quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

Guinbé 63/74 - P421: Lisboa-Bissau, de jipe (Abril, 2005) (Marques Lopes)

1. Texto do A. Marques Lopes enviado a toda a tertúlia:


Camaradas de tertúlia

Estive há dois dias a combinar com o Allen (o Xico de Empada) a nossa ida à Guiné. Decidimos partir de Portugal no dia 6 de Abril próximo, o Allen, eu, o Hugo (filho do Albano Costa) e um camarada de nome Armindo. Vamos de jipe via Marrocos, Sara Ocidental, Mauritânia e Senegal, com objectivo de estar em Bissau a 14 de Abril, para nos juntarmos a outros camaradas, conhecidos do Allen, que chegarão de avião nessa data. O regresso será a 28 de Abril, de avião (o Allen deixa lá o jipe para futuras idas).

Sobretudo para saber da hipótese de se poder entrar por Farim, dei a conhecer ao Indami este nosso projecto. A resposta dele vai já em baixo. E como vêem, como futuro economista, até dá ideias para investimento na ajuda à população de Farim.
A seguir, o Indami (1) renovou o apelo que já tinha feito:

«Olá Pessoal !... O meu pai Agostinho Indami,ex-Governador de Região de Oio(2001-2004)está procurando contato de um grande amigo dele, ex-combatente português, Fruel [Furriel?] Santos, Companhia 2584, Alfer Lorreiro [Alferes Loureiro ?], em Có-Bula, região de Cacheu. Esse Senhor chamava o meu pai de Agostinho Gomes. Quem saber alguma coisa sobre esse senhor, favor entrar em contato comigo. Agradeço a todos. Um grande abraço do vosso amigo de sempre, Anízio Lona Indami".

Já tenho os meus trajectos delineados, e os outros que vão também têm, claro. Mas vou também fazer o levantamento dos tertulianos que lá trabalham e outros conhecidos meus (o Allen também conhece muitos), pois não podemos ir lá sem estar com eles. Mas, para isso, peço a especial ajuda do Luís Graça que tem bem presente todos os contactos e locais onde esses guineenses estão.
Abraços. A. Marques Lopes

2. Mensagem enviada ao Indami (10 de Janeiro de 2006):

Caríssimo Indami:

Já está programada a minha viagem à Guiné-Bissau. (...) Uma ida a Farim está no programa, claro! Já agora diz-me o seguinte: do Senegal para Farim há alguma estrada? Estive a ver num mapa e pareceu-me que há de Koldá até Farim. Será verdade? É que, se houver tempo antes da chegada do avião dos outros camaradas, podemos entrar logo por Farim. Até porque quero ir a seguir a Bigene e a Barro.

De qualquer modo, se não poder ser logo no princípio será num dos quinze dias seguintes, durante os quais tenho de ir a outros sítios, por exemplo Samba Culo (fica perto de Farim e Fajonquito) e Sinchã Jobel (fica perto de Banjara, Sare Ganá, Sare Banda, Sinchã Sutu e Sare Madina). Conheces? E haverá caminhos transitáveis para lá? É que nos tempos antigos em que por lá passei não havia...

Foram boas as tuas férias? As tuas aulas já devem ter começado e espero que continue tudo bem. Passaste nos exames? Espero que sim e que daqui a uns tempos (quanto tempo?...) eu volte à Guiné-Bissau e nos encontremos lá.

Um abraço amigo do
A. Marques Lopes

3. Resposta do Anízio Indami (11 de Janeiro de 2006):

Olá, meu caro amigo Marques:

Você não imagina a minha felicidade nesse momento.

Claro que tem muitas entradas do Senegal para Farim,mais podes ir a de Kolda,eu acho que é mais tranquilo,e não tem problemas dos rebeldes de Cassamansa que de vez em quando criam instabilidade na zona fronteiriça.

E aconselho logo, ao chegarem em Farim, podem perguntar a qualquer pessoa da casa do ex-Governador Agostinho Indami(meu pai),lógico,todo mundo lhe conhece.

Marques, todas essas tabancas que o senhor citou, conheço pouco, mas pelo nome conheço todas. Mas não te preocupas, o meu pai conhece todas essas tabancas de ponta a ponta, e na última vez que falei com ele, manifestou a disponibilidade total para ir com vocês a todos lugares.

