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sexta-feira, 18 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22294: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (57): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Paulo Guilherme andava derribado, insone, anormalmente irritável, deu manifestos sinais de agressividade, o médico estava atento, encontrou uma solução, mandou-o com guia de marcha para Bissau, a pretexto de umas consultas, um outro médico e seu amigo, David Payne, meteu-o lá em casa e deu-lhe umas mezinhas consistentes para repor o bom humor e regressar ao sono satisfatório. Foi de avião algemado a um prisioneiro. Ou perdeu a chave das algemas ou partiu sem chave, o sargento que os recebeu no aeroporto levou-os emparelhados e recorreu a uma gazua, quem via a cena deve tê-la achado um tanto desconcertante. Dormiu que se fartou, tinha autorização para sair de casa a meio da tarde, foi um memorável sistema de cama e mesa, medicamentos e roupa lavada, tratamento mais económico não podia haver. É Annette quem conta a história, chega a Bambadinca, todo pimpão, prontamente o major de operações o convoca, amanhã de manhã parto para a operação Topázio Valioso, se alguém duvida que qualquer cenário de guerra é um mistério por decifrar ou um oceano de surpresas, nestas histórias tem bom enredo para desencantar.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (57): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon trésor, mil anos que eu vivesse jamais esqueceria o orgulho com que te ouvi dissertar sobre a presença portuguesa na Bélgica, posso imaginar o trabalho que te deve ter dado a organizar aquelas largas dezenas de slides em que descreveste o relacionamento efetivo desde a Idade Média entre o reino de Portugal e a Borgonha e a Flandres até chegares à independência da Bélgica, e apreciei muito a forma suave como abordaste as relações entre os dois países no período das independências africanas e como as relações luso-belgas se têm vindo a estreitar desde a adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Gostei muito de ver o Espaço Senghor altamente composto, tiveste uma boa parte da comunidade portuguesa bem representada, e participaram muitas organizações que apelam ao mais estreito relacionamento entre os povos europeus. Um dado curioso foi ter visto e até ter conversado com alguns desses participantes que eu conheço da minha vida profissional, caso de gente ligada às cooperativas de consumo, às organizações de saúde, às associações de consumidores, de famílias e sindicatos, não é raro encontrá-los nas reuniões das instituições europeias. Um dado curioso é que tinha estado na véspera com Emílio Bottignini e Paolo Adurno do Comité Socioeconómico Europeu, fiz interpretação do italiano para neerlandês, e encontrei-os no Espaço Senghor, deve ser gente que te aprecia bastante.

Começo por esta exultação, e não sei como registo a esconder o meu pesar de teres estado tão pouco tempo comigo, é egoísmo meu, bem sei, não sei como arranjas tempo para tanta diversificação de tarefas, sabia de antemão que vinhas por muito pouco tempo, tens muita coisa a fazer em Lisboa nos próximos dias, sossega-me o coração saber que depois vêm as férias, mas não quero disfarçar como custa muito, depois de receber tão intenso afeto teu, levar-te para o aeroporto, ainda por cima fui logo arrumar o carro no parque de estacionamento, duas horas depois de tu partires viajei para Dublin, era uma reunião internacional sobre as condições de trabalho. Como te disse, falando-te dos meus filhos, Noémie tem trabalho seguro, é comprovadamente competente no que faz no chamado planeamento urbano, Luc, o seu companheiro, trabalha numa empresa de créditos, vivem com remunerações curtas, lançaram-se na compra da casa em Woluwe-Saint-Pierre, claro que eu ajudo, não hesito em partilhar o que tenho com estes dois filhos, mas há uma certa ansiedade quanto ao modo de viver de Jules, ele é pouco previdente, se bem que generoso na defesa da causa dos imigrantes, custa-me ir lá a casa e ver que a sua companheira, Isabelle, está muito pouco interessada em procurar empregos estáveis, o que não deixa de ser intrigante para quem como ela tirou um curso de secretariado. Não quero intervir, mas não estar regularmente a desembolsar para não ver o meu filho e a sua companheira a passarem extremas dificuldades. Tu não me escondes que tens problemas idênticos com um dos teus filhos, sei perfeitamente como os ajudas. Pergunto-me se tu não queres fazer umas férias económicas, sonhas em conhecer com alguma profundidade a maior parte das localidades à volta de Bruxelas, deixaste cá em casa o Guia Michelin com muitas anotações desses lugares que gostavas de visitar, aqui fica a minha sugestão fazermos passeios diários e permanecermos na Rua do Eclipse. Dá-me a tua opinião.

Volto agora à Guiné e ao meu dossiê, cada vez mais túrgido. Estamos em janeiro de 1970, andas com os nervos em franja, o médico insiste que faças um repouso, seria bom que permanecesses aí uma semana em Bissau a tomar uma medicação que te restituísse um bom sono e a alegria de viver, assim que ele ouviu dizer que o teu pelotão passaria uma semana na segurança da ponte de Undunduma e a fazer patrulhamentos e vigilância dos Nhabijões, sugeriu ao comandante que tu seguias com uma guia de marcha para várias consultas médicas, ele aprovou, conversou-se com o David Payne e ele aceitou de bom grado que tu fosses para Bissau dormir sossegadamente graças ao Vesperax e outra batelada de comprimidos. Tenho aqui um apontamento teu deste período, dizes que chegaste a dormir 15 horas por dia, praticamente não davas trabalho a ninguém, saías a meio da tarde para dar um passeio e à procura de um ou outro livro, voltaste a jantar com o médico oftalmologista, de nome Botelho de Melo, passado oito dias acabaram as insónias, voltou o bom humor, pediste para regressar, pedido deferido. Houve uma nuvem muito escura no horizonte, alguém te informou que o segundo comandante do batalhão, pessoa que tu muito apreciavas, escreveste major Ângelo da Cunha Ribeiro, sofrera um horrível desastre na rampa de Bambadinca, vinha num jipe, seguia à frente um camião que recuou inesperadamente, dispararam da caixa as rachas de cibe que voaram como setas para o interior do jipe, que desceu a rampa aos trambolhões, o condutor teve oportunidade de fugir, o mesmo não sucedeu com o major que foi retirado dos ferros retorcidos com múltiplas fraturas, contusões graves e hemorragias. Tu irás visitá-lo na véspera do regresso a Bambadinca, jazia engessado e enfaixado, não perdera uma pitada de humor e contava algumas pilhérias sobre o que via no hospital.

Cher Paulo, desatei a rir com a folha que me mandaste sobre a tua partida para Bissau. Tu escreveste: “No início do ano, numa operação no Xitole, de nome A Navalha Polida, foi feito um prisioneiro em Satecuta, e trazido para Bissau. Quando me disseram que podia aproveitar a boleia de uma avioneta que vinha buscar este prisioneiro, partimos os dois algemados, ele para ser interrogado, eu para fazer tratamento às minhas insónias. Havia um transporte à espera do prisioneiro em Bissalanca, começo a afligir-me porque não encontro a chave das algemas, o sargento que me aguarda e acompanhado por outros militares armados diz para eu não me preocupar, seguiremos algemados, alguém há de desenrascar a situação, há gazuas para tudo, depois levam-me até ao hospital, tenho que restituir as algemas em Bambadinca. Felizmente que tudo correu bem, conversei amenamente durante a viagem com o prisioneiro, não me passou pela cabeça dar-lhe qualquer sugestão que o estava a interrogar, quando ele me disse que era da etnia Futa-Fula, contei-lhe o que tinha lido sobre o Futa-Djalon e as grandes batalhas em que os Fulas tinham estado envolvidos no século XIX com os Mandingas e com os Beafadas. Quando nos desalgemaram, até parece que nos despedimos como bons amigos”.

Estou agora a juntar os papéis do teu regresso, tu dás muitos pormenores de pessoas que encontraste com quem conversaste, dos livros comprados no Centro Cultural da Guiné Portuguesa, da satisfação que tiveste quando chegaste a Bambadinca, estava um céu límpido e um dia quente e as crianças rodopiavam e gralhavam no recreio, conheceste o novo comandante do pelotão Daimler, convocaste os teus homens para anunciar a chegada e é nisto que o impedido do comandante, de nome Bala, que tu dizes ser uma figura inesquecível pelo seu sorriso aberto mostrando muitos dentes de ouro, te anunciou que o major das operações te chamava com urgência. Entraste no gabinete, houve uma troca rápida de cumprimentos e ele anunciou-te: “Espero que venha recuperado, parte amanhã para o Xime, vai participar numa batida à volta do rio Burontoni, é a Operação Topázio Valioso”. Fiquei estarrecida, cher Paulo, como é possível uma pessoa vir de um tratamento para melhorar o sistema nervoso do sono e imediatamente ter um cenário de guerra? Fico-me por aqui. Escreve-me muito, dá-me notícias, telefona-me, bem logo que possas, a tua charmante Annette, como tu me chamas, não sabes viver sem a tua presença, os teus afagos, o teu amor verdadeiro. Bisous mil, infinitamente, Annette.

(continua)

Centre Culturel d'Etterbeek, Espace Senghor
Cher Paulo, fiquei agora a conhecer os teus militares com que irias para a Guiné caso não tivesses sido classificado como “ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, mormente no Ultramar Português”. Contaste-me que ajudaste a promover um encontro dessa unidade militar, a CCAÇ 2402, em Figueiró dos Vinhos, foi para ti emocionante, mais de 30 anos depois, rever gente com quem já tinhas estabelecido uma relação tão afetuosa. Ocorre-me um truísmo: são coisas da vida.
Muito obrigado por este bilhete-postal, sei que Les Halles de St. Géry são do teu pleno agrado, e eu acompanho-te. Lembras-te, mon amoureux, de termos visto aí uma exposição da arquitetura de Bruxelas nos anos 1950? Sinto-me sempre muito feliz quando estou ao teu lado e poder partilhar a devoção que tu sentes por esta cidade que tu tratas como tua.
Que surpresa! Até fiquei na dúvida de quem me olha nesta fotografia, encontrei parecenças evidentes, sei agora que é uma fotografia do teu pai, a trabalhar no seu laboratório fotográfico. Não te esqueças de me mandar imagens de outros familiares, tenho uma grande curiosidade sobretudo sobre os teus ancestrais, falaste-me na tua mãe em Angola, quando tiveres tempo fala-me dela, já percebi que ela teve um papel determinante na tua vida.
Eras então assim dez anos antes de eu te conhecer. E contaste-me que estavas em pleno trabalho “europeu”, era a presidência portuguesa de 1992, coubera-te estar na organização da Conferência Europeia do Acesso dos Consumidores à Justiça, a maior satisfação, disseste-me tu, foi ter conseguido levar a custo zero ao Teatro Nacional de São Carlos para ver a ópera Così fan tutte de Mozart, os convidados estrangeiros, récita extraordinária, orquestra conduzida por John Eliot Gardiner.
Reconheci-te perfeitamente, é um dos teus hábitos de conversares com as pessoas e pores as mãos como se tivesses em oração, gesto a confirmar a palavra. Registei o que deixaste escrito no verso da imagem: Madrid, 1987, Congresso Mundial dos Consumidores, conversa com a chefe da delegação cubana, dás-lhe conta do quadro legislativo existente em Portugal para a proteção dos consumidores.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22273: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (56): A funda que arremessa para o fundo da memória

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10542: Tabanca Grande (365): Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323, Pirada, 1973/74, com data de 14 de Outubro de 2012:

Prezado editor do blogue
Conheço-o de há longa data (ENSP e congressos de medicina do trabalho), sou admirador sincero da sua postura de cidadania e profissional, navegamos em águas comuns: as condições de prestação do trabalho.

