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sábado, 17 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17481: Estórias do Juvenal Amado (56): Em memória dos filmes que comecei a ver a meio

Cine-Teatro de Alcobaça

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 16 de Junho de 2017:


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

56 - Em memória dos filmes que comecei a ver a meio

Gostei muito de cinema desde sempre e o Cine Teatro de Alcobaça, foi ponto de encontro de gerações de Alcobacenses.

Em miúdo com a minha tia ia ver os filmes do Joselito e Marisol mais tarde também me levou a ver filmes históricos em especial sobre as guerras napoleónicas, género que deixou de ser tema de interesse para as produtoras cinematográficas, pois há muito tempo, tirando uma versão do "Guerra e Paz", deixei de ver em cartaz esse género. Quando há tempos pela escrita do José Marques Vidal e Arturo Pérez-Reverte, voltei a lembrar-me do tema, revi mentalmente a batalha de Austerlitz, onde Napoleão derrota os exércitos russos, austríacos e ingleses, bem como outras venturas e desventuras do corso, que resolveu criar um Mundo à sua vontade até se afogar no seu próprio orgulho e melomania.

Mas também era comum juntar-me aos Mendes, ao Cafézinho, ao BiBi e outros miúdos, que numa das portas laterais, esperávamos que o porteiro, senhor Sílvio, nos desse uma borla e assim nos deixasse assistir aos filmes.
- ”Não façam barulho e espalhem-se, não os quero todos juntos” - dizia ele.

Depois do primeiro intervalo, lá íamos nós sem fazer barulho até ao 3.º balcão, razão essa, que tenho na memória os filmes que nunca vi o principio como o "Ben-Hur", o "Rei dos Reis",  o "Barrabás", "Spartacus", etc, etc. Esses ficaram para sempre amputados dos seus inícios pelas razões que acabei de apresentar.


Entretanto comecei a trabalhar, e com direito a semanada, pude assim comprar o bilhete e começar finalmente a ver todos os filmes desde inicio. Estava na época dos filmes "cobóis" "esparguete" com o Clint Eastwood, (quem diria que ele se faria num dos maiores realizadores do nosso tempo?) o Bud Spencer e Terence Hill etc, que gastavam mais balas na apresentação do que em todas as guerras do México. As pistolas de seis tiros disparavam sem cessar, nunca ficavam sem balas.

Também os filmes de karatê do Bruce Lee levavam legiões de admiradores, e era vê-los à saída do cinema, a gingarem-se e a imitar os tiques do actor. Simplesmente hilariante, quando ele era atacado por mais de vinte bandidos, que despachava num ápice. Ficava sempre para o fim um e esse, é que era sempre um rolha dura de roer. Entre gritos, chapadas e pontapés de toda a forma e feitio, o nosso herói tinha mais trabalho com esse do que com os outros vinte.

Por causa desses filmes logo apareceram escolas de karatê nas diversas modalidades, o que deu azo a episódios caricatos como o do meu amigo “Bife”, que acabado de ter a sua primeira aula de Tae Kon Don, se envolveu logo à pancada com outro junto ao campo de ténis.

Filmes completamente irracionais e sem ponta por onde se lhes pegar, mas a malta não sabendo mais o que fazer, ia ver as "coboiadas" de feios porcos e maus e ouvir o Pelé lá do 3.º Balcão, que em plenos pulmões tentava avisar o herói que os índios estavam emboscados ou que um bandido vinha à falsa fé para lhe fazer a folha.
As gargalhadas sucediam-se a cada nova exclamação do nosso bem conhecido angariador de peles de coelho e ferro velho. O velho Pelé também servia para as mães meterem medo aos filhos, que praticavam qualquer maldade, ou não queriam comer a sopa. A sua imagem andrajosa com um saco às costas, era assim aproveitada para o imaginário da garotada.

Também a Escola Técnica de Alcobaça, sob a batuta do professor Miranda, levava à cena as peças no Cine Teatro, que ensaiava para serem apresentadas nas suas festas anuais. Nunca me esqueci da peça "A Gaivota", de Anton Tchecov, e também quando o teatro de revista deixava o Parque Mayer e fazia digressões pela província.


Naquele tempo o Cine-Teatro abarrotava de espectadores e, na maioria dos casos, só ficavam livres as cadeiras obrigatoriamente guardadas para os descendentes do fundador António de Oliva Monteiro.

Depois fui para a tropa e para a Guiné, durante 3 anos não me deliciei com os filmes nem com a vivência ao redor dos mesmos.
Na Guiné, em Galomaro, fomos uma vez visitados pelos serviços de foto-cine do exército, se não estou em erro com o filme "Chaimite", na verdade um tema bem a propósito como é bom de ver. Foram exibidas duas sessões para dar oportunidade a quem estivesse de serviço, ver no dia a seguir. Numas das sessões, calhou-me fazer reforço na porta de armas e tive o maior assédio de lavadeiras que há memória, pois queriam que eu as deixasse entrar para ver o filme. Está claro que não podia deixá-las entrar sob pena de o Coronel me dar uma porrada de todo tamanho, mas devo ter ficado com fama de ser um bom filho p…… durante muito tempo.

Sei que havia salas de cinema em Bafatá e em Bissau, mas nunca lá fui ver nada. Se calhar porque só pernoitei uma vez em Bafatá, no seguimento da trágica morte do nosso camarada Teixeira, e em Bissau estive só de passagem e com pouco ou nenhum dinheiro.

Quando regressámos, deu-se a explosão com o fim da censura, as sessões sucediam-se para vermos os filmes até ali eram proibidos, ou revermos os que tinham sido amputados das cenas que a comissão da censura tinha resolvido cortar. Seguiram-se as sessões de pornografia, que eram exibidas depois da meia-noite.
Depois o declínio foi-se agravando, e não foi só em Alcobaça. As salas começaram ficar vazias por causa dos centros comerciais e das suas sessões continuas, da televisão, dos clubes de vídeo, que por sua vez foram à falência por casa da TV por cabo, onde podemos ver filmes a toda a hora sem se sair de casa, com a qualidade HD nos LED's de tamanho considerável com sistemas de som circundante.

O que virá a seguir não sei, talvez com máquinas de realidade virtual em que sejamos expectadores e actores ao mesmo tempo, com influência no guião do filme.
Ontem liguei a televisão, e estavam a exibir o filme "Cartas de Guerra". Já ia adiantado, mas mercê das novas tecnologias, voltei atrás para ver de principio. Gostei, apesar de algumas incongruências, digo eu, uma vez que a guerra que travámos na Guiné foi forçosamente diferente da de Angola pelo tipo, pelo espaço físico e também pelo antagonismo existente entre os três movimentos independentistas. O filme faz-me lembrar uma banda desenhada com grandes planos e muitas imagens falsamente paradas, em que o autor tenta transmitir ao espectador a dor, o isolamento, o desamor e a violência daqueles dias, usando um ambiente surreal. (A ver os "Vampiros" com textos de João Melo e desenhos de Juan Cavia, uma história de ficção passada na Guiné em 1972 ).
Fez-me reviver os nossos mortos, e as imagens a preto e branco, mais os gritos na escuridão, conferiram um efeito trágico e sufocante sobre as minhas próprias memórias.
Desejável seria que este filme fosse ponto de partida para mais registos devidamente aconselhados, por homens que sabem com conta peso e medida aplicar com rigor as recordações daquele tempo.

Hoje o Cine Teatro de Alcobaça continua lindo. Cinema pouco, mas chegam-me notícias de teatro, teatro de marionetes, bailado e também musica de vários géneros.
Os filmes é que parecem rarear naquele espaço mas isso é fruto dos tempos.

Um abraço
Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17029: Estórias do Juvenal Amado (55): O Dia da Defesa Nacional

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16731: Agenda cultural (517): "Depois da Guerra" - 1 peça de teatro e 2 filmes, a apresentar dia 18 de Novembro de 2016, pelas 21 horas, no Cine-Teatro Curvo Semedo, em Montemor-o-Novo (José Brás)


1. Mensagem do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68) com data de 14 de Novembro de 2016:

Amigo
Para teu conhecimento, junto convite que me foi enviado hoje mesmo.

Grande abraço
José Brás

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C O N V I T E

Caros amigos,
A Praça Filmes e a Câmara Municipal de Montemor-o-Novo têm o prazer de o convidar a vir passar o serão do dia 18 de Novembro no Teatro Curvo Semedo em Montemor-o-Novo, pelas 21 horas.

"Nunca entenderemos o alcance da guerra colonial, se não derrubarmos o muro de silêncio que as famílias ergueram para sararem as suas feridas. Para isso, temos que voltar “lá”, de falar sobre onde nos levou, fugirmos para dentro de nós, é urgente reflectirmos sobre o que continuou depois de os militares regressarem a casa e os desalojados deixarem tudo para trás.