Aliás,gostaria de aproveitar essa oportunidade de pedir a você e a toda a Equipe dos ex-combatentes e demais amigos que estarão na Guiné,para fazermos uma sociedade e investir em alguma coisa em Farim. Por exemplo: Uma fábrica de gelo, é o que o povo daquela cidade ou região precisa muito, principalmente na época do jenjum [o Ramadão]. Eu acho esse negocio,além de ajudar a população,tem baixo risco de investimento e vai nos dar um rápido retorno,e assim gerar o lucro.

E eu, como sou estudante, não tenho capital para entrar na sociedade,em troca posso garantir a vocês um espaço de terra(terreno) onde podemos construir a referida fábrica de gelo, isso eu garanto 100%, e me responsabilizo de tudo que diz respeito a movimentação dos documentos, vou pedir um apoio total do meu pai nesse sentido.

Tambem tenho como segunda opção a recuperação do Clube Desportivo de Farim. Seria um grande espaço de lazer, pois um europeu(Pinheiro) já tinha investido nesse clube e ganhou muito dinheiro,saiu de lá por causa do conflito político-militar do 7 de Junho. E depois que ele saiu o clube ficou totalmente abandonado. Situa-se em frente do porto, logo na travessia. E podem efectuar uma visita ao referido Clube junto com o meu pai. É só questão de entrar em contato com a direção de clube.

Caro amigo,esse é um assunto muito sério e é um dos meus grandes sonhos,e seria ótimo se for realizado.

Agradeço desde já a sua/vossa compreensão e espero uma resposta positiva por vossa parte o mais breve possível.

Até mais, um grande abraço do amigo
Anizio
_____

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de:

5 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXX: Anízio, 22 anos, estudante, procura notícias do antigamente sobre a sua terra, Farim

7 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXVIII: Crianças de Farim ou como o mundo é pequeno (1)

Guiné 63/74 - P420: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (6): Mampatá, Setembro-Outubro de 1968

Marrocos > A caminho da Guiné-Bissau > Abril de 2005 >

O (im)possível regresso ao passado... O José Teixeira regressa aos sítios por onde andou em 1968/70, no sul da Guiné... Desta vez a missão é pacífica: o jipe vai carregado de...livros escolares

© José Teixeira (2005)


Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):


Mampatá, 11 de Setembro de 1968

Desta vez foi Chamarra a escolhida para fazer a festa. Cerca das 20 horas o bandido abriu fogo com vários canhões e lança-roquetes. Durante uns minutos ouvimos ao longe o ruído característico do rebentamento de granadas. O pelotão da minha Companhia que aí se encontra destacado, comandado pelo Alferes Barbosa reagiu bem, pondo-os em debandada. Mesmo assim há a lamentar um soldado ferido e dois mortos civis, uma mulher e uma criança... Tantas vítimas inocentes nesta guerra que não quero fazer!


Mampatá, 15 de Setembro de 1968

Visitei Chamarra. O último ataque foi tremendo. Aproximaram-se do arame farpado para pregar aos meus colegas uma terrível partida, apanhá-los à mão. Felizmente os meus colegas reagiram em força e não permitiram.

Chamarra é o posto mais avançado de ligação com Gandembel, por Ponte Balana, o único caminho que permite chegar a este posto avançado, pois ninguém de bom senso se arrisca a fazer a ligação pelo corredor da morte – Guileje, Mejo e Gandamael Porto. Esse só para o Inimigo e para os Páras ou Comandos, de vez em quando e com muito cuidado, fazer os seus raides de aventura.

Consta que Mampatá vai ser atacado pelo mesmo sistema.


Mampatá, 16 de Setembro de 1968

Ontem Chamarra foi mais uma vez atacado. Desta vez não houve azar. Em Guileje também houve festa dura. A companhia de Páras tem trabalhado bem, no patrulhamento da Zona, mais usada pelos terroristas para introduzirem homens e equipamento, mas mesmo assim....

Guiné-Bissau > 2005 > Que diefrenças entre a Guiné de 168/70 e a de hoje ?

© José Teixeira (2005)

Hoje na estrada de Chamarra-Mampatá ia-se dando mais uma catástrofe. O IN. estava a montar minas A/C na estrada quando uma patrulha de milícias apareceu e abriu fogo pondo o IN em fuga deixando duas minas de 15 Kg. Todos os dias passa nesta estrada uma viatura com 10 homens a caminho de Aldeia Formosa.


Mampatá, 17 de Setembro de 1968

Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....

O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN.

Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo.


