alegrias são poucas
neste cantinho perdido

já vi tourear uma cabra
entre os arames farpados
e outros ao beber água
ir pelos ares aos bocados

desde o carreiro de Uane
à estrada para Nhacubá
todo o cuidado é pouco
ninguém quer ficar por cá

chegam do patrulhamento
cobertos de pó a suar
anseiam pelo momento
de se refrescar no bar.

Mampatá 1973
josema


Guernica!
pintura
visão, mensagem, recado?
para quem e porquê?
Pearl Harbour, Hiroshima
Londres, Leninegrado
e tantas mais
Vietnam, napalm
e o mundo não reage
se espera que acalme?
se esquece Nabuangongo
Guidage, Guiledje
e as minas de Mueda
dão graças à sua sorte
os regressados
dos corredores da morte
e agora
eis a bomba inteligente
mais importante
que gente
e o mundo estúpido
consente!

s/d


Quantas batalhas e guerras
geradas pela ambição?
quantos pior que feras
mataram o seu irmão?
sem nunca se aperceberem
das causas e da razão
mortes em troca de quê?
a que preço e porquê?
a resposta está no ganho
no lucro que é tamanho.

s/d


Ao menino do papá
"É mais fácil entrar um camelo no cu duma agulha, que
um rico no reino dos céus"


Metam-lhe a agulha no cu
para ver
se ele acorda
não vá morrer de repente
e venha culpar a gente
do encontro
com belzebu.

s/d


O calor húmido nos envolve
abraça-nos a escuridão
e a noite se faz dia
c’o ribombar do trovão
cai a água em catadupa
numa suave carícia
fecho os olhos
que delícia
até sinto um arrepio
sinto-me bem afinal
até chego a sentir frio
e penso que é Natal...

Guiné 1972
Josema


Neste imenso sofrer
pensar Nele ajuda
mas Ele parece não ouvir
então solta-se a raiva
incham as veias do pescoço
outro homem nasce
e cai-se dentro do fosso.

josema
Guiné 1972


Um ruido vem do céu
e há cabeças no ar
hoje é dia de correio
há novas para chegar
faz-se a distribuição
com chamada frente ao bar
para o Santos nada veio
será que vai desmaiar?
p'ró Zé Manel veio a Bola
com as novas do Benfica
p’ró Pinheiro uma encomenda
e alguém lhe manda uma dica
fazendo-se para a merenda
sim de correio foi o dia
não pode haver melhor prenda
é altura de alegria
retiram-se os felizardos
relêem a mesma carta
até afogar a saudade.

Mampatá 1972
josema


Quero irmas não sei onde
tudo
me parece um delírio
sem sentido nem razão
neste mundo desumano
quero fugir
mas não posso
prende-me
o sentir-me solidário
à união dos Unidos (*)
prende-me
o cheiro a mosto
prende-me
o calor de Agosto
prende-me
um regresso ao Douro
prende-me
uma família que espera
por tudo isso
não posso partir.

Bolama 1972
Josema

(*) Cart 6250, Os Unidos
________

Nota de L.G.


(1) Vd. postes anteriores:

27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

3 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...

9 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2619: Poemário do José Manuel (2): Que anjo me protegeu ? E o teu, adormeceu ?

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2630: Poemário do José Manuel (3): Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2665: Poemário do José Manuel (4): No carreiro de Uane... todos os sentidos / são poucos / escaparão com vida ? / não ficarão loucos ?

quarta-feira, 19 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2665: Poemário do José Manuel (4): No carreiro de Uane... todos os sentidos / são poucos / escaparão com vida ? / não ficarão loucos ?






Guiné > Região de Tombali > Simpósio Internacional de Guiledje > Visita ao sul > 3 de Março de 2008 > Imagens, eternas, do Rio Corubal: rápidos do Saltinho (a primeira, de cima); rápidos de Cusselinta, as restantes.

Fotos: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


1. Mais poemas do dia, do José Manuel, recebidos, dia a dia, ao longo de uma semana, de 8 a 15 de Março de 2008. Foram escritos na Guiné. Estavam guardados no baú do sótão. O José Manuel foi Fur Mil, Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74. Obrigado, camarada, por quereres partilhar connosco a tua escrita poética.