Actualmente sou membro dos corpos gerentes da Associação Portuguesa de Medicina do Trabalho. Não viajo habitualmente por blogues, agora tive conhecimento do vosso através do António Graça de Abreu. Pelo que me apresento:

Em 1973 e 1974 fui o alferes miliciano médico do BCav 8323 - Pirada.

Obviamente tive vivências semelhantes a qualquer dos camaradas que estiveram neste TO.
Do que me ficou ressalto:

- A experiência da intensa solidariedade que se gerou entre os camaradas que vivenciaram juntos o risco de vida de cada um e a permanente entre-ajuda, isto durante largos períodos. Materializa-se actualmente na emoção dos encontros de antigos camaradas (o meu batalhão mantém estes encontros).

- As perturbações na saúde mental de tantos camaradas. Tive a experiência de dois dos nossos que manifestaram psicoses agudas (um militar da CCS e outro da 1ª Companhia - em Bajocunda), ambos felizmente com bom prognóstico após a evacuação.

- A vivência da paz: aqueles almoços entre membros do batalhão e membros do PAIGC, no período que mediou entre o 25 abril e 25 agosto 1974 (regresso a Bissau), durante o período de retração do dispositivo.
Aquele convívio com os ex-inimigos não se esquece, incluindo as conversas respeitantes a ideologia política, um tema então tão apetecido pelos jovens milicianos portugueses.

Junto duas fotos e um texto que conta um episódio da minha vida no batalhão.

Com os meus cumprimentos
Manuel G. Valente Fernandes


Residência do célebre sr. Mário Soares, um dos dois comerciantes instalados em Pirada em 1975. Três dos alferes do Batalhão: Transmissões, Tesoureiro e Médico (eu à direita).


2. A minha história:

URGÊNCIA EM PAUNCA

Alferes miliciano, em 1973 era eu o médico do BCav 8323, em Pirada, mesmo junto ao marco fronteiriço 69.

Um fim de tarde, fui chamado ao bunker dos operadores de rádio, onde recebi um pedido de apoio do maqueiro que se encontrava no destacamento de Paunca, a cerca de vinte quilómetros, destacamento constituído por milícias e integrado no dispositivo do batalhão. Um homem, membro da população, estava com retenção vesical (incapacidade de urinar, apesar da bexiga cheia, provavelmente causada por adenoma da próstata). O procedimento adequado seria efectuar uma algaliação (introduzir na uretra do doente um tubo de borracha, adequada e macia e empurrá-lo até à bexiga) para permitir que a urina saísse e assim aliviar o doente.
O maqueiro nunca tinha realizado, nem sabia como realizar uma algaliação.

Falei com o comandante do batalhão que me confirmou o que eu já sabia: àquela hora não poderia sair um grupo de combate para me levar ao destacamento (não podemos esquecer o tempo que demoraria percorrer aquela distância numa estrada possivelmente minada); àquela hora também não teríamos apoio de helicóptero.

A retenção vesical provoca intenso sofrimento: o doente não poderia ficar à espera da algaliação que eu somente poderia realizar na manhã seguinte.
O meu maqueiro não poderia tentar a algaliação (mesmo com o meu apoio via rádio) por ser muito provável, não só não ter sucesso, como provocar um “falso trajecto” na uretra, com grave prejuízo para o doente.

Somente restava uma solução, provisória, mas com baixo risco para o doente: efectuar uma punção supra-púbica, isto é, perfurar a parede da bexiga do doente com uma agulha grossa, procedimento de baixo risco numa bexiga cheia, porquanto não se perfura o peritoneu, se a picada da agulha for efectuada a “rasar” o bordo do osso que temos sob os pêlos púbicos.

Dei indicação ao maqueiro para trazer o doente para o bunker do operador de rádio de Paunca, onde ficou deitado (os bunkers caracterizavam-se pelo tecto baixo). Disse-lhe para esterilizar uma agulha grossa, pelo método habitual (fervura em água num tacho).

Agulha esterilizada, indiquei ao meu (distante) colaborador que sob minha responsabilidade, iria perfurar a parede da bexiga do doente: Com terminologia pouco científica mas muito explícita, indiquei-lhe exactamente onde deveria perfurar a pele, com a agulha rigorosamente em posição vertical (o grau de sofrimento do doente “dispensava” a anestesia local).

Depois, fiquei ansiosamente à espera de notícias do meu maqueiro. E as notícias (de sucesso) foram um simples comentário, gritado de entusiasmo:
- Doutor, o esguicho de mijo chega ao tecto !!

Manuel Valente Fernandes


3. Comentário de CV:

Caro camarada Valente Fernandes
Não estranhes por ser eu a receber-te na Tabanca Grande. Primeiro porque sou eu que normalmente recebo todos os camaradas que se apresentam, pois sou uma espécie de relações públicas do Blogue; segundo, porque embora te tenhas dirigido directamente ao Luís, ele não poderia responder-te por estar ausente do País, em trabalho.

Outra coisa que não vais estranhar é o tratamento por tu, modo que não implicará uma comunicação menos respeitosa, porque estabelecemos que pessoas que viveram as mesmas dificuldades de guerra, suportaram aquele calor húmido, pisaram aquela terra vermelha, atravessaram as mesmas bolanhas, suportaram aqueles mosquitos e viram morrer ou ficar feridos os seus companheiros, devem deixar do lado de fora da caserna os seus títulos honoríficos (não as profissões), as suas habilitações (úteis para ajudar quem tem mais dificuldade de expressão), as suas antigas (ou actuais) patentes (servem só para identificação e estatística), a sua posição social e até a idade. O tratamento por tu estreita a amizade e a camaradagem, e desinibe.

A tua entrada vem aumentar o número de camaradas Médicos em campanha e outros que se formaram após o serviço militar, que enfileiram a nossa tertúlia. Correndo o risco de esquecer algum, no primeiro grupo estão: Amaral Bernardo, Mário Bravo e Pardete Ferreira; no segundo temos os camaradas: Vítor Junqueira, Francisco Silva, Ernestino Caniço e Caria Martins.
Espero não ter esquecido ninguém.
Tens uma série no Blogue dedicada aos nossos médicos, a que podes aceder a partir daqui:  Os nossos médicos

Dependendo do tempo livre de que dispões, gostaríamos que nos remetesses algumas das tuas memórias (em prosa e fotos), especialmente que nos falasses da tua vivência de jovem médico que teve de improvisar e colmatar a sempre presente falta de meios e de pessoal habilitado. Aliás, a história que hoje nos contas é a melhor prova do que acabei de escrever.
Na minha Companhia (independente) Médico e Padre era coisa rara, situação que se inverteu a partir da altura em que se reactivou o COP6, em Mansabá, que nos permitiu ter médico a tempo inteiro. Tínhamos também a sorte (sem desprimor para os camaradas Fur Mil Enfermeiros formados na tropa) de ter um Furriel Enfermeiro que já exercia a profissão na vida civil, o que nos dava uma certa confiança e era uma mais-valia para os médicos que por lá apareceram para exercer as suas funções humanitárias.

Já agora, uma coincidência engraçada. No passado sábado, no convívio da Tabanca dos Melros, em Fânzeres, conheci o ex-Fur Mil Enf. José Pereira da 2.ª Companhia do BCAV 8323. Lembras-te dele? Julgo que me disse ser de Lamego.

Desviei-me na conversa, mas acho que deixei o essencial. O Luís brevemente entrará em contacto contigo, dando resposta à tua mensagem que fica aqui publicada.

Pela minha parte fico disponível para qualquer esclarecimento.

Resta-me enviar-te um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores.
O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10478: Tabanca Grande (364): Júlio Madaleno, tocador de guitarra, feicebuqueiro e agora grã-tabanqueiro, nº 582, ex-fur mil, CCAÇ 1685 (Fajonquito) e CCAÇ 2317 (Gandembel) (1967/69)

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9194: Tabanca Grande (310): Luís Gonçalves Vaz, professor, filho do Cor CEM Henrique Vaz (1922-2001)



Guiné > Arquélago dos Bijagós > 1974 > Luís Vaz na pista da Ilha de Bubaque




Foto: © Luís Gonçalves Vaz (2011). Todos os direitos reservados




1. Mensagem de Luís Gonçalves Vaz, com data de ontem, respondendo ao nosso convite para integrar a Tabanca Grande (*)


Caro Luís Graça:


É com muita satisfação e "alegria interior" que li as palavras que me dirigiu... Penso que as "pesou bem" antes de mas dirigir, e revelou também ser uma pessoa que conhece "muito da natureza humana", pois percebeu a verdadeira razão dos meus artigos para o "Nosso Blogue"... a verdadeira essência, nada mais simples do que homenagear e perpetuar a memória do meu falecido Pai, entre nós, sua família, bem como entre os amigos e os ex-combatentes nesse teatro de operações [, Guiné, 1973/74,].

Os Barcelenses, esses, o irão poder lembrar, lendo o Dicionário de "lustres Barcelenses" que em Junho próximo irá ser publicado.


Quanto ao convite que me faz, a resposta é SIM, e pode-me listar no seu Blogue, como colaborador "Luís Gonçalves Vaz". 

A "estória" que brevemente lhe irei enviar é sobre o "ataque ao edifício da Pide" em Bissau, penso que em 27 ou 28 de Abril [de 1974]... Fugi do Liceu Honório, com alguns colegas guineenses (mais velhos que eu) e eu era o único branco, além dos paraquedistas que cercaram a área, a assistir a este acontecimento na recente História da Guiné... Brevemente enviarei o artigo, meu caro Luís Graça.

Falando de mim, a saber: sou professor de Matemática e Ciências da Natureza numa escola aqui na zona de Braga, com formação académica em Biologia e Geologia (Ainda não fui à Lourinhã ver as pegadas de Dinossauros...). 


A minha Guerra foi na EPC [, Escola Prática de Cavalaria,] em Santarém, onde estive no 2º Curso de Milicianos do ano de 1983, e onde passei 18 longos meses como um operacional... Claro tinha de me relacionar com "prisioneiros de guerra",  isso mesmo que está a pensar. Fui Furriel Miliciano da PE (Polícia do Exército) e transportei centenas de presos entre a prisão de Lisboa e o presídio militar de Santarém. Levei também muitos à Polícia Judiciária Militar em Belém, realizei segurança às altas individualidades Militares e Civis no Exercício Militar "Órion 84", já que o QG das Operações era na EPC e o Teatro de Operações foi no Campo Militar de Santa Margarida, etc.

Ainda convivi e fiz serviço com o Capitão Salgueiro Maia em 1984 (na altura tenente-coronel ou major, vindo dos Açores). Tive o privilégio de ser recebido no meu 1º dia de tropa na EPC pelo na altura capitão Abrantes, que era o mesmo "Tenente Abrantes" que o meu pai fala nas suas notas (adjunto do Brigadeiro, Comandante do CTIG). Convivi com outros oficiais de Cavalaria e ex-combatentes, nomeadamente o já falecido Major Caetano: foi o meu professor nas aulas de "Tácticas de Guerrilha" no Curso de Milicianos (no EIQC da Escola Prática de Cavalaria) e que nos apresentou os filmes de emboscadas no teatro da Guiné. 

Este último oficial entrou em várias operações no TO da Guiné para tentar recuperar áreas "libertadas" pelo PAIGC. Morreu no ido ano de 1984 no rio Tejo, quando praticava caça aos patos (fui eu que levei os Sapadores da EPC para iniciar buscas do seu corpo na zona do Tejo em Alpiarça).