Mampatá, 23 de Setembro de 1968

Tudo está calmo, há dias que o IN não ataca. Todos estamos convencidos que o próximo objectivo é Mampatá e com o seu novo sistema de ataque nos vai dar que fazer.

Uma das coisas que me agrada fazer, embora perigosa, é a ronda nocturna pelos postos de sentinela. No princípio detestava, mas agora dá-me prazer. Normalmente passo um quarto de hora em cada posto, a conversar baixinho com o camarada que está de sentinela. Assim, ajudo-o a passar o tempo e a manter-se atento. Esta missão nocturna é distribuída pelo Alferes, pelos Furriéis e por mim.

Ontem aconteceu-me uma cena que dá para rir. Como é hábito, avisei com um pequeno assobio (a senha) o primeiro sentinela que me estava a aproximar. Sentei-me ao lado dele no chão e ficamos a conversar. Não notei que me tinha sentado em cima de um carreiro de formiga preta e quando me levantei senti o corpo todo a ser ferrado. Que dores horríveis pelo corpo todo !

Tirei a roupa toda, arranquei as formigas como pude, coloquei a roupa na ponta da espingarda e continuei a ronda completamente nu. Estava no primeiro posto, faltavam cinco. Os meus camaradas ao verem-me chegar ao posto com o fato que a minha mãe me deu ao nascer gozaram em cheio e durante uns dias não se falou noutra coisa.

A formiga preta faz carreiros de quilómetros à procura das suas presas. Na família desta formiga existem várias funções e tamanhos físicos. Assim as batedeiras são grandes e gordas. Normalmente andam fora da fila a procurar as presas e são as mais agressivas. A fila é composta por duas alas laterais e duas alas interiores, sendo as laterais como que soldados, mais fortes que as que vão no interior, as escravas que transportam o alimento para um esconderijo debaixo da terra

Quando as batedeiras localizam a presa morta ou viva, esta por qualquer razão em estado imobilizado, automaticamente a fila abre-se em duas e começa o envolvimento e a tomada de assalto sem que a vítima dê por nada. Quando esta se mexer sentirá milhares de ferradelas. Os cornos das formigas ficam de tal maneira cravados, que muitos ficam agarrados ao corpo, quando a vítima se tenta libertar. Foi isso que me aconteceu. Dizem que gostam muito de atacar os ‘tomates’ e eu que o diga !

Disse-me a Aliu Djaló que a giboia depois de asfixiar a presa explora a zona num raio de 20 a 30 metros e se sentir que há formigas, abandona o alimento. Acontece que como fica vários dias a deglutir o animal que caçou, se as formigas forem atraídas pelo sangue da vítima, ou a descobrirem cobrem-na e no momento em que com o estômago cheio tenta abandonar o local, as formigas atacam e ficam com alimentação para vários dias.

São milhões de formigas. Eu vi uma cobra apanhada pela formiga, melhor, vi uma mancha negra do que fora uma cobra.



Mampatá, 25 de Setembro de 1968

Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal.

Um novo ser que ri e chora. Um novo ser que é feliz porque não sente, não houve o troar das armas, não foge para o abrigo aterrorizado, não se deita no chão para fugir às balas assassinas e traiçoeiras. Vai com os outros e se morrer ?... não conhece, não sente, não ama...

Guiné-Bissau > 2005 > A actual estrada (asfaltada) de Quebo para Mampatá Forea.

© José Teixeira (2005)

Ontem fui chamado para assistir a uma mulher que estava a ter uma criança e se sentia muito mal. Assisti-a o melhor que pude. Mãe e filho estão bem.

Na minha ronda de ontem apanhei um susto que no fim deu para rir às gargalhadas.
Estava na ponta norte da aldeia, pelas duas da madrugada, quando avisto um clarão na ponta sul. Parecia uma tabanca a arder. Por vezes diminuía de intensidade e não se ouvia qualquer indício de movimento de pessoas. Pensei: é o inimigo que atacou o posto do morteiro, num golpe de mão e apanhou os meus colegas. Vou mandar uma rajada para acordar o pessoal. Depois decidi ir ver o que se passava atravessando a aldeia com todo o cuidado por entre as tabancas e fui dar com os meus colegas todos nus a tirar palha das tabancas, incendiá-la e queimar milhares de formigas que aproveitando-se do seu sono os visitaram e quando um deles se mexeu foi uma autêntica catástrofe, ao sentir dezenas de corninhos a picarem-lhe o corpo todo. O vizinho acordou com o grito que o desgraçado deu e sentiu o mesmo. O chão era um tapete negro, pelo que quando puseram os pés no chão tiveram outra surpresa.. Então começou a luta entre o soldado Português e a formiga preta da Guiné. Houve milhares de mortes por parte do inimigo, um grande susto que eu apanhei e por pouco não pus a Tabanca toda em alvoroço às duas da manhã.


