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segunda-feira, 22 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24333: os nossos capelães (18): Ainda o caso do Arsénio Puim, CCS/BART 2917 (Bambadinca, maio de 1970/maio de 1971): nova informação produzdia pelo jornalista António Marujo, "Sete Margens", 19/5/2023

 

Arsénio Chaves Puim, ex-alf graduado capelão,
CCS/BART 2917 (Bambadinca, maio 1970 / maio 1971)

Foto: © Gualberto Magno Passos Marques (2009). Todos os direitos reservados.
Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Cópia do Ofício nº 589/71- GAB, da Direção Geral de Segurança,  Delegação da Bissau, dirigida ao Director-Geral de Segurança, datado de  Bissau, 20 de maio de 1971, e assinado por A. H. Matos Rodrigues, inspector-adjunto.

 Fonte: Sete Margems. Cortesia de António Marujo: 

Sete Margens > António Marujo | 19 Mai 2023 >  O  capelão expulso por querer descalçar os dois sapatos à guerra






Fotocópia de uma das páginas do Diário do capelão Arsémio Puim, apreeendido pelas autoridades militares (comando do batalhão) e entregue à DGS - Direcção Geral de Segurança, delegação de Bissau.

Fonte: Sete Margems. Cortesia de António Marujo: 

Sete Margens > António Marujo | 19 Mai 2023 >  O  capelão expulso por querer descalçar os dois sapatos à guerra


Transcrição (revisão e fixação de texto: LG): 

"Bambadinca - 10/5/1971 (*)

Continuo a conversar com os "turras" presos. Tornei-me conhecido e amigo deles.

As mulheres disseram ao cipaio para me dizer que estão muito contentes comigo, porque eu sou amigo dos meninos. E à noite tornaram a dizer que vão pedir que Deus me dê tudo para a minha vida.

Respondi-lhes: "gatè" (obrigado, em balanta), ao que riram.

Sinto-me, porém, confuso. É que a minha actuação, não tendo nenhuma intenção de psico  militar, poderá precisamente ter as mesmas consequências, o que não me interessa.

As condições em que esta gente vive continuam a ser miseráveis: dormir no chão, sem condições de higiene, nem (..-)"


1.  Mais dois documentos para apreciação dos nossos leitores, respeitantes ao caso do nosso amigo e tabanqueiro Arsénio Puim, que no CTIG foi alf graduado capelão, CCS/BART 2917 (Bambadinca, maio de 1970/maio de 1971).  São documentos que nos ajudam eventualmente a perceber melhor, senao as razões, pelo menos as circunstancias, da sua expulsão do CTIG ao fim de um ano de comissão dé serviço. 

Recentemente o jornalista António Marujo dedicou-lhe um extenso artigo, resultante de um trabalho de pesquisa, publicado na edição do semanário Expresso de 12 de maio de 1973 (*) e agora, com algumas correções, no jornal digital "Sete Margens" (19 de maio de 2023).

(...) É uma história conhecida de poucos: em 1971, houve um segundo capelão expulso do exército, depois do padre Mário de Oliveira. Além do então padre Arsénio Puim, que esteve um ano na Guiné, esta investigação permitiu ainda descobrir que pelo menos outros onze padres católicos se opuseram à Guerra Colonial e não quiseram ser capelães. Este texto foi publicado inicialmente na revista E do Expresso, do dia 12 de Maio de 2023. Em relação a essa versão inicial, foram corrigidos apenas dois pormenores, a partir de informações de Luís Graça. (...)

2. Dois comentários de LG (**)

(i) António Araújo escreveu na Revista do Expresso, edição de 12 de maio de 2023, a propósito do Arsénio Puim e dos prisioneiros de Bambadinca (que foram feitos na zona de Madina / Belel, sector L1, e não em Madina do Boé, sector L5, no decurso da Op TRiàngulo Veremelh), 4 e 5 de maio de 1971, como tive ocasião de esclarecer o jornalista) (***):

(...)“As pessoas ficaram ali vários dias, presas numa cerca ao ar livre” e da tabanca (aldeia) vizinha é que lhes levavam comida. “Eu também levava.” No diário, Puim registou as “condições miseráveis” em que o grupo estava, dormindo no chão e sem poder sair. “Ao fim de alguns dias, fui ter com o comandante, dizer-lhe que tinha de os mandar embora.” O sipaio traduzia-lhe a conversa das mulheres: estavam muito gratas pelo apoio que ele lhes dava, pela comida que lhes levava. A libertação, no dia seguinte ao pedido feito ao comandante, aumentou o sentimento e, antes de partirem, elas colocaram-se em fila para lhe agradecer, prometendo rezar pelo padre aos seus irãs, as divindades da sua etnia. (...)

Esta história foi depois tema da sua homilia dominical, de 9 de maio de 1971, na capela de Bambadinca, que era aberta a civis e militares...

18 de maio de 2023 às 19:20


(ii) Não sabemos se a intervenção do Puim junto dos prisioneiros e depois a homilia no domingo a seguir, foi apenas "a gota de água" que fez entornar o copo... Citando a mesma fonte, o jornalista António Araújo que leu os diários ou parte deles, do antigo capelão do BART 2917:


(...) Foi isto (a ordem de expulsão) no dia 17 de maio de 1971 — Puim fizera 35 anos dia 8 e estava a dias de completar, a 25, um ano na Guiné. Maio, maduro mês na sua vida, como se vê, de importantes colheitas. No seu processo militar, que hoje se pode consultar no Arquivo do Exército, consta apenas, nas “Ocorrências extraordinárias: Embarcou em Bissau de regresso à Metrópole, por não convir ao serviço do CTIG [Comando Territorial Independente da Guiné], em 21 de maio, desde quando deixa de contar 100% de aumento no tempo de serviço. Desembarcou em Lisboa em 22. Disponibilidade desde 19 maio 71.”

No arquivo da PIDE-DGS encontra-se o único documento que refere as causas da detenção: Puim “condenava a atividade das Nossas Tropas em defesa da integridade nacional” e “em relatórios que foram descobertos no seu quarto, descrevia-as, em pormenor, qualificando-as de crimes, torturas e massacres". (...)


18 de maio de 2023 às 19:37
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24317: Recortes de imprensa (126): O caso do capelão militar Arsénio Puim, expulso do CTIG em 1971 (tal como o Mário de Oliveira em 1968) não foi excecional: o jornalista António Marujo descobriu mais 11 padres "contestatários" (10 da diocese do Porto e 1 de Viseu)... Destaque para o trabalho de investigação publicado na Revista do Expresso, de 12/5/2023

(**) Último poste da série > 12 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23073: Os nossos capelães (17): José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71), ainda no ativo como 
padre das Missões da Consolata

(***) Vd. poste de 8 de maio de2023 > Guiné 61/74 - P24325: História do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (5): Op Triângulo Vermelho, a três agrupamentos (CART 2715, CCAÇ 12 e CCP 123 / BCP 12), em 4 e 5 de maio de 1971: a captura de população civil que depois é levada para Bambadinca e cujo tratamento causa a piedade e provoca a indignação do alf grad capelão Arsénio Puim

sábado, 14 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23982: Blogues da nossa blogosfera (171): Cerca de metade dos nossos "favoritos" de há uns anos atrás já não existem ou mudaram de URL



Guiné >Região do Oio > Morés > Op Jaguar Vermelho > 9/6/1970 >  Criança encontrada pelos "páras" no mato, os quais tomaram conta dela, dando-lhe pão, e uma "kalash" (para a foto). Pela foto devia ter uma idade semelhante ao que a CCAÇ 13 também encontrou noutra ocasião.