Adorei esses 18 meses de "grande paz", mas fui formado por oficiais e sargentos "que fizeram" a guerra colonial, mas com muita actividade e emoções.

Hoje em dia sou professor, estudo uma Alcateia de Lobos na Serra da Peneda e escrevo pequenas Biografias de outros meus antepassados ou parentes militares.

Por hoje já chega de falar de mim...

Um forte abraço.

Luís Gonçalves Vaz



2. Comentário de L.G.:


Luís, um das nossas regras de ouro, no blogue, é o tratamento por tu, "entre camaradas"... E por camaradas entende-se aqueles que "dormiram" - etimologicamente e fisicamente falando -  na mesma cama (do latim, camerate), na mesma caserna, no mesmo abrigo, no mesmo buraco, no mesmo bunker, no mesmo Bu...rako,  na mesma morança, por detrás do mesmo bagabaga ou do mesmo poilão... O conceito é mais vasto do que o simples operacional... Na Guiné, no "mato", éramos todos combatentes, do simples auxiliar de cozinheiro, básico, até ao comandante operacional, em geral, comandante de companhia... Mas também os oficiais superiores, nas sedes de batalhão, estavam sujeitos a "apanhar com elas"... Mais raro era a participação, apeada,  de oficiais superiores em operações no mato. No meu tempo, o Gen Spínola dava o exemplo, indo cumprimentar-nos por vezes nos sítios mais insólitos e até perigosos...


Outra das nossas regras de ouro é... considerar que "os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são"... Em  todo o caso, eles pertencem à categoria dos amigos da Guiné, e também já são algumas dezenas. Neste caso, o tratamento por tu é faculatativo.


O mais importante é, hoje, juntos, partilharmos memórias e afetos, valorizando sobretudo o que nos une mas sem ignorar ou escamotear aquilo que nos pode separar, e que também nos enriquece enquanto comunidade virtual... Costumamos dizer também, por graça, que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!  E que é debaixo de um mítico, mágico, centenário, gigantesco, protetor, solidário e fraterno poilão - como aqueles que existiam no nosso tempo nas tabancas da Guiné - que nos sentamos hoje, à sua sombra, sem divisas nem galões, sem heróis nem vilões, contando as nossas histórias, mostrando os nossos álbuns fotográficos, trazendo mais uma peça para a reconstituição/reconstrução do "puzzle" da nossa memória... As nossas motivações podem ser as mais diversas, mas  há um elemento comun, o dever de memória, a camaradagem, a obrigação (moral) de transmitirmos vivências e valores à geração seguinte, etc.


Dito isto, meu caro Luís, és o tabanqueiro nº 530. Bem vindo a bordo! LG


PS - Na Lourinhã, de que sou natural, terei muito gosto em proporcionar-te uma visita guiada ao nosso Museu, conhecido nacional e internacionalmente pelas suas valiosíssimas colecções de fósseis de dinossauros (incluindo ovos) do Jurássico Superior... Sou sócio e já fui presidente, durante vários anos,  da assembleia geral da associação que é a proprietária e a gestora do museu... As famosas pegadas de dinossauro (o maior trilho do mundo), a que te referes,  ficam perto, mas mais a norte, já no distrito de Leiria, no Parque Natural das Serras d'Aire e Candeeiros, na antiga "pedreira do Galinha", abrangendo os concelhos de Ourém e Torres Novas... Lourinhã é o último concelho do distrito de Lisboa...

_________________

Notas do editor:

(*)  Convite ao LGV. enviado ontem:

Meu caro Luís:

Você já deu mais contributos para a preservação e divulgação da nossa memória na Guiné do que muitos ex-combatentes... Você é um dos nossos, e nessa medida a sua presença na nossa Tabanca Grande (a nossa comunidade virtual, constituída por cerca de 530 "amigos e camaradas da Guiné") só nos pode honrar e orgulhar... Reitero, pois, o meu convite para ingressar neste blogue coletivo e "autorizar" que o seu nome seja acrescentado à nossa lista alfabética... Como quer ser "listado" ? Luís Vaz, Luís Gonçalves Vaz ? 

Já conhece os nossos 10 mandamentos... De resto, pacíficos. Somos um blogue de paz e tolerância... Aqui só não entra a nossa atualidade, nem as questões do domínio da política, da religião e do futebol... Partilhamos memórias e afetos à volta da Guiné do tempo em que estivemos a fazer a guerra e a constrtuir a paz... Já vi que a sua família é minhota, eu também sou casado com uma nortenha e tenho casa no Marco de Canaveses... Gosto muito das "gentes do norte", pese embora as minhas raízes "sulistas", ou melhor, "estremenhas"...

Gostaria de ter uma pequena história sua, do tempo em que passou em Bissau..., muito possivelmente, já adolescente, e com os seus manos e pais. Se quiser, fale-me também um pouco mais de si para eu o poder apresentar ao nosso Batalhão... Dou-lhe os parabéns pela sua demonstração de amor filial. 

domingo, 22 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24781: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (11): E na hora da nossa morte, ámen!


Contos com mural ao fundo (11) >   E na hora da nossa morte, ámen!

por Luís Graça (*)


"O meu país é o que o mar não quer"
 (Ruy Belo, 1973)



Porra, meu irmão, meu herói, estou no teu velório!... Ainda não estou em mim!... Afinal, nunca me preparei, em vida, para este momento, para este papel!... Mesmo que já tenha feito o luto do pai, da mãe, do Jorge...  Estou de coração destroçado!... Mas sou incapaz de chorar...  Vim logo que soube da notícia. Foi a mana que me telefonou ontem.

Desta vez, a “gaidja”, como tu lhe chamavas, a puta da gadanha da morte, trocou-te as voltas... Tanto a fintaste, na equitação, na guerra, na boémia, nos amores, na estrada, no jogo, na vida... e foi ela agora que te pregou a rasteira e te cortou, rente, o fio o que te ligava à vida!... Na modorra da paz, da decadência, da depressão dos "quatro vintes", como dizem os franceses!... Aos "quatre-vingts", aos oitenta, meu irmão, veio o xeque-mate, a última emboscada, a estocada final!...

Bem podia ser eu a estar aí esticado que nem um carapau seco, de botas altas, já gastas, cambadas, engraxadas para a ocasião!... A cerimónia fúnebre, a tua última parada, a tua última formatura!... As mãos em oração, elevadas ao céu qual estátua jacente de um agora apeado condestável!... O caixão aberto, o rosto coberto de lenço de linho, bordado, da nossa mãezinha!

Os gatos pingados, os safados,  sabem do seu ofício. Vestiram-te a farda nº 1, já muito puída do uso e dos anos, com os amarelos dos galões de coronel desbotados... A cruz de guerra ao peito e as tuas demais medalhas e condecorações de uma vida dedicada à tropa. E até a espada, não se esqueceram da tua espada de defensor do Império e da Nação. Espada ou sabre ? Estavas sempre a dar-me nas orelhas, porque eu confundia a espada e o sabre...

Tu, que noutra encarnação só poderias ter sido um cavaleiro andante, um temível condestável, um bravo e fero guerreiro do Império!... Desculpa a ironia, estou a ser cruel, mesmo que saibamos, tu e eu, que nem sempre líamos as coisas pela mesma cartilha... O catecismo foi o mesmo, o batismo, a primeira comunhão, o crisma...

Porra, meu irmão, meu amigo, meu companheiro, meu camarada... Chegou a tua vez, como chegará a minha.  A avaliar pelas estatísticas da morte dos homens em Portugal já estavas na linha da frente com os pés para a cova... Mas eu não me conformo com isso, nem dou qualquer valor às médias estatísticas com que nos infernalizam a vida...  Ou talvez não, matematicamente falando, se calhar já tinha chegado a tua hora, o teu dia, o teu mês, o teu ano. Há a predestinação, há o deve-e-haver do Criador e dos seus "informáticos"... (Desculpa a blasf+emia, mas eu acho que até Deus já tem cimputador.) 

Não importa, para quem te amava, a morte bateu cedo demais à tua porta!... É sempre injusta e cruel a morte de quem amamos.

E, no entanto, era uma morte anunciada, diz a tua viúva alegre, encolhendo os ombros, conformada, e fingindo limpar uma lágrima furtiva, tão afetiva e socialmente hipócrita como as falinhas delicodoces de amor com que te engatou no Rio de Janeiro... Mas quem sou eu, afinal, para julgá-la?!.. A ela e a ti, que aos 65 ainda te julgavas um garanhão!

O teu médico oncologista, esse, não te escondeu (nem podia esconder) a verdade... "A verdade nua e crua, doutor!", foste tu a implorar-lhe, qual quê!, a dar-lhe uma ordem taxativa!...  Como se o médico fosse o teu pobre alferes miliciano, que chorava baba e ranho quando sofreu a primeira baixa mortal, lá na serra do Mapé, no planalto dos Macondes!... Ainda guardei esse aerograma, um dos poucos que me escrevias de Moçambique... Sempre foste muito preguiçoso para escrever para mim e para os pais.

Porque um homem, doutor, tem o direito de despedir-se da vida e de morrer em paz com a vida, com os outros e com Deus, suplicou (ou sentenciou ?) o capelão militar quando já estavas nos cuidados paliativos, no terminal da morte, no hospital militar (segundo me contou a nossa mana, que vive aí no Grande Porto, e que te acompanhou nas últimas horas)... 

Que atroz ironia, que insulto, como se a gente soubesse como isso se faz!... Isso, de um gajo despedir-se da vida, e ter direito a uma boa morte. Como se nos tivessem ensinado, na família, na escola, na catequese, na igreja, no seminário, na Academia Militar, na tropa, na guerra…, a arte de bem morrer!... Ensinaram-te, isso sim, a andar a cavalo em toda a sela... E a jogar bridge. E a dansar o tango. E a fumar um bom charuto. E a pegar num copo de cognac. Ou a conduzir um descapotável. 

Também lá andei, na guerra, mas nunca pensei na minha própria morte, mesmo vendo a morte, ali tão pertinho, a meu lado. Aos vinte e poucos anos, em qualquer guerra, não há combatente que não tenha desenvolvido um forte sentimento de imortalidade... Terrível ilusão!...É por isso que há heróis!... E soldados desconhecidos, mortos aos milhares, nas trincheiras e nos desembarques anfíbios das Grandes Guerras...

Imagina, mano, pediram-me para te fazer o teu elogio fúnebre, amanhã, na igreja, na missa de corpo presente!|... Mas eu não sei se serei capaz de dizer duas coisas a teu respeito, que valha a pena dizer, em público, e que não sejam meras palavras de pompa e circunstância, como vocês, militares, gostam.

Invade-me a angústia, o pânico, o pudor... Não quero dececionar-te, muitos menos aos teus filhos e netos, aos teus amigos, aos teus camaradas, que eu não conheço ou conheço mal... Sobretudo não me peças para repetir essa grandessíssima mentira, com que te formataram, a de que “é doce morrer pela Pátria!”… A tua Pátria, a minha Pátria, a nossa Pátria ? A Pátria deles ? Qual delas, afinal ?... Bolas, a morte é sempre amarga, seja na cama, seja no campo de batalha...  

Eu sempre ficava confuso quando tu chegavas a casa, oficial e cavalheiro, impecável no teu uniforme e as insígnias da arma de cavalaria, de bota alta e pingalim... Destroçavas corações nos bailes das debutantes... Casaste, ao menos, com uma gaja rica, que te sustentou os teus vícios, e te deu três filhos, que sempre achaste "maravilhosos,  feitos entre três comissões"... 