Mampatá, 27 de Setembro de 1968

Há alguns dias que a guerra parece ter parado. As povoações deixaram de ser atacadas. As colunas fazem-se sem incidentes, só as minas continuam. Desta vez foi um alferes em Gandembel que pisou uma bailarina que o cortou pela cintura. Para ele como para tantos outros acabou a guerra...

Os dias sucedem-se no seu marchar monótono, uns mais fáceis de passar, outros mais difíceis, mas a realidade é que eles vão passando e com eles vai o sofrimento de quem se vê longe dos seus e anseia que chegue o último dia, o dia em que de novo se aproxima dos seus entes queridos, os abraça e se fica com eles, jurando a si mesmo, nunca mais se afastar.

Porquê este desejo enorme que o tempo passe se com o seu andar nos torna mais velhos ? A felicidade só é possível onde haja amor, onde haja paz. Num ambiente de guerra onde somos uns estranhos, numa terra que não é nossa e que desconhecemos, onde nos consideram e respeitam porque precisam de nós, porque lhes tratamos as feridas e matamos a fome e sobretudo porque temos a força das armas, neste ambiente de desamor, onde muitas vezes impera o ódio e o terror, não pode haver felicidade e o que é a vida sem uma réstia de felicidade ?

Que vale a vida se não vemos o "outro" ou passamos por ele e porque as circunstâncias o exige, fingimos não o ver ?... Vivemos na esperança que o tempo, uns escassos meses da nossa vida, passe depressa para uma liberdade duradoira e uma paz excelente...

Apanhei mais um susto. Na Guiné há noites que mais parecem dia, tal é a luz do luar. Quantas cartas eu escrevi de noite enquanto fazia horas para iniciar a minha ronda. Noutras ocasiões a escuridão é tão profunda que não se vê um palmo à frente do nariz. Numa dessas noites ia eu de um posto de sentinela para outro, às apalpadelas e por vezes contra as palhotas, quando sinto que bati em algo que se mexeu. Tive um pressentimento e gritei:
- Tem calma pessoal fricano, é fermero (enfermeiro) qui na vai !- Ouço a voz do Suleimane (1):
- Tu na tem sorte, djubi (estás com sorte, olha). - Mostrou-me a catana que tinha na mão. Disse-lhe eu:
- Sorte na tem tu!- e mostro-lhe o dedo no gatilho da G - 3, pronta a disparar. Demos um abraço e ficamo-nos a rir. Tinha vindo fora da tabanca urinar, mas como estava muito escuro houve um choque que podia dar mau resultado.

Mampatá, 21 de Outubro de 1968

Recomeçaram os ataques a Gandembel. Há algum tempo que paira no ar uma atmosfera tensa.. A dúvida e a preocupação vê-se em todos os rostos. Podiam começar em qualquer lugar.

Ontem, em Bacardado, pequeno povoação que só tem um pequeno grupo de milícias com mausers, a dois quilómetros de Mampatá, junto à estrada onde passamos todos os dias. O terrorista apareceu de noite e queimou toda a povoação e feriu alguns nativos. A pouca população juntou-se e defendeu-se bem, pondo o bandido em fuga. Apenas ficaram de pé três palhotas. Animais, dinheiro e haveres, foi tudo queimado.


Mampatá, 23 de Outubro de 1968

Passei em Bacardado. Triste abandono, palhotas queimadas, animais mortos, nem uma viva alma, só os abutres, medonhos, anunciantes da morte e da desolação, procurando os restos de carne para com avidez saciarem a fome e um cheiro nauseabundo e pestilento...

A estrada está vazia. O medo fez a população abandonar o que porventura lhes restava e vieram acolher-se a Mampatá. Deixou de haver movimento humano na estrada. Quando passávamos de viatura, as crianças, nuas e sujas de lama, mas com a alegria no rosto acorriam a dizer adeus e a desejar bom biaje. Agora vejo-as todos os dias à minha frente esfomeadas, a mendigar migalhas para matarem a fome.

