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quarta-feira, 21 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P889: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (11): Férias em Portugal



Guiné > 1969 > A jangada, de reserva, com sobreviventes da tragédia de Cheche, no Rio Corubal, na retirada de Madina do Boé (1)

Foto: © Paulo Raposo (2006)

XI parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 31-35.


MINI FÉRIAS em BISSAU

Foi nesta altura (1) que meu pai me foi visitar à Guiné. Como tinha muito medo de andar de avião, seguiu de barco. Era um barco misto, de carga e passageiros, e por esse facto ainda parou em Cabo Verde. A muito custo consegui uma licença para, a pretexto de ir tratar de assuntos da companhia, estar uma semana em Bissau, com ele.

Tanto o Brigadeiro Nascimento como a sua mulher, a Sra. D. Beatriz, que foram uns pais para todos os rapazes de Oeiras, tinham em sua casa um quarto para lá ficarmos. Fizémos cerimónia e instalámo-nos no Grande Hotel. Nunca tinha estado a sós com o meu pai tanto tempo. Conversámos muito naqueles dias.

Durante esta semana fomos visitar no Palácio o Ten Cor Pedro Cardoso, Secretário Provincial. Recebeu-nos muito bem, era uma simpatia. O meu pai tinha relações de amizade com o pai dele. A saída o meu pai deixou um cartão de cumprimentos ao Sr. Governador. Meu pai muito gostava destas cortesias.

Guiné > Bissau > 1969 > O Paulo Raposo com o pai, de férias, no Grande Hotel
Foto: © Paulo Raposo (2006)

Como eu tive de regressar entretanto ao mato, e o avião para Lisboa era apenas duas vezes por semana, o meu pai ainda ficou no Grande Hotel mais dois dias sozinho. Valeram-lhe a amizade e a companhia do casal Ten Cor Pedrosa.

Como disse atrás, o meu pai tinha muito medo de andar de avião e, por isso, andei à procura de alguém conhecido que fosse no mesmo vôo e lhe fizesse companhia. Achei um rapaz amigo que também ia e, como na altura os lugares no avião não eram marcados, pedi a este amigo que lhe arranjasse um bom lugar no avião e o acompanhasse na viagem. Assim o fez.
NOVAMENTE NO MATO

De regresso ao mato, enviaram-nos para outra Tabanca, com a missão usual de a ordenar e armar em Auto Defesa. Já estávamos treinados mas nunca gostei deste trabalho. Esta Tabanca ficava numa zona de paz a sul de Bambadinca (2). Ao todo fiz este trabalho em quatro Tabancas.

Um belo dia vou à sede do Batalhão buscar mantimentos e cruzo-me com o comandante que me dirige esta pergunta:
- Você pode reforçar um aquartelamento, uma vez que a companhia que lá está vai fazer uma operação?

Eu respondo-lhe:
- Meu Comandante, mesmo que eu diga que não posso, o Senhor manda-me na mesma, portanto diga quando nos quer lá.

Poucos dias depois para lá fomos, o local ficava a sul da Tabanca aonde estávamos, na estrada que ia ter à mata de Fiofioli. A companhia foi fazer a sua operação e nós por lá estivemos a fazer de baby-sitter.

Terminado o serviço, regressámos e Nossa Senhora nos valeu novamente. Saímos do aquartelamento de madrugada e passados uns 200 metros, ao começarmos a descer um relevo da estrada, no cimo da subida à nossa frente, dá-se um grande rebentamento e surge um grande tiroteio.

Eu ia logo à frente, atrás dos picadores (picadores eram os rapazes que iam à frente com umas varas, com um ferro na ponta para picar o chão à procura de minas), e deito-me imediatamente para o chão. A árvore atrás de mim fica toda picada com tiros do inimigo. De repente noto que algo se passa de estranho, que havia outro tiroteio cruzado.

Então o que se passara? Vinha na estrada, em sentido inverso ao nosso, uma secção de milícias nativas. O inimigo tinha na estrada uma mina comandada e montara uma emboscada. Como eles chegaram primeiro à mina foram eles a apanhar com a metralha.

Resultado: 3 mortos e três feridos graves evacuados de heli Se tivéssemos sido nós a lá chegar primeiro, tinha apanhado eu e os picadores com aquela mina. Durante toda a tarde andei com o caixão daqueles rapazes noUnimog para os entregar às famílias. Ao fim do dia, por causa do calor, o sangue ainda não tinha coagulado.

Voltámos à nossa rotina das Tabancas em Auto Defesa, de que o Capitão [Jerónimo, da CCAÇ 2405] muito gostava. Deste modo tinha a companhia dispersa, e pensava que não nos chamavam para operações, a nível de companhia.

FÉRIAS

E chegou a altura das minhas férias. Eu recebia ao todo 6.600$, dos quais ficava na Guiné com 2.200$, e ainda me sobrava dinheiro pois não havia aonde gastar. Os restantes 4.400$ ficavam em Lisboa e o meu pai ia levantá-Ios à Estefânia. Nessa altura, o bilhete de ida e volta a Lisboa, na TAP custava 4.000$ (3).

Pedi dinheiro ao meu pai, fiz a marcação das passagens, no Sr. Palma, o representante da TAP, em Bissau. De Bafatá para Lisboa fui na TAG. Ainda na pista e antes de embarcarmos no Heron, diz-me um rapaz que também seguia para Bissau, que aquele avião embora de alta segurança e usado para transporte do Eisenhower durante a guerra, tinha grande turbulência, mesmo com céu limpo. Julguei que ele brincava. Disse-me depois que era da PIDE. Mas era verdade. De Bafatá para Bissau, aquele avião parecia um canguru.

Chegado a Bissau, instalei-me no Grande Hotel para no dia seguinte, de madrugada, apanhar o avião para Lisboa. Com a excitação das férias, nada dormi naquela noite. De madrugada, levantei-me e tomei um táxi para o aeroporto de Biassalanca.

Conforme disse atrás, a TAP só ia a Bissau duas vezes por semana. Quando ia, era o dia do São Boeing. Toda a gente que prestava serviço em Bissau ia ver o avião, para ver quem chegava e quem partia, e encher os olhos com as meninas da TAP.

Já sentadinhos no Boeing 727, voámos para Lisboa. O vôo durou 4 horas que nunca mais passavam. A alegria e a excitação eram tantas, que a bordo fechavam o bar. Vim a saber depois que isto era hábito especialmente nos vôos da Guiné.

Curiosamente, depois do bar ter fechado, nós que já estávamos um bocado apanhados pelo clima, continuávamos a tocar nas campainhas do avião, mas sem sucesso.