E depois, meu mano, ao fim e ao cabo, o que é que eu sei de ti, depois destes anos todos de separação, física e emocional ? (O teu casamento separou-nos.)... 

Não sei se fostes um bom amante, um bom homem, um bom pai, um bom cidadão ou até mesmo um bom militar. Sei que fostes um bom irmão, um bom amigo, um bom português. E que até nem eras mau cavaleiro, ainda ganhaste uns concursos de equitação quando eras novo e eras bonitão e sobretudo não havia guerra, ou havia paz podre, com algumas  nuvens negras que ninguém tomava como sinais premonitórias da borrasca que se abateria sobre a nossa pobre Pátria, velha e cansada de carregar um império que não se pagava (nem se defendia) a si próprio... 

E talvez isso me baste, ou deveria bastar-me: foste um homem bom, um bom irmão. É o mínimo que eu poderia dizer de ti. É o mínimo que se pode dizer de qualquer gajo minimamente decente. 

Porra, poderia estar eu no teu lugar. E no meu íntimo só posso regozijar-me por estar vivo... Ou ainda vivo, aos setenta (que vou fazer dentro de semanas)!... Podia lá ter ficado, na Guiné, morto por uma roquetada ou uma mina. Pergunto-me: quantos anos ainda me restam ?... "Temei a velhice, porque ela nunca vem só!", dizia-nos o nosso avô de Ponte de Lima.

Quando olho para ti, ou para o que ainda sobra de ti, aí deitado na urna aberta, no teu esquife, arrepio-me… O raio da morte não tem pudor… E exala um cheiro tão forte, a cabra, que afugenta os vivos... Daí as flores, as coroas de flores, e as ervas aromáticas, os sprays de perfume  com que a gente a tenta esconjurar, afugentar, enganar, porventura engalanar, e sobretudo negá-la e esquecê-la...

Os guineenses, animistas, no meu tempo, faziam o "tchoro", comiam, bebiam, dançavam, choravam e homenageavam o morto, com bandos de jagudis à volta da morança para partilharem também as migalhas da festa... 

A nossa Igreja, na morte, apodera-se de nós, do nosso cadáver, e incita-nos, aos vivos, ao arrependimento, ao nojo, ao jejum e à abstinência, à secura de sentimentos e emoções... Que este é um vale de lágrimas, que a vida é uma passagem, que estamos em trânsito, mas que no fim teremos, os justos, a eterna recompensa da glória de Deus, o privilégio, a graça, de nos podermos sentar à Sua direita... Repara: nunca à Sua esquerda...

É verdade, és o “mano velho”, o “morgado”, e eu sou o “caçula” da família, como tu me chamavas, quando vieste de Angola, lembras-te ?…"Coberto de pó e glória!",  exclamava eu, quando recebia uma fotografia tua,   já adolescente e e a estudar para padreco.  Pouco mais de uma década  nos separa, mas podíamos ter sido irmãos gémeos, sempre o disseste ou, se calhar, o desejaste… E eu sempre te admirei, nessa altura. Incondicionalmente.

Porra, não morreste de pé, e ainda bem,  de espada em riste, a defender o "quadrado", como os nossos gloriosos antepassados, nas ditas guerras de pacificação do Império, agarrados à bandeira das quinas, branca e azul, no caso do tio-bisavô António, em Chaimite, em Moçambique, e já a verde-rubra, no caso do tio-avô José, no Cunene, em Angola…

Claro que tinhas de seguir a carreira das armas, estava inscrito no teu ADN, numa família de nobres tradições como a nossa, mas arruinada, que deu alguns bravos soldados à Pátria… Desde 1640, oriundos do terceiro estado, o povo, que o novo rei, o Senhor Dom João IV, o primeir0 da dinastia de Bragança, irá nobilitar... Tinha um lugar especial na nossa sala de jantar, com o retrato sobre o topo da nossa mesa comprida que só se usava em dias de festa... A casa cheia, a alegria dos nossos pais, a reunião anual da família extensa, do clã...Lembras-te ?  

Dizem que foi feita, a mesa, pelo nosso avô paterno,  com grossas tábuas de um centenário carvalho que travou um duelo de morte com um ciclone... As raízes, são sempre as raízes que nos tramam, as raízes telúricas, quando nos faltam, quando nos falham... Vê a nossa casa solarenga, hoje em ruínas: salvou-a a mana, que fez dela um alojamento local... De guerreiros acabámos em hoteleiros!... Triste sorte, se queres que te diga...

Habituámo-nos a viver "do soldo e do saque", como ironizava (quando falava da história da família) o nosso avô materno, Francisco, professor primário, jacobino, antimilitarista, republicano dos quatro costados, quezilento, desmancha-prazeres,   que casou, contrariado, a filha numa família monárquica (e muito pouco ou nada liberal, tenho hoje que acrescentar)… 

Mas o amor falou bem mais alto, o que era raríssimo naquele tempo, em que os casamentos ainda eram de conveniência, negociados pelas famílias e regados com vinho fino... A nossa mãe foi uma santa, uma heroína, uma mulher do seu tempo, mas de grande têmpera: quis casar por amor, contra as convenções sociais e as paixões políticas que dilaceravam as duas famílias... 

Enfim, não dávamos apenas soldados, a verdade seja dita: demos também padres, missionários, administradores, magistrados, embaixadores, mestres-escola e, seguramente, freiras e frades, pelo menos até 1834… E, pelo meio, muitos filhos da mãe, como em todas as famílias...

Porra, mano, não sei se foste um bom cristão. Assalta-me agora essa dúvida.  Não pesei o teu saco de pecados, nem sei se os pecados têm peso… Acho que sim, há alguns hediondos, que devem pesar toneladas. 

Mataste ? Nunca falámos disso, mas talvez tenhas matado na guerra, onde andámos os dois, cada um para seu lado, e com motivações bem diferentes… Se mataste macondes, eu também devo ter morto balantas. De resto, não se ganha uma cruz de guerra sem matar um ou mais inimigos, uma boa dúzia deles, no mínimo… Mas na guerra matar não é crime... E, se for na guerra santa,  é um dever sagrado, se forem infiéis ou "turras", conforme o Deus a quem rezas.

Torturaste ? Violaste ? Roubaste o tesouro nacional ? Desonraste o exército e a tua arma, a cavalaria ? Desejaste a mulher do teu comandante, do teu camarada ou do teu subordinado  ? Cometeste adultério ? Evocaste o santo nome de Deus em vão ? Adoraste o bezerro de ouro ?... 

Não sou juiz, muito menos o do Juizo Final… Mas não vou pôr as mãos no fogo por ti, no que diz respeito aos pecados mortais... E já nem sequer me lembro de quantos eram, os que nos ensinaram na catequese. Eu, dantes, sabia isso tudo na ponta da língua, a começar pelos dez mandamentos da lei de Deus... E, lembras-te, quando nos íamos confessar, ao abade,  fazíamos figas com a mão atrás das costas. Fostes tu que ensinaste...

Porra, mano querido, olho para o teu cadáver, ponho a mão na tua testa, gelada como o granito da nossa casa, e causas-me horror e dó: o que fazem a um gajo depois de morto!... Com milhões de micróbios em marcha para, na linha de desmontagem,  te limpar a carcaça, por dentro e por fora...

Mas, que importa?!, se amanhã, ao meio-dia, vais parar ao crematório. Aqui perto, em  Paranhos. E tudo acaba lá, a mais de 900 graus centígrados. Limpo, asséptico, indolor. Ou talvez não, para nós que fomos ou ainda somos cristãos (se queres saber, eu ainda o sou)... Os gatos pingados, esses, entregam um pequeno pote com as tuas cinzas à viúva, tiram as luvas das mãos, tomam um banho, voltam a vestir o fato e a gravata, e metem-se no carro a caminho do aconchego do lar, doce lar…

E a tua gaja, a viúva alegre, essa, ainda vai gozar metade da tua pensão de reforma de herói nacional, com um marmanjo qualquer que ela há-de conhecer no Facebook ou no ginásio onde faz Pilates e olhinhos sofridos de Barbie, a pestanejar de rimel, aos putos de vinte anos, cheios de testosterona… (Não tive sorte com as tuas mulheres.)

Mas o que estás para aí a rosnar entre dentes ? Oiço já mal, mas mesmo assim sou capaz de reconstituir o teu pensamento, a tua voz, cavernosa, de ventríloquo, que vem, senão das profundezas do Inferno, pelo menos do outro lado do rio que acabas de atravessar, na barca de Caronte…

“Meu sacana!, desta vez passaste-me a perna!... Não pediste a bênção ao mano velho, como te ensinaram os nossos pais. Foste um cobardolas de merda, podias ter sido solidário comigo... Podíamos ter feito a nossa viagem juntos, sempre era menos penosa. Iríamos empoleirados, divertidos, na minha Chaimite, a cantar as canções da nossa alegre infância que eu te ensinei, na Mocidade Portuguesa... Tu, um lusito de palmo e meio!.  Sempre tínhamos as férias grandes para estarmos juntos, na nossa quinta, apesar da diferença de idades!... Essa seria a tua derradeira (e verdadeira) prova de fraternidade, de amor e de amizade!... Mas não tenho esse direito, o de te pedir o supremo sacrifício da vida, nem que fôssemos irmãos gémeos verdadeiros!... Espero que ainda tenhas, ao menos, uma longa vida para te poderes ir lembrando, de quando em vez, com saudade, deste teu pobre amigo, mano e mentor”…

E como vais querer ser lembrado ? Como um herói?!

“Sim, justamente como um herói. Lembras-te como tu me dizias ?!... Sempre tiveste a mania de recorrer à mitologia grega, com referências eruditas, chatas p'ra burro, para um gajo como eu que era de cavalaria, e que nunca gostei de estudar: ‘Meu herói, mais do que um homem, menos do que um deus’... Sempre me chamaste 'meu herói’... E eu até gostava, confesso, mas sem nunca te levar a sério. Quero, por isso, que te lembres de mim como um herói. Sempre gostei da tua definição de herói, mais do que homem, menos do que deus...”

Seja, então, feita a tua última vontade, grande cavaleiro!

“Podia ter morrido pela Pátria!?... Com Honra e Glória!... Mas, não, acabei por ser um burocrata da tropa, no fim da carreira, num daqueles serviços do Exército que ninguém quer chefiar"...

Deixa-te de tretas, tivemos muitas discussões em vida, sobre isso. E sobre o teu militarismo. Sempre foste um bocado militarista. Que tu tenhas recebido a cruz de guerra, tudo bem. E foi bem merecida. Felizmente que não foi a título póstumo... Estou a ser egoísta, desculpa lá, queria eu dizer: não fiquei, assim, privado de conviver contigo, mais estes quarenta e tal anos...

“É doce morrer pela Pátria”: ensinaram-me na Academia Militar, uma escola de valores e virtudes que tu nunca tiveste o privilégio de conhecer… E, se bem me lembro, onde nunca me foste ver, a não ser no juramento de bandeira, com os pais e a mana. Sem esquecer o Colégio Militar, de que guardo as melhores recordações e onde fiz amigos para a vida. Chamas a isto militarismo ?”