"DEPOIS DA GUERRA"
É uma experiência transdisciplinar feita de um espectáculo de teatro e dois filmes de animação. Reúne três gerações de criadores: Alfredo Brito, autor-actor de “Pensão de Sangue”; José Miguel Ribeiro, realizador do filme “Estilhaços”; Bárbara Oliveira e João Rodrigues, realizadores do filme “Lugar em parte nenhuma”.
Os quatro seguem o rasto da guerra nas gerações seguintes... e abrem frestas no muro de silêncio."

Texto: Virgílio Almeida

Contamos convosco!
P´la Praça Filmes
Ana Carina
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16724: Agenda cultural (510): Sessão de apresentação do livro do Paulo Salgado, 5ª feira, dia 17, às 18h30, na Fundação Portugal - África, Rua de Serralves, nº 191, Porto

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16469: Agenda cultural (498): Festival Todos 2016, na sua 8ª edição: A não perder, espectáculo de teatro documental, "Portugal não é um país pequeno", Academia Militar, Rua Gomes Freire, amanhã, sábado (17h00) e domingo (19h00): entrada gratuita, limitada à lotação do espaço (140 lugares)...


Lisboa > Festival Todos 2016 > Campo de Santana / Campo dos Mártires da Pátria > Antigo palácio do Patriarcado de Lisboa (séc. XVIII/XIX),  ao lado da embaixada alemã  > É aqui que tudo começa: secretariado do festival, quatro  fabulosas exposições de fotografia, "visita à luz da vela" de mais um futuro hotel de charme de Lisboa... (Uma das exposições é do grande fotógrafo português Luís Pavão,conservador de fotografia do Arquivo Municipal de Lisboa.   que eu tive o privilégio e a honra de conhecer ontem pessoalmente e de com ele comversar sobre a "nossa" Guiné e o nosso blogue...).

Homens poderosos como o cardeal Cerejeira aqui viveram, trabalharam, rezaram, transpiraram e.... conspiraram. Uma oportunidade única para visitar o palácio (e este e outros, além de hospitais, conventos, quartéis, etc,. na colina de Santana e suas imediações), no âmbito do Festival Todos 2016,

O TODOS -  Caminhada de Culturas foi criado em 2009,  tendo vindo deste então a afirmar Lisboa como uma cidade empenhada no diálogo intercultural, interreligioso, interétnico, intersectorial, intersocial e intergeracional.

O TODOS tem contribuído para a destruição de guetos territoriais associados à imigração,  e marginalidade,  e fortemente estigmatizados, como é o caso por exemplo do Intendente / Anjos / Mouraria ou o Poço dos Negros / Calçada do Combro, ajudando a abrir  toda a cidade a todas as pessoas que nela querem (e gostam de ) viver e trabalhar.



O autor e ator André Amálio., a atuar ontem, na Academia Militar, no 1º dia do festival Todos 2016... UIm espetáculo que vale a pena...


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Teatro Documental >  PORTUGAL NÃO É UM PAÍS PEQUENO
André Amálio | Hotel Europa PORTUGAL


Sábado, 10 Set – 17h00
Domingo, 11 Set – 19h00

Duração 90 min | M/12 | Academia Militar – Rua Gomes Freire 
[Requisitar previamente o ingresso na porta de armas, um hora ou meia hora antes do início do espetáculo]





Cartaz do festival Todos 2016, Lisboa, Colina de Santana, Campo dos Mártires da Pátria, de 8 a 11 de setembro de 2016. Ver aqui o desdobrável com o programa em formato pdf


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quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16464: Agenda cultural (497): Festival Todos 2016, Lisboa, Colina de Santana, Campo dos Mártires da Pátria, de 8 a 11 de setembro de 2016: Destaque para a peça de teatro documental "Portugal não é um país pequeno", de e com André Amálio, na Academia Militar, Rua Gomes Freire, hoje (21h00), sábado (17h00) e domingo (19h00): entrada gratuita, limitada a lotação do espaço (140 lugares)... Há também visitas guiadas à Academia Militar no âmbito do festival. Muitas dezenas de eventos: Festival Todos... para Todos, em 8ª edição


Cartaz do festival Todos 2016, Lisboa, Colina de Santana, Campo dos Mártires da Pátria, de 8 a 11 de setembro de 2016.~




"Criado em 2009, o TODOS-Caminhada de Culturas tem afirmado Lisboa como uma cidade empenhada no diálogo entre culturas, entre religiões e entre pessoas de diversas origens e gerações. O TODOS tem contribuído para a destruição de guetos territoriais associados à imigração, abrindo toda a cidade a todas as pessoas interessadas em nela viver e trabalhar."



Destaque: 

Teatro Documental 

PORTUGAL NÃO É UM PAÍS PEQUENO 
André Amálio | Hotel Europa PORTUGAL 

8 SET – 21h00 | 10 SET – 17h00 11 SET – 19h00 [duração 90 min] M/12

Academia Militar – Rua Gomes Freire 

Sinopse1

Portugal sofreu a mais longa ditadura fascista da Europa (48 anos), 
e o mais persistente império colonial (500 anos). 
Partindo dos testemunhos de antigos colonos portugueses entrevistados pelo autor, 
este espetáculo de teatro documental reflete sobre a ditadura 
e a complexidade do fim do colonialismo português. 
Reproduzindo fielmente as suas palavras, 

André Amálio explora situações onde pessoas reais contestam 
e reconstroem identidades culturais. 
Um contributo para a reescrita da história 
e transmissão da memória entre  gerações.

Sinopse2:

Espectáculo que reflete sobre a ditadura e a presença portuguesa em África, 
em particular a vida dos antigos colonos portugueses 
através dos seus testemunhos reais. 

O texto deste espectáculo foi criado através de um processo de verbatim, 
que significa copiado palavra por palavra, 
o que se traduziu na escrita de um texto de teatro
 que utiliza fielmente as palavras das pessoas entrevistadas 
sobre a sua vida em África no Período Colonial Português. 

A metodologia seguida combinou a recolha de testemunhos dessas pessoas 
e uma detalhada pesquisa de historiográfica, 
criando um texto que retrata a complexidade da história recente em Portugal, 
no caso do fim do colonialismo português. 

 Com este trabalho quero investigar histórias reais 
que se tornaram memórias 
e que com o tempo foram herdadas; 
estou interessado em situações onde as pessoas reais 
contribuem para contestar e reconstruir identidades culturais; 
estou interessado na forma como o teatro pode contribuir para a reescrita da história, 
dando voz a um grupo silenciado, 
trabalhando assim na transmissão da memória entre gerações.

André Amálio

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13727: Notas de leitura (641): “Para um conhecimento do teatro africano”, por Carlos Vaz, Ulmeiro, 1978 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Março de 2014:

Queridos amigos,
Trata-se de um livro que não fez história mas que tem mérito de ajuntar os dados sobre as manifestações teatrais na Guiné, antes da independência, fazendo uma leitura de que o teatro africano é um compósito de instrumentos musicais, dança, representação e narrativa.
Escrito por Carlos Vaz aos 24 anos, é um manifesto de pendor revolucionário, tem a candura de fazer propostas de impossível execução como a criação Teatro Nacional Popular da Guiné-Bissau, uma ferramenta básica para a cultura guineense e para a didática revolucionária.
Para que conste, pois é matéria que merece registo.

Um abraço do
Mário


O teatro na Guiné-Bissau: Antes e depois da independência

Beja Santos

“Para um conhecimento do teatro africano”, por Carlos Vaz, Ulmeiro, 1978, é um título de apresentação das manifestações teatrais sobretudo na chamada África Ocidental, debruçando-se, à guisa de proposta, para a organização de um Teatro Nacional Popular da Guiné-Bissau. O autor é Carlos Vaz que viveu até aos 16 anos em Bissau, veio para Portugal e foi bolseiro da fundação Gulbenkian. Fez o Curso de Formação de Actores na Escola Superior de Teatro do Conservatório Nacional de Lisboa. Frequentou ainda cursos de cinema e de interpretação dramática das canções de Brecht. Remete-se os interessados para os elementos constantes no Google onde Carlos Vaz é referido como ator, argumentista, realizador e produtor.

Trata-se de um livro da juventude, carregado de jargão revolucionário, cheio de propostas generosas para a profissionalização na área teatral na jovem Guiné-Bissau. Em traços grossos, recorda-nos que as primeiras manifestações de caráter teatral em África têm a sua origem no animismo e na magia, e numa estreita associação com ritos, cerimónias e cultos. Não surpreende que a expressão teatral envolva a dança, a narrativa oral e a música instrumentada. Não esquecer também que os artistas tradicionais, os djidius, e os narradores-atores ou griots, são cantadores de histórias, autênticos menestréis, daí ser possível a música (de corda ou percussão), o bailado e narrativa gerarem uma atmosfera canalizada para a criação artística de pendor teatral.