Nesta altura dirijo-me ao que eu julgava ser um comissário, e digo-lhe que não são formas de tratar o pessoal que estava no buraco. Era o co-piloto, o Ricardo Silva Pires, e caímos nos braços um do outro. Hoje é um prestigiado comandante da TAP. Eu vivi até aos meus 10 anos na Rua João Penha, em Lisboa, e ele vivia mesmo do outro lado da rua. Chegava-se a casa dele através de umas escadinhas, aonde julgo que hoje há um bar. Todos os dias o pai dele, que trabalhava na Papelaria Fernandes, nos levava para o Liceu Pedro Nunes.

Depois de dormitar um pouco para pôr em ordem o equilíbrio, chegámos por fim a Lisboa. Passada a alfândega, depois de termos escondido as garrafas de whisky, que custavam 75$ na Guiné (3), lá estava toda a família e os amigos. Naquele tempo era assim. Menciono apenas alguns, a família Albarraque, Cardoso de Oliveira, Campos Rodrigues e Palma Carlos.

Meu pai mostrou-me o relógio dele. Desde a sua estada na Guiné ainda não tinha mudado as horas do relógio. Ainda não se tinha desligado da sua estadia em Bissau. Foi uma grande alegria ir para casa, tomar banho,dormir na minha cama, comprar o jornal, que subira de preço, para 1$50, e poder sair à rua sem perigo. Foram quatro semanas estupendas passadas no mês de Maio.

A 5ª e última semana já não sabia ao mesmo. Comecei a contar os dias e novamente recomeçava a ansiedade. No princípio de Junho, à 1 da manhã, regressei no mesmo avião da TAP.

Durante estas férias morre a minha avó Ana, que vivia connosco. Parece que esteve à minha espera. Era uma Senhora muito especial, não sabia dizer mal de ninguém. Embora tivesse ficado privada de sair por efeito de uma trombose que tinha tido, tinha o quarto sempre repleto de visitas. Sempre foi assim toda a vida.

No aeroporto outra vez as despedidas, mas já não íamos para o desconhecido, já sabíamos o que nos esperava. De novo a família e os amigos de sempre a despedirem-se de nós. Vim depois a saber que depois de eu entrar para o avião, pois naquela altura assistia-se a tudo do varandim do 1º andar do aeroporto, o meu pai ficou agarrado a uma coluna, a chorar como uma criança.

A viagem de regresso nada tinha de alegre. Dormi até chegarmos a Cabo Verde, de madrugada, para uma escala do avião. Comandava o avião o comandante Simões, visita de sempre da família amiga Simões de Almeida e Palma Carlos, relações que já vinham do tempo dos meus avós.
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Notas de L.G.

(1) Vd. post anterior, de 7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

(2) Provavelmemnte tabancas do regulado do Corubal, situadas a leste da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole

(3) Vd. post de 1 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXII: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (2)
(...) Humberto Reis:Já não me lembro da maioria dos preços mas tenho uma ideia de que uma viagem na TAP em Março de 1970, Bissau-Lisboa-Bissau, me custou à volta de 6 contos e nós ganhávamos cerca de 5.
"O pré dos soldados era de 600 pesos os de 2ª, 900 pesos os de cá e os cabos 1200 pesos. Eu sei dessa diferença pois tinha no meu Gr Comb o Arménio (o vermelhinha) que foi como soldado, visto que levou cá uma porrada (foi apanhado numa rusga pela PM no Porto quando já estávamos no IAO em Santa Margarida) que lhe lixou a promoção (...).
"Sei bem, isso não me esqueceu, que o visque era mais barato que a cervejola: 2,50 simples contra 3,00 ou 3,50, além de que dava direito, o whisky, a gelo. As cervejas nunca estavam suficientemente geladas pois os frigoríficos da messe, a petróleo, não tinham poder de resposta para a quantidade de pedidos." (...)

sexta-feira, 19 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P774: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste

Guiné > 1968 > O Rio Geba atravessa(va) várias regiões: na margem direita, para lá de Bissau, que é uma ilha, a região do Morés (Mansoa) e a a região Leste (Bafatá); na margem esquerda, a região de Quínara (Buba) e de novo a região leste, que começava a partir do Rio Corubal... De Mansoa a Bafatá não havia ligações terrestres, já que a estrada que ligava Bafatá a à capital, passando por Mansoa estava interdita... O único recurso, para as NT, era a via fluvial, como aconteceu com a CCAÇ 2405 (1968/69), transferida de Mansoa, cinco meses depois, em Dezembro de 1968 para o sub-sector de Galomaro (LG).

Foto do Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).

Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > O Alf Mil Raposo com dois milícias nativos.

© Paulo Raposo (2006)

VIII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 25-26 (1).

Depois de cinco meses de Mansoa, em chão Balanta, fomos mandados para o leste, para o chão Fula.

O leste da Guiné era quase um planalto, a vegetação não era tão densa e o clima era menos húmido.

Como a estrada de Mansoa para Bafatá estava cortada por acção do inimigo, só podíamos lá chegar ou por avião ou pelo rio.

Foi posta à nossa disposição uma LDG, lancha de desembarque grande, e lá fomos rio acima. A hospitalidade do pessoal da Marinha deixava sempre muito a desejar. A lancha acostou ao Xime, e o resto do caminho fomos em coluna, para Bambadinca.

Sempre que se formava uma coluna neste itinerário, a companhia do Xime saía para fazer protecção lateral.

Chegámos a Bambadinca à noite, cheios de fome e de sono e lá dormimos já nem sei como. No dia seguinte mandaram-nos para um quartel próximo, Fá Mandinga, aonde descansámos enquanto aguardávamos novas ordens.

Deixo aqui uma história curiosa: Bambadinca ficava num ermo, de um dos lados descia para o rio Geba e na outra margem ficava uma grande bolanha.

Para protecção avançada, estava nessa bolanha um grupo de combate de tropa africana comandado pelo Alferes Beja Santos, que vinha connosco desde Mafra. Estavam instalados num aquartelamento de reduzidas dimensões (1). Tinham uns abrigos, mas dormiam em Tabancas, nome que era dado às casas construídas pelos nativos, que tinham telhado de colmo.

Numa bela noite, o nosso Beja Santos sofreu um ataque, em que o inimigo, para corrigir o tiro, fez fogo com munições tracejantes. Como resultado, o colmo incendiou-se e o pessoal perdeu todos os seus haveres com o fogo. No dia seguinte, aparecem na sede do Batalhão [2852] o nosso Beja Santos com alguns dos seus homens, todos em cuecas. Era assim que estavam quando tinha começado o ataque.

Como a guerra ainda não se tinha alastrado ao leste, era intenção do comando de Bafatá (3)reordenar a população e constituir núcleos de auto defesa. A ideia era brilhante, cativou a população, mas não alterou em nada o curso da guerra.
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Nota de L.G.