O vazio da estrada transmitiu-se à alma. Também ela sofre. O coração chora tantos inocentes que procuravam viver a sua vida em paz, só queriam uma bolanha para trabalharem a terra e tirarem o seu sustento. De um momento para outro viram surgir junto de si, um inimigo traiçoeiro que, escondido no alto capim, esperou que a noite viesse, como uma fera que espera a sua presa , para protegido pela escuridão, incendiar, ferir, matar, arrasar tudo - se meia dúzia de valentes não lho impedissem - e depois fugir cobardemente à procura de protecção para lá da fronteira.

Porquê atacar e matar os seus irmãos de raça ? Não sei (2) ...
____________

(1) Tive o prazer de reencontrar o Suleimane em Abril de 2005 no Saltinho. Estava o mesmo, parece que os anos nem passaram por ele.

(2) Em Abril de 2005 visitei Bacardado e como fiquei feliz ao verificar que a vida logo depois do fim da guerra recomeçou e hoje liga com Áfia e Mampatá Forea fazendo como que uma única aldeia!

terça-feira, 10 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P419: Ainda a questão do bigrupo (Sousa de Castro)

Guiné > Sector de Cubucare > Guerrilheiros do PAIGC sendo inspeccionados por um comandante.

Foto: UN / Yutaka Nagata, fonte: Return to the Source: Selected Speeches, by Amilcar Cabral. New York: Monthly Review Press, 1974. (Imagem gentilment cedida por Jorge Santos, 2005)


Texto do Sousa de Castro:

De acordo com o livro Guerra Colonial: Angola, Guiné, Moçambique (Lisboa: Diário de Notícias, s/d), da autoria de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, e com base em estimativa do comando militar português, em 1971, os efectivos do PAIGC empenhados na luta pela independência eram assim constituídos:

Efectivos por unidade:

- bigrupo: 38/44 unidades
- bigrupo reforçado: 70 unidades
- grupo de artilharia: 50 unidades
- grupo de canhões/morteiros: 23 unidades
- grupo de foguetões/antiaéreos: 16 unidades

Efectivos por regiões:

Inter-Região Norte:

- Frente S. Domingos/Sambuiá: 630 unidades
- Frente CanchungoBiambe: 760 unidades
- Frente Morés/Nhacra: 680 unidades
- Frente Bafatá/Gabu Norte: 730 unidades

Inter-Região Sul:

- Frente Bafatá/Gabu Sul: 200 unidades
- Frente Bafatá/Xitole: 160 unidades
- Frente Buba/ Quitafine: 1230 unidades
- Frente do Quínara: 560 unidades
- Frente de Catió: 370 unidades.

Além destes efectivos, que totalizavam 5500 elementos para o Exército Popular, há que acrescentar cerca de 2000 milícias, 900 a 1000 em cada inter-região [Ou seja, o PAIGC não teria mais do que 7500 homens em armas].

O PAIGC, atendendo à taxa de natalidade e mortalidade existente, podia aumentar os seus efectivos em cerca de 5000 combatentes, valendo-se somente das populações controladas.

Sousa de Castro

Guiné 63/74 - P418: Mais estórias do Virgínio Briote (1): o Tintas fugiu ?

Viva Luís,

Estou de regresso com mais dois episódios das minhas memórias da Guiné.
Um abraço a todos os camaradas.
vb
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Saudamos o regresso do nosso camarada vb. Publicamos hoje o primeiro desses "episódios". LG


1. O TINTAS FUGIU?

Alternava períodos no mato com uma semana em Brá. Aproveitava esses dias para manter-se em forma, praticava tiro, mantinha o grupo em instrução diária, ao fim do dia ia até Bissau, dava uns passeios a pé. No fim de jantar, quando tinha vontade, punha a escrita em dia e lia pela noite fora.

Não havia muito para fazer na cidade. O hotel Portugal onde se reunia ao jantar com os conhecidos, o Fonseca de vez em quando para comer frango assado com batatas fritas aos paus, enormes, ou beber cerveja cá fora com um cesto de ostras ao lado.

Parava na esplanada do Bento, quase sempre a abarrotar de fardas, obrigatório para quem queria encontrar companheiros destacados no mato, em trânsito por Bissau, para consultas médicas, tratar de assuntos dos destacamentos ou à espera do avião para férias na metrópole.
Não lhe saíam da cabeça, as férias, ver a família, os amigos, a namorada, ir ao cinema, apanhar um ar diferente. Um entusiasmo, só de pensar, estavam á porta, um ou dois meses se tanto, ia descontando os dias.