Guiné >Região do Oio > Morés > Operação Jaguar Vermelho > 9/6/1970 > Uma escola

Fotos de César Dias ex-furriel do BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71), as quais lhe foram dadas por um furriel dos paraquedistas sediados em Mansabá. Disponíveis em:


Fotos (e legendas): © Carlos Fortunato (2003). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Tínhamos uma lista de cento e poucos blogues e outras páginas na Net  (c. 110) que faziam parte da nossa blogosfera... e constavam / constam da coluna estática do nosso blogue, no lado esquerdo. Há anos que não era atualizada.   

Fomos hoje fazer uma verificação, dos nomes,  de A a C (n=54) , e metade dessas páginas já não existem, foram descontinuadas, mudaram de URL.  É o preço que se paga por uma existência virtual, que é sempre precária, dependente da boa vontade ou dos caprichos dos servidores... 

Os blogues e outras páginas que deixaram de estar "on line" vêm assinalados, em baixo, com um asterico (*). Nalguns casos têm novos endereços. Alguns destes "sítios" poderão ser recuperados através do Arquivo.pt , caso por exemplo da página da CCAÇ 13, Os Leões Negros, que estava alojada no Sapo... (O Serviço de Alojamento Gratuito de Páginas Pessoais do SAPO foi descontinuado em dezembro de 2012.)

Endereço antigo: 
 
http://leoesnegros.com.sapo.pt/index.html

URL recuperada (em 1 de julho de 2011): 

https://arquivo.pt/wayback/20110701044300/http://leoesnegros.com.sapo.pt/index.html


Blogues, páginas do Facebook e outros sítios da nossa Blogosfera (camaradas e amigos da Guiné) 

Variações da Perda (poesia, Companhia das Ilhas, 2020).
Há rios que não desaguam a jusante (romance, Companhia das Ilhas, 2018).
Na luz inclinada (poesia, Companhia das Ilhas, 2014).
Uma paisagem na Web (poesia, & etc, 2013).
Elegias de Cronos (poesia, Artefacto Edições, 2012).
O papel de prata, o reflexo e outros contos pelo meio (Companhia das Ilhas, 2012).
Pedro e Inês. Dolce Stil Nuovo (poesia, Edições Sempre-em-Pé, 2011).
K3 (poema, & etc, 2011).
Uma flor de chuva (poesia, Escola Portuguesa de Moçambique, Maputo, 2011).
Londres (poema, & etc, 2010).
Dispersão – Poesia reunida (Edições Sempre-em-Pé, 2008).

(Era um dos nossos interlocutores privilegiados na Guiné-Bissau ao tempo do Pepito, cofundador e diretor executivo desta ONG; nascido em Bissau, em 1949, morreu em Lisboa, por doença, em 2012: Carlos Schwarz da Silva era engenheiro agrónomo, formado pelo ISA - Instituto Superior de Agronomia, Lisboa; tem 245 referências no nosso blogue).

(Jornalista e viajante, o Jorge Rosmaninho esteve muito  ativo entre 2006 e 2009; perdemos-lhe o rasto)


(Novo endereço: http://www.ajudaamiga.com/)


(Novo endereço: https://fmsoaresbarroso.pt/)


(Tem um novo endereço: https://apoiar-stressdeguerra.com/pt/)

(Tem um novo endereço:  https://ahm-exercito.defesa.gov.pt/)

(Tem um novo endereço: https://ahu.dglab.gov.pt/)


(Novo endereço: 

https://a25abril.pt/



(Ativo desde meados de  2009)


(Ativo desde o início de 2008)

(Ativo desde 2009 a 2016)


(Ativo de 2003 a 2013)

(Tem agora uma página no Facebook: https://www.facebook.com/BoinasVerdesEParaQuedistas/ )

(Um dos blogues mais antigos, e dos mais belos, literariamente falando: ativo de 2003 a 2020; o Manuel Bastos esteve em Moçambique)

(Um dos nossos blogues mais antigos, centrado numa só subunidade)
(Uma unidade madeirense; blogue ativo desde 2009; um dos coeditores é o nosso Carlos Vinhal)

(Ativo desde 2008, continua a ser animado pelo nosso camarada Sousa de Castro)

(Deixou de estar disponível, com pena nossa; um dos "sites" mais antigos, datando de 2003 )

(Lá vai resistindo desde 2009, sob o comando do coimbrão Fernando Barata)

(Ativo desde 2008)

(Ativo desde 2008, sob o comando do Luís Dias)

(Novo endereço: https://www.cd25a.uc.pt/pt )


(Ativo de 2010 a 2012)

(Desde 2008, com o nosso MR, sempre!)

(Tem agora página no Facebook:

___________

Nota do editor:

Último poste da série> 18 de deembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23890: Blogues da nossa blogosfera (170): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (75): Palavras e poesia

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23977: "Una rivoluzione...fotogenica" (6): Roel Coutinho, médico neerlandês, de origem portuguesa sefardita, cooperante, que esteve ao lado do PAIGC, em 1973/74 - Parte V: os "hospitais" do mato e o pessoal de saúde cubano

 

Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC,  cubano, o dr. António,  auscultando uma idosa/ Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 17 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Cuban doctor Antonio checking up heartbeat - 1974 (Nesta altura havia mais um cirurgião e um enfermeiro cubanos, cujos nomes não são conyecidos, na base de Sara, para além do dr. António, de apelido também desconhecido.)



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC,  cubano, o dr. António auscultando uma criança ao colo da mãe  / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 18 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Cuban doctor Antonio checking up heartbeat - 1974



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC,  cubano, o dr. António auscultando uma rapariga / Foto ASC Leiden - Coutinho Collection - B 20 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Heartbeat check up by doctor Antonio - 1974



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC, cubano, o dr. António,  auscultando uma jovem mulher / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 21 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Heartbeat check up by doctor Antonio - 1974



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > Médico do PAIGC, cubano, o dr. António,  falando doentes, sempre na presença de um intérpetre (ao centro)  / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 22 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Heartbeat check up by doctor Antonio - 1974.