Carlos Vaz resume o teatro da época colonial francesa e centra-se depois na Guiné. Observa que em meados de 1930 se instalou o teatro à maneira italiana sob a direção de Henrique de Oliveira (este teatro teve lugar em Bissau no barracão da Casa Gouveia). Mais tarde, veio a aparecer outro grupo sob o impulso de António José Flamengo, subgerente da Casa Guedes, e que trabalhara já em Portugal como ator na área da revista. Era um teatro ao agrado da elite urbana, como se pode ver da canção utilizada na revista “Chega-lhes qu’inda mexem!...”

E a Guiné progride, 
Torna-se mimosa, 
É entre as colónias, 
Um botão de rosa.

Pequenina e fértil, 
Linda sem igual, 
É título de orgulho 
Para Portugal.

Os temas dos espetáculos eram extraídos do quotidiano: crítica social dos que iam buscar mercadorias aos comerciantes e ficavam a dever, sátiras alusivas à falta de arroz, do “flit” (produto para combater os mosquitos), à falta das careiras aéreas, etc. O autor refere mesmo denúncias a missões de estudos que não cumpriam as tarefas que lhe eram confiadas, limitando-se apenas a gastar o dinheiro da Guiné portuguesa. O ator encenador Flamengo classificou este teatro de “revista africana de fantasia e crítica social”. Para além do teatro-revista houve ainda a realização de teatro infantil com temas baseados nos contos tradicionais da Guiné. Havia igualmente saraus de arte, representação de comédias como D. Ramon de Capichuela, de Júlio Dantas. Eram representações no museu da Guiné que depois transitaram para o salão de festas do Sport Lisboa e Bissau. Há ainda uma referência a um grupo de teatro de Bolama que ganhou notoriedade entre 1959 a 1961, tinha a direção de Porfírio Costa, mais conhecido por Alansó. Faz-se igualmente menção ao bailado dos Bijagós, apresentado em terreiros em que os bailarinos ao som dos tambores se apresentam caraterizados com as faces pintalgadas de alvaiade e de zarcão, vestidos com saiotes de ráfia, ostentando na cabeça caraças de boi ou capacetes multicolores.


Carlos Vaz descreve o magnífico teatro de S. Tomé que os seus textos de autores clássicos como o “Auto da Floripes” e a “Tragédia do Marquês de Mântua e o Imperador Carloto Mangano”, notabilizados pelo reputadíssimo “Tchilôni”. Depois de uma breve incursão pelo teatro angolano, dá-nos uma visão sumária do teatro contemporâneo nos países africanos de língua francesa. Por fim, com algum detalhe, esmiuça a sua proposta para um teatro didático africano ao serviço da revolução. Contraia a noção de que o teatro popular seja vulgar enquanto o teatro puro é sempre elitista, justificando que cabe aos artistas restaurar a verdadeira personalidade africana numa perspetiva revolucionária. Sugere o seguinte: organizar os grupos dispersos, ainda sem técnica do teatro moderno, mas com técnica tradicional herdada dos antepassados, num grupo devidamente especializada em técnica de teatro, que permita aproveitar as formas tradicionais desenvolvendo-as de uma forma nova e científica. Para Carlos Vaz, este teatro revolucionário seria um instrumento poderoso para as massas populares, uma frente de combate contra o obscurantismo. Haveria assim uma oficina de teatro orientado para a cultural popular, aglutinando todas as artes, seria imperioso condicionar o funcionamento do Teatro Nacional Popular a Centro Cultural da Guiné-Bissau. Graças a esta interligação, o ator estaria apto a fazer a escolha do seu estilo e dos objetivos que pretende atingir através do teatro. Apresenta mesmo um organograma pormenorizado para um teatro popular da Guiné-Bissau, com centro cultural de investigação e pesquisa, programa pedagógico, listas de colóquios ou seminários, uma direção teatral comportando atividades artísticas e atividades administrativas. Espraia-se, repete-se obcessivamente, sob o que deve ser um estilo revolucionário e popular, sob o teatro de esclarecimento como embrião de ampla cultura patriótica, científica e de massas, e postula mesmo: “Todos os artistas da Guiné-Bissau devem ir ao seio das massas, ir à fonte única, riquíssima, a fim de observar, estudar e analisar todos os tipos de indivíduos, todas as classes de massas. Atualmente o nosso povo encontra-se a baixo nível cultural, em consequência dos longos anos de dominação colonialista e por isso exige-se que a frente cultural seja um instrumento que lhes satisfaça as necessidades urgentes”. Tem também curiosidade ler os documentos em apêndice, uma análise do texto de Aimé Césaire e a descrição de uma experiência de teatro africano em Lisboa com o grupo 12 de Setembro, grupo de atores cabo-verdianos, trata-se de uma dramaturgia à volta da história da fome de 1947 em Cabo Verde.

Este livro de Carlos Vaz deve ser obviamente encarado como um momento de entusiasmo de alguém com então 24 anos que apostava na criação de uma escola de teatro para desfrute didático das massas, isto quando a República da Guiné-Bissau balbuciar as primeiras letras.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13716: Notas de leitura (640): “Guiné, a cobardia ali não tinha lugar”, por José Silveira da Rosa, edição de autor, 2003 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12352: Os nossos seres, saberes e lazeres (62): Estalo Novo, nova peça da Companhia Maior, que vai ser estreada no Centro Cultural de Belém no do dia 28 de Novembro (Carlos Nery)

1. Mensagem (via Facebook) do nosso camarada Carlos Nery (ex-Cap Mil, Comandante da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70) que faz parte da Companhia Maior, anunciando a próxima peça deste grupo que vai estrear no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém no dia 28 de Novembro de 2013:

Carlos Nery

Amigo, estamos quase a estrear a peça "ESTALO NOVO".
Próximos dias 28, 29, 30 de Novembro e 01 de Dezembro.
Serão contadas estórias das nossas experiências passadas e actuais.
Narrarei uma experiência de guerra, na Guiné.
Haverá algum camarada, por estas bandas, com curiosidade acerca deste espectáculo?

ESTALO NOVO - Fotos © de Bruno Simão/Companhia Maior
Centro Cultural de Belém.
ESTALO NOVO - de Ana Borralho e João Galante
Por: Companhia Maior


2. Mensagem do nosso camarada Carlos Nery enviada ao Blogue:

Meu Amigo,
No espectáculo que vai ser apresentado no Pequeno Auditório do CCB de 28 deste mês a 01 de Dezembro, iremos evocar memórias do nosso passado próximo e distante. 
Pela minha parte irei fazer duas ou três evocações à minha experiência na guerra na Guiné.

Elaborei um textozinho muito simples que pretende recordar aqueles que contra nós se bateram com sacrifício e com coragem (veremos se o consigo meter)...

Companhia Maior


"O GUERRILHEIRO"

Está tombado, o guerrilheiro 
A seu lado, a arma

Num bolso da farda de caqui verde, uma escova e a pasta de dentes 
Noutro a fotografia e uma carta da namorada

Atacadores das botas apertados com cuidado 
Preso ao cinturão, um cantil que se amolgou

Por baixo da camisa suada há o volume de cintos de coiro trabalhado 
Em crioulo, “mezinhos” que guardam versículos do Corão 
E que defenderão das balas, o combatente que não tiver medo

Tombou, em combate, o guerrilheiro

Grande abraço, amigo! 
CNery
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Notas do editor

Imagens: Companhia Maior (Facebook), com a devida vénia

Último poste da série de 14 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12295: Os nossos seres, saberes e lazeres (61): Tao Te Ching, o livro da sabedoria, na RTP 2, programa Agora, com o nosso António Graça de Abreu, no passado dia 3

sexta-feira, 15 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11256: Agenda cultural (256): Camões levou 20 anos a escrever 'OS Lusíadas': dez cantos, 1102 estrofes, 8816 versos, 88160 sílabas métricas... O ator António Fonseca levou 4 anos a decorá-los e amanhã, no CCB, vai dizê-los, das 10h às 24h, no CCB, em Lisboa... Acontecimento único, a não perder: afinal são os 8816 versos da nossa identidade maior!...



Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões. Capa da primeira edição, 1572 (Fonte: Wikipédia)


"Do justo e duro Pedro nasce o brando,
(Vede da natureza o desconcerto!)
Remisso, e sem cuidado algum, Fernando,
Que todo o Reino pôs em muito aperto:
Que, vindo o Castelhano devastando
As terras sem defesa, esteve perto
De destruir-se o Reino totalmente;
Que um fraco Rei faz fraca a forte gente."

Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, Canto III, estrofe 138 [Negritos nossos. LG]



.
CAMOES, Luís de, 1524?-1580
Os Lusiadas / de Luis de Camões. - Lisboa : em casa de Antonio Gõçaluez,, 1572. - [2], 186 f. ; 4º (20 cm) 

http://purl.pt/1
http://purl.pt/1/cover.get

 - Edição princeps conhecida por edição "Ee", distingue-se pela sétima estância da primeira estrofe "E entre gente remota edificarão". - Assin.: [ ]//2, A-Y//8, Z//10. - Na portada cabeça do pelicano voltada para a esquerda do observador. - Folha branca com notas manuscritas PTBN: CAM. 2 P.; CAM. 3 P.. - Encadernação da época de pergaminho, com falta dos atilhos PTBN: CAM. 4 P.. - Pert. na f. [2]: «T. NORTON» PTBN: CAM. 2 P.. - Nota manuscrita na folha de guarda: «Pertencia a livraria de D. Francisco Manuel de Mello»; na p. de tít.: «Manoel Lopes Teixr.ª»; na última f.: «D. Jer.mo Correa da Costa» PTBN: CAM. 4 P.. - Exemplar restaurado PTBN: CAM. 2 P.. - Anselmo 697. - D. Manuel 136. - Simões 116

CDU 821.134.3-13"15" [Portugal. Biblioteca Nacional]


1. CCB - Centro Cultural de Belém, Lisboa, Sábado, 16 Mar 2013 - 10:00 às 00:00 (*)


 TEATRO MERIDIONAL – ANTÓNIO FONSECA

OS LUSÍADAS, de Luís Vaz de Camões (**)

António Fonseca dirá os dez Cantos, num único dia. O público pode assistir ao espectáculo integral ou assistir a alguns Cantos. O Canto X será dito em partilha pelo António Fonseca e alguns participantes que trabalharão previamente com o actor na aproximação ao poema.

Horário:

Canto I > 10h00
Canto II > 11h00
Canto III > 12h00
Canto IV > 15h00
Canto V > 16H00
Canto VI > 17H00
Canto VII > 18H00
Canto VIII > 19H00
Canto IX >  22H00
Canto X > 23H00


Pequeno Auditório
M/12 anos
Preços 2€ cada canto. Descontos>  10 cantos 16€; 5 cantos avulso 8€. Não há lugares marcados

Sinopse:

(...) "Os Lusíadas são, para nós, portugueses, a maneira maior de contar um tempo, de diversas formas inscrito nos nossos cromossomas e na nossa memória, em que todos os conceitos da mundivisão foram completamente alterados, em que as paredes se romperam: um punhado de homens lança-se no espaço desconhecido, por razões que podemos imaginar: ambição, desespero, aventura, convicção, necessidade, inconsciência…

As mudanças, políticas, sociais e económicas que vivemos em catadupa exigem o reforço da nossa identidade individual e colectiva, das nossas âncoras. Actualizar aquelas motivações de viver, que são ainda, apesar de tudo, as nossas, através da arte maior da poesia de Camões" (...).

Concepção e interpretação >  António Fonseca
Espaço cénico e figurinos > Marta Carreiras
Desenho de luz > José Álvaro Correia
Música original e sonoplastia > Fernando Mota
Fotografia > Susana Paiva
Assistência > Rosa Cardoso
Assistência de cenografia > Marco Fonseca
Montagem > Marco Fonseca e Nuno Figueira
Operação técnica > Nuno Figueira
Registo vídeo > Patrícia Poção
Produção executiva > Natália Alves
Direcção de produção > Maria Folque
Produção > Teatro Meridional
Direcção artística do Teatro Meridional > Miguel Seabra e Natália Luiza

2. Recortes de imprensa:

 (i) Local.pt

(...) "Os Lusíadas, obra maior da nossa Literatura e da Literatura Universal,  tem, entre nós, vários defices: é semi-odiada quando somos alunos do ensino secundário; é apreciada sem ser conhecida quando crescemos; é uma vaga referência cultural ligada, pelo menos, à toponímia de alguns centros urbanos; e, para muito poucos de nós, portugueses e falantes do Português, é uma grande estória primordial de Ser Humano, uma síntese de algumas das ideias que moldaram e moldam a nossa vida e a nossa Cultura. Este projecto pretende ser uma proposta de actualização desta estória: no seu pensamento, nas suas referências históricas, no nosso imaginário colectivo, na sua arte maior de poesia. Não vou recitar os dez cantos de Os Lusíadas, vou dizê-los com o coração" [, António Fonseca].

(ii) RTP > Antena Um:

(...) De fio a pavio, a obra maior de Luís Vaz de Camõe foi dita, hora a hora, no palco do grande auditório do Centro Cultural Vila Flor [, Guimarães 2012]. Um projeto do ator António Fonseca, que há alguns anos se embrenha pelas estrofes de "Os Lusíadas". É dito um canto por hora. O último, o Canto X, junto com várias famílias entusiastas de Guimarães. Em palco quase cem pessoas numa produção que foi apresentada a 9 de junho [de 2012]. A antena 1 assistiu a um dos ensaios. (...)

(iii) UCV.UC > Televisão Web da Universidade de Coimbra  > You Tube > "Os Lusíadas - A Viagem", com António Fonseca (vídeo 3' 50'')


(...) 8816 Versos

Título original:
8816 Versos
De:
Sofia Marques
Classificação:
M/12
Outros dados:
POR, 2012, Cores

É dito que Camões terá demorado 20 anos a escrever os 8816 versos que compõem Os Lusíadas.
António Fonseca dedicou quatro anos da sua vida a torná-los seus. Neste filme, é documentado o ano que antecedeu a apresentação final da falação d' Os Lusíadas, a 9 de junho de 2012, no âmbito dos Festivais Gil Vicente em Guimarães, que deu os versos de Camões a ouvir e a dizer. Texto: Cineclube de Guimarães. (...) 
_________________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 9 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11218: Agenda cultural (255): Convite para o 5.º encontro da "Tertúlia Fim do Império”: Messe da Batalha/Porto, dia 14 de Março, pelas 16h00 (Manuel Barão da Cunha)

(**) Apontamentos sobre Os Lusíadas (Excertos)


Rota da primeira viagem de Vasco da Gama

Vasco da Gama partiu de Lisboa com três navios e um barco de mantimentos em Julho de 1497. Fez escala na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, e daí navegou directamente para Sul, no que viria a ser a mais longa viagem por mar até então empreendida. Virou a sudoeste para evitar as calmarias  do Golfo da Guiné, depois a sueste para alcançar novamente a Costa Africana. Passados 90 dias sem avistar terra, aportou à Baía de Sta. Helena, na África do Sul, em Novembro de 1497. Passou o Cabo da  Boa Esperança com alguma dificuldade devido às tempestades. Depois de ultrapassar o limite das  navegações de Bartolomeu Dias, a expedição iniciou as suas descobertas próprias: Natal, no dia 25 de  Dezembro, o rio Zambeze um mês mais tarde, a Ilha de Moçambique em começos de Março. A frota  atingiu Mombaça, o actual Quénia, depois Melinde, mais a norte, em Abril de 1498, onde puderam manter  relações amigáveis com o rei local e obter um piloto árabe famoso (Ahmad Ibn Majid) que levou os  barcos até à Índia. Empurrada pela monção de sudoeste, a frota estava à vista da Índia em 18 de Maio.  O desembarque realizou-se quatro dias mais tarde.

Depois de três meses de negociações com alternativas de amizade e de hostilidade aberta,  Vasco da Gama iniciou o caminho de regresso trazendo os navios carregados de especiarias e de outras mercadorias de preço. Largando a 29 de Agosto de 1498, chegou a Lisboa depois de grandes dificuldades e de ter perdido um navio, nos finais do Verão de 1499. (...)

(---) A forma

"Os Lusíadas" foi lido pela 1ª. vez a D. Sebastião e editado em 1572, após a  necessária autorização e licença da Inquisição. O poema está dividido em 10 cantos e é constituído por 1102 estrofes [, 1102 x 8 = 8816 versos, 88 160 sílabas métricas]. O canto mais longo é o X com 156 estrofes. As estrofes ou estâncias são oitavas e cada verso é  composto por 10 sílabas métricas (verso decassilábico ou heróico). As estrofes apresentam  o seguinte esquema rimático invariável: a b a b a b c c, rima cruzada nos 6 primeiros versos  e emparelhada nos dois últimos. (...)

sábado, 4 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6935: A Cantora Careca, estreado em Bissau no dia 5 de Abril de 1970 (Carlos Nery)

Mensagem de Carlos Nery (ex-Cap Mil, Comandante da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2010:

Caros Camaradas,
Tantas vezes prometido, aí vai o material para o Poste sobre A Cantora Careca, estreado em Bissau em 05ABR70.
Como expliquei trata-se de um trabalho conjunto, meu, do Mário Cláudio e do João Barge. Já têm foto minha e do Mário Cláudio, usadas do antecedente, noutros Postes.

O Barge remeteu-me a sua, agora, com idêntico objectivo. Enviar-vos-ei o email que recebi dele. Poder-se-á, certamente, encontrar forma de colocar as três no início do Poste. Há outras que não possuo e que seria interessante incluir. De Otto de Habsburo, de Carlos de Áustria (seu pai), talvez de Aristides de Sousa Mendes. E, por fim, dos três majores assassinados. Enfim, vocês verão se isso é possível.