(1) Vd. o último post, de 11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

(2) Comandante do Pel Caç Nat 52, destacado em Missirá a norte, de Bambadinca, no regulado do Cuor.

(3) Sede do Agrupamento 2957 (sendo o comandante o Coronel Hélio Felgas). A região leste estavva dividada em cimnco sectores, sendo o sector L1 o de Bambadinca, abrangendo o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole.

quinta-feira, 11 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P744: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Alouette III, a descolar do heliporto local. O piloto era o Coelho, diz a legenda do fotógrafo. No mato, em operações, o helicóptero era o nosso anjo da guarda, como muito bem diz o Paulo Raposo. A sua presença era sempre securizante e protectora. Até ao dia em que começaram a ser abatidos, nos primeiros meses de 1973, pelos foguetões terra-ar e nós perdemos a nossa supremacia aérea... (LG).

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).

VII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 22-25 (1).



5. A nossa ida ao Santuário do inimigo, no Morés:

Durante uma semana, a Força Aérea tinha estado a bombardear os objectivos. Após este bombardeamento, organizou-se uma grande operação, formada por várias companhias. Umas iam pelo Norte e outras pelo Sul.

Nós saímos de madrugada, de Mansabá, conjuntamente com outra companhia, depois de uma noite dormida no chão, em quartel alheio. Logo depois de sairmos dei por falta de um soldado. Até ao fim da operação fiquei sem saber o que se tinha passado com ele. Tinha ficado para trás no bem bom. O susto e a responsabilidade foram grandes.

Para esta operação, a Força Aérea tinha deslocado muitos meios, DO e helis. A meio do dia tivemos contacto com o inimigo. Depois do tiroteio, perdemos o contacto com os nossos da frente, e eu fico para trás, com apenas uma secção e alguns africanos. Para nossa salvação, tínhamos ficado com o banana, nome que dávamos ao rádio que fazia a ligação à Força Aérea.

A curta distância vimos passar o inimigo, com as armas às costas, a fugirem. Nem eles nem nós fizemos fogo.

Passados estes momentos, seguimos um trilho que julgávamos ser o da companhia. Um africano disse logo:
- Por aí não, Alfero, que é caminho de turra.

Vejo-me perdido. Agarro no banana e, sem saber os códigos, chamo a Força Aérea:
- Atenção heli, aqui tropa à rasca.

Instantes depois, Nossa Senhora mandou-nos o nosso Anjo da Guarda, na forma de um heli. Acenámos e pedimos via rádio para voar em círculo por cima do local onde estava a companhia. E foi assim que nos juntámos a eles.

Logo de seguida vá de sair dali, uma vez que estávamos localizados. Durante toda a noite andámos pelo mato denso com os mosquitos agarrados aos ouvidos e com os ramos que os da frente afastavam, a baterem-nos continuamente na cara. Foi um suplício de noite. Só parámos na estrada que ligava Mansabá a Mansoa. Deve ter sido a noite mais penosa que passei na minha vida.

6. Havia na estrada entre Mansoa e Mansabá, um aquartelamento a nível do grupo de combate, perto de um trilho inimigo que passava perpendicular à estrada, chamado Cutia. Era uma zona perigosa.

Um belo dia, mandaram-nos, a nível da companhia, fazer uma emboscada durante toda a noite nesse trilho, para criar insegurança ao inimigo. Foi um pesadelo de noite.

Choveu toda a noite, ficámos molhados até aos ossos e com os mosquitos a morderem-nos os ouvidos o tempo todo. Se o inimigo por lá tivesse passado, teria sido um desastre. Hoje vejo os rapazes a perderem noites em discotecas, com toda a ligeireza.

7. Uma operação:

As operações ou patrulhamentos tinham como objectivo manter o inimigo em respeito e longe das nossas posições. Em Mansoa nunca perdemos a nossa capacidade ofensiva. Saíamos normalmente do quartel para as operações pela meia noite.

Quando estávamos no melhor do sono vá de levantar. Passávamos a noite toda a andar, dormíamos mais uma noite no mato, e regressávamos cheios de fome e de sede no dia seguinte. Aquelas noites no mato eram o pior que podíamos ter, ora os mosquitos ora as formigas não nos davam descanso. Se tivéssemos a azar de pisar um formigueiro, estas subiam-nos pelas pernas acima e mordiam-nos todos. Tínhamos de nos despir e retirar as formigas o melhor que podíamos. Isto, é claro, sempre sem fazer barulho e às escuras.

Há histórias de soldados que se queixaram de sentir cobras a passearem-lhe por cima enquanto estavam deitados à noite.

Como calçado, tínhamos umas botas de lona com piso de borracha, que se desgastava rapidamente. O pé andava sempre à vontade. Calçar novamente sapatos de couro era uma tortura para os pés.
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Nota de L.G.

(1) Vd último post, de 8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

segunda-feira, 8 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P733: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo


VI parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 18-22 (1).


Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > O Alf Mil Raposo, de óculos escuros, com o Furriel Ribas, à sua esquerda, e alguns soldados, observando uma giboia morta perlas NT © Paulo Raposo (2006)


Mansoa: Baptismo de fogo

O sacrifício era muito. Vou contar uns episódios dos muitos que por lá passàmos:

1. Após a nossa chegada a Mansoa, foi-nos distribuído o material de guerra. Já armados, fomos para uma bolanha, nome que se dava a um grande charco de água, que enchia com a chuva.
Esta bolanha ficava para além de uma companhia de balantas, que fazia a protecção do nosso quartel. Naquela zona de Mansoa, sair fora do arame farpado tinha riscos.

Este exercício tinha como objectivo habituarmo-nos a estar debaixo de fogo. Deita-se um grupo de combate, e por cima deste, faz-se fogo.

Aconteceu que logo no primeiro exercício, quando estava o primeiro grupo de combate deitado, há um disparo que sai mais baixo e vai ferir em ambas as pernas um soldado. Depressa foi chamada uma viatura, para o levar rapidamente para o Hospital. Para aquele rapaz, a comissão terminou ali.

Este acidente foi muito desmoralizante para os restantes e mais nenhum outro exercício foi feito. Perguntei-me nessa altura como iria sair dali.

2. Um belo dia o meu grupo de combate estava encarregue de levar e proteger os homens que iam limpar do capim uma faixa grande de ambos os lados da estrada. Assim evitávamos que tivessemos emboscadas coladas à picada.

Dirigimo-nos para o local de trabalho em duas viaturas. Parámos precisamente no sítio aonde tínhamos terminado o trabalho no dia anterior, ou seja ainda na zona já descapinada.