Não, aí já não te acompanho, nem nunca te acompanhei, a partir dos meus 18 anos, quando rompi com o passado. Bem sabes que nunca tive jeito para a tropa, como tu e os nossos antepassados  que seguiram a carreira das armas. E fiquei com fobia aos internatos. Fiz o que tinha a fazer, como português e cidadão, que foi o serviço militar obrigatório. Honrei a palavra dada ao nosso pai... Não fugi. E fui "infante", tropa-macaca, como a gente dizia na Guiné... 

Já tu tinhas dado uma volta pelo Índico, em 1958, quando eu entrei para o Seminário… E mal sabias tu que a Pátria te voltaria a chamar, desta vez, para Angola, três anos depois... Sempre receei ter que ir a Lisboa, com os pais, ao 10 de junho, para receber uma qualquer cruz de guerra tua, a título póstumo... Tinha esses pesadelos, que me aterrorizvam à noite, confesso...

“A nossa querida e saudosa mãe queria que eu fosse para padre, contrariando o avô, o pai dela, que era anticlerical, como sabes... E o nosso pai, esse, queria que eu seguisse a tradição da família… Acabei por ir para o Colégio Militar e entrar na Academia, graças aos pergaminhos da nossa casa e à nobreza da nossa linhagem… Mas sei que o nosso pai, que Deus lá tem, teve de fazer das tripas coração. Vivíamos acima das nossas possibilidades, com as míseras rendas dos caseiros e os roubos do feitor... Mais uma vez, valeu-nos a cunha do nosso primo general, que foi sempre um grande e leal amigo da família...”

O seminário sempre era mais barato. Ir para Lisboa era um pesado encargo para a família. E a nossa mãe, com a sua intuição, o seu sexto sentido, parece que estava a adivinhar que os tempos que aí vinham, não eram propriamente cor de rosa... 

Sobrou para mim, que acabei por ir para Montariol, em Braga... Já que tinha um filho oficial do Exército, um garboso oficial e cavalheiro, faltava-lhe, à nossa mãe, um missionário, barbudo, de sotaina branca, para dilatar a fé e o império. Mas eu cedo percebi que os votos de pobreza, obediência e castidade eram um fardo demasiado pesado para um jovem que não tinha cometido nenhum crime lesa-família ou lesa-pátria, só queria afinal viver, e viver a vida do seu tempo… E que tempos, esses, os dos anos 60, meu irmão!

Fui aguentando, à custa de muitos sacrifícios pessoais, de muito ranger de dentes, com  muito cinismo à mistura, só para não dar um desgosto à nossa mãezinha... Quando ela morreu, precocemente, ainda tão jovem, tão cedo e tão linda, eu já estava em teologia, no Seminário da Luz, em terra de mouros... Há muito que tinha perdido a vocação ou percebido que não tinha jeito nem feitio para missionário franciscano desterrado para Angola, Guiné ou Moçambique...

Voltei ao Norte. Mal tive tempo de respirar o ar livre da noite do Porto (que na altura era uma chungaria), chamaram-me para a tropa e, de seguida, meteram-me num barco, misto de carga e passageiros, direitinho à Guiné. 

“Já eu tinha passado por Moçambique, foi lá que me cobri de honra e glória, e ganhei esta cruz de guerra que ostento, com orgulho, ao peito... E já tinha trinta e muitos”…

Em boa verdade, eu tive infância (e tão feliz!), mas não tive nem adolescência nem juventude... Tal como tu, que passaste os teus melhores anos entre a caserna e o ultramar… Envelheci, pelo menos uma década, no seminário, na tropa, na guerra...

Quando voltei da Guiné, fui à procura do tempo perdido... Andei na noite, na má vida, com más companhias, desperdiçando o resto dos meus verdes anos, dando cabo do fígado e arriscando a saúde, com uísque marado e as gajas da noite... Felizmente, ainda não havia, nesse tempo, o VIH/Sida... Ou estava em incubação...

À beira do abismo, na 23ª hora, conheci a Manela, que me levou, de novo, para o caminho do bem... Estamos casados há 40 anos. Foi o segundo anjo da guarda que conheci na vida, depois da enfermeira paraquedista que me levou para o hospital militar de Bissau, e me salvou do inferno de... Ai!, porra, já não me lembro (ou não quero lembrar ?!) do raio do sítio onde apanhei uma mina anticarro que matou uma meia dúzia dos nossos…  Começava por um G, de Guiné... Guigiti? !... Peço-te desculpa pela branca... Como também não me lembro do nome desse anjo que veio do céu, para me salvar. Imperdoável!... A minha memória já não é o que era... Ainda gostava de a conhecer, a essa enfermeira paraquedista, se por acaso ainda for viva, como espero...

Acabou-se a guerra, para mim, nesse dia. E lá percorri as estações do calvário: Hospital Militar, em Bissau, Hospital Militar Principal, na Estrela, depois o Centro de Reabilitação de Alcoitão...  Muitos meses em tratamento e recuperação, uma prótese no calcanhar, enfim, foram as medalhas que eu trouxe da Guiné... E tenho uma pensão de merda como Deficiente das Forças Armadas. 

Nunca ninguém me foi visitar, nem sequer as senhoras do Movimento Nacional Feminino... E muito menos o meu pai, o que eu entendo e até perdoo: Vila Nova de Cerveira ficava longe da capital e o pai, não sei se te lembras, já estava doente... A nossa mãe, essa, já tinha partido para a beira do Padre Eterno.

“Tiveste azar, irmãozinho… Os manos do meio, esses, lá se foram desenrascando, pior ou melhor. O António foi 'a salto' para França, para grande desgosto dos pais, era refratário e tornou-se um comuna de merda… O Jorge, depois do magistério primário, livrou-se da tropa, com um grande cunha de um médico militar do Porto; a mana,  essa, lá casou, tarde e a más horas, com um servidor público, chefe de finanças de Braga”…


Sabes ?!, nunca te contei isto!... Aos dez anos quis ficar órfão e depois morrer, quando fui para o Seminário de Montariol. É monstruoso, tenho que o admitir: desejei a morte dos nossos pais!... Eles, coitados, já não estão cá, e espero que não me oiçam... Mas, se me estão a ouvir, que me perdoem!... Agora, eu não sei é se Deus me vai perdoar. Nunca contei o segredo, nem sequer ao meu confessor nem ao meu diretor espiritual... Estou-te a contá-lo, pela primeira vez, e sei que me vais saber escutar,  entender e perdoar....

"Achas que é normal um puto querer morrer na flor da idade ? Ou sentir um secreto prazer em imaginar-se órfão de pai e mãe ?... Eras um monstrozinho!"...


Sim, quis matá-los!... Sentia-me só, abandonado, terrivelmente só, perante Deus Todo Poderoso… Para trás de mim, e cada vez mais distante, ficava o mundo… Um a um via desaparecer, separados por  vidro fosco e espesso, os rostos que me eram familiares e queridos, os dos meus pais, irmãos, tios, primos, mas também os dos meus amigos e colegas de escola… Um vidro cada vez mais grosso transformado em muralha instransponível...

“Também passei por esse choque, essa angústia, a da separação, quando fui para o Colégio Militar, lá longe, na capital do império… Passava da nossa casinha, da nossa quinta, da nossa querida família extensa, onde conviviam três gerações, para um casarão, uma instituição castrense dominada, aos meus olhos de puto, por seres poderosos, prepotentes, mesquinhos... Tive medo, sobrevivi às praxes, enfim, sabes como era naquele tempo... Mas nunca me passou pela cabeça essas ideias malucas de suicídio ou de orfandade... Sempre foste, afinal, um puto mimado, sobretudo pela mãe e pelo avô Francisco que te queria fazer doutor de letras!"...

Em boa verdade, eu sentia-me abandonado por todos, e até por ti, que eras o meu herói, o meu ídolo, o meu anjo da guarda!...

“Não te podia valer, por muito que o quisesse!... No início do último trimestre de 1958, eu já estava na Índia como alferes... Uma eternidade para lá chegar, seguimos o caminho de Vasco da Gama, deixámos tropa e material em Angola e em Moçambique…”

E tu, meu sacana ?!... Sempre foste um mulherengo, um escravo do gineceu,   um gajo fraco com as mulheres, como eu mais tarde vim a descobrir!...Na altura, fiquei chocado e dececionado contigo, que eras o meu ídolo, quando te apanhei, nu em pelota, no espigueiro, montado na filha de um dos nossos caseiros... 'Boa como o milho', rías-te tu, meu safado... Armado em pinga-amor, um Dom Juan minhoto, caíste mais do que uma vez como a mosca no vinagre…

"Cala-te, não sejas ingrato!... Ainda te quis levar às putas em Vigo!...Mas, tu, parolo,  quiseste ficar virgem até à ordenação de padre!... Ah!, ah!, ah!...
 Eh!, e nada de aldrabices, essa filha do caseiro era a Joaquina das Bouças, ficámos até bons amigos. Estamos quites, tratei-lhe do passaporte e paguei-lhe a passagem de comboio para França, lá casou com um mouro de Moura ou Mourão, um gajo do Sul..."

Abelhudo, era o que tu eras!... Sempre atrás do mel, sem te importares com os sarilhos de saias que arranjavas e as aflições que causavas à nossa pobre mãezinha... Ficas a saber que não posso com a gaja que te caçou há 15 anos, no carnaval do Rio de Janeiro, ainda estavas viúvo de fresco... Nem sei que idade tem, a tua  'coronela', muito mais nova do que tu!... Deve ter a idade dos teus filhos mais velhos, os do teu primeiro e trágico casamento... E que eu mal conheço, nunca ou raramente foi às últimas  festas da família. Felizmente que não tens filhos da brasileira...

“Não te admito que fales assim da minha legítima esposa, e agora viúva, face à lei de Deus e dos homens… Se me pudesse pôr de pé, ainda te dava com o pingalim na cabeça e depois um valente murro nas ventas”…


Desculpa, mano velho, não tenho o direito de me intrometer na tua vida privada e na vida da tua família, e das tuas mulheres com quem, se calhar por ciúmes, nunca simpatisei… 

Estou apenas irritado comigo próprio, zangado  com o resto do mundo... E com Deus, se queres saber! (E que  Ele me perdoe!)...Estou eu a querer falar contigo, baixinho, a sussurrar contigo, que já estás no mundo dos mortos, estou eu aqui a não querer perturbar o sono eterno dos que viajam contigo na barca de Caronte, e ouço, ao lado, as gargalhadas despudoradas da sacana da tua viúva e dos seus amigos e até dos nossos primos… Alguém, tenho impressão que um gajo do teu curso, deve estar a contar uma anedota porca do tempo do Colégio Militar ou da Academia ou do Spínola na Guiné..

Mas que falta de pudor, de compostura e sobretudo de respeito por ti, que estás em câmara ardente, recebendo a derradeira homenagem dos teus familiares, amigos e camaradas de armas!...

Acho que me vou retirar, com a tua licença... Durmo mal, vou descansar um pouco, estou zangado,  volto amanhã,  para rezar por ti e encomendar a tua alma... Vais ter com o nosso pai e a nossa mãe, e o nosso Jorge, coitado, que Deus também já lá tem... Espero amanhã estar mais calmo e pedir a Deus que me perdoe, se me excedi e se O irritei. Deus não gosta que O irritem.

Vou rezar por ti e pedir a Deus perdão pelos teus e pelos meus pecados. Nunca me hei esquecer das palavras que a nossa mãezinha nos obrigava a rezar: antes de irmos para a cama, e depois da oração ao anjo da guarda, vinha a Avé Maria que terminava com o "E na hora da nossa morte, ámen!".