Dia 4, sábado, vamo-nos encontrar os três, no Porto. Direi que desde 1970 que tal encontro não tem sido possível.
Teria graça se o Poste estivesse pronto, nessa data... Vocês verâo se isso é possível.

Tentarei fazer fotos do encontro e, se houver matéria de interesse, tentarei fazer um Poste sobre esse reencontro.

Um abraço forte,
Carlos Nery



“A Cantora Careca”, Bissau, Abril de 1970 (Maria Guilhermina, Rui Barbot e João Barge)

Verbete

A empresa de levar à cena nas adjacências do Quartel-General de Bissau A Cantora Careca, de Ionescu, produzida pelo então capitão miliciano Carlos Nery Gomes de Araújo, ainda hoje retém, quando lembrada, uma intocada luz de audácia juvenil, e de discreta rebeldia. Tratava-se de descerrar uma certa janela, propiciadora de mais funda respiração, no quadro constritor da guerra, e com tal gesto propunha-se o grupo de gente moça, mobilizado por Carlos Nery, prestar serviço aos camaradas que, interessados em pensar para além daquilo que constituía motivo de colectiva apreensão, poderiam ver no teatro moldura adequada ao exercício da sua inteligência, e da sua fantasia.
Entre as recordações da pequena aventura, documentada por textos e fotografias, uma muito especial ficaria, exclusivamente guardada na memória, e que oferece agora, quatro décadas passadas, algum pretexto de reflexão.
Um jornalista estrangeiro, afecto ao regime português da altura, e que viajava em reportagem pelas três frentes de combate, tendo assistido a uma das récitas daquele espectáculo vanguardista, levantado na maior economia de meios, viria felicitar-nos efusivamente, a nós, artistas mais ou menos improvisados, com palavras que não se esqueceriam. Chamava-se o senhor Otto de Habsburgo, e representava tão-só a última candidatura ao trono imperial austro-húngaro, esse mesmo que com Carlos V, rei de Espanha, se arrogara um domínio de além-mar que apenas com Manuel I, rei de Portugal, por algumas décadas partilharia.
Relata-se isto para que conste, e para que se reabram os compêndios de História.
Que importam ao fraterno convívio as opções ideológicas, navegantes como somos, todos nós, na nau de velas pandas da relatividade do Tempo?

Mário Cláudio
(alferes Barbot)

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1 – Prontidão de Embarque

Carlos Nery - No início de Novembro de 1969, vinda de Buba, a CCAÇ 2382 chegava a Bissau, ficando adida ao BART 2866, em Brá.
Tinha terminado a parte mais dura da nossa comissão. Somos declarados com prontidão de embarque a partir de 10JAN70. Porém, até Março, iríamos, ainda, colaborar na segurança da cidade, de algumas das suas instalações militares e de destacamentos próximos.

João Barge - Anos 70 do século passado, ou, para ser mais exacto, na transição de Dezembro de 1969 para Janeiro de 1970!

Carlos Nery - Bissau era cheia de vida, de movimento, de civis e de militares. As viaturas corriam por toda a cidade. Esta ocupava uma vasta área, as distâncias eram grandes. Não raro, viam-se oficiais pedindo boleia a viaturas militares que passavam a grande velocidadade fingindo não os ver.

João Barge - Estava eu então, pela cidade, um pouco órfão, uma vez que a Companhia que me tinha acolhido, ainda em 1968, em rendição individual, a CCaç 2317, regressara a Portugal, pouco antes, acabada a comissão de serviço.

Carlos Nery - Era ao fim da tarde e à noite que a cidade se tornava mais atractiva. Tomado um duche e mudada a roupa, saíamos de Brá, da sede do Batalhão, em grupo, num velho jipe, para a Messe de Oficiais. Aí jogava-se bridge, conversava-se, tomavam-se bebidas. O uísque, livre de taxas ou de impostos, era mais barato do que a água Perrier que se usava para beber com ele.

João Barge: Talvez porque amargara (e amargurara)...

João Barge - Talvez porque eu amargara (e amargurara) Gandembel e Ponte Balana, e logo a seguir, para não me desabituar, também amargara (e amargurara) Buba, resolveram poupar-me a maiores infortúnios bélicos e colocaram-me no Quartel General, na Secção de Transportes Marítimos. Daí as idas frequentes, de dia e tantas vezes de noite, ao cais do Pidjiguiti. Ficou-me, nos olhos e talvez na alma, a marginal, com suas palmeiras, com seu cheiro a mar e a gente, com aquela brisa que chegava ao fim da tarde e me reconciliava um pouco com tudo e com todos.

Carlos Nery - Em certas noites da semana, junto da piscina onde se improvisara um recinto de cinema ao ar livre, eram projectados filmes recebidos dos distribuidores de Lisboa.

João Barge - Não era muito o tempo livre mas, ao fim do dia, normalmente rumava ao Clube Militar, para mastigar qualquer coisa, bebericar um qualquer álcool e trocar dois ou três dedos de conversa. O Clube Militar era basicamente a Messe de Oficias, a piscina e um cinema ao ar livre. Havia quem não se encolhesse muito a afogar as mágoas, havia quem se desse mais ao jogo.

Carlos Nery - Uma bela noite fez a sua irrupção uma novidade, o Bingo! Na época era desconhecido, mesmo em Portugal. Em sessões cada vez mais concorridas, por fim ao ar livre nas belas noites de Bissau, compravam-se cartões e ouviam-se anunciar os números saídos. Por último, havia já grandes painéis iluminados onde os mesmos eram exibidos. Os prémios eram aliciantes, objectos caros adquiridos nas lojas que proliferavam na baixa da cidade.

João Barge - A minha “praia” era outra, cinema sim, o resto nem por isso.

Carlos Nery – Já me ocorreu se todo aquele aparato não se destinaria a permitir, sem chamar a atenção, a compra de idênticos artigos a ser oferecidos, pelos Majores Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório, aos seus interlocutores, durante as negociações que estabeleciam, nessa altura, com quadros intermédios do PAIGC. Sabendo-se que quem os assassinou foi quem com eles dialogou, em encontros sucessivos, pergunto-me se não contribuíu para a sua eliminação o receio de que, se tivessem sido feito prisioneiros, pudessem vir a revelar pormenores comprometedores para os seus captores.


2 – Dar a Outra Face

Arménio Vicente e duas amiguinhas nossas que preferiam os ensaios a outras brincadeiras e que já sabiam de cor toda a peça... Onde estão hoje vocês, queridas amigas?

João Barge - Ora como o mundo é pequeno e a Guiné não é grande, por esse tempo, entre tanta e desvairada gente que no Clube Militar desaguava, quem haveria de por ali também aparecer? O Cap. Mil. Gomes de Araújo, comandante da CCaç 2382, companhia que estava em Buba, quando a minha, a CCaç 2317, também ali esteve, nos meses de Fevereiro a Maio de 1969.

Carlos Nery – Não me recordo como mas, em dada altura, passaste a fazer parte do nosso grupo, que não jogava, era pouco dado à bebida e não apreciava o Bingo por aí além.

João Barge – Saíamos para o recinto da piscina, deserto à noite, e conversávamos.

Junto à piscina (Rui Barbot, Maia Alexandre e Maria Guilhermina)

Rui Barbot - Maio de 68 tinha sido há menos de dois anos, de Portugal vinham notícias de confrontos entre estudantes e o poder, havia notícias de Associações encerradas, os “gorilas” tinham feito a sua aparição nas Faculdades. No ano anterior haviam-se realizado eleições em Portugal. Não faltavam motivos de conversa que, claro, incidia também nas peripécias da guerra da Guiné.

Carlos Nery - Lembram-se de que o Tenente-Coronel Saraiva, homem culto que havia sido amigo de José Régio, responsável pelo Clube, nos pediu para o ajudar a seleccionar os filmes a exibir? Engraçado, tendo nós feito uma escolha baseada na qualidade, logo os distribuidores avisaram que, para poder alugar esses, teriam que ser aceites outros filmes, digamos, de qualidade inferior... Aliás, isso veio ao encontro das reclamações de alguns oficiais que se queixavam, afirmando querer distrair-se e não ter de pensar nos problemas propostos pelos realizadores de maior nomeada de então, os Bergman, os Antonioni, os Fellini, os Rosselini, os Claude Chabrol...

João Barge - Ora um belo dia, tu, o Cap. Gomes de Araújo, cristianissimamente e sem que tivesse havido qualquer ofensa prévia, presumo eu, resolveste dar a outra face, a tua outra face: e surge o encenador Carlos Nery mais o projecto de criar de raiz um grupo de teatro.

Analisando o texto (Arménio Vicente e Maria Guilhermina)

Carlos Nery – Das conversas sobre Cinema passou-se ao Teatro... E em fazer-se Teatro... E em breve tínhamos uma bela PEDRA para fazermos uma bela SOPA: uma IDÉIA! Mas como conseguir os legumes, o sal e mais temperos, as ervas aromáticas? Não tínhamos, nem texto, nem palco, nem actores, nem técnicos, mas... começámos o trabalho!