Quando parámos, saltaram do capim alguns elementos IN para a estrada. Fizemos fogo, eles fugiram e não responderam. Se tivéssemos parado 50 metros mais à frente, tínhamos caído na emboscada.

Recuperados da emoção, os homens começaram o seu trabalho e eu dirijo-me para um tronco de árvore, que estava caído, para me sentar. Ao aproximar-me do tronco, este mexe-se. Era uma gibóia, com sete metros de comprido. Enfiei-lhe um carregador em cima e ela continuava bem viva. O Cabo enfermeiro Luís, agarra num tronco de um ramo verde, e, pondo-se à frente dela, bate-lhe continuamente na cabeça, até a cobra se ver perdida.

Uma vez perdida, morde-se a ela própria, para não se humilhar à mão do enfermeiro Luís.

3. Durante as muitas operações de patrulhamento que fazíamos, tivemos numa delas o nosso baptismo de fogo.

Depois de termos passado o dia a andar, paramos para passar a noite. Íamos a nível de companhia. Ao levantarmo-nos, de madrugada, iniciámos o regresso. Estava muito húmido.
Por cima de nós estava o PC em DO para controlar a nossa progressão.

O PC era o nome que dávamos ao Posto de Comando e o DO era um monomotor da Força Aérea, mais precisamente DO-27. Em determinadas operações um posto de comando era enviado para controlar a progressão da força no terreno, e para ter a certeza que esta atingia o objectivo da operação.

Era a maneira evoluída e mais humana do que se fazia nas guerras convencionais de trincheira.
Quando se pretendia fazer um avanço em linha nas forças inimigas a estratégia era a seguinte:

A artilharia bombardeava durante três dias as trincheiras inimigas, para as aniquilar fisicamente, criar um clima de terror e de ansiedade no inimigo, destruindo-o psicologicamente também, dado que não tinham descanso naqueles dias. De seguida dava-se ordem às nossas tropas para avançarem. Imediatamente a artilharia passava a bombardear as nossas trincheiras, para ter a certeza que ninguém ficava para trás.

Hoje, do ponto de vista comercial, os técnicos das mais avançadas empresas de Sillicon Valley dizem:
- Obtem-se o que se inspecciona, não o que se espera.

Este assunto já vem descrito na Sagrada Bíblia. Só depois do dono da seara mandar aparelhar o cavalo, é que as cotovias dizem umas para as outras:
- Agora sim, irmãs, é hora de irmos embora. - Mandar os criados : não basta, é preciso acompanhá-los.

De repente ficámos debaixo de um grande tiroteio, com a irritante costureirinha, assim lhe chamavamos, à PPSH do inimigo, a bater por cima de nós. Era uma arma automática, que tinha uma maneira muito característica de fazer fogo (2).

Instala-se a surpresa e o medo. Quando a nossa resposta se inicia, o medo desaparece, passamos a dominar a situação, e vá de levantar e sair rapidamente da zona de morte. Depois de tanto barulho, tiros e granadas, pensamos que haverá alguns mortos e feridos. Nada disso. Nada aconteceu. Nossa Senhora vai-nos protegendo.

Quando isto acontece na segunda vez notamos que é quase impossível haver vítimas e é então que se instala a confiança.

Havia pois três períodos distintos durante a Comissão: O primeiro, o da chegada, era o do medo do desconhecido, o medo de não sabermos controlar as situações que nos apareciam. O segundo era o da auto confiança, em que nos considerávamos os maiores. Nada nos intimidava. O terceiro era a fase final. Era o pior pois a pouco tempo do embarque e já com a comissão prestes a acabar, tínhamos medo que algo nos acontecesse. Era a fase do tirem-me daqui.

4. Todos os dias havia uma coluna que ia a Bissau e que era acompanhada por um grupo de combate para protecção dos carros. Na volta a coluna formava-se junto ao Hospital Militar.

Sempre que eu ia a Bissau costumava subir à enfermaria dos oficiais para saber se lá estava alguém conhecido. Numa dessas vezes entro e vejo um rapaz amigo, o Alvarez. Tinha entrado comigo para Mafra. Naquela altura, ele tinha um DKW que se via aflito para subir a ladeira de Cheleiros [, estrada de acesso a Mafra].

Era Alferes dos Comandos e, numa operação no Sul, contou-me ele, ia em terceiro lugar e deu de caras com o inimigo, num trilho. Depois da troca de tiros, há uma granada de bazuca do inimigo que explode nas árvores e os estilhaços choveram sobre ele.

Coitado, estava todo esburacado. Depois de várias operações, ficou bom e é hoje um dos melhores comandantes da TAP. Já tive a sorte de voar com ele uma vez.

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Nota de L.G.

(1) Vd último post, de 7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa

(2) Vd. a página de Bill Berg, em inglês, sobre a PPSH bem como fotos desta famosa arma russa que nos punha os cabelos em pé, na Guiné (fotos da autoria de Oleg Volk) . Sobre as armas utilizadas na guerra colonial, consultar também o Centro de Documentação 25 de Abril , da Universidade de Coimbra. Infelizmente há poucos sítios, em portugugês, com as imagens e com as especificações técnicas das armas mais usadas durante a guerra colonial em África. É um campo a explorar eventualmente por um dos nossos tertulianos...

domingo, 7 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P731: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa

V parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).


Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 15-16 (1).


Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > Um periquito em Mansoa
© Paulo Raposo (2006)

MANSOA - Parte I

Seguimos finalmente para Mansoa, em coluna. Como ainda não estávamos armados, nos sessenta quilómetros que se seguiram, íamo-nos perguntando:
- E se houver ataque à coluna, como é?

Mansoa era uma terra importante com ruas alcatroadas. Durante essa primeira noite, o Batalhão que lá estava, o 1911, simpáticos, fizeram uma salva de artilharia à noite para verem a reacção dos periquitos (alcunha dos recém chegados).

Logo na primeira semana em Mansoa, dei por outra situação semelhante à que tive em Abrantes com o meu colega de quarto. Um belo dia estávamos a almoçar na Messe e, na cozinha, que ficava junta, alguém fechou com força a tampa de uma arca frigorífica.

Um Alferes do 1911, portanto já com algum tempo na Guiné, dá de repente um salto, e faz menção de correr para o abrigo. Pergunto-me:
- 0 que se passa?

O barulho seco do fecho destas arcas frigoríficas era semelhante ao da saída de um tiro de morteiro. Aquele rapaz ouviu o barulho e saltou, como um reflexo condicionado.

Passado pouco tempo, isto começou a acontecer com quase todos nós, e manteve-se ainda muito tempo depois de termos regressado de vez.