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > PAIGC: uma enfermaria no mato.  Doenets acamados.  / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 14 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Patients in infirmary - 1974



Guiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 > PAIGC: uma enfermaria no mato. Cama com rede mosquiteira. / Foto : ASC Leiden - Coutinho Collection - B 16 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Patients in infirmary - 1974



G
uiné-Bissau > Região do Oio > Sara > Março-abril de 1974 >: PAIGC: Enfermaria ou posto médico : "sala de espera" ao ar livre / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 19 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - “Waiting room” - 1974






Fonte: Wikimedia Commons > Guinea-Bissau and Senegal_1973-1974 (Coutinho Collection) (Com a devida vénia...) . Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. O PAIGC munca controlou 2/3 do território da antiga Guiné Portuguesa, na altura da luta armada pela independência. Foi um mito habilmente fabricado e explorado por Amílcar Cabral.   Nem nunca teve "hospitais" no interior do território, em zonas como a base de Sara, a sudeste do Morés e a nordeste de Mansoa. Teve, isso sim, pequenas enfermarias do mato, guarnecidas por um ou outro médico cubano e enfermeira local, formada "ad hoc"... As condições de higiene, segurança, assepsia e antissepsia, eram deploráveis. Fazia-se, excecionalmente, alguma pequena cirurgia ambulatória (sem banco de sangue, anestesia geral,  gerador elétrico, ou simples material  para desinfeção e esterilização, ou até simples água potável, etc.) e consultas, "públicas", de clínica geral, como as fotos de Roel Coutinho (*) documentam. 

O médico holandês deve ter passado por aqui  algumas semanas, pelo menos fotografou os seus colegas cubanos a trabalhar em condições inacreditáveis...  O arsenal terapêutico era extremamente rudimentar. Em casos mais graves mas excecionais,  os doentes podiam ser  transportados até à fronteira do Senegal, de padiola (operação que levava 4 dias), e depois   em viatura automóvel até ao hospital de Ziguinchor.

Estas fotos também fazem, de algum modo, parte daquilo a que chamos uma "estética da guerra de libertação"... A saúde, a educação, os "armazéns do povo", etc., foram temas bastante focados pelos fotojornalistas e outros visitantes das "regiões libertadas" do PAIGC (***)... 

Sabemos, de resto, que "não há revoluções sem propaganda".  Sem mitos, rituais,  "folclore", "mentiras piedosas",  etc.  Mas, no caso do médico Roel Coutinho, acreditamos na sua boa fé. As suas fotos (mais de 700) pretendem documentar uma realidade, exótica para ele, mas sobre a qual não parece fazer juízos de valor. As suas fotos só foram doadas à ASC Leiden e tornadas públicas na Net quando a "revolução...fotogénica" de Amílcar Cabral e do seu PAIGC já há muito tinha passado de moda...


2. Já aqui transcrevemos em tempos o depoimento de um médico-cirurgião cubano,  Domingo Diaz Delgado (n.1936), respeitante à sua  passagem, no segundo semestre de 1966, pelas bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Sará, na Frente Norte (**).



[…] "Luís Cabral levou-me até Ziguinchor. Aí permaneci dois ou três dias, tendo-me encontrado com os chefes militares mais importantes que actuavam no Norte da Guiné, entre eles Osvaldo Vieira (1938-1974) porque, como era o primeiro cubano que ali chegava, estavam à minha espera.

Despediram-se de mim [6 de julho de 1966] e saí com um grupo de combatentes. Era noite quando cruzei a fronteira por essa zona escoltado por uns quantos. A caminhada, feita por um terreno acidentado, para mim foi terrível. Demorei quatro a cinco horas até chegar à primeira base guerrilheira que se chamava Sambuiá. Passei a noite nessa base, já com os pés bastante maltratados.

Essa caminhada que fiz em quatro ou cinco horas, quando regressei fi-la em cinquenta minutos, porque tinha menos trinta quilos e levava já um ano caminhando naquele terreno.

Passada a noite nesse lugar, de madrugada retomámos a caminhada até à próxima base da guerrilha, penetrando profundamente no território da Guiné (Bissau).

À volta de quarenta minutos caminhámos com uma vegetação que nos protegia da aviação, mas para alcançar o rio Farim, que teríamos de atravessar para chegar à base de Maqué, faltava ainda percorrer sete quilómetros muito planos, e sem qualquer protecção natural".

(...) "Pouco habituado a estas tarefas, caminhava lentamente face ao estado em que estavam os meus pés e todo o corpo. O meu estado de desespero também começou a dar sinais e que não me deixava ficar tranquilo, e não dava conta que olhavam para o céu, uma vez que naquele lugar os helicópteros armados e os jactos (aviões de guerra), metralhavam e matavam quem fosse detectado. Os guerrilheiros estavam desesperados porque tinham que zelar pela minha segurança, pois era o primeiro médico que ali chegava.

Finalmente chegámos ao rio Farim, onde o abundante caudal tornava difícil a sua travessia nas pequenas canoas que eles fabricavam com troncos de árvores. Atravessámos o rio e chegámos pela noite à base de Maqué, onde levava dois dias a andar e estava bastante mal.

No trajecto tivemos de beber água em más condições. Ali a água potável era a dos rios, e eles habituaram-se a fazer uns buracos na terra, bem localizados e escondidos para encherem quando chovia. Ao longo do itinerário realizado sabiam onde tinham os buracos para tirar a água com terra e era a que, a partir desse momento, comecei a beber.

Como era o primeiro grupo cubano na Guiné (Bissau), não tínhamos antecedentes. Quando cheguei à base de Maqué já as diarreias começavam a fazer estragos, mas nem por isso deixámos de comer o que encontrávamos pelo caminho. No dia seguinte, antes de amanhecer, reiniciámos a caminhada, avançando pelo país até alcançar a base de Morés. Nesse lugar estivemos um dia, seguindo, depois, uma nova caminhada até chegar à base onde permaneci cerca de seis meses: Sará". […]





Guiné - Bisssu > Região do Oio > Base de Sará > 1966 > Cubanos:  da esquerda para a direita, o instrutor militar tenente Alfonso Pérez Morales (Pina); o ortopedista Tendy Ojeda Suárez; o cirurgião Domingo Diaz Delgado e o médico de clínica-geral Pedro Labarrere. (In: Hedelberto López Blanchi - "Historias Secretas de Médicos Cubanos", La Habana, Ediciones "La Memoria", Centro Cultural "Pablo de la Torriente Brau", 2005, 237 pp. Com a devida vénia...)

Acrescente-se que o Domingo Dias Delgado, nome de guerra Demétrio (passou dois anos na Guiné=, escreveu ainda recentemente um livro de memórias (2018): "Memorias de Demetrio : un médico guerrillero en Guinea Bissau" (La Habana, Cuba : Editorial Capitán San Luis, 2018, 189 pp,, + ilustrações)




(...) "A base de Sará estava praticamente no centro do território. Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo [1966] estivemos na Zona Norte. De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [Senegal] e não era fácil transportar coisas para lá.

Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo.

O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.

De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base [até dezembro de 66] e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital [enfermaria no mato] para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base". […]




Mapa da Frente Norte – região do Oio – assinalando-se as bases por onde passou o médico Domingo Diaz Delgado, no 2º semestre de 1966: Sambuiá, Maqué, Morés, Sará.

Infografia: Jorge Araújo (2018)



Guiné > PAIGC > 1970 > Algures, numa "área libertada" >  "Dzsungel lakók", em húngaro, gente do mato...  A guerra de libertação teve muito pouco de romântico. Os militares portugueses que combateram o PAIGC na Guiné, sabem quão duras eram as condições de vida, tanto dos seus combatentes como da população sob o seu controlo, dentro das fronteiras do território da antiga província portuguesa da Guiné ... A foto é do fotojornalista húngaro Bara István (n. 1942) que visitou, a partir de Conacri, algumas dessas regiões, no sul, em 1970, embebbed nas fileiras do PAIGC.