3 – Onde se fala em “Audácia”, “Rebeldia”, “Ousadia” e até em “Coragem”...

Bombeiro (Maia Alexandre)

Rui Barbot - “A empresa de levar à cena A Cantora Careca, de Ionesco, ainda hoje retém, quando lembrada, uma intocada luz de audácia juvenil, e de discreta rebeldia”, escrevi lá em cima, no textinho a que pus o título de Verbete...

João Barge – O Luís Graça, aqui do blogue, já deu uma opinião semelhante...
“Parabéns pela ousadia e até coragem de levar à cena a peça do Ionesco”, disse num comentário ao P6183...

Maria Guilhermina, Rui Barbot e João Barge

Carlos Nery – Tem graça nunca pensei nesses termos. E quando fui o “motor” do empreendimento
admiti tudo menos ser necessário coragem para tomar tal iniciativa... Nunca senti a coisa assim... Mas, passados estes quarenta anos, pode ser... É que a obra de arte ultrapassa, muitas vezes, a intenção do artista, como sabemos.... Na altura, pensei que a nossa coragem residia unicamente em preferirmos aquele nosso convívio a eventuais “copofonia” ou “batota”, lá dentro, na messe...


4 – Traz Outro Amigo Também

Conversa com o público (João Manuel, Rui Barbot, Ana Maria, Carlos Nery, Maria Guilhermina, João Barge, Lisa Nunes, Maia Alexandre e Arménio Vicente). Notem-se os elementos de cena muito simples, as mesas de refeitório proporcionando o tablado e o conjunto de improvisados projectores.

João Barge – Do nada, na base de um amigo que traz outro amigo também, o grupo foi nascendo e fazendo o seu caminho, descobrindo e formando actores, inventando técnicos, confiando o guarda-roupa a senhoras sábias e generosas (1), improvisando palco e materiais de cena, propondo, discutindo, até se chegar à primeira peça (afastados o Auto da Índia e a Gota de Mel para evitar melindres maiores) - um texto de Eugène Ionesco - La Cantatrice chauve (A Cantora careca), publicado em 1950, um clássico do chamado Teatro do Absurdo.

Casal Martin e Mary (João Barge, Maria Guilhermina e Lisa Nunes)

Carlos Nery – Sugeri, efectivamente, esses dois textos: “A Gota de Mel” de Léon Chancerel (2) e o “Auto da Índia” de Gil Vicente. O primeiro é um poema lindíssimo que crítica o absurdo da guerra. O segundo, todos sabemos, evoca alguns aspectos negativos da nossa expansão marítima. Fidelidades e infidelidades de um casal separado pela ausência do marido na India, marido esse que, no regresso, se assume sem rebuços como um émulo, no sec. XVI, do já célebre Capitão Garcez... Pois bem, pediram-nos que fizéssemos outra coisa...
“Ah, grande Gil Vicente!”, lembro-me de ter exclamado...


5 – Dialogar no Caos



Mr. Martin (João Barge)
Mr. Smith (Rui Barbot)

Rui Barbot – E foi aí que irrompeu “A Cantora Careca”, de Eugene Ionesco. Teatro de Absurdo no teatro de Guerra? Tinha algum sentido...

Carlos Nery - “A peça que seleccionamos serve, porém,inteiramente a nossa finalidade: propor uma saída para eventuais conversações labirínticas ou marcar uma pausa na eternidade de certos jogos.
Que uma dúzia de pessoas haja decidido pôr em comum os seus esforços e tentar esta prova, pode ser em absoluto indiferente; pode causar surpresa, admiração e mesmo um certo alarme. Qualquer reação se justificará, se a não justificar o espectáculo que ides ver.
Gostaríamos, porém - e só formulamos este voto - que nos pudesse aproveitar a lição das personagens de Ionesco: - a lição de que, apesar de tudo, é possível dialogar no caos. E talvez nem seja preciso gritar muito alto."

Rui Barbot – Escrevi isso, em 1970, para o programa, não foi?


Mrs. Smith (Ana Maria)

Carlos Nery – Barbot, essa de que “ apesar de tudo, é possível dialogar no caos” era bastante ousada, naquele contexto... Não nos esqueçamos de que eram tempos em que se não dialogava com “terroristas”...

Rui Barbot - “E talvez nem fosse preciso gritar muito alto”, apetece insistir.

Carlos Nery – Valeu-nos a Comissão de Censura não ter alçada ali no Clube Militar...


6 - Un son mon ka ta toka palmu

Durante o ensaio (Ana Maria e Carlos Nery)

João Barge - Bem, mas escolhido o texto, mãos à obra. Ensaios diários, perceber o espectáculo no seu conjunto, cada um a aprender o seu papel, a trabalhar a voz, a decorar as marcações, a ganhar ritmo, a dar e receber as deixas tantas vezes até que a naturalidade apareça. E tu, agora Carlos Nery, metidos na gaveta os galões de capitão, a explicar, a corrigir, a incentivar, a acreditar e a fazer-nos acreditar. Um grupo unido na certeza de que todos juntos haveríamos de conseguir. Un son mon ka ta toka palmu (provérbio Bissau-guineense: uma só mão não chega para bater palmas).

Carlos Nery - Todas as portas se nos abriam. O tablado? Mesas de refeitório, presas solidamente, de topo para o público, ligeiramente inclinadas para permitir uma melhor perspectiva. Iluminação? Explica-se a um electricista militar, o soldado António Esteves, de pronto conquistado pelo nosso projecto, como se improvisa um orgão de luzes. E para projectores de cena, os usados, nas unidades de mato, para iluminar o terreno para lá do arame farpado.

João Barge – Lembram-se do Zé Camacho, o actor já falecido? Aquele dos “Malucos do Riso”... Também nos apoiou muito... Era cabo, julgo, no PIFAS... .

Carlos Nery – Talvez tenha nascido ali o seu gosto pelo teatro, quem sabe?
Seja como for conseguiu-se apoio para o som. Sonoplasta, o João Manuel, também soldado no PIFAS. O ecrã usado nas sessões de cinema é agora, para nós, um ciclorama onde é possível a projecção de tonalidades e sombras, numa feérie de cor e movimento. A imaginação, ali, anda à solta sem aceitar qualquer baia ou constrangimento...


7 – Um Anjo de Motorizada

Mrs. Martin (Maria Guilhermina)

João Barge - Claro que também houve alguns sustos. Uma das actrizes, por vontade própria ou alheia, resolveu renunciar e nós íamos ficando descalços ou, mais tropicalmente falando, perdidos no mato sem cachorro.

Carlos Nery – Vamos a sua casa, no recinto do Clube de Oficiais. Sou persuasivo, sou agressivo, sou convincente, sou duro. Nada a demove. É casada com um médico de nome, mobilizado para o serviço do Hospital Militar. Talvez o marido não ache graça ver a mulher metida em “teatrices”... A má fama dos “cómicos” vem de longe...

João Barge - Sentimo-nos derrotados...“Inventar” uma mulher capaz de representar o papel subitamente em falta não é fácil...

Carlos Nery – E é nesse ambiente de derrota que, subitamente, se ouve uma voz: “Tenho de ir ao Aeroporto”... É o Joaquim Fidalgo, um dos elementos do nosso grupo. Comprou uma motorizada, desloca-se facilmente. “Ao Aeroporto?” pergunto. “Sim, casei por procuração, vou buscar a minha mulher que deve estar a chegar, ainda passo por cá com ela... Até já”...
Instantaneamente todas as antenas se eriçam...

João Barge - E foi buscar a sua alma gémea, de motorizada...
Quando chegaram ao QG foram ambos devidamente emboscados, por quem de direito, e a actriz que faltava deixou de faltar.
Uma bem sucedida operação-relâmpago (sem baixas e que nos deixou em alta).

Carlos Nery – Quando os noivos chegam, vindos do aeroporto, vêem a sua lua-de-mel comprometida ou, pelo menos, adiada um bom par de horas. Eis-me, imparável, “vendendo”o que pretendemos fazer, aliciando a noiva para o nosso projecto... Acaba por aceitar e logo ali, naquela noite, se retomam os ensaios com a nóvel “actriz”...

João Barge - Foi a primeira e se calhar a última vez na minha vida que vi chegar um anjo salvador de motorizada...

Carlos Nery - Horas mais tarde, Maria Guilhermina, finalmente a caminho de casa, comenta não ter gostado de ser convencida tão facilmente...

João Barge – Tão facilmente, é força de expressão... Ela deu muita luta, se estou bem lembrado...

Carlos Nery - A “sopa de pedra” rescende sobre o lume forte que a aquece...


8 – Otto de Habsburgo e as Palavras que se não Esquecem

Otto de Habsburgo 

Carlos Nery - Na noite da estreia, depois do espectáculo, escondidos entre o ecrã e a parte posterior das mesas, cujos tampos foram chão de um palco, recebemos os abraços e as felicitações dos amigos e de muita gente que mal conhecíamos. Também a “actriz” desistente nos vem abraçar entusiasmada.