O nosso estado de alerta era uma constante. O clima era horrível. No verão havia calor e chuva todos os dias. O inverno era quente e seco. Foram dois anos a dormir só com um lençol. Muitas saudades tive do peso e do calor do cobertor da minha cama.
A noite os mosquitos eram às núvens, não se podia dormir. Era um suplício.

A vegetação era luxuriante, cheia de vários verdes muito bonitos. Tudo crescia e se desenvolvia desordenadamente. A Guiné era rica em madeiras exóticas. Naquele tempo não havia o cuidado de cortar e plantar ordenadamente a floresta para explorar a madeira. A mãe natureza era generosa naquela terra. Quanto a animais selvagens só vi gazelas, macacos e gibóias.

Todos os que por África passaram trazem saudades da sua mística. Quanto a mim tem a ver com dois factores. Um é o espaço: há espaço e oportunidades para todos. Não há pressas. Neste ambiente a inter-ajuda e a solidariedade são infinitas e com elas vem o convívio e a amizade. As amizades de África são para a vida e para a morte.

O outro factor é o clima. O dia quando nasce, nasce com toda a sua pujança e exuberância e a natureza desperta de repente. O pôr do sol, cheio de cores quentes, é o inverso. A natureza adormece na sua paz também quase de repente. É o melhor momento do dia. Era durante este período que tomávamos banho, punhamos roupa à civil e íamo-nos sentar nas cadeiras de lona no exterior da Messe, a beber um aperitivo e a conversar. Era um ritual.

Era no meio deste ritual que aparecia o sargento do dia com uma praça. O soldado trazia um tabuleiro com prova do rancho dos soldados. Dava-o a provar ao Oficial do dia e ao Comandante. Muitas vezes era melhor e tinha melhor apresentação que o nosso. Era mais um ritual.

Durante os cinco meses que estivemos em Mansoa a nossa vida foi um frenesim, embora tenha sido o único período em que tivemos luz eléctrica. O resto da comissão foi feita à luz do Petromax.

Saíamos quase todos os dias, ora em colunas, ora como escoltas, outras vezes em operações, outras ainda em patrulhamento, emboscadas, ou como protecção à capinagem, eu sei lá, fazíamos de tudo. Na maioria das vezes, a nossa segunda farda não chegava a secar da saída anterior, e lá íamos com a roupa molhadinha colada ao corpo.

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Nota de L.G.

(1) Vd último post, de 5 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (4): Em Bissau com Spínola

sexta-feira, 5 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P728: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (4): Em Bissau com Spínola

IV parte do testemunho do Paulo Raposo, de seu nome completo Paulo Enes Lage Raposo, que foi Alferes Miliciano de Infantaria, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70> Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 14-15 (1).
2405
BISSAU

Chegámos a Bissau nos primeiro dias de Agosto [de 1968]. Depois de uma noite mal dormida, e cheios de picadas de mosquito, lá fomos para os adidos em Brá.

Os dois Batalhões [BCAÇ 2851 e 2852]formaram na grande parada e o então Brigadeiro Spínola passou revista às tropas e fez a sua saudação.

Spínola tinha chegado há pouco tempo à Guiné e esta foi a primeira cerimónia deste género que realizou. Acabadas as cortesias, ouve-se o toque a Oficiais e vamos para um briefing. Reunimo-nos numa sala pequena. Nós, os chegados, fomo-nos sentando em várias filas de cadeiras. À nossa frente estava uma pequena mesa aonde se sentou ao centro o Brig Spínola, Governador e Comandante Chefe da Província, à sua direita o Brig Nascimento, 2º Comandante Militar, e à sua esquerda, o Comandante Militar Brig Novais Gonçalves, que já estava no fim da sua Comissão.

Não me recordo do teor do discurso proferido por Spínola, mas deve ter sido no sentido de apelar ao nosso patriotismo e responsabilidade na condução dos homens que tínhamos à nossa guarda.

Após o discurso veio cumprimentar-nos, um a um. Quando chegou a minha vez, eu estava altamente perfilado, pois nunca tinha cumprimentado alguém com tantas estrelas nos ombros. Duas eram de Brigadeiro e as outras quatro de Comandante Chefe, em ambos os ombros.

Ele põe-se em frente de mim, cumprimenta-me e eu também e, à queima-roupa diz-me:
- Você tem sorte.
Eu, sem saber bem o que me esperava, digo muito timidamente:
- Porquê, meu Comandante?
- Porque quando começar a ouvir os tiros, já está mais perto do chão.

Também tinha humor. A meu lado estava o Alferes Felício, que é uma viga, e que a meu lado ainda parece maior. O nosso Comandante Chefe diz-lhe o inverso:
- Você que se cuide.

Realmente, aquele homem com a sua voz rouca e arrastada, de luvas, com monóculo e o pingalim, impressionava qualquer um. A imagem de bravura que transmitia correspondia à sua maneira de ser. Nele tudo era verdadeiro e genuíno.
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Nota de L.G.

(1) Vd post anteriores

12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (2): Aspirante em Elvas, Tancos e Abrantes

19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (3): De Santa Margarida ao Uíge

quarta-feira, 19 de abril de 2006

Guiné 63/74 - P705: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (3): De Santa Margarida ao Uíge

N/M Uíge > Foto da excelente página Navios Mercantes Portugueses (com a devida vénia)...

O Uíge era um navio misto, de carga e de passageiros, construído na Bélgica em 1954 e abatido em 1978. O seu comprimento não chegava aos 150 metros. A sua arqueação bruta era de 10 mil toneladas. Armador: Companhia Colonial de Navegação, Lisboa. Velocidade de cruzeiro: 16 nós. Alojamentos para 4 passageiros em classe de luxo, 74 em primeira classe, 493 em classe turística, no total de 571 passageiros... Nº de tripulantes: 139. Na viagem que levou o Paulo Raposo até à Guiné, em finais de Julho de 1968, transportava dois batalhões, ou seja, cerca de 1200 homens.

N/M Uíge > Final de Julho de 1968 > A caminho de Bissau > "A alegria do regresso quase que compensa a tristeza da partida". O Paulo Raposo é o segundo a contra da esquerda.

© Paulo Raposo (2006)


III parte do testemunho do Paulo Raposo (ex- Alf Mil de Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70> Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 10-14

SANTA MARGARIDA

Após termos dado a instrução aos soldados em Abrantes, lá fomos para o grande campo de Santa Margarida para tirar o IAO, a Instrução de Adaptação Operacional.

Santa Margarida era, na realidade, parecida com aquilo que víamos nos filmes de cowboys. Uma avenida muito larga e comprida, com uma capela ao fundo. De um lado e de outro dessa larga avenida havia enormes quartéis de todos os ramos do Exército. Estavam lá os carros de combate, a Engenharia, a Infantaria, as Comunicações, o Estado Maior de Brigada, etc.