Foto: Foto Bara (http://www.fotobara.hu/galeria.htm)  
(já não está disponível "on line", a não ser no Arquivo.pt: https://arquivo.pt/wayback/20090707123742/http://www.fotobara.hu/galeria.htm)


3. Escreveu o António Graça de Abreu ("Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura". Lisboa: Guerra e Paz, Editores, SA, 2007, p. 94):

Mansoa, 3 de Maio de 1973

Na região de Mansoa, as NT capturam mais elementos IN, ou aparentados com os guerrilheiros, do que em Canchungo. Normalmente chegam ao nosso CAOP com um aspecto lastimável, a subnutrição, as doenças, a miséria têm tomado conta deste pobre povo que vive nas regiões libertadas.

Os prisioneiros são quase sempre mulheres que se deslocam às povoações controladas pelas NT, a fim de venderem por exemplo mancarra (amendoim), óleo ou vinho de palma, e são capturadas nas estradas ou nos caminhos em volta dos nossos aquartelamentos.

Chegam descalças, andrajosas, às vezes com filhos pequenos às costas a chupar os peitos secos e mirrados. Dói, só de olhar. 

São interrogadas, é-lhes pedido todo o tipo de informações sobre os acampamentos, o armamento, as aldeias controladas pelo IN onde vivem os seus maridos, os seus familiares. 

Como é natural, estas mulheres falam muito pouco e também magoa o coração ver como são tratadas. É minha tarefa comprar-lhes uns trapinhos novos para tapar o corpo, umas sandálias de plástico para protegerem os pés.

Também se capturam elementos IN dos sexo masculino. Há dias um deles, que gozava de um regime de semi-liberdade, foi apanhado a fugir do quartel, já do outro lado do arame farpado, Deu a desculpa de que ia cagar.

Alguns prisioneiros são utilizados como guias nas operações das NT contra os santuários IN. Quando começa o tiroteiro, têm o hábito de escapar e de se refugiar na mata, por isso, às vezes seguem à frente das NT levando uma corda grande amarrada em volta da cintura. Se tentam a fuga,  procurando desligar-se da corda, são por norma abatidos.(...)

(Seleção e negritos: LG)

_________


(***) Vd. poste de 4 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23947: "Una rivoluzione... fotogenica" (1): Uma reportagem e um livro decisivos, e que consagram a estética da "guerra de libertação", "Guinea-Bissau: una rivoluzione africana" (Milano, Vangelista, 1970, 200 pp.), dos italianos Bruno Crimi (1940-2006) e Uliano Lucas (n. 1942)

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23804: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte X: Op Mar Verde, há 52 anos, em 22/11/1970: para Conacri, rapidamente e em força.

v














Op Mar Verde > 22 de novembro de 1970 > Na lancha de regresso a Bissau. Os soldados Aliu Djaló, Abdulai Djaló Cula, Meta Baldé, furriel Félix Diuf, furriel Vagomestre (não lembro o nome) e soldados Papa e Idrissa Dabo, da esquerda para a direita. (Foto publicada no livro, pág. 182, sem indicação de fonte).



Tira da banda desenhada “Operação Mar Verde”, da autoria de A. Vassalo [ex-fur mil comando Vassalo Miranda, nosso camarada da Guiné], uma edição da Caminhos Romanos, 2012.



Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Soga > Novembro de 1970 > A 1ª Companhia de Comandos na LDG Montante, nos preparativos para a saída. (Foto publicada no livro, a preto e branco, em pequeno formato,  pág. 174, sem indicação de fonte)



Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Novembro de 1970 > O general Spínola na LDG, momentos depois de se ter dirigido aos Comandos, fardados e equipados como se fossem gerrilheiros do PAIGC. (Foto publicada no livro, a preto e branco, em pequeno formato,  pág. 175, sem indicação de fonte)




Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Carta de Bubaque (1057) > Escala 1/50 mil > Posição relativa das ilhas de Soga, Bubaque, Rubane e Formosa.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)




Guiné > Brá > Em 1965, os então 1º cabo Abdulai Jamanca e o soldado Justo Nascimento.  (Foto publicada no livro,  pág. 171, sem indicação de fonte)

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Presumivelmente em Brá ou Fá Mandinga > s/d >  Soldado Caetano Gomes, morto na ilha de Sogo,   em acidente no mar, já depois do regresso d Op Mar Verde. (Foto publicada no livro,  pág. 181, sem indicação de fonte)

1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló (1940-2015), infelizmente já falecido, em Lisboa, no Hospital Militar, aos  74 anos.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muito pouco provável que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretantio, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.



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20 de Junho de 2009... O VB e o Amadu.
Foto: LG (2010)
O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez, duarnte largos meses, com enorme paciência, generosidade, rigor e saber, as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, a partir dos seus rascunhos.

Recorde-se, aqui o último poste 
desta séreie (*):  o então sold cond auto,  Amadú Djaló,   foi um dos poucos guineenses a frequentar o 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de agosto e 17 de uutubro de 1964. Desse curso fizeram parte 8 guineenses: além do Amadu Djaló, o Marcelino da Mata, o Tomás Camará e outros. 

Deste curso sairam ainda os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: Camaleões, Fantasmas e Panteras. E começou logo, o Amadi, a entrar em combate. no Grupo Comandos Fantasmas, do alf mil 'comando' Maurício Saraiva. 

Hoje vamos dar um salto de 6 anos, e vamos com ele até Fá Mandinga (Sector L1, Bambadinca), à  ilha de Sogo e depois a Conacri... Foi seleccionado  em meados de 1969 para a 1ª Companhia de Comandos Afrocanos (em formação), comandada pelo cap graduado 'comando' João Bacar Jaló, seu amigo de Catió, e com a supervisão do major Leal de Almedida.  

Um ano e tal depois, em 22 de novembro de 1970, vêmo-lo a caminho de Conacri, no âmbito da Op Mar Verde. Faz hoje 52 anos. Vamos aqui recordar as memórias que ele nos deixou dessa temerária operação. 

Há mais de oitenta referências no nosso blogue sobre a Op Mar Verde. Mas o depoimento do Amadu Djaló é único: ele esteve lá, também sentiu dúvidas sobre a "legitimidade" da operação (fora do território nacional,e numa terra donde eram provenienetes os seus progenitores!), também experimentou sentimentos contraditórios (incluindo medo) mas não desertou como alegadamente terá desertado  o tenente 'comando' graduado João  Januário Lopes. Regressou, vivo, e continuou nos comandos e depois na CCAÇ 21 até ao 25 de Abril de 1974. É o único militar, guineense, que escreveu sobre a Op Mar Verde.




Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.




Operação Mar Verde, 22/11/1970: Para Conacri
rapidamente e em força
(pp. 168/183)

por Amadu Djaló (*)



(i) Acaminho da "misteriosa" ilha de Soga

Quando chegámos a Fá Mandinga a primeira coisa que fizemos foi ajudar o pessoal da formação a preparar mais de trezentos pregos para uma viagem que íamos fazer e ainda não sabíamos para onde.