Atravessava a fase fotográfica, ia para o Cupilão (1), negras com os bebés às costas a pilarem o arroz, mancarra (2) a secar, crianças a brincar, velhos negros de barbas brancas, curvados, a cortar as unhas dos pés com a catana enorme na mão, outros sentados em fila, encostados às casas, olhos vermelhos de doenças, clicava tudo.

O conflito sentia-se em todo o lado, em Bissau também, embora não houvesse relatos de episódios violentos dentro da cidade. Claro que via o que se passava, ouvia os helis pousar no Hospital, pertinho deles, quase vizinhos, tinha acesso aos citreps (3) e aos perintreps, era visita frequente da 2ª e da 3ª Rep, almoçava com este e aquele, estava a par do que se passava em todo o território.

O Tintas era companheiro das mesmas lides desde há anos. De baixa estatura, magro, enfezado, aparência tímida mas muita lábia, via-se que era desenrascado há muito. Estiveram juntos em Mafra, juntos seguiram no Carvalho Araújo (4) para os Açores, despediram-se no cais de Ponta Delgada.

Encontraram-se, de novo no mesmo navio, no regresso ao continente. Mobilizados para a Guiné, apanharam o comboio em Santa Apolónia, para o norte, para gozar os dias de licença a que tinham direito e reencontraram-se em Campanhã para o regresso a Lisboa. Passaram os dias na capital, despedindo-se da vida boa que lá se vivia, até embarcarem no Alfredo da Silva. Na véspera do embarque fizeram questão de mandar vir lagosta e champanhe francês, no Solmar, ali nas portas de Santo Antão. Davam-se, não ligavam às mesmas coisas, nem eram muito parecidos mas entendiam-se bem. O acaso fizera com que se juntassem nesse percurso. Já em Bissau, com o capitão Matos e outros companheiros da viagem, separaram-se, até um dia destes.

Numa dessas visitas ao QG soube que o Tintas tinha sido preso no Senegal. A comunicação oficial era confusa, não se entendia bem, se tinha sido apanhado, se desertara. Certo é que tinha sido levado para Dacar.

O Tintas estava a comandar um pelotão reforçado em Sare Bacar, no norte, para leste, encostado ao Senegal, uma zona calma, comparada com as outras. O PAIGC, na altura, servia-se das fronteiras do Senegal mais como corredores de passagem para o interior e o Shenghor (5) não queria problemas, já tinha que chegassem.

Levava uma vida tranquila, mantinha boas relações com a população local. Terá sido abordado pela polícia, em território senegalês, quando, sentado a uma mesa, defrontava um frango que lhe tinham preparado, disse mais tarde. Puseram-lhe as algemas e meteram-no num jeep a caminho de Koldá.

Depois de ouvido foi para a cadeia de Ziguinchor e por lá ficou uma semana, enquanto se desenvolviam negociações, por intermédio da família, que o Estado não se meteu. A Igreja interessou-se, a Cruz Vermelha Internacional intercedeu, levaram-no para Dacar, onde foi presente a um juiz que decidiu recambiá-lo para Lisboa.

Mas ele não queria, temia represálias, queria voltar a Sare Bacar. Semanas depois, acabou por ser entregue na fronteira às autoridades militares portuguesas.
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(1) Bairro de Bissau
(2) Amendoim
(3) Relatórios Militares
(4) Navio apreendido aos alemães na fase final da 2ª Guerra. Fazia o curso para as Ilhas.
(5) Leopold Shengor, Presidente do Senegal

Guiné 63/74 - P417: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)

Guiné > Guileje > 1967 > Foto aérea do aquartelamento e tabanca.

© José Neto (2005) (1)


O Zé Neto é o patriarca da nossa tertúlia. Pela sua idade e pela sua experiência como homem e como militar (que andou por Macau, Cabinda, Guiné, outra vez Angola...) merece o nosso respeito e, mais do que isso, um tratamento carinhoso.

Há dias escreveu-me um e-mail muito bonito mas que eu interpreto como sendo também uma homenagem aos demais amigos e camaradas desta tertúlia. É um homem, de resto, com um forte sentido de lealdade mas também de bom senso, que o impede, por exemplo, de identificar camaradas que ainda hoje estão vivos e cujo comportamento, em 1967/68, deixava muito a desejar... Diz ele: "Eu sei que, a partir do momento em que me dispus a fazer parte da nossa tertúlia, é meu dever partilhar com todos as minhas recordações da Guiné. Sei também que alguns dos meus estimados Furriéis, Cabos e Soldados que têm Internet visitam regularmente o blogue (fui eu que os induzi a tal)(...)". Há, porém, "comparsas da história" que limitam a divulgação, de um ou outro ponto, do texto do Zé Neto...