Continuando depois da capela, havia o grande campo de tiro para onde íamos fazer fogo real.
Passado o IAO tivemos duas semanas de férias, para nos despedirmos da família, antes de embarcarmos.

Era precisamente neste período de férias que muitos rapazes se aproveitavam do dinheiro recebido do subsídio de embarque, para fugirem.

Um país não se constrói com aqueles que têm por hábito fugir e na volta, habilmente, dão-lhe uma componente política para se justificarem, mais perante eles próprios que perante os outros. Só se tem autoridade para criticar depois do dever cumprido.

Sobre este tema deixo aqui uma história:O Comodoro Cunha Aragão era um assanhado oponente de Salazar. Era amigo de meu pai e visita de minha casa. Em 1960 estava a comandar o aviso Afonso de Albuquerque, quando a União Indiana desencadeia a acção militar contra Goa.
Quando surge a primeira salva de tiros proveniente dos navios indianos que deu origem à invasão de Goa, o Comodoro Cunha Aragão agarra nos retratos de Salazar e Tomaz, que estavam no navio, e, atirando-os borda fora, diz:
- Vamo-nos bater por Portugal, não por estes gajos.

Este gesto custou-lhe as estrelas de Almirante. Foi ferido em combate, foi vencido, mas foi um bravo.

Uma coisa é a Pátria, outra são os regimes. Uma coisa é a Alta Política e outra é a baixa política. Hoje não sabemos distinguir uma da outra.

O EMBARQUE

No final de Julho de 1968, no Cais de Conde de Óbidos, lá embarcámos no Uíge. Seguiram os BCAÇ 2851 e 2852.

A largada foi terrível. O barco a afastar-se do cais é muito doloroso para nós, com as carpideiras que para lá eram enviadas, para nos desmoralizarem ainda mais.

Depois do navio largar e passar S. Julião da Barra, fomos para o bar à espera que nos chamassem para o almoço.

O Major Branco, que comandava interinamente o nosso Batalhão, uma vez que o nosso Comandante, Ten. Cor. Pimentel Bastos já tinha seguido de avião, perguntou ao nosso Capitão:
- Embarcaram todos os rapazes?

O Capitão respondeu de imediato:
- Sim, sim, meu Comandante.

Ele sabia lá!

Em conversa, o Cap Medina, que comandava uma companhia do outro batalhão que seguiia connosco e estava a partir para a sua segunda comissão, disse algo de que nunca me esqueci:
- A alegria do regresso quase que compensa a tristeza da partida.

Na realidade foi bem assim.

Durante os cinco dias que se seguiram, o ambiente a bordo não podia ser o melhor. Conversávmos muito uns com os outros enquanto passeávamos ao longo do tombadilho.

O nosso espírito era unânime. De política, nada sabíamos. Sabíamos apenas que aquela ida para África era o preço que tínhamos de pagar para ter um lugar na sociedade. E se na na vida tínhamos de passar sacrifícios, então iríamos passá-los de uma assentada para o resto da vida.

A defesa do Ultramar para nós, naquela altura, era uma coisa que não nos dizia directamente respeito, nem nos apercebíamos que África era fonte de abastecimento das nossas matérias primas.

O que é que íamos defender na Guiné, território que estava rodeado de países francófonos ? A população estava dividida por várias etnias, a função pública era ocupada por caboverdianos, os comerciantes eram senegaleses e a religão dominante a muçulmana.

Portugueses europeus não os havia por lá.

terça-feira, 18 de abril de 2006

Guiné 63/74 - P702: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (2): Aspirante em Elvas, Tancos e Abrantes

O Paulo Enes Lage Raposo foi Alferes Miliciano de Infantaria, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70> Galomaro e Dulombi).

Publica-se a II parte de O meu testemunho.

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 7-10 (1)

© Paulo Raposo (2006)

ELVAS

Passado este período sou enviado em Setembro para Elvas, para o B.C. 8, já graduado como Aspirante a Oficial miliciano.

Aí dei instrução a duas incorporações de soldados. Foi um trabalho gratificante mas duro, pôr rapazes, com os músculos viciados no trabalho manual do campo, a marchar e a manusear as armas.

Elvas era uma cidade bonita, e o quartel estava instalado num antigo convento, dentro das muralhas da cidade, junto à porta poente. Dali se avistava o Forte de Elvas, prisão militar para os desertores.

O forte não tinha água canalizada. Eram os reclusos que, diariamente, iam buscar água à fonte que ficava no exterior. O transporte da água era feito numas barricas que eram carregadas às costas. Houve muito boa gente que se ofereceu para pagar o custo da instalação de uma canalização.

Os reclusos, porém, sempre se recusaram pois era uma maneira de diariamente saírem das suas celas. Fui visitar o Forte uma vez, impressionou-me muito.

Como o nosso quartel era na cidade, a carreira de tiro estava bem fora das muralhas. Ai dávamos instrução de tiro aos soldados. Como se usavam munições reais, os procedimentos na carreira de tiro eram muito severos. Os soldados eram colocados em linha e a ordem carregavam as armas com as munições, apontavam e disparavam, ora deitados, ora em pé, para os alvos que estavam na barreira.

Todos estes procedimentos eram feitos a ordem de comando.

Um dia, depois de eu dar a ordem de fogo, um soldado roda, vira-se com a arma apontada para mim e, premindo o gatilho, diz:
- Meu Aspirante, a arma não dispara.

Nossa Senhora me salvou. A arma estava travada.

No fim de cada incorporação havia exercícios finais, que realizávamos no campo.
Os exercícios finais da primeira incorporação a que dei instrução em Elvas, coincidiram no mês de Dezembro. Fomos a pé desde Elvas até aos arredores de Sta. Eulália. Ai montámos o bivaque, nome que se dá à disposição das tendas pela sua forma geométrica.

Cada homem levava um pano de tenda. Cada tenda, ou bivaque, era montada por um grupo de três homens. Arranjavam-se duas estacas. Um pano de tenda fazia uma água, o segundo a água oposta e o terceiro pano fazia o fecho de um dos lados e cobria o chã. Os panos eram ligados por cordas que passavam pelos olhais.

A parte aberta ficava obviamente virada contra o vento. Naqueles três dias que dormimos no campo passei o maior frio da minha vida. De manhã as poçaas de agua estavam geladas.

No B.C. 8 fiz lá dois grandes amigos, ambos também Aspirantes. Um era o Sobreiro, a quem nunca mais vi, ew o outro o Baptista, do Porto, que embora tenha também seguido para a Guiné, nunca mais me cruzei com ele.