Já nada é igual
num mundo que cai
onde havia esperança
espreita o mal
é uma vida que se vai.

Salancaur 1973

josema
__________

A escuridão
pode não ser o fim
se após a noite
vier o dia
na escuridão
podemos encontrar estrelas
se depois de nós
houver sempre crianças.
josema
___________________

Pensar que amar é dor
é não amar
amar
é dominar
a violência
que há em nós
é um não á guerra
é não haver polícias
nem milícias
é procurar carícias
num prazer por acabar
josema
Guiné 1973
________

-Sabes? Sonhei
que as coisas boas
não acabaram
pois
não têm fim
acreditei
que vale a pena esperar
vale a pena
saber
que o nosso inferno
um dia
vai acaba
o maldita
ou a má sina
como lhe queiras chamar
havemos de enganar
juro-te
sinto dentro de mim
confiança
uma força renovada
-dos tolos! dizes tu
-seja, porra,
mas vale a pena
pois 'tou
farto de escutar
aquela voz
que tanto quero calar
‘tou farto de lamentar
este destino traçado
foda-se!
quero um futuro
marcado
com traço
por mim riscado.

Kolibuia (2) 1973
Josema
___________________

Seria bom pronunciarnuma doce ilusão
um até sempre
a dor atenuar
com um tímido
acenar de mão
não deixar
que a crueza da razão
se sobreponha à paixão
é bom sonhar
é bom esquecer
ou então nunca saber
que só nos pode ficar
um adeus como opção.

Guiné 1973
___________

Quero sonhar
e não consigo
viver um mundo
que não tenho
nem encontro
desejo amar
e não morrer
quero esquecer
a luta ódio
e não sentir
a amargura do suor
encontrar a paz
enterrar a dor
sim irmão
além no horizonte
bem longe
para lá daquele monte
mas o mundo ri
é louco
não vê
nem um pouco
e caminha para o fim.

Guiné 1973
_________________

Gostava de vos falar
dos esquecidos
dos heróis que a história
não narra
que as viúvas choraram
mas já não recordam
daqueles
que nem tempo tiveram
de ter filhos
que os amassem
descendentes
que os lembrassem
daqueles
que nunca tiveram
o dia do pai
vítimas de guerras
que não inventaram
em tempo que já lá vai
falar deles é prevenir
se bem que de nada lhes valha
de guerras que possam vir
geradas pela ambição
dos que nunca morrerão
num campo de batalha.
__________________

Olhos semi cerradosquerendo ver
para além das árvores
passo controlado
procurando caminho
já calcado e pisado
orelhas a pino
a querer ouvir
além da neblina
todos os sentidos
são poucos
escaparão com vida?
não ficarão loucos?

Carreiro de Uane 1972
josema
____________

Notas de L. G.:

(1) Vd. postes anteriores:





(2) Colibuía: povoação junto ao Rio Corubal, perto de Aldeia Formosa ou Quebo, que não consigo identificar na Carta do Xitole. Vd. poste de 26 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXVIII: Os rios (e os lugares) da nossa memória (2): Corubal (Saltinho e Contabane) (José Neto)

quinta-feira, 13 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2630: Poemário do José Manuel (3): Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém > 2 de Março de 2008 > O Zé Teixeira, no tchon nalu, em pleno Cantanhez, no meio de duas mulheres da população local. Belíssimas, gentis e vistosas mulheres nalus, de porte altivo e de grande dignidade. Na carta de Cacine, a toponomia é Jemberem, a norte de Madina de Cantanhez... Hoje todo o mundo diz e escreve Iemberém. De resto, um dos afluentes do Rio Cacine é o Rio Iemberem... Será que terá havido um erro dos nossos cartógrafos ou uma gralha tipográfica ?


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém > 1 de Março de 2008 > Onde quer que chegue, o Zé Teixeira conhece sempre alguém, antigo militar de unidades africanas, antigo milícia, antigo combatente do PAIGC, etc. E tem uma enorme facilidade de relacionamento humano. Ei-lo aqui em Iemberém, local onde a comitiva do Simpósio Internacional de Guileje pernoitou dois dias... Fica em plemo coração do Parque Nacional do Cantanhez. E é um orgulho para os seus habitantes e para a equipa da AD - Acção para o Desenvolvimento que lá tem projectos... Uma surpresa que contrasta com a tristeza que se sente em Bissau...