O capitão João Bacar Jaló e o major Leal de Almeida, mal desembarcaram do heli, deram ordens para distribuir os pregos pelo pessoal e logo a seguir tomámos os nossos lugares nas viaturas. Sabíamos que íamos directos ao Xime [1], e depois o destino era desconhecido.

No Xime embarcámos numa LDG que, logo que o pessoal entrou todo, começou a manobrar para sair do porto e a seguir rumou para ocidente.

Na minha e nas nossas cabeças, as dúvidas eram cada vez maiores, ninguém nos dizia para onde íamos e o que íamos fazer. Como Bissau ficava para ocidente, o capitão João Bacar disse que se desembarcássemos em Bissau mandava matar o carneiro capado que tinha em casa.

Bissau ficou à nossa vista e pensei na grande noite de festa que iríamos ter. A lancha encostou na margem contrária e quando vimos a cidade a passar à frente dos nossos olhos perdemos as esperanças. Estava cansado, fui dormir, e não sei o que se passou durante o resto da noite. Quando acordei, já depois das 7h00 de terça-feira, o barco estava fundeado em frente de uma ilha, no meio do mar.

Disseram-me que estávamos entre Bubaque e a Ilha de Soga, no arquipélago dos Bijagós. Que estamos a fazer neste sítio? Era uma pergunta que todos faziam, resposta ninguém tinha. O que vimos foi um grande movimento na ilha que me disseram chamar-se Soga.

Nesta altura veio-me à lembrança que, em Fá Mandinga tínhamos recebido instrução de combate dentro de cidades [ministrada pelo cap art Morais da Silva, hoje cor ref, membro da nossa Tabanca Grande... LG]. E também recordei o que tinha ouvido do adivinho de Paunca [Mamadu Candé, pág. 166 ]. Que íamos para uma grande cidade e que íamos sofrer muitas baixas. Eu nunca falei nesta conversa a ninguém, a não ser ao João Bacar. Fiquei com estes pensamentos na cabeça.

Na noite de terça-feira, os militares fizeram um espectáculo na lancha, que durou até às 02h00 da madrugada de quarta-feira. Quando me levantei na manhã seguinte, a minha cabeça não parava com perguntas. Ia ser uma quarta-feira comprida [2].

Por que estamos nas Ilhas dos Bijagós se aqui não há guerra nenhuma? Por que estão aqui uns gajos, que alguns dizem que falam francês? Em nenhuma parte de Portugal se fala francês! Por que viemos até aqui e não fomos combater? De que é que estamos à espera, neste local?

Já estávamos saturados de mar, mas pelo menos saltávamos para a água. Estávamos a tomar banho quando vimos um heli a passar ao lado do nosso barco e a pousar na ilha de Soga. A seguir vimos um bote, só com um marinheiro, a aproximar-se da nossa lancha. Ficámos ali a observar e, pensei para mim, que as nossas interrogações iam brevemente ter resposta.

Quando o bote encostou, o motorista chamou o major Leal de Almeida e o capitão João Bacar, que desceram para o bote e rumaram directos à ilha. Em ânsias ficámos a aguardar, cerca de duas horas, até que vimos o bote voltar na nossa direcção.

As pessoas que vinham eram nossas conhecidas, era o major e o capitão e não os largámos de vista, a ver se descobríamos alguma coisa nos olhos deles. Quando subiram, a olhar para o chão ou para o lado, chamaram os quadros da nossa companhia.

A reunião começou com o major Leal de Almeida a distribuir objectivos: o grupo do alferes Djamanca [3] ia ocupar a emissora. O furriel Demba Chamo Seca ia com a sua equipa [4] e com um grupo da Frente de Libertação da Guiné-Conacri [5], chefiado pelo comandante Tcham, cortar a luz à central eléctrica. O grupo do alferes Tomás Camará [6] ia atacar a Guarda Nacional.

A minha equipa reforçava a equipa do furriel Talabio e devia seguir com um grupo do FLNG para o Palácio. Eu ia com o major Leal de Almeida, levava dez soldados africanos da 15ª CCmds e mais onze milícias, comandadas pelo régulo Sambel Coió [7] e mais quarenta homens do FLNG, num total de sessenta e nove homens, com dois morteiros de 60, dois de 82, um canhão sem recuo e uma MP e onze carregadores, naturais da República da Guiné-Conacri. O nosso primeiro objectivo era cortar as ligações ferroviárias entre Conacri 1 e Conacri 2, rebentar com os caminhos-de-ferro. Depois ficávamos ali em reserva para um eventual pedido de apoio dos outros grupos.

A seguir entregou-nos mapas das zonas e papeis com os objectivos de cada agrupamento e, no final de tudo, disse-nos que o objectivo era Conacri.

Quando ouvimos falar de Conacri ficámos abananados e as reacções foram imediatas.

 Nós estamos de acordo em actuar em qualquer parte do território nacional. Não estamos em guerra com Conacri!    reagiu assim o tenente Januário, que era o 2º comandante da CCmds. 

E quase todos os quadros estavam de acordo com esta reacção. Os únicos que não se manifestaram foi o comandante da companhia, o capitão João Bacar, e o alferes Sisseco. Entretanto, contrariando as ordens recebidas, o alferes Justo desabafava para os soldados:

– Vocês sabem para onde nos queriam mandar? Para Conacri!

Nessa altura os soldados também se manifestaram abertamente contra a ideia. Perante esta situação, o major Leal de Almeida escreveu uma mensagem a dizer que a 1ª Companhia de Comandos recusava a missão.

Este foi um momento muito, muito difícil. Para os dois comandantes e para nós também. Para mim, a missão de tirar os companheiros da prisão era uma operação própria para os Comandos. E, se a decisão fosse essa, era uma missão completamente legítima e para ser executada por nós. Esta era a minha ideia, aquilo que o meu íntimo me dizia.

Então, o major disse-nos que ia mandar a mensagem e que, a partir deste momento, a vida militar dele estava nas nossas mãos. Se, posteriormente, a companhia decidisse participar na acção, podiam pensar que tinha sido ele, que era o único branco da CCmds, que nos tinha influenciado.

 –
  Meu major, nós não tomaremos nenhuma decisão sobre esta ou outra missão enquanto o meu major não regressar. 

Uma opinião quase geral. Algumas horas passadas voltámos a ver o heli na direcção de Soga e o bote a vir outra vez a caminho da lancha. Quando acostou, quem é que vinha nele? Era o comandante Alpoim Calvão, que nos tinham dito que era o comandante da operação.

Quando acabou de subir para a LDG, nós levantámo-nos e cumprimentámo-lo. Mandou-nos sentar e ouvimo-lo chamar pelo major e pelo João Bacar. Estiveram cerca de uma hora reunidos.

Depois da reunião, o nosso major foi o primeiro a aparecer. Quando passou ao meu lado, que estava sentado junto do médico da companhia, ouvi-o dizer:

– Eu não vos disse? Mandaram-me buscar!