TANCOS

De Elvas segui para o Polígono de Tancos, para tirar a especialidade de Minas e Armadilhas. Aí passei um tempo agradável. As formalidades militares estavam reduzidas ao mínimo. A porta de Armas do Centro onde tínhamos instrução, costumava lá estar uma praça de vez em quando, não era sempre. Ali aprendi a manusear todos os tipos de explosivos e detonadores com o maior a vontade. Perdi o medo mas não o respeito àquele material.

Frequentemente visitávamos os nossos vizinhos paraquedistas, que nos recebiam sempre da melhor maneira. Várias vezes nos convidaram para saltar da Torre, mas não tiveram voluntarios.


ABRANTES

De Tancos segui para Abrantes, aonde fomos formar o nosso Batalhão [BCAÇ 2852].

A minha companhia era a 2405, comandada pelo Capitão miliciano Jerónimo, natural de Lourenço Marques. Quanto a Alferes havia o David e o Felício, para além de mim. Eram ambos de Coimbra e, como tinham andado nas greves estudantis, passaram por Lamego para tirarem o curso de operações especiais. Coitados, penaram bem por lá.

Por último o Alferes Rijo, que passou a ser o primeiro por questões de antiguidade (na tropa a antiguidade é um posto) e veio substituir um rapaz que deu baixa. Antes de começar a guerra já estava cansado.

Quanto a Furriéis havia-os de todas as proveniências, mas muito amigos. No que diz respeito aos soldados, eram na sua maioria Beirões, leais, sãos e generosos. Tínhamos ainda dois Sargentos.

O médico que mais tempo nos acompanhou, foi o Carlos Pereira Alves, hoje famoso cirurgião nos Capuchos. Era e é um grande amigo.

Por último tínhamos o capelão, o Padre Zé, que era da nossa idade. Costumávamos meter-nos com ele, por causa das revistas de toda a espécie que por lá apareciam. Nunca mais soube dele.

Ali começou a fase de adaptação de uns aos outros.

Uma companhia de caçadores é constituída por 4 grupos de combate. Cada grupo de combate era comandado por um Alferes e era dividido em três secções. Cada secção era constituída por 9 homens e comandada por um Furriel.

Quanto a armamento, cada homem tinha uma espingarda automática G3 e cada secção tinha uma arma pesada. A primeira secção tinha uma G3 com cano reforçado HK, a segunda secção tinha um morteiro 60 mm e a terceira secção tinha um cano de lançaamento de granadas de bazuca.

Veio-se a provar depois na Guiné, devido à densa vegetação, que a melhor de todas as armas era o dilagrama. O dilagrama era um sistema que se adaptou à G3. Colocava-se na G3 uma munição sem projéctil e no topo do tubo da arma colocava-se uma granada de mão apoiada num dispositivo.

O disparo fazia de catapulta que lançava a granada de mão a bem uns 30 metros e rebentava em cima do inimigo. Houve muitos acidentes fatais com este sistema (2) pois os soldados às vezes colocavam munições com projéctil e então a granada rebentava-lhes no tubo.

Os meus Furriéis eram o Ferreira, de Anadia, o Nogueira, de Soure, e o Tavares, de Pinhel. Eram os melhores.

Todos os anos nos vamos reunindo, somos como se fosse uma família. Os almoços que fazemos de confraternização duram quase sempre a tarde toda. À entrada colocamos uma caixa onde cada um põe o valor do almoço. Coloca-se o que se quiser, e se se quiser. Sobra sempre dinheiro. Não há gente como esta.

Cada ano aparece sempre mais um, por efeito de passa-palavra. Neste ano de 1997, o Baptista veio de Paris para estar presente ao almoço. Há alguns em França e na Alemanha.

Como o quartel de Abrantes não comportava com todos os rapazes, a mim e a alguns outros, deram-nos um subsídio de pernoita, e passámos a dormir na cidade.

Na cidade aluguei um quarto, na casa de uma senhora viúva, a meias com outro rapaz, também Aspirante, que já estava mobilizado para a Guiné.

Como a nossa vida no Quartel era dura, em virtude da instrução que estavámos a dar aos soldados, à noite, depois do jantar, era tiro e queda. Assim que púnhamos a cabeça na almofada não ouviamos mais nada.

Acontece porém que aquele rapaz com quem partilhava o quarto, tinha um dormir muito agitado. Como já estava mobilizado para a Guiné, todas as noites gritava como se já estivesse na guerra.

Passados três meses, depois de eu ter sido mobilizado, e ele já ter seguido para a Guiné, foi a minha vez de começar a ter noites agitadas, que duraram ate alguns anos após o meu regresso.
Era a rotina dos tempos de guerra.

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Notas de L.G.

(1) Vd post de 12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra

(2) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12

(...) "Foi nessa altura que um dilagrama, ao ser descavilhado, rebentou à boca da arma, por deficiência da alavanca de segurança, tendo atingido o prisioneiro Malan Mané e o Soldado Iero Jau (2º Gr Comb) que o conduzia e que teve morte quase instantânea. Entretanto já tinham sido feridos o 1º Cabo Mateus (3º Cr Comb) com um tiro no joelho e dois picadores da milícia [do Xime]" (...).

quarta-feira, 12 de abril de 2006

Guiné 63/74 - P686: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra

Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra.

© Paulo Raposo (2006)


O Paulo Enes Lage Raposo foi Alferes Miliciano de Infantaria, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70).

Durante a sua comissão, passou esteve em Mansoa e sobretudo na zona leste (Galomaro e Dulombi), a sul de Bafatá.

A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé (1).

O Paulo mandou-me, já há um mês e tal, um documento policopiado, de 65 páginas, com o seu "testemunho e visão da Guerra de África", mais concretamente sobre a história da sua vida militar, desde a sua incorporação, como soldado cadete, em Abril de 1967, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, até à sua mobilização para a Guiné, como Alferes Miliciano da CCAÇ 2405, onde teve como camaradas os membros da nossa tertúlia Rui Felício e Victor David (2). Esta unidade partiu para a Guiné em Julho de 1968. O Paulo regressou passou à vida civil "ao fim de 37 meses de tropa".

O Paulo teve a gentileza de me escrever as seguintes palavras no exemplar que me ofereceu: "Como testemunho de gratidão pela tertúlia que proporcionaste na Net. Com amizade. Paulo Enes Lage Raposo. Março 2006".

O Paulo não esconde que tem uma visão própia da "guerra de África" (pp. 55-65), que não coincide (nem tem que coincidir) com a minha mas que eu respeito. Essa, é de resto, a regra nº 1 da nossa tertúlia. Escreveu ele, em papel timbrado da Herdade da Ameira (Montemor-o-Novo):

"Meu caro Luís: Junto te envio uma cópia do escrito que fiz [, em Dezembro de 1977, ] da minha/nossa vivência na Guiné.