Vamos ter em linha de conta esta louvável preocupação do Zé Neto em não transformnar este blogue num tribunal de opinião pública sobre a guerra colonial (que, de facto, não é nem pretende ser):


Meu caro Luis:

Depois de muito meditar cheguei à conclusão de que, pelo menos tu, mereces a minha confiança para partillhar contigo uma parte "muito significativa" das memórias da minha vida militar. São trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só "a matar pretos" enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de família...

Já cedi este modesto trabalho à AD do Pepito e conto não o fazer mais, por enquanto. É, como já te disse, uma perspectiva um tanto diferente dos relatos do blogue, mas é assim que sei contar as minhas angústias e sucessos.

Diz qualquer coisa. Até breve.
Um abraço do "patriarca" Zé Neto

O capitão, reformado, José Neto. Há dias tinha-lhe pedido duas 'chapas', uma dos gloriosos tempos de Guiné e outra mais recente, mais condizente com o dolce far niente do repouso do guerreiro.... Eis a resposta dele, sempre bem-humorada:

"Falaste em eu 'não ficar mal na fotografia' e lembrei-me que ainda minguém, no blogue, conhece a minha cara. Do tempo da Guiné não tenho, por enquanto, porque, como já disse, estão todas em Leiria para digitalizar. Das recentes tenho para aqui umas, mais engravatado, menos retocado, mas escolhi esta que é mais 'retrato' do que 'foto', que a minha neta Leonor captou e usa no ecrã do 'télélé'. Guarda aí até virem as outras". Não há dúvida que o Zé Neto, com estes netos (a Leonor, o Afonso...), é um avô babado e sortudo... E nós também ficámos a ganhar: temos o privilégio de sermos, depois do Afonso e do Pepito, os primeiros leitores das suas memórias de Guileje... A propósito: escrevo Guileje, e não Guilege, como o Zé (ou Guiledje, como o Pepito), de acordo com a grafia usada pelos Serviços Cartográficos do Exército... Não me levem a mal, nem um nem outro. L.G.


Extracto das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613, o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).

I Parte - Anotações prévias

Nas páginas que deixo para trás, respeitantes à Guiné, descrevo a maneira atribulada, para não dizer trapalhona, como o meu Batalhão, e por arrasto a minha Companhia, CART 1613, foi parar àquela Província Ultramarina e os remendos que se seguiram.

Resumindo:

O Batalhão de Artilharia nº 1896 (BART 1896) foi formado no RAP 2, Vila Nova de Gaia, com destino a Angola.

Depois da instrução dos recrutas foi confirmado esse destino, em 29 de Julho de 1966, e, como havia de se fazer a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO) em Viana do Castelo, tal não foi possível porque tinha sido adiado o embarque ao batalhão que ocupava as instalações militares daquela cidade minhota.

Ao mesmo tempo o RAP 2 deu início à formação de mais um batalhão, pelo que o pessoal da Unidade foi distribuído por quartéis velhos, alguns já desactivados, na área do grande Porto.

A minha Companhia foi aquartelar nas antigas e quase desmanteladas instalações do GACA 3, em Espinho.

No fim de Agosto solucionou-se o “engarrafamento de batalhões” e seguimos para Viana do Castelo.

Já a IAO ia a meio quando, em 24 de Setembro de 1966, foi alterado o destino do Batalhão para Moçambique.

Depois de introduzidas algumas alterações no planeamento da IAO (derivado à diferença da morfologia do terreno…?) continuou a referida instrução. Estava a IAO terminada e o Batalhão pronto para seguir quando, em 6 de Outubro de 1966, chegou a ordem para demandarmos a Guiné.

Iniciou-se nova IAO, com temas mais virados para terrenos alagadiços, mas, em fim de Verão as nossas "bolanhas" estavam secas. Fez-se o que foi possível… Embarcámos em Lisboa no dia 12 de Novembro e desembarcamos em Bissau em 18 do mesmo mês.

Como batalhão de reforço seguiu em "ordem de marcha" o que significa que, desde a esferográfica, passando pelos lençóis, até à mais pesada viatura auto, tudo foi connosco.