Entraram para o bote os dois, o major e o comandante Calvão, e rumaram noutra direcção. A preocupação entre nós era cada vez maior. No nosso barco reinava um silêncio total, cada um a pensar para si. Um soldado, o Galé Bari, era o único que, de vez em quando, nos entretinha com histórias que nos faziam rir. Mas a noite foi tão comprida e tão cansativa como tinha sido o dia. Os pensamentos surgiam uns atrás dos outros. Não era só o facto de ter medo. Era também a vergonha de recusar entrar numa acção para a libertação dos nossos companheiros presos e haver outras unidades envolvidas.

Seriamos os únicos a tomar esta decisão? Nós não sabíamos, não podíamos entrar em contacto nem com os fuzileiros nem com as milícias do Sambel Coió.

Quinta-feira [8] de manhã, ainda antes das 9 horas, voltámos a ouvir o barulho do heli e vimo-lo na direcção de Soga. E vimos o bote, outra vez a dirigir-se para a nossa lancha. Quando encostou, reconhecemos o nosso major, que, soubemos depois, tinha passado a noite em Bissau.

Quando subiu, vimo-lo com outra cara. Cumprimentou-nos alegremente e nós ficámos mais animados. A seguir mandou os quadros reunirem-se com ele.

Disse-nos que os objectivos se mantinham e falou sobre a forma como íamos agir. Primeiro, não levávamos as nossas fardas, nem as nossas armas. Levávamos Kalashs e íamos vestidos com roupa do PAIGC, equipamentos, chapéus, tudo de cor castanha. Segundo, que havia um capitão do Exército da Guiné-Conakry que comandava uma companhia que ia connosco. E terceiro que todos nós levávamos um braçal, de cor verde, no ombro esquerdo e que serviria de sinal da operação “Mar Verde”. E que qualquer pessoa que, em Conacri, nos mostrasse um pano, grande ou pequeno, desde que fosse de cor verde, era dos nossos.


(ii) A caminho de Comacri, e que Alá nos proteja!


Terminou a reunião, dizendo que a operação estava bem planeada. E que tínhamos, em Conacri, gente à nossa espera, mesmo militares, que apoiavam a nossa acção!

 
– E as fardas e as armas, onde estão?  – perguntou  um e depois outros.

  Aí atrás, em baixo, onde vocês estão. Alguns de vocês estão sentados nelas!

Eram umas caixas que estavam ali, meio desprezadas. Estavam ali desde que tínhamos embarcado na LDG. Ninguém deu por elas, ninguém tinha achado que valesse a pena olhar para elas.

Abrimo-las e logo começámos a fardar-nos. Uma hora depois ninguém parecia pertencer ao Exército Português.

Por volta das 10h00, avistámos um barco muito velho a navegar na nossa direcção. Trazia o general Spínola, corremos para a formatura. Quando chegou, o capitão João Bacar Djaló mandou apresentar armas, o general correspondeu à continência e depois iniciou um pequeno discurso.

Que se não fosse governador ia connosco. Mas que nós iríamos participar com o espírito dele e que havíamos todos de regressar, se Deus quisesse. Gritámos o nosso grito “Comandos ao ataque”, três vezes. Depois deste grito, já não podíamos voltar atrás, era o nosso juramento.

A partir deste momento, acabaram-se as reclamações. Mesmo assim, um pequeno grupo não estava satisfeito com a missão.

Acabada a reunião, o nosso general [9] regressou no barco e nós saltámos para a ilha de Soga. Aqui esperava-nos o trabalho de formar os grupos e enquadrar a gente da Frente de Libertação da Guiné-Conakry.

Faço aqui, agora em 2009, uma nota que nunca revelei. A última ordem que recebi do major Leal de Almeida foi que se tivéssemos êxito na acção, era que devia manter-me em Conari até o Movimento de Libertação da República da Guiné controlar totalmente a situação. Só depois, o meu grupo seria recolhido de avião, de barco ou até em viaturas. Esta ordem foi-me transmitida na sexta-feira [10], dia destinado aos preparativos, um dia em que nem tempo tivemos para almoçar. Só mais tarde jantei no barco.

Pensando hoje, lembro-me que houve sobreviventes do desembarque na Normandia, na IIª Guerra Mundial e talvez eu não estivesse assim tão perto do fim dos meus dias. Só que as guerras têm diferenças.

A nós, o PAIGC não nos poupava. Que me lembre, não me recordo de ver algum dos nossos matar os feridos. Nem deixávamos nenhum ferido do PAIGC na terra de ninguém. Se estivesse ferido, pedíamos a evacuação para o Hospital Militar. Certamente, alguns entre nós, brancos ou negros, não se comportavam assim, tão dignamente, mas não eram a maioria. E se nós fossemos apanhados pela tropa de Sékou Turé, de certeza que não haveria nenhum sobrevivente.

A partida deu-se às 17h35 dessa mesma quinta-feira, 20 de Novembro, comigo a falar para dentro e a mirar os tarrafos [11] até ao pôr-do-sol. Talvez eu estivesse a olhar pela última vez aquelas paisagens da minha Guiné.

A frota era constituída por seis navios: duas LDG e quatro patrulhas. A nossa lancha foi a terceira a partir. No mar víamos, às vezes, dois barcos que seguiam na dianteira. Continuámos a navegar até sábado 
[21 de novembro] , quando nos foram feitas importantes recomendações. Ninguém podia acender luz nem fumar fora do porão. O jantar ia ser servido às 17h00. E a ordem de desembarcar ia ser dada até às 23h00.

Ao pôr-do-sol começámos a ver as luzes de Conacri. Lembro-me de olhar para o relógio, eram 19h00, quando disse para um colega, o 1º cabo Galé Bari, para me deixar dormir um pouco.

 És parvo? Nós vamos dormir nas ruas, um sono de que nunca mais vamos acordar!

 Podem sobrar alguns     respondi.

 
– Não, vamos morrer todos, ninguém vai sobrar!

Estava a gozar, ele a dizer para o lado e nós a rirmo-nos.

Quando chegámos ao local onde íamos fazer o transbordo para os botes, a lancha parou e o pessoal começou a sair.

Se não me engano, éramos quatros grupos sob o comando do capitão João Bacar Jaló. O alferes Djamanca, eu, Amadu Bailo Djaló, o furriel Talabio Djaló e o pessoal da Frente de Libertação da Guiné-Conakry. Os primeiros a desembarcar foram os grupos do Jamanca [12] e do Talabio Djaló.

Outros grupos já estavam em acção em Conacri [13], ouvíamos tiroteio cerrado e rebentamentos. O meu grupo, em que ia o major Leal de Almeida, foi o último a desembarcar. No momento em que estávamos a passar da lancha para os botes, ouvi, no meu rádio, o comandante Calvão a dizer ao nosso major que o tenente Januário tinha desertado.

 O quê ?  – perguntou  o major.

 
  O Januário desertou!

 
   O quê?

 
– O Januário fugiu  rematou o comandante.

   Mas fugiu com o grupo, ou sozinho?    insistiu o major.

 
– Stop       fechou assim a conversa o comandante.