"Tenho poucos mas bons amigos, mas os de África são especiais.

"Quanto à estratégia global que nos envolveu na guerra em África, vou apenas deixar-te um aperitivo. A guerra do Vietname tinha como objectivo puxar as forças americanas para o Pacífico e fechá-las lá. Como ? Com Allende no Chile, com os sandinistas no Panamá e com a Fretilin em Timor. Assim a União Soviética avançaria atItalicé alcançar um porto de águas quentes.

"Um abraço amigo. Paulo Lage Raposo".

Começamos hoje a divulgar o essencial de O meu testemunho, do Paulo Raposo. Agradecemos-lhe a gentileza da sua oferta e a autorização para publicitar o seu testemunho, de interesse documental para a nossa tertúlia e atépara os nossos amigos e visitantes. Começamos justamente pela sua passagem por Mafra. Os nossos camaradas que foram alferes milicianos irão, por certo, rever-se nesta evocação dos velhos tempos da Escola Prática de Infantaria de Mafra.


O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 24005, 1968/70) - I Parte: Mafra

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 4-7.


Entrei para o Convento de Mafra - E.P.I., como soldado Cadete, na 2ª incorporação do ano de 1967, mais precisamente no dia 10 de Abril. Escolhi esta incorporação para não apanhar os rigores do inverno dentro daquele grande Convento.

O choque da entrada foi grande, passar de civil a militar não é fácil. Após a entrada, só podiamos sair depois de saber marchar, conhecer as patentes e saber fazer a continência.

Aquela primeira semana parecia que nunca mais acabava.

Na parte de trás do Convento, na grande parada, formava-se o Batalhão de Instrução. O seu Comandante era o Major Rocha, que passava o tempo a dizer:
- Comigo não há figos. - Devia estar apanhado pelo clima de África nalguma Comissão de serviço que lá devia ter feito.

Encontrei-o mais tarde na Messe de Bissau e logo Ihe perguntei:
- Então, meu Major, não há figos?
- Comigo não há - respondeu ele de seguida.

O Comandante da companhia era o Capitão Ferro, com quem nunca mais me cruzei. O adjunto do Comandante era o irrequieto Ten. Garcia Lopes, a quemn voltei a encontrar na Guiné a comandar uma companhia de Comandos.

O nosso instrutor era um rapaz da nossa idade, o Alferes Leonel de Carvalho, sempre muito aprumado. Vi-o na televisão já como coronel, a comandar as forças militares que estavam na ponte 25 de Abril, aquando do grande bloqueio de 1994. Coitado, deve ter passado por situações muito desagradáveis.

Uma vez passada a primeira impressão entramos na rotina de um quartel. Há horas para tudo, no fundo também nos educa e auto-disciplina.

Recordo aqui alguns momentos que me custaram bastante.


O primeiro foi a dor que me causou, nos tímpanos, o estampido que a G3 dava quando fazia fogo. Até nos habituarmos, aqueles primeiros momentos passados na carreira de tiro eram dolorosos.

O segundo foi o lançamento de uma granada de mão, também na carreira de tiro. Só olhar para a granada me metia medo, quanto mais agarrá-la, tirar-lhe a cavilha e lancá-la.

Foi o Ten. Garcia Lopes que me acompanhou. Disse-me:
- Agarra a granada com a mão direita, tira a cavilha de segurança com a esquerda e lança-a; vê onde a granada cai e depois é que te metes no buraco.

Assim foi, mas não foi fácil.

O terceiro foi o campo de obstáculos que havia na Tapada Real, a que chamávamos a Aldeia dos Macacos. Havia dois obstáculos que eram difíceis de vencer. No fundo, o propósito era o de nos libertar dos medos e de nos vencermos a nos próprios.


© Paulo Raposo (2006)

Um deles era o salto ao galho. Este obstáculo era constituído por uma plataforma que ficava elevada a uns três metres do chão. A

frente da plataforma, a uma distância de um ou dois metros, estava um poste que tinha no topo um galho. Tínhamos, portanto, de nos lançarmos para o galho. Se falhássemos, caíamos, agarrados ou não, ao poste.

O outro obstáculo era o pórtico. Era constituído por uma vigas que faziam um quadrado, que tinha uma largura de 40 cm e estava a uma altura do chão de 6 metros. Tínhamos de subir por uma corda, trepar para a viga, fazer o perímetro e descer pela mesma e única via.

Outro era o trabalho de estrada. Uma vez por semana fazíamos este exercício: íamos a correr de Mafra ao João Franco, no Sobreiro, e regressávamos. As subidas eram feitas em passo rápido, o resto do percurso a correr, com as belas botas que nos enchiam os pés de bolhas, mais os 3,9 kg da G3 que levávamos às costas.

O dia da Infantaria é o dia 15 de Agosto. Este dia representa a vitória da Infantaria (rainha de todas as batalhas) no célebre quadrado da Batalha de Aljubarrota, em 1385, realizado por D. Nuno Alvares Pereira. Naquele momento, D. Nuno implorou a protecção de Nossa Senhora. Em seu louvor foi construído o Mosteiro da Batalha.

Durante a batalha, D. Nuno e os soldados passaram tanta sede naqueles dias de Agosto, que, simbolicamente, D. Nuno mandou lá colocar uma bilha com água que está junto a uma pequena capela, para mais ninguém ter sede naquele local.

Esta vitória representa também e acima de tudo a força de vontade popular (Infantaria) contra a aristocracia espanhola (Cavalaria) e, de um certo modo, também contra a aristocracia portuguesa vendida aos espanhóis.

Foi feito um convite aos cadetes para irem ate Fátima pelo dia 13 de Agosto. Fomos alguns. Fardados como cadetes, acompanhámos o andor de Nossa Senhora. Terminada a cerimónia fomos todos dormir para casa de um rapaz nosso colega, que tinha a sua quinta perto de Ourém. Uns dormiram em camas e outros no chão.

Foi uma noite passada cheia de alegria, com o José Megre a animar o serão, a contar as suas histórias das corridas de automóvel, por que tinha passado em Inglaterra. É um excelente contador de Histórias.

Tudo se passou. Aquele Convento de Mafra era sem dúvida uma fábrica de Oficiais.


(Continua)

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Nota de L.G.

(1)Vd. post de 3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins)

(2) Vd. posts de:

12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXV: Paulo Raposo e Rui Felício, dois novos camaradas (CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/70)

16 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIV: Victor David, CCAÇ 2405 (Dulombi, 1968/70)