Rui Barbot - “Um jornalista estrangeiro, afecto ao regime português da altura, e que viajava em reportagem pelas três frentes de combate, tendo assistido a uma das récitas daquele espectáculo vanguardista, levantado na maior economia de meios, viria felicitar-nos efusivamente, a nós, artistas mais ou menos improvisados, com palavras que não se esqueceriam. Chamava-se o senhor Otto de Habsburgo, e representava tão-só a última candidatura ao trono imperial austro-húngaro, esse mesmo que com Carlos V, rei de Espanha, se arrogara um domínio de além-mar que apenas com Manuel I, rei de Portugal, por algumas décadas partilharia.”

João Barge – Otto de Habsburgo garantiu-nos conhecer bem o teatro de Ionesco, ter assistido já a várias versões de A Cantora Careca e nunca ter visto uma encenação da peça tão de seu agrado e tão bem representada...

Carlos Nery – Talvez estivesse a ser sincero, não sei...

Rui Barbot – Parecia sincero...

João Barge – Sei lá...


9 – Aristides de Sousa Mendes

Carlos de Áustria

Carlos Nery - Era o filho mais velho de Carlos de Áustria, último soberano do Império Austro-Hungaro que, tendo sido forçado a abdicar durante a Guerra de 1914/18, se fixou na Ilha da Madeira tendo vindo a falecer aí, em 01 de Abril de 1922. Está sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Monte, sendo alvo de grande devoção popular. Foi beatificado pelo Papa João Paulo II em 03 de Outubro de 2004.

Rui Barbot – Otto de Habsburgo foi uma das primeiras pessoas a quem Aristides de Sousa Mendes, contrariando ordens expressas de Salazar, passou o visto necessário para poder passar a fronteira Franco-Espanhola a caminho de Portugal. Sendo pretendente ao trono do Império Austro-Hungaro tinha a cabeça posta a prémio por Hitler. De Portugal passou aos Estados Unidos da América.

João Barge – Na altura Aristides de Sousa Mendes acabou por conceder vistos a cerca de 30000 pessoas, entre elas 10000 judeus. Além dos vistos passados a Otto de Habsburgo e às pessoas que com ele fugiam, fê-lo também a membros do governo belga e luxemburguês, à Grã-Duquesa Charlotte do Luxemburgo, ao Rabino de Antuérpia e, uma coisa que pouca gente sabe, a Salvador Dali.

Rui Barbot – Mas que fazia em Bissau, em Abril de 1970, Otto de Habsburgo? Apresentava-se como jornalista, segundo julgo. Para que jornal escrevia?


10 – Le Pinay Circle, António de Spínola e Otto de Habsburo

Carlos Nery – Na Net há imensas referências acerca da sociedade secreta Le Circle (ou The Cercle) que dizem ter sido criada pela CIA. Veio a ser designada como Pinay Circle, antes de 1990. O Pinay Circle teria sido criado em 1969 por Antoine Pinay, Jean Violet e Otto de Habsburgo. O seu objectivo seria, na época, o combate ao comunismo. Pertenceriam ao Pinay Circle políticos, banqueiros e intelectuais europeus e americanos.

João Barge - A novidade é que, em vários sites sobre o assunto, se afirma que António de Spínola pertencia, ele próprio, ao Pinay Circle.

Carlos Nery - Nuno Barbieri, outro amigo que fiz em Buba, rejeita esta hipótese. Segundo ele, Spínola pertenceria sim à Maçonaria nunca podendo, por isso, estar ligado a uma Sociedade Secreta com ligações à Oppus Dei, como seria o caso da Pinay Circle.


11- Questões de Segurança, disseram-nos...

João Barge – Estreámos no primeiro fim-de-semana de Abril, à noite e ao ar livre, e foi um êxito. Um êxito tão grande que logo nos pediram para o repetir. Se a memória não me falha, acabámos por fazer, naquela primeira quinzena de Abril, uma série de quatro espectáculos.

Carlos Nery – No primeiro fim-de-semana para oficiais e suas famílias, no fim-de-semana seguinte para os sargentos. Ainda pensámos trazer também algumas unidades da guarnição de Bissau ao Clube Militar. Não foi considerado possível.
Quisemos, ainda, montar o dispositivo cénico no Pilão para a população africana.

João Barge - Não tenho dúvidas que teria sido um êxito. Mas... Nem pensar nisso! Os problemas de segurança seriam muitos, disseram-nos.

Rui Barbot - Descobrimos na cidade uma colectividade que tinha um pequeno palco numa sala de festas. As responsáveis pelo espaço, se estou bem lembrado, religiosas católicas, tinham-no reservado para outros eventos. Não se mostraram interessadas na nossa iniciativa nem disponibilizaram datas..

Carlos Nery - Aliás a Ccaç 2382, que eu comandara, regressara já a Portugal, em Março. Tinha-me oferecido para substituir o Alferes mais antigo, que deveria ter ficado com o Sargento que respondia pela companhia, a ultimar burocracias, entregas de material e contabilidades. Mas o meu objectivo era, principalmente, terminar o trabalho teatral a que me dedicara. Não podia, porém, prolongar por mais tempo a minha comissão na Guiné...


12 – Uma Ponta de Orgulho, Estamos Vivos...

Casal Martin (João Barge e Maria Guilhermina)

João Barge - Ionesco considerava que o seu teatro era sobretudo insólito, em vez de absurdo.
Acho que tinha razão, o que nós fizemos foi algo de insólito, naquele tempo e naquele lugar.
Que ninguém me leve a mal mas, olhando para trás, não posso deixar de sentir uma ponta de orgulho, por mim e por todos os companheiros de viagem.

Carlos Nery - Para nós, expressarmo-nos em termos de arte, era pôr de lado a guerra e libertar a imaginação soltando-a rumo ao céu pleno de estrelas da Guiné! Uma criação artística tem sempre um alvo... Mas, desta vez, julgo que, no fundo, o alvo éramos nós próprios...

Mário Cláudio – Insisto: “Tratava-se de descerrar uma certa janela, propiciadora de mais funda respiração, no quadro constritor da guerra, e com tal gesto propunhamo-nos prestar serviço aos camaradas que, interessados em pensar para além daquilo que constituía motivo de colectiva apreensão, poderiam ver no teatro moldura adequada ao exercício da sua inteligência, e da sua fantasia”.

João Barge - Creio, a esta distância, que o entusiasmo posto por todos, foi uma forma de derrotarmos aquela guerra que nos consumia. De nos dizermos: estamos vivos, somos capazes de pensar, de sentir e de transmitir emoções.




A capa (autoria de Ruy Lobato) e as duas primeiras páginas do programa
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13 – O Drama de Jolmete

Carlos Nery - Cerca de uma semana depois do nosso último espectáculo, deu-se o drama de Jolmete, junto ao Rio Cacheu. O assassinato dos Majores Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório, do Alferes Palmeiro Mosca e dos Militares que os acompanhavam, emocionou toda a gente. Nunca mais se jogou o Bingo e julgo que, a ter acontecido algum tempo antes, ter-nos-ia levado a desistir da apresentação da “Cantora Careca” em Bissau.



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(1) – Sobras do fabrico de tecidos em fábricas texteis portuguesas eram postas à venda no comércio da Baixa de Bissau, muito baratas. Foram comprados retalhos diversos e com eles se costurou o guarda-roupa do nosso espectáculo.

(2) - “A Gota de Mel” foi um dos textos utilizados por António Pedro, em 1953, quando começou a trabalhar com os amadores do Teatro Experimental do Porto. Assisti ao espectáculo de que o poema fazia parte. Fiz parte do TEP, por essa altura, participando nas peças Antígona, na versão do António Pedro, e Macbeth, também traduzida por António Pedro e ambas encenadas por ele em 1956. Quando a Companhia se profissionalizou passei a trabalhar integrado no grupo dos alunos. Contudo, assistia avidamente aos ensaios dos profissionais até que fui chamado para o COM em Vendas Novas em 1957. No início dos anos 60, em Coimbra, integrei o CITAC participando em vários espectáculos, dirigidos por Luís de Lima, entre eles o Tartufo, de Moliére.

Já em Lisboa, na Guilherme Cossul, participei na primeira apresentação de Harold Pinter em Portugal, em 1963, O Monta Cargas, tradução de Sttau Monteiro, encenação de Jacinto Ramos, cenários de João Vieira. Actores, Filipe Ferrer e Carlos Nery. (Ver minha entrevista a Jorge Silva Melo na revista dos Artistas Unidos, n.º 8 de Julho de 2003. Consultar também http://www.haroldpinter.org/plays/frn_dumbwaiter_po63.shtml

Regressado da Guiné, em Maio de 1970, fiz parte da Direcção do 1º.Acto Clube de Teatro, até 1973. Voltei a encenar aí A Cantora Careca e, em seguida o Woyseck,de Büchner (espectáculo que não chegou a ser levado ao público por ter sido alvo de cortes substanciais no ensaio de censura).
Depois do 25 de Abril, em 1976, encenei no Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, em Lisboa, A Excepção e a Regra de Bertold Brecht.