Para mim e talvez para outros, não estava a ser novidade esta deserção. Ainda em Soga vi o tenente Januário vestido com roupa civil, uma calça de terylene verde e uma camisola branca, de manga curta.

 Djaló, eu não entro no ataque. Vou-me entregar, portanto não levo farda. Vou com esta roupa, as botas de fecho ao lado e quando lá chegar, tiro o dólmen e o quico e fico à civil.

Fiquei surpreendido mas não acreditei. Eu sabia que o tenente Januário tinha um irmão que combatia pelo PAIGC, tal como alguns de nós tínhamos familiares que também combatiam por eles.

Quando pusemos os pés em terra, Conakry estava às escuras e os tiros e rebentamentos eram mais esporádicos. Meia hora depois do desembarque talvez, ouvi pelo rádio o comandante Calvão dar ordem de retirada, com a indicação de abandonarmos as posições em terra.

A missão do meu grupo tinha sido abortada. O grupo do capitão João Bacar tinha acabado de chegar ao porto e ficámos ali, a aguardar a chegada dos restantes grupos. Momentos depois, chegou o grupo do Jamanca, que vinha completo e que não tinha conseguido localizar a emissora. Agora, restava-nos esperar o Talabio Djaló e os seus homens. Este grupo trazia-nos preocupações porque, desde que desembarcou, não deu qualquer sinal, nem chamou nem respondeu aos nossos contactos rádio. Não sabíamos o que era feito dele e do grupo. Até ao momento, era o único grupo com o qual não tínhamos tido qualquer notícia.

João Bacar disse que o meu grupo e o dele tinham que manter aquela posição até que todo o pessoal estivesse embarcado.

As duas últimas equipas, nove homens comigo, foram as últimas a embarcar para o bote que nos transportou para a lancha. Quando já estávamos encostados à lancha, preparados para entrar, ouvi o João Bacar dar ordem ao furriel Djalibá Gomes para ir buscar o Talabio, que acabava de informar que estava a chegar ao porto.

O bote, em grande velocidade, regressou ao cais e, passados uns minutos, vimo-lo a regressar, mas só trazia o Djalibá e o motorista do bote.

 Onde está o Talabio?

–  O Talabio não estava no cais. Quem lá estava era o IN    respondeu o Djalibá!

O Talabio nunca mais chamou, a hora marcada para a partida já tinha passado e foi decidido iniciar o regresso à nossa Guiné.

Mais tarde, soube pelo Francisco Gomes Nanque, um soldado da minha equipa que tinha ido na missão do furriel Talabio, o que tinha acontecido.

Depois de desembarcar, o grupo do Talabio dirigiu-se para o Palácio, onde se confrontou com a guarda. Da troca de tiros resultou um ferido no grupo, um engenheiro natural da Guiné-Conakry, chamado Bari, que ficou incapacitado de andar. O Talabio deve ter-se preocupado mais com o transporte do ferido do que com o rádio. E, quando chegaram ao porto, no regresso da missão, o Talabio pediu pelo rádio ao João Bacar que os fossem recolher.

Todas as nossas tropas já estavam nas lanchas. Restavam apenas aqueles nove homens. Os gendarmes atacaram com rajadas o bote que se aproximou do cais para os recolher e foi então que deram com os homens do Talabio. Do grupo só escaparam dois, o Francisco Nanque e o soldado Mário Dias, que conseguiram sair do local a nado.

O Francisco foi recolhido por um navio holandês mas como ninguém o percebia levaram-no para a próxima escala, na Libéria. Como ninguém se percebia, chamaram um cubano para servir de intérprete. Francisco disse que era soldado português e que tinha feito parte das tropas que tinham atacado algumas instalações em Conacri.

A Libéria não tinha relações com o nosso país, mas também não via Portugal como um grande inimigo. Enquanto mantinham o Francisco detido, num regime pouco rigoroso, fizeram seguir para Lisboa, a informação de que tinham em seu poder um soldado português, chamado Francisco Gomes Nanque, que afirmava ter participado no ataque a Conacri. Segundo o Nanque, não demorou muitos dias a resposta de Portugal, que lhe foi dada a conhecer pelas autoridades liberianas: que o Nanque tinha sido soldado, de facto, mas já tinha passado à disponibilidade e que se dizia que tinha participado na agressão a Conakry o devia ter feito por razões materiais e que o Estado português não tinha nada com isso.

 
   Eu sou militar português!  insistia o Francisco Nanque.

Dias depois, perguntaram-lhe se tinha coragem para ser entregue na Embaixada de Portugal, na África do Sul. Com roupas novas que lhe deram, embarcou acompanhado de dois polícias liberianos. Entretanto, Sékou Touré já tinha reclamado várias vezes ao Presidente da Libéria que o soldado lhe devia ser entregue.

Chegado ao aeroporto de uma cidade sul-africana, que o Nanque não recorda o nome, foi levado pela polícia ao encontro de um cônsul português que se encontrava, por acaso, no aeroporto. Muito surpreendido, o cônsul afirmou que o embaixador português na África do Sul se encontrava em Lisboa. Depois de várias peripécias, os polícias liberianos que o acompanhavam não viram outra saída senão voltarem para a Libéria. Apanharam um avião que fazia escala em Londres. No controle dos passageiros, autoridades da fronteira inglesa, inteiradas do assunto, sugeriram que se contactasse a embaixada portuguesa em Londres.

Ao corrente da história, o embaixador prontificou-se a falar com o Francisco. Sempre acompanhado pelos dois polícias da Libéria foi transportado às instalações da embaixada de Portugal, onde foi recebido pelo embaixador. Depois das identificações, o embaixador acedeu em ficar com o Francisco Nanque e, na frente da polícia, deu ordens para o encerrarem numa sala, fechada à chave. Mal os polícias saíram, o Francisco ouviu o rodar das chaves e recebeu um abraço sorridente do responsável pela embaixada.

No mesmo dia, o embaixador enviou uma mensagem para Lisboa e, no dia seguinte, o Francisco desembarcou no aeroporto da Portela, onde estava uma viatura militar que o transportou para o QG. Um dia de interrogatórios depois, levaram-no para o Depósito Geral de Adidos, com a ordem de não lhe permitirem qualquer saída. O comandante Calvão foi informado do caso e encontrou o Francisco no DGA. Que não podia estar preso quem tinha entrado numa operação para libertar os nossos prisioneiros de Conacri. Albergou-o em casa, durante cerca de quinze dias, e levou-o a conhecer Lisboa e os arredores. Depois, reencontrei o Francisco Gomes Nanque, em Brá, que me contou esta história.

Soube-se também que o Mário Dias foi a nadar até uma pequena ilha onde foi recolhido por pescadores. Pouco se soube da odisseia dele, apenas que, cerca de três dias depois de ter sido encontrado, foi entregue às autoridades de Conakry.

Voltando ao regresso de Conakry. Era um domingo, por volta das 07h00, havia nevoeiro, e continuámos a navegar durante aquele dia e a noite seguinte, até que chegámos à Ilha de Soga.