Fotos: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.



Guiné > Região de Tombali > CCAÇ 2381 (1968/70) > Mampatá Foreá > 3 de Novembro de 1968 > Alguns militares portugueses, entre eles o Zé Teixeira (em segundo plano, de óculos esfumados), em operação de rescaldo de um ataque do PAIGC, ao destacamento e à tabanca, à hora do almoço.

Imagem do José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro, CCAÇ 2381( Buba, Quebo, Mampatá e Empada ,1968/70). Ele esteve em Ingoré (no norte, em treino operacional) e foi depois colocada no sul (Bula, Aldeia Forbosa, Mampatá, Empada) (Maio de 1968 / Maio de 197o). O Zé voltou à Guiné em Março de 2005, e partir daí já lá foi mais duas vezes, a última das quais por ocasião do Simpósio Internacional de Guiledje. Deve estar de volta a casa, nos próximos dias, fazendo o percurso de jipe, de Bissau até ao Matosinhos. Daqui vai um grande abraço para ele e para os demais camaradas da tertúlia do Norte... Que os bons ventos do deserto vos tragam a casa, sãos e salvos... Passámos, juntos, momentos de grande emoção na semana de 29/2 a 7/3/2008 (LG).

Foto: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.


1. Mais três poemas do José Manuel, recebidos em 4, 5 e 6 de corrente. Foram escritos na Guiné (1). O José Manuel foi Fur Mil, Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74 (2). Ainda não temos nenhuma foto dele nem do tempo dele. Aproveito para o convidar a ler alguns dos excertos do diário do Zé Teixeira que passou também por Mampatá, uns anos anos (3). Aproveito também para lhe agradecer as suas gentilezas: José Manuel veio à festa do Beja Santos e trouxe alguns dos vinhos da sua Quinta da Graça para a malta provar... Sei que deixou para mim, ao cuidado do Virgínio Briote, uma garrafa de vinho fino... Obrigado, José Manuel! Como dizia um outro poeta, maldito, Luíz Pacheco (morto há pouco tempo), ainda melhor que a poesia, são as mulheres, e ainda melhor que as mulheres é o vinho, que nos faz esquecer as mulheres... Os teus poemas transportam-nos ao encanto, ao sortilégio, ao perigo das matas e das picadas de Tombali, mas também à solidão e à miséria da nossa condição de homens, combatentes, sem razão nem para matar nem para morrer... (LG).


Estradas amarelas
corpos cobertos de pó
pica na mão à procura delas
o polegar ferrado no pau
tac, tac, tac, tac, tac, tac
tacteando por sons diferente
o Fernandes com cara de mau
espeta no solo o ferrão da pica
tac, tac, tac, tac, tac, TOC
o calafrio
depois o grito
anunciando o perigo
o grupo é mandado parar
chega o Vilas à frente
e todos manda afastar
de joelhos no chão
numa simulada carícia
afaga a terra com a mão
com gestos simples e perícia
vai cavando devagar
hei-la... está aqui
lisa preta a brilhar
parece inofensiva a maldita
deita-lhe a mão e grita
és minha, já te tenho
volta-a
tira-lhe o detonador
e entre dentes, diz
esta não
esta não causará dor.


Tenho saudades
do amor que não se compra
daquele que se sente
o tal
que vem de dentro
e
que não acaba
com um orgasmo
não quero mais
ser
aquele que se vai
assim que se vem
não quero mais
ficar vazio
não quero mais
ficar sem eco
não quero mais
perder o elo
que me liga
a ela
seja ela quem for
não quero mais
fazer amor
sem ter de oferecer uma flor.

Josema
Bissau 1974


Saborear a vida

é sentir os outros
é sentir o vento
é sentir a água
é tocar...
num corpo de mulher


guiné 1972
josema
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores:
9 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2619: Poemário do José Manuel (2): Que anjo me protegeu ? E o teu, adormeceu ?