Ah!, já me esquecia, a Manela, que tirou um peito há pouco tempo, não pode acompanhar-te na tua despedida da Terra da Alegria (ela lê muito o poeta Ruy Belo) mas manda-te, por mim,  o último chicoração. Ela sempre gostou de ti, mesmo com todos os teus defeitos. 

Volto depois de amanhã para Lisboa.

© Luís Graça (2019). Nova versão, revista e melhorada, nesta data.

Nota do autor: este é um texto literário, um conto, narrado em tom muito confessional e intimista. Alguns vocábulos ou expressões, mais "duros", que podem ferir a suscetibilidade do leitor, têm que ser relevados e entendidos dentro dos limites da liberdade criativa e do espírito aberto do "livro de estilo" do nosso blogue.

___________

Nota do editor:

(*) Último poste da série : 5 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24726 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (10): I want you, dead or alive!

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1243: Questões politicamente (in)correctas (7): Desaparecido em campanha, morto em combate, retido pelo IN (Luís M. Lopes / Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Geba > CART 1690 > 1967 > Cartazes de propaganda utilizados pelas NT na guerra psicológica. Os guerrilheiros do PAIGC nunca eram tratados como tal, mas sim depreciativamente: turras, bandidos, homens do mato... E quando eram feitos prisioneiros, as autoridades portugueses (o Exército, a PIDE/DGS, a administração...) não os tratavam ao abrigo da Convenção de Genebra... o que não quer dizer que, no tempo do Spínola, não tenha havido mudanças substanciais no tratamento dos combatentes do PAIGC e da população das zonas libertadas (ou sob o seu controlo)... A chamada acção psicológica no tempo do Spínola é um bom tema para discutirmos aqui no nosso blogue (1).

Material gentilmente cedido pelo Alferes miliciano Reis da CART 1690 (Geba, 1967/69).

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados.


1. Mensagem de 30 de Setembro de 2006, enviada por um não-tertuliano, o Luís Mário Lopes:

Caro Luís Graça,

Precisava de uma informação para um trabalho que estou a preparar. Se ma souber e quiser fornecer, ficar-lhe-ia muito agradecido. É o seguinte:

Na guerra colonial, quando um militar era morto em combate calculo que os colegas tentassem levar o corpo com eles para o devolverem à família. Mas se isso não se revelasse possível, como é que se fazia? O que é que se comunicava aos familiares? Que o militar tinha sido "morto em combate" ou que tinha "desaparecido em combate"? Ou seja, perante a ausência de um corpo a devolver era dada a certeza da morte? O militar era considerado legalmente morto? Tinha direito a serviço fúnebre?

Desde já muito obrigado.
Cumprimentos

Luís Mário Lopes


2. Resposta de L.G., tamb+em comdata de 30 de Setembro de 2006:

Luís Mário Lopes:

(i) Obrigado pelo teu e-mail. Eu não tenho, para já, uma resposta definitiva para te dar... A tua questão é pertinente e interessa-nos, a todos... Vou pedir aos meus amigos e camaradas de tertúlia - e são já mais de um centena - que nos ajudem, a ti e mim... Há camaradas de tropa - incluindo pessoal que fez carreira, no Exército e na Marinha - que são mais qualificados do que eu para te responder...

(ii) Por exemplo, segundo a explicação dada pelo nosso camarada A. Marques Lopes (coronel, DFA, na reforma), em termos militares, desaparecido em campanha queria dizer que não se recuperou o corpo: aplicava-se aos militares portugueses, mortos em combate, no Ultramar, mas cujos corpos não puderam ser recuperados.

Mas havia ainda outra expressão, retido pelo IN: era um eufemismo, diz o coronel Marques Lopes. Porquê ? O Governo Português não reconhecia o PAIGC (bem como o MPLA, em Angola, ou Frelimo, em Moçambique) como inimigo, face à Convenção de Genebra; logo oficialmente, não podia haver prisioneiros... A verdade é que os houve: veja-se, por exemplo, a lista das baixas da CART 1690 (Geba, 1967/69).

(iii) Há dias soube da história de um militar, de Fafe ou Familicão, feito prisioneiro pelo MPLA, no leste de Angola... Foi dado como morto e o cadáver mandado para o cemitério da terra... Depois do 25 de Abril, o homem foi libertado, chegou à terra e a primeira coisa que viu foi a namorada com outro... Houve muitos dramas destes, ao longo dos nossos quinhentos anos de Império... O Frei Luis de Sousa, de Almeida Garret, foi de certo inspirado num caso destes...

(iv) Já pedi aos Amigos & camaradas da Guiné para darem mais uma mãozinha ao Luís Mário (e também a mim)... Ese assunto merece ser discutido no blogue... Já foi aflorado, há tempos, não tenho tempo agora para localizar os posts em questão (1)...


3. Resposta a seguir do Luís Mário Lopes, de 1 de Outubro de 2006:

Luís Graça,

Muito obrigado pela tua ajuda. Fico a aguardar mais informações que consigas recolher dos teus amigos e camaradas de tertúlia.

O trabalho que estou a preparar é uma peça de teatro em que surge uma situação com semelhanças com a do tal militar de Fafe ou Famalicão de que falas. Mesmo tratando-se de uma situação lateral, gostava de tratá-la com rigor.

É a minha primeira peça de teatro. Tenho escrito argumentos para cinema mas como não sou realizador é muito complicado os projectos concretizarem-se. Até agora foi produzida uma curta metragem A6-13 (realizada por Raquel Jacinto Nunes; foi prémio Tóbis no Lisbon Village Festival e tem sido seleccionada para alguns outros festivais), e neste momento está a ser realizada por Leandro Ferreira a longa metragem Deste lado do mundo (a rodagem deve prolongar-se até Novembro).

Quando conseguires mais informações por favor comunica-mas.

Abraços gratos

4. Comentário de Luís Graça:

Luís Mário Lopes: Os meus parabéns pelos teus êxitos. Eu ajudar-te-ei, na medida do possível, tal como os meus amigos e camaradas da Guiné. Como já reparaste, nesta caserna virtual (a maior da Net, em português, sobre este tópico, a experiência da guerra colonial em África, e na Guiné em particular), tratamo-nos por tu, como camaradas que fomos (e continuamos a ser)...

5. Nova mensagem do L.M. Lopes, com data de 3 de Outubro:

Luís Graça,

Agrada-me bastante o tratamento por tu. Julgo mesmo que os problemas deste país seriam mais rapidamente resolvidos se ao abordarmos os outros não tivéssemos sempre de estar a escolher entre o tu, o você, o senhor, o doutor, o V. Exa.,... , muitas vezes mais preocupados em saber se os outros se irão melindrar com a forma como os tratamos do que com a eficácia da comunicação (não será por isso que os anglo-saxónicos são regra geral mais eficazes do que os latinos?).

Seja como for tenho também a agradecer-te isto: o teres-me recebido como um camarada desta vossa caserna. Tanto mais que mereces tu muito mais felicitações do que eu. Os meus "êxitos", como tu lhes chamas, não são nada de especial. E não penses que me estou a armar em modesto (para que não haja dúvidas em relação a isso digo-te já que duvido que haja em Portugal argumentista melhor do que eu; e não estou também a armar-me em bom; é simplesmente a minha convicção). O problema é que como eu não sou realizador os meus argumentos acabam por ser completamente alterados e desvirtuados pelos realizadores e produtores (claro que isso viola os direitos de autor, mas não há grande coisa a fazer); aconteceu assim com a tal curta-metragem A6-13 e está a acontecer agora também com a longa-metragem que está a ser rodada. Impotente perante o modo do cinema funcionar neste país, resta-me tentar outras formas (talvez o teatro, talvez os contos ou os romances).

Mas chega de desabafos.Um grande abraço e mais uma vez obrigado (já recebi um relato com uma história de um teu camarada - agora também meu - que apesar de não corresponder exactamente à questão que te pus tem algumas analogias)

Luís

PS - Ainda a propósito do desabafo: é claro que não vivo da escrita; o que me sustenta é o facto de ser professor de matemática.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 1 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P827: 'Retido pelo IN': o caso do meu amigoTala Djaló (Hugo Moura Ferreira)

(...) "Recordas-te de uma mensagem que enviei, de que te dei conhecimento, a solicitar ajudas no sentido de tentar encontrar o meu amigo Furriel Graduado Comando Tala Biu Djaló?

(...)"Pois ele faz parte de uma lista de mais de uma vintena (ele é o 3º) de militares da 1ª Companhia de Comandos Afriacanos que ficaram em Conakry, na Operação Mar Verde, que tem como titulo Retidos pelo Inimigo.

"Ao falar com quem está envolvido nesta operação de registo histórico, foi-me afirmado que, como os vários Governos, desde essa época até hoje, não podem (esta é a palavra exacta, dado que à face do Direito Internacional poder-nos-ia ainda hoje obrigar a pagar indemnizações elevadíssimas a um país estrangeiro – foi esta a explicação) assumir oficialmente o episódio. Como tal não poderemos envolver, nem sequer a diplomacia para saber de forma oficial o que aconteceu àqueles militares que todos nós sabemos foram fuzilados logo a seguir ao fiasco da Operação ou morreram durante a mesma, mas cujos corpos não atravessaram a fronteira.

(...)"Perante esta situação de Retidos pelo Inimigo, apenas me interrogo o porquê desta situação, que certamente será comum aos diversos teatros de operações, não fazer parte das listagens de baixas que tivemos com as nossas campanhas em África.

"Poderia eventualmente ser uma listagem paralela às dos mortos em combate, em que constassem os Desaparecidos e os Retidos. Gostaria de ver essa lista publicada oficial ou oficiosamente, nem que fosse no nosso Blogue-fora-nada." (...)

(2) No meu Diário de um Tuga, em 20 de Dezembro de 1969, eu escrevia, quando estive destacado em Nhabijões, o seguinte (extractos):

(...) "Recuperação psicológica e promoção sócio-económica das populações – a chamada acção psicossocial: eis agora a palavra de ordem, sob o consulado de Herr Spínola… É isso: agora faz-se psico (psícola, como dizem os nossos soldados): o major aperta, com visível repugnância, as mãos das múmias; o médico observa, enfastiado, uns tantos casos constantes do catálogo das doenças tropicais; um outro miliciano distribui cigarros Marlboro; e o cabo da CCS anda a ver se come a bajuda de mama firme

"Admitem-se abertamente, na linguagem fetichista dos spinolistas, os erros do passado da nossa administração que não terá tido na devida conta as susceptibilidades, as idiossincracias e até os direitos das populações guineenses, mas omite-se, talvez por uma questão de má-consciência, os crimes praticados pelas NT, no passado recente e no passdo mais remoto, pelos nossos métodos particulares de pacificação

(...) "Hoje, as NT sabem que podem ser responsabilizadas, disciplinar e criminalmente (por ironia, à face das leis de um país que assinou as convenções de Genebra, mas que considera os nacionalistas africanos como simples terroristas, bandidos, bandoleiros, turras…) por eventuais actos de violência física cometidos contra prisioneiros e população civil… O etnocídio dos reordenamentos [como o do Nhabijões], esse, não tem enquadramento jurídico...

"Não se trata obviamente, em meu entender, de uma tentativa de redenção do colonialismo (que, de resto, não existiria, desde 1951, ano em que as nossas colónias passaram a chamar-se províncias ultramarinas…) mas de uma táctica defensiva, como o denunciou o secretário-geral do PAIGC, referindo-se a estas novas directivas do comando-chefe e governador-geral da Guiné, António de Spínola, que visam dissociar o binómio guerrilha-população…

"Mas, fazendo deslocar a guerra do TO (teatro de operações) para a ACAP (repartição de acção psicológica), Herr Spínola admite implicitamente que a vitória já não pode ser ganha pelas armas… O que não deixa de ser irónico: retratando-se das suas anteriores posições militaristas, constata afinal o impasse a que tem nos conduzido o militaristismo e acaba por justificar, involuntariamente, a propaganda do IN" (...)