Os fuzileiros e o pessoal da Frente de Libertação da República da Guiné-Conari regressaram aos seus locais e, a nós, mandaram-nos desembarcar na Ilha de Soga [14].

 Agora estamos em Soga, a fazer o quê? Sem transporte, porquê? O que é que estamos a fazer aqui, neste local?

Alguns de nós ouviram as declarações do tenente Januário à rádio Conacri. Que pertencia aos Comandos Africanos. E quando lhe perguntaram onde estavam sediados, o tenente disse que o quartel era em Fá Mandinga.

   Fá Mandinga, onde é?

   Perto de Bambadinca     respondeu.

 Pensámos que, talvez, as razões da nossa prolongada estadia em Soga se pudessem prender com as declarações do Januário.

A paisagem não mudava. E neste intervalo de tempo, num dia [15], tivemos uma fatalidade. Alguns companheiros nossos estavam a tentar arranjar peixe. Um deles lançou uma granada ofensiva para a água, na altura em que, sem saber, o soldado Caetano Gomes estava mergulhado. Morreu.

Nós íamos passando o tempo da forma como podíamos, falando uns com os outros, trocando impressões sobre as missões.

O grupo do Jamanca não conseguiu chegar à emissora de Conacri, que era uma acção muito importante. Segundo o Jamanca, tinha ocorrido um erro fatal para a missão. O indivíduo, natural da Guiné-Conacri, que ia levar o grupo à vivenda da emissora, já não ia a Conacri há alguns anos. Ele sabia onde era a vivenda da emissora, mas quando lá chegou com o grupo a vivenda não estava lá. No lugar da vivenda estava um edifício com vários pisos e ficaram sem saber onde ficava a emissora.


(iii) É o meu filho, Amadu!

As preocupações tinham passado para nós, os que estávamos em Soga. Escrevemos cartas para as famílias, metemos as cartas numa caixa de correio e, três dias depois, veio um heli que as levou todas. Estávamos contentes, nada nos tinha acontecido e as nossas famílias em breve iam receber notícias nossas. Aproximava-se a Festa do Ramadão, que estávamos habituados a respeitar e a passá-la fora do quartel. Passámo-lo em Soga, com o régulo Sambel Coio a dirigir as orações.

Mais ou menos 15 dias depois chegou uma lancha para nos levar para Fá Mandinga. A viagem iniciou-se à meia-noite e qualquer coisa e quando chegámos ao Xime era quase meio-dia, sempre a navegar. Uma grande coluna de viaturas estava à nossa espera.

No cais do Xime, a companhia de europeus [16], que estava lá aquartelada, estava à nossa espera no cais, com máquinas a tirarem-nos fotos. Depois prosseguimos o nosso trajecto, em coluna até Fá Mandinga. Pessoas das tabancas, mulheres, crianças, homens de todas as idades, vieram para as bermas da estrada saudar o nosso regresso. Fomos passando de tabanca em tabanca até Fá Mandinga. Quando finalmente chegámos, o capitão João Bacar Jaló disse-me:

 – Amadau, vai para Bafatá e diz às nossas famílias que preparem um bom jantar.

Logo que pude, apanhei lugar num carro civil que acompanhou a coluna e fui, feliz, em direcção à minha cidade. O carro parou à porta da minha casa, eram mais ou menos 15h00 daquela tarde, um sobrinho meu estava na varanda da frente, a brincar. Ouvi-o chamar pela minha mãe, a dizer que o tio já estava ali. A minha mãe não acreditava, que não podia ser, que aquele carro era civil, que eu nunca vinha em carro civil.

Quando saltei da viatura, perguntei ao meu sobrinho pela minha mãe. Ela ouviu, gritou alto, é o meu filho Amadu! Veio a correr, encontrámo-nos no meio do corredor, com um grande abraço e eu voltei a sentir o coração dela a bater com força.

Ela estava muito fraca, agarrei-lhe na mão e levei-a para o quintal. Depois, a minha irmã contou que ela estava muito fraca porque não comia quase nada desde a minha despedida. Dizia que o seu filho comprou o peixe, escolheu o prato e não comeu.

Naquele momento, não pude deixar de pensar no erro que tinha cometido naquela 2ª feira, quando comprei uma cabeça de bicuda e lhe pedi para fazer a caldeirada. Infelizmente, antes da comida ficar pronta, vieram procurar-me, estava eu no mercado. Um soldado tinha-me pedido para vir cá fora falar, num sítio mais sossegado. Foi nessa altura que soube da ordem que tinha vindo de Bissau, a mandar recolher toda a tropa de Comandos para uma reunião. Quando cheguei a casa, mudei de roupa, preparei a minha bagagem e despedi-me da família. A minha mãe ainda me disse para esperar pelo almoço e eu, infelizmente, respondi que não tinha tempo.

Esta resposta feriu a minha mãe profundamente, no fundo do coração. E a minha irmã estava ali a dizer-me que, a partir daquela tarde a minha mãe quase não comia, porque não tinha vontade.

Uma surpresa tive eu e os meus companheiros, que tínhamos estado em Soga, e que tínhamos escrito cartas para os nossos familiares. Quando regressámos ao nosso quartel, dias depois, essas cartas que nós tínhamos escrito foram-nos entregues abertas. Soube depois, que as cartas tinham sido remetidas para o Comando-Chefe, abertas e lidas e só depois, reenviadas para Fá.

________


Notas do autor Amadu Djaló e/ou od editor Virgínio Briote

[1] Nota do editor: sede da CArt 2715.

[2] Nota do editor: 11 Novembro 1970.

[3] Nota do editor: Grupo “Hotel”.

[4] Nota do editor: “Índia”.

[5] Nota do editor: do “Front de Libération National Guinéen”, constituído em março d e  1969 por refugiados guinéus na Costa do Marfim, Senegal e Gâmbia.

[6] Nota do editor: “Óscar”.

[7] Nota do editor: Sambel Coio Baldé, ex-régulo de Sancorlá, tinha sido libertado do Tarrafal.

[8] Nota do editor: 12 de novembro de 1970.

[9] Nota do editor: ao princípio da tarde de 20 de novembro de 1970, o general Spínola, após ter visitado Mansambo e a tabanca de Gandamã, deslocou-se para o ilhéu de Soga.

[10] Nota do editor: 20 de novembro de 1970.

[11] Vegetação rasteira que bordeja a costa.

[12] Nota do editor: da LDG Bombarda.

[13] Nota do editor: os prisioneiros portugueses, 26, foram libertados por volta das 04h00 da manhã por um grupo de 30 fuzileiros, comandado pelo 1º tenente Cunha e Silva e transportados para a LFG Dragão.

[14] Nota do editor: às 16h25,  de 2ª feira, 23 novembro 1970, os navios fundearam ao largo do ilhéu de Soga, após o que todos os militares portugueses desembarcaram.

[15] Nota do editor: 25 de novembro  de 1970.

[16] Nota do editor: CArt 2715

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23796: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IX: "Amadu, que vamos fazer ao puto ?"... "Meu alferes, vou levá-lo para Bafatá, a minha irmã cuidará dele!"... A história do puto, "turra", Malan Nanque, que o Amadu salvou e adotou como sobrinho...