3 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...

(2) Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

(3) Alguns dos excertos de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):

6 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXVII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (5): Mampatá, Agosto-Setembro de 1968

(...) Mampatá, 7 de Setembro de 1968: Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ? Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não (...).

(...) Mampatá, 17 de Setembro de 1968: Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN.Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo (...).

(...) Mampatá, 25 de Setembro de 1968: Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal (...).

(...) Mampatá, 29 de Outubro de 1968: (...) A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos (...).

(...) Mampatá, 5 de Janeiro de 1969: (...) Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (...).

(...) Chamarra, 23 de Janeiro de 1969: (...) Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer (...).

domingo, 9 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2619: Poemário do José Manuel (2): Que anjo me protegeu ? E o teu, adormeceu ?

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > Restos de munições (1 granada de RPG 7, do PAIGC; 2 invólucros das munições da metralhadora pesada Browning, usada pelas NT, para defesa dos aquartelamentos; 8 invólucros das munições 7,62, para a espingarda automática G-3... Visita, por volta 11h30, ao antigo aquartelamento da CCAÇ 2317 (1968/69), que foi abandonado pelas NT em finais de Janeiro de 1969, e posteriormente dinamitado pelo PAIGC.

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

Guiné > Região de Tombali > 1 de Março de 2008 > O famoso poilão, num entroncamento da estrada que vem de Quebo, Mampatá, Chamarra, Gandembel e segue para Guileje (desvio à direita) e depois Gadamael... Esta árvore centenária, a que foi dado o nome de um guerrilheiro, sinaliza o coração do antigo corredor da morte (para as NT) ou corredor do povo (para o PAIGC)... Paragem da coluna que, no âmbito do Simpósio Internacional, seguia para Guileje... No tempo da guerrilha. não havia aqui nenhuma tabanca... Muita gente do PAIGC perdeu a vida nesta região por ocasião de colunas logísticas que seguiam para o sul, leste e até norte do país...

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

1. Mais três poemas para o poemário do nosso amigo da Quinta da Graça, o ex-Fur Mil José Manuel (Lopes), enviados em 3, 2 e 1 de Março de 2008, respectivamente. O último enviado não tem título (1):


Uma vida quanto vale?
na mira da minha arma
só há vultos
sem sentido
corpos sem alma
consciências amordaçadas
na outra mira
estou eu?
o Fernando, o António?
vá-se lá entender
porque foi ele e não eu
sob a terra que pisamos
a mina está escondida
mão de traição
a há posto
em guerra suja
de inimigo sem rosto
que passos te guiaram
Albuquerque?
que anjo me protegeu?
e o teu?
adormeceu?
são perguntas
sem respostas
e nunca ninguém
o porquê
de um corpo em postas.


O medo
ele está presente
ele intimida
proibe o desejo
até de amar
e não me deixa sonhar

josema
Guiné 1972


O nascer de um bruto

Já não sei rezar
já não acredito
já não sei amar
só sei que grito
berro alucinante
dentro do corpo
grito mudo
aflito
de eco profundo
violento
na cabeça latejando
que
só a áspera bebida
abafa
o tal grito
a vontade
a razão
o sentimento

1973 Guiné
josema (2)

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série: 3 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...

(2) Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

segunda-feira, 3 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...

1. Nova série onde serão publicados, com regularidade, os poemas do José Manuel (ou José Manuel Lopes), ex-Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74 (1). Poema sem título, enviado em 29 de Fevereiro de 2008.

Pior
que o inimigo
é a rotina
quando os olhos já não vêem
quando o corpo já não sente
quando já se não recorda
o nosso último abraço
e a arma se tornou
um apêndice do braço
pior
é quando nos esquecemos
dos afagos e carícias
que uma mão pode fazer
da mensagem e melodia
que uma canção pode conter
pior
que as chagas nas virilhas
ou o aço a entrar no corpo
são os delírios sem sentido
e o procurar esquecer
as pessoas mais queridas
pior
é o despertar
do mal que há em nós
e é preciso pensar
e é preciso parar
e é preciso sentir
que ainda estamos a tempo

josema
Salancaur
Março 1973
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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)