Vd. post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)

sábado, 23 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19614: A galeria dos meus heróis (25): E na hora da nossa morte, ámen! (Luís Graça)


Luís Graça, CCAÇ 12,  CIM Contuboel, julho de 1969
A galeria dos meus heróis> E na hora da nossa morte, ámen!


por Luís Graça







"O meu país é o que o mar não quer"

(Ruy Belo, 1973)




1. Porra, meu irmão, meu herói, estou no teu velório!... Nunca me preparei, em vida, para este momento, para este papel!... Estou destroçado!... Desta vez, a gaja, a “gaidja”, como tu lhe chamavas, a puta da gadanha da morte, trocou-te as voltas... Tanto a fintaste, na guerra, e foi ela agora que te pregou a rasteira em tempo de paz!... O xeque-mate, a última emboscada!...

Bem podia ser eu a estar aí esticado que nem um carapau seco, de botas altas,  já gastas, cambadas,  engraxadas para a ocasião!... A cerimónia fúnebre, a tua última parada, a tua última formatura!... As mãos em oração, elevadas ao céu qual estátua jacente!... 


Os gatos pingados sabem do seu ofício. Vestiram-te a farda nº 1, já muito puída do uso e dos anos, com os amarelos dos galões de coronel desbotados... A cruz de guerra ao peito e as tuas demais condecorações de uma vida dedicada à tropa. E até a espada, não se esqueceram da tua espada de defensor da Nação.


Tu, que noutra encarnação só poderias ter sido um cavaleiro andante, um condestável, um bravo e fero guerreiro do Império!... (Desculpa a ironia, bem sabes que tu e eu nem sempre líamos as coisas pela mesma cartilha...)

Porra, meu irmão, meu amigo, meu companheiro, meu camarada... Chegou a tua vez, como chegará a minha.  Cedo de mais, pelo menos a avaliar pelas estatísticas da morte em Portugal. Ou talvez não, matematicamente falando, se calhar já tinha chegado a tua hora, o teu dia, o teu mês, o teu ano. Não importa, para quem te amava, a morte bateu cedo demais à tua porta!

E, no entanto, era uma morte anunciada, diz a tua viúva alegre, encolhendo os ombros, conformada, e limpando uma lágrima furtiva, quiçá hipócrita.(Mas quem sou eu para julgá-la?!) 

O teu médico oncologista, esse, não te escondeu (nem podia esconder) a verdade... “nua e crua”!... Porque um homem tem o direito de despedir-se da vida e de morrer em paz com a vida, com os outros e com Deus, sentenciou o capelão militar quando já estavas nos cuidados paliativos, no terminal da morte... 

Que atroz ironia, que insulto, como se a gente soubesse como isso se faz!... Isso, de um gajo despedir-se da vida. Como se nos tivessem ensinado, na família, na escola, na catequese, na igreja, no seminário, na Academia Militar, na tropa, na guerra…, a arte de bem morrer!... Ensinaram-te, isso sim, a andar a cavalo em toda a sela...

Também lá andei, na guerra,  mas nunca pensei na minha própria morte, mesmo vendo a morte, ali tão pertinho, a meu lado. Aos vinte anos, em qualquer guerra, não há combatente que não tenha desenvolvido um forte sentimento de imortalidade... Terrível ilusão!...É por isso que há heróis!... E soldados desconhecidos, mortos aos milhares, nas trincheiras das Grandes Guerras...


2. Imagina, pediram-me para te fazer o teu elogio fúnebre, amanhã, na igreja, na missa de corpo presente, mas eu não sei se serei capaz de dizer duas coisas a teu respeito, que valha a pena dizer, em público, e que não sejam meras palavras de circunstância... Invade-me a angústia, o pânico... Não quero dececionar-te, muitos menos aos teus filhos e netos, aos teus amigos, aos teus camaradas, que eu não conheço ou conheço mal... Sobretudo não me peças para repetir essa grandessíssima mentira, com que te formataram, a de que “é doce morrer pela Pátria!”… A tua Pátria, a minha Pátria, a nossa Pátria ? Qual delas, afinal ? Fico confuso...

E depois, meu mano, ao fim e ao cabo, o que é que eu sei de ti ?... Não sei se fostes um bom amante, um bom homem, um bom pai, um bom cidadão ou até mesmo um bom militar. Sei que fostes um bom irmão, um bom amigo. E que até nem eras mau cavaleiro, ainda ganhaste uns concursos de equitação quando eras novo e não havia guerra... E talvez isso me baste, ou deveria bastar-me: foste um homem bom. É o mínimo que eu poderia dizer de ti. É o mínimo que se pode dizer de qualquer gajo minimamente decente.


3. Porra, poderia estar eu no teu lugar. E no meu íntimo regozijo-me por estar vivo... Ou a
inda vivo, aos setenta!... Podia lá ter ficado, na Guiné, morto por uma roquetada ou uma mina. Pergunto-me: quantos anos ainda me restam ?... 

Quando olho para ti, ou para o que ainda sobra de ti, aí deitado na urna aberta, no teu esquife, arrepio-me… O raio da morte não tem pudor… E exala um cheiro tão forte, a cabra, que afugenta os vivos... Daí as flores, as coroas de flores, e as ervas aromáticas com que a gente a tenta esconjurar, afugentar, enganar, porventura engalanar... 

Os guineenses, animistas, no meu tempo, faziam o "tchoro", comiam, bebiam, dançavam, choravam e homenageavam o morto... A nossa Igreja, na morte,  apodera-se de nós, do nosso cadáver, e incita-nos, aos vivos,  ao arrependimento, ao nojo, ao jejum e à abstinência, à secura de sentimentos e emoções... Que este é um vale de lágrimas, que a vida é uma passagem,  que estamos em trânsito, mas que no fim teremos, os justos, a eterna recompensa da glória de Deus, de nos podermos sentar à sua direita... Repara: nunca à sua esquerda...

É verdade, és o “mano velho”, o “morgado”, e eu sou o “caçula” da família, como tu me chamavas, quando vieste de Angola, lembras-te ?… Uma década nos separa, mas podíamos ser irmãos gémeos, sempre o disseste ou o desejaste…

Porra, não morreste de pé, de espada em riste, a defender o "quadrado", como os nossos gloriosos antepassados, nas ditas guerras de pacificação do Império, agarrados à bandeira das quinas, branca e azul, no caso do tio-bisavô António, em Chaimite, em Moçambique, e já a verde-rubra, no caso tio-avô José, no Cunene, em Angola…

Claro que tinhas de seguir a carreira das armas, estava inscrito no teu ADN, numa família de nobres tradições como a nossa, mas arruinada, que deu alguns bravos soldados à Pátria… Desde 1640, habituámo-nos a viver "do soldo e do saque", como ironizava o nosso avô materno, Francisco, professor primário, antimilitarista, republicano dos quatro costados,  que casou, contrariado, a filha numa família monárquica (e muito pouco liberal)… Mas o amor falou bem mais alto, o que era raríssimo naquele tempo, em que os casamentos eram de conveniência... A nossa mãe foi uma santa, uma heroína... Enfim, não dávamos apenas soldados, a verdade seja dita: demos também padres, missionários, administradores, mestres-escola e, seguramente, freiras e frades, pelo menos até 1834…

4. Porra, mano, não sei se foste um bom cristão. Não pesei o teu saco de pecados, nem sei se os pecados têm peso… Mataste ? Nunca falámos disso, mas talvez tenhas matado na guerra, onde andámos os dois, cada um para seu lado, e com motivações bem diferentes… De resto, não se ganha uma cruz de guerra sem matar um ou mais inimigos, uma boa dúzia deles, no mínimo…

Torturaste ? Roubaste ? Desejaste a mulher do próximo ? Cometeste adultério ? Evocaste o santo nome de Deus em vão ? Adoraste o bezerro de ouro ?... Não sou juiz, muito menos o do Juizo Final… Mas não vou pôr as mãos no fogo por ti, no que diz respeito aos pecados mortais... E já nem sequer me lembro de quantos eram, os que nos ensinaram na catequese. Eu, dantes, sabia isso tudo na ponta da língua, a começar pelos dez mandamentos da lei de Deus... 

Porra, mano querido, olho para o teu cadáver, ponho a mão na tua testa, gelada como o granito da nossa casa, e causas-me horror e dó: o que fazem a um gajo depois de morto!... Mas, que importa?!, se amanhã, ao meio-dia, vais parar ao crematório. E tudo acaba lá, a mais de 900 graus centígrados. Ou talvez não, para nós que fomos ou ainda somos cristãos... Os gatos pingados, esses,  entregam um pote com as tuas cinzas à  viúva, tiram as luvas das mãos, tomam um banho, voltam a vestir o fato e a gravata, e metem-se no carro a caminho do aconchego do lar, doce lar… 


E a tua gaja, a viúva alegre, essa, ainda vai gozar metade da tua pensão de reforma de herói nacional, com um marmanjo qualquer que ela há-de conhecer no Facebook ou no ginásio onde faz Pilates e olhinhos sofridos de Barbie, a pestanejar de rimel, aos putos de vinte anos, cheios de testosterona…

5. Mas o que estás para aí a rosnar entre dentes ? Oiço já mal, mas mesmo assim sou capaz de reconstituir o teu pensamento, a tua voz, cavernosa, que vem, senão das profundezas do Inferno, pelo menos do outro lado do rio  que acabas de atravessar, na  barca de Caronte…

“Meu sacana!, desta vez passaste-me a perna!... Não pediste a bênção ao mano velho, como te ensinaram os nossos pais. Foste um cobardolas de merda, podias ter sido solidário comigo... Podíamos ter feito a nossa viagem juntos, sempre era menos penosa. Iríamos empoleirados, divertidos, na minha Chaimite, a cantar as canções da nossa alegre infância que eu te ensinei... Sempre tínhamos as férias grandes para estarmos juntos, na nossa quinta, apesar da diferença de idades!... Essa seria a tua derradeira (e verdadeira) prova de fraternidade, de amor e de amizade!... Mas não tenho esse direito, o de te pedir o supremo sacrifício da vida, nem que fôssemos irmãos gémeos verdadeiros!... Espero que ainda tenhas, ao menos, uma longa vida para te poderes ir lembrando, de quando em vez,  com saudade, deste teu pobre amigo, mano e mentor”…


E como vais querer ser lembrado ? Como um herói?!

“Sim, justamente como um herói. Lembras-te como tu me dizias ?!... Sempre tiveste a mania de recorrer à mitologia grega, com referências eruditas, chatas p'ra burro, para um gajo como eu que era de cavalaria, e que nunca gostei de estudar: ‘Meu herói, mais do que um homem, menos do que um deus’... Sempre me chamaste 'meu herói’... E eu até gostava, confesso, mas sem nunca te levar a sério. Quero, por isso, que te lembres de mim como um herói. Sempre gostei da tua definição de herói, mais do que homem, menos do que deus...”

Seja, então, feita a tua última vontade, grande cavaleiro!

“Podia ter morrido pela Pátria!?... Com Honra e Glória!... Mas, não, acabei por ser um burocrata da tropa, no fim da carreira, num daqueles serviços do Exército que ninguém quer chefiar"...