Trabalhei, a seguir, em 1977 e 78, no Teatro da Cornucópia, como actor. (http://www.teatro-cornucopia.pt/htmls/conteudos/EElVkyZApAoiXxluKM.shtml)

Actualmente pertenço à Companhia Maior do CCB.(http://www.ccb.pt/sites/ccb/pt-PT/Programacao/Teatro/Pages/BELA%20ADORMECIDA%2028%20A%2031%20DE%20OUT%20DE%202010.aspx).

Fotos dos ensaios e do espectáculo: © Carlos Nery (2010). Direitos Reservados
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6876: (Ex)citações (94): A maioria silenciosa do nosso blogue (Carlos Nery)

Vd. também postes de:

3 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6670: V Convívio da Tabanca Grande (12): Caras novas (Parte III): O João Barge, da CCAÇ 2317, que foi meu actor em A Cantora Careca, com o Rui Barbot/Mário Claúdio... (Carlos Nery)
e
24 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6781: Controvérsias (98): Quem não se sente... não é filho de boa gente (Carlos Nery)

domingo, 21 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3660: O meu Natal no mato (18): Olossato, 1966 (Rui Silva)

1. Mensagem do Rui Silva;

Uma história (verdadeira) de Natal

O Natal da 816 no Olossato (Dezembro de 1966)
Das minhas memórias: “Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa”-


... Entretanto chega o Natal. O Capitão reúne o pessoal mais graduado, lembra e propõe um programa festivo assinalando tão interessante data e, claro está, a que o pessoal, por doutrina própria, é sensível. Sabíamos que estávamos longe, muito longe dos outros santos do nosso presépio (família) e que também estávamos num sítio errado.

No programa salientava-se um espectáculo de teatro com peças mais ou menos rápidas: cenas de humor, canções, fados, poesia, coro, etc. Só esperávamos era que não houvesse foguetes, presentes do inimigo.

Apareceram habilidosos para tudo. Tudo isto culminava com um jantar de rancho melhorado no dia seguinte, dia de Natal, aonde se reuniu, no refeitório dos soldados, toda a família 816.

Quanto ao espectáculo teatral este começou antes de o ser, pois o bom amigo do Moreira que entretanto tinha improvisado um pequeno palco, de formato quadrado, com tábuas apoiadas em pequenos troços de troncos de palmeiras, ao qual aplicou, nos dois vértices posteriores, dois potentes faróis de viatura militar originando um foco luminoso dirigido aos actores… de ocasião, dando assim mais vida ao espectáculo e até a dar um ar de teatro profissional.

Lembra-se, e aqui é que começa o circo, da sua louvável ideia de arranjar um sistema de cordas e roldanas que permitiam um movimento de puxar esta ou aquela corda, consoante o interesse em abrir ou fechar as cortinas (cortinas mesmo, de alto a baixo) que escondiam o palco aquando da mudança de número e tarecos e à boa maneira dos verdadeiros teatros. O engenho foi testado várias vezes e não havia dúvida, para garbo do Moreira, e a boa surpresa dos outros, a coisa estava funcional. Puxava-se uma ponta da corda e o cortinado abria. Puxava-se a outra ponta e o cortinado fechava. O Moreira sorria com o evento. Estava um primor!, e até parecia um teatro a sério! Por ali já havia sucesso.

Mas o melhor ia sair: logo ao começar do espectáculo o sistema… AVARIOU!

As cordas emaranharam-se de tal maneira que o pano, uma vez fechado, não mais abriu, para nossa desolação e maior frustração do Moreira. No entanto, acabou por o melhor remédio ser uma grande risota. Houve também quem as não poupasse ao diligente e agora desolado Moreira, mas o teatro prosseguiu na mesma, ... de cortina aberta. Tudo afinal contava para uma alegre e boa disposição.

Os cenários e outros adereços, que faziam parte dos diversos números, eram então mudados e montados mas agora mesmo à vista dos espectadores, isto é, ao vivo, o que tirava um certo valor ao programa, mas tudo se compôs com a compreensão e a boa disposição da plateia.

Entre os diversos números destacava-se “A barbearia dos surdos-mudos”, no qual fazia de barbeiro o corpulento Barrumas. O próprio barbeiro era também, claro, surdo-mudo.

Então o barbeiro esperava que se juntassem três fregueses. Logo que chegasse o terceiro freguês sentava-os em outras tantas cadeiras que estavam alinhadas. E então ia trabalhar em série.

Pegava então numa corda que tinha também 3 rolhas fixas a espaços regulares, espaços esses iguais aos de cadeira a cadeira e então com os 3 clientes já sentados, ele punha uma rolha na boca de cada um deles e de forma que a corda ficasse bem esticada.

Depois de afiar a sua grande navalha, que mais parecia uma faca de cortar bacalhau na mercearia, ele puxa a ponta da corda que fazia com que as 3 caras virassem todas ao mesmo tempo e para o mesmo lado. Puxava em seguida por a outra ponta e agora as 3 caras viravam para o lado oposto. Assim o barbeiro barbeava ora as faces esquerdas ora as faces direitas dos clientes no mesmo movimento. Era um trabalho em série e bem sincronizado.

O que acontece é que o dia não estava para as cordas, pois quando ele pega na corda que tem as três rolhas (tantas como os clientes a barbear) para pôr as rolhas nas bocas dos clientes, já sentados, a corda das rolhas enriça-se de tal maneira que faz com que duas das rolhas ficassem muito chegadas. Com isto 2 dos clientes ficaram com as caras quase encostadas, na circunstância o Cowboy e o Vizela. O Cowboy então, por pouco não aguentava a situação, pois ia rebentando com o riso.

Os clientes da barbearia, ou sejam os fregueses, foram escolhidos a dedo, para tornar o número mais aliciante e assim, aos dois fregueses atrás referidos juntou-se o Fonsequinha. Que trio!!

O Fonsequinha, como era pequeno, mal disse, pelos gestos –não nos esqueçamos que os clientes eles eram todos surdos-mudos- ao que vinha, o Barrumas pega nele por a gola do casaco e assim suspenso, senta-o numa das cadeiras. O Fonsequinha com o seu bigode à Hitler, estava mesmo a calhar para a cena.

O número acabou por se fazer, mas o problema da corda embaraçou barbeiro e barbeados, que à mistura com os risos dificilmente suportados perderam assim alguma serenidade para desempenharem bem o seu papel. Ao fim e ao cabo a malta acabou na mesma por se rir, mais até com o inesperado episódio da corda, e como estávamos ali para nos rirmos…

O barbeamento foi no entanto feito com qualidade, ainda que com algum sacrifício e alguma ginástica de Barbeiro e barbeados. Se o número era já de rir a história das cordas aumentou aquele.

Eu que estava na parte de trás do palco -nos bastidores- quando aconteceu ver o Cowboy quase em cima do Vizela e o embaraço do Barrumas, não mais me interessei ver a peça e foi dar largas à minha enorme vontade de rir, pois a peça era agora outra.

Entre outros números, o Piedade cantou, o Correia apresentou os seus fados de Coimbra, entre eles o seu “Mar eterno”. O Ludgero foi figura principal num número em que o Belchior, então espectador, saiu bem molhado com água.

Por sua vez o Belchior saiu-se com poesia, e bem, ou ele não tivesse pinta para isto. Eu e o Carneiro fomos os apresentadores e houve também um coro –que abriu o espectáculo - muito bem ensaiado pelo Alferes Esteves. A coisa não foi má e aquele alegre convívio fez-nos esquecer a mágoa que porventura sentíamos de nos vermos naquele dia distante da família e num clima de guerra.

O Natal passou. Entretanto toda a malta recebeu do MNF (Movimento Nacional Feminino) um isqueiro e alguns maços de tabaco como lembranças de Natal.

Pela passagem de ano também se fez festa. Dançou-se e cantou-se na cantina dos soldados. O Pele-e-osso foi figura preponderante a dançar, pois ficou-se ali a saber que ele era elemento de um grupo de folclore. Que bem ele dançava! O Capitão apareceu depois e também cantou “O meu menino é d’oiro” e, pronto, o passar do ano também não passou sem festa. Uns copitos e danças (daquelas ao Deus dará –ninguém rachou a tola-) e eis-nos no dia 1 do ano de 1967.

A página da quadra do Natal foi virada e tudo voltou à rotina do dia-a-dia.

A operação seguinte…..

Rui Silva
Ex-Fur Mil
CCAÇ 816
(Guiné 1965/67)
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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste > 20 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3654: O meu Natal no mato (17): Cufar, 1973, o Cantanhez a ferro e fogo (António Graça de Abreu)