Deixa-te de tretas, tivemos muitas discussões em vida, sobre isso. E sobre o teu militarismo. Sempre foste um bocado militarista. Que tu tenhas recebido a cruz de guerra, tudo bem. E foi bem merecida. Felizmente que não foi a título póstumo... Estou a ser egoísta, desculpa lá, queria eu dizer: não fiquei, assim, privado de conviver contigo, mais estes quarenta e tal anos...


6. “É doce morrer pela Pátria”: ensinaram-me na Academia Militar, uma escola de valores e virtudes que tu nunca tiveste o privilégio de conhecer… E, se bem me lembro, onde nunca me foste ver, a não ser no juramento de bandeira, com os pais. Sem esquecer o Colégio Militar, de que guardo as melhores recordações e onde fiz amigos para a vida. Chamas a isto militarismo ?”

Não, aí já não te acompanho, nem nunca te acompanhei. Bem sabes que nunca tive jeito para a tropa, como tu e os nossos antepassados. E fiquei com fobia aos internatos. Fiz o que tinha a fazer, como português e cidadão, que foi o serviço militar obrigatório. Honrei a palavra dada ao nosso pai... Não fugi. E fui "infante", tropa-macaca, como a gente dizia na Guiné... Já tu tinhas dado uma volta pelo Índico, em 1958, quando eu entrei para o Seminário… E mal sabias tu que a Pátria te voltaria a chamar, desta vez, para Angola, três ou quatro anos depois... Sempre receei ter que ir a Lisboa, com os pais, ao 10 de junho, para receber uma qualquer cruz de guerra tua, a título póstumo... Tinha esses pesadelos...

“A nossa querida e saudosa mãe queria que eu fosse para padre, contrariando o avô que era anticlerical, como sabes... E o nosso pai, esse, queria que eu seguisse a tradição da família… Acabei por ir para o Colégio Militar e entrar na Academia, graças aos pergaminhos da nossa casa e à nobreza da nossa linhagem… Mas sei que o nosso pai, que Deus lá tem, teve de fazer das tripas coração. Vivíamos acima das nossas possibilidades, com as míseras rendas dos caseiros e os roubos do feitor... Mais uma vez, valeu-nos a cunha do nosso primo general, que foi sempre um grande e leal amigo da família...” 


O seminário sempre era mais barato. Ir para Lisboa era um pesado encargo para a família. E a nossa mãe, com a sua intuição, o seu sexto sentido, parece que estava a adivinhar que os tempos que aí vinham, não eram propriamente cor de rosa...

Sobrou para mim, que acabei por ir para Montariol, em Braga... Já que tinha um filho oficial do Exército, um garboso oficial e cavalheiro, faltava-lhe, à nossa mãe, um missionário, barbudo, de sotaina branca, para dilatar a fé e o império. Mas eu cedo percebi que os votos de pobreza, obediência e castidade eram um fardo demasiado pesado para um jovem que não tinha cometido nenhum crime lesa-família ou lesa-pátria,  só queria afinal viver, e viver a vida do seu tempo… E que tempos, esses, os dos anos 60, meu irmão!

Fui aguentando, à custa de muitos sacrifícios pessoais e muito cinismo à mistura, só para não dar um desgosto à nossa mãezinha... Quando ela morreu, precocemente, ainda tão jovem, tão cedo e tão linda, eu estava no 10º ano, no Seminário da Luz, em terra de mouros... Há muito que tinha perdido a vocação ou percebido que não tinha vocação para missionário franciscano desterrado para Angola, Guiné ou Moçambique... 


Voltei ao Norte. Mal tive tempo de respirar o ar livre da noite do Porto (que na altura era uma chungaria), chamaram-me para a tropa e, de seguida, meteram-me num barco, misto de carga e passageiros, direitinho à Guiné.

“Estava eu em Moçambique, fui lá que me cobri de honra e glória , e ganhei esta cruz de guerra que ostento, com orgulho, ao peito”…

Aos 32 anos!... E eu com 22!… Em boa verdade, não tive infância, nem adolescência nem juventude... Tal como tu… Envelheci, pelo menos uma década, no seminário, na tropa, na guerra... 


Quando voltei da Guiné, fui à procura do tempo perdido... Andei na noite, na má vida, com más companhias, desperdiçando o resto dos meus verdes anos, dando cabo do fígado e arriscando a saúde... Felizmente, ainda não havia, nesse tempo, o VIH/Sida... Ou estava em incubação... 

À beira do abismo, na 23ª hora, conheci a Manela, que me levou, de novo,  para o caminho do bem... Estamos casados há 40 anos. Foi o segundo anjo que conheci na vida, depois da enfermeira paraquedista que me levou para o hospital militar de Bissau, e me salvou do inferno de...


7. Ai!, porra, já não me lembro do raio do sítio onde apanhei uma mina anticarro que matou uma meia dúzia dos nossos… Bula ou Buba ou Binta ou coisa parecida ?... Peço-te desculpa pela branca...  Como não me lembro também do nome desse anjo que veio do céu, para me salvar. Imperdoável!... A minha memória já não é o que era... Ainda gostava de a conhecer, a essa enfermeira paraquedista,  se por acaso ainda for viva, como espero... 

Acabou-se a guerra, para mim, nesse dia. E lá percorri as estações do calvário: Hospital Militar, em Bissau, Hospital Militar Principal, na Estrela, depois o Centro de Reabilitação de Alcoitão... E ainda tive que ir à Alemanha, ao Hospital Militar de Hamburgo... Muitos meses em tratamento e recuperação, uma prótese no calcanhar, enfim, foram as medalhas que eu trouxe da Guiné... E tenho uma pensão de merda como Deficiente das Forças Armadas.

Nunca ninguém me foi visitar, nem sequer as senhoras do Movimento Nacional Feminino... E muito menos o meu pai, o que eu entendo e até perdoo: Vila Nova de Cerveira ficava longe da capital e o pai, não sei se te lembras, já estava doente... A nossa mãe, essa, já tinha partido para a beira de Deus Pai.  

“Tiveste azar, irmãozinho… Os manos do meio, esses, lá se foram desenrascando, pior ou melhor. O António foi 'a salto' para França, para grande desgosto dos pais, era refratário e tornou-se um comuna de merda… O Jorge, depois do magistério primário, livrou-se da tropa, com um grande cunha de um médico militar do Porto; a mana essa, lá casou, tarde, com um chefe de finanças de Braga”…

Sabes ?!, nunca te contei isto!... Aos dez anos quis ficar órfão e depois morrer, quando fui para o Seminário de Montariol. É monstruoso, tenho que o admitir: desejei a morte dos nossos pais!... Eles, coitados, já não estão cá, e espero que não me oiçam... Mas, se me estão a ouvir, que me perdoem!... Agora, eu não sei é se Deus me vai perdoar. Nunca contei o segredo, nem sequer ao meu confessor nem ao meu diretor espiritual... Estou-te a contá-lo, pela primeira vez, e sei que me vais entender e perdoar....


"Achas que é normal um puto querer morrer na flor da idade ? Ou sentir um secreto prazer em imaginar-se órfão de pai e mãe ?... Eras um monstrozinho!"... 

Sim, quis matá-los!... Sentia-me só, abandonado, terrivelmente só, perante Deus Todo Poderoso… Para trás de mim, e cada vez mais distante, ficava o mundo… Um a um via desaparecer, por detrás de um vidro espesso, os rostos que me eram familiares e queridos, os dos meus pais, irmãos, tios, primos, mas também os dos meus amigos e colegas de escola…

“Também passei por esse choque, essa angústia, a da separação, quando fui para o Colégio Militar, lá longe, na capital do império… Passava da nossa casinha, da nossa quinta, da nossa querida família extensa, onde conviviam três gerações, para um casarão, uma instituição castrense dominada por seres poderosos, prepotentes... Tive medo, sobrevivi às praxes, enfim, sabes como era naquele tempo... Mas nunca me passou pela cabeça essas ideias malucas de suicídio ou de orfandade... Sempre foste, afinal,  um puto mimado, sobretudo pela mãe e pelo avô Francisco que te queria fazer doutor de letras!"...


Em boa verdade, eu sentia-me abandonado por todos, e até por ti, que eras o meu herói, o meu ídolo, o meu anjo da guarda!...


“Não te podia valer, por muito que o quisesse!... No início do último trimestre de 1958, eu já estava na Índia como alferes... Uma eternidade para lá chegar, seguimos o caminho de Vasco da Gama, deixámos tropa e material em Angola e em Moçambique…”

E tu, meu sacana ?!... Sempre foste um mulherengo, um gajo fraco com as mulheres, como eu mais tarde vim a descobrir!...Na altura, fiquei chocado e dececionado contigo, que eras o meu ídolo, quando te apanhei, nu em pelota, no espigueiro, montado na filha de um dos nossos caseiros... 'Boa como o milho', rías-te tu, meu safado... Armado em pinga-amor, um rabo de saias, caíste mais do que uma vez como a mosca no vinagre… 


"Eh!, nada de aldrabices, essa era a Joaquina das Bouças, ficámos até bons amigos. Estamos quites, tratei-lhe do passaporte e paguei-lhe a passagem de comboio para França, lá casou com um mouro, um gajo do Sul..." 

Abelhudo, era o que tu eras!... Sempre atrás do mel, sem te importares com os sarilhos de saias que arranjavas e as aflições   que causavas à nossa pobre mãezinha... Ficas a saber que não posso com a gaja que te caçou há 15 anos, no carnaval do Rio de Janeiro... Nem sei que idade tem, a 'coronela', muito mais nova do que tu!... Deve ter a idade dos teus filhos mais velhos, os do teu primeiro e trágico casamento, e que eu mal conheço. Felizmente que não tens filhos da brasileira...

“Não te admito que fales assim da minha legítima esposa, e agora viúva, face à lei de Deus e dos homens… Se me pudesse pôr de pé, ainda te dava com o pingalim”…


Desculpa, mano velho, não tenho o direito de me intrometer na tua vida e na vida da tua família… Estou apenas irritado comigo próprio, zangado com com o resto do mundo... Estou eu a querer falar contigo, baixinho, a sussurrar contigo, que já estás no mundo dos mortos, estou eu aqui a não querer perturbar o sono eterno dos que viajam contigo na barca de Caronte, e ouço, ao lado, as gargalhadas despudoradas da tua viúva e dos seus amigos… Alguém, tenho impressão que um gajo do teu curso, deve estar a contar uma anedota porca do tempo do Colégio Militar ou da Academia...

Mas que falta de pudor e de respeito por ti, que estás em câmara ardente,  recebendo a derradeira homenagem dos teus familiares, amigos e camaradas de armas!...


Acho que me vou retirar, com a tua licença, durmo mal, vou descansar um pouco, volto amanhã com a Manela, para rezarmos por ti e encomendarmos a tua alma... Vais ter com o nosso pai e a nossa mãe, e o nosso Jorge, coitado,  que Deus também já lá tem... 


Vou rezar por ti e pedir a Deus perdão pelos teus e pelos meus pecados. Nunca me hei esquecer das palavras que a nossa mãezinha nos obrigava a rezar:  antes de ir para a cama, e da oração ao anjo da guarda, vinha a Avé Maria que terminava com o "Agora e  na hora da nossa morte, ámen!".
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de março de  2019 > Guiné 61/74 - P19564: A Galeria dos Meus Heróis (24): Cirurgião no Hospital Militar de Bissau - II (e última) Parte (Luís Graça)