Aquartelamos no campo militar de Brá e… a trapalhada continuou. As três companhias operacionais (CART 1612, 1613 e 1614) foram desligadas do comando do Batalhão e as primeira e terceira seguiram para reforço doutros batalhões enquanto que a segunda (CART 1613) foi destinada a Unidade de Intervenção à ordem do Comando-chefe, continuando aquartelada em Brá.

Mais treino operacional para a 1613, desta vez na área de Tite, mais propriamente em São João e treino de saltos de helicóptero para um grupo de combate de voluntários de entre o efectivo da companhia.

De Janeiro a Maio de 1967 a CART 1613 andou de colchão pneumático às costas e tendo por caserna a copa das árvores, a “biscatar” pelo território da Província, com maior incidência nas zonas de Pelundo e Jolmete.

Com a atribuição da responsabilidade do Sector S 2, com sede em Buba, ao BART 1896, este reagrupou-se e a CART 1613 foi instalar-se nas povoações de Colibuia e Cumbijã, onde nunca tinha estado qualquer unidade militar.

Por ali andou em trabalhos de construção de cobertos e abrigos para a imensa tralha de materiais que levara da Metrópole.

Menos de dois meses depois, em 17 de Junho de 1967, um Gr Comb deslocou-se para o futuro destino de quadrícula, ou seja, área de ocupação definida, e duas semanas depois seguiu-se a transferência para Guileje.
_____

Notas de L.G.

(1) Sobre a história desta foto, vd post de 5 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXIX: José Neto, outro senhor de Guileje (CART 1613, 1967/68)

(2) Região de Quínara, no sul

Guiné 63/74 - P416: Um bigrupo, quantos homens eram? (Marques Lopes)

Guiné > Região de Quínara > Buba > 1968

Tropas do PAIGC atacam o aquartelamento de Buba, na "Frente Sul", em Fevereiro de 1968. À direita, Lando Mane, comandante do grupo-B 30.

Foto: World in Action, Granada TV. Fonte: DAVIDSON, Basil. The liberation of Guiné: aspects of an African revolution. (With a foreword by Amilcar Cabral). Harmondsworth, G.B.: Penguin Books, (Penguin African Library; 27), 1969 (Imagem gentilmente cedida à tertúlia por Jorge Santos, 2005)


1. Há dias, na tertúlia, houve uma saudável e amigável discussão sobre o tamanho de um bigrupo. O Zé Neto comentava, com muito interesse, o diário do Zé Teixeira (1): "Hoje deu-me para revisor. São manias!!! Tenho acompanhado com interesse especial o Diário do José Teixeira por uma simples razão: Eu estava em Buba, com a CART 1613 (Os lenços verdes) quando a companhia dele lá desembarcou"....Mas mais adiante faz um reparo: "Só que ele [José Teixeira] não era obrigado a conhecer a orgânica do IN e escreve (...) que foram emboscados 'por dois bigrupos'. Dois bigrupos eram quatrocentos homens. É muita fruta, não achas?"...

No meu tempo e na zona leste, um bigrupo não ultrapassava os 50/60 homens. Foi isso que transmiti ao Zé Neto. Mas antes disso consultei o meu especialista militar, o nosso coronel (DFA), reformado, A. Marque Lopes... A resposta que ele me deu e que levou o Zé Neto a reconhecer o seu lapso (motivado por pura distracção), merece ser inserida no blogue e conhecida por todos. O nosso blogue também prima pela cultura do rigor... Aqui vai. L.G.

2. Texto do A. Marques Lopes (que foi alferes milicano da CART 1690, em Geba; e da CCAÇ 3, em Barro, entre 1967/68; desmobilizado como tenente miliciano, acabou por fazer a carreira militar, tendo-se reformado com o posto de coronel, DFA):

Não sou propriamente um especialista, é apenas uma reflexão ditada pela experiência vivida. Nem pensar em 400 o número de combatentes de dois bigrupos. Os efectivos variavam entre 50/60. Dois bigrupos iam aos 100, mais ou menos. Podendo variar conforme o número de elementos recrutados em cada sector. São esses os números que aparecem nos relatórios de operações.

O bigrupo era aquilo que podemos chamar a companhia no exército do PAIGC, quando decidiu dar um passo na organização da guerrilha em termos formais, com estrutura de comando, com armamento distribuído uniformemente por cada unidade (o bigrupo), onde cada um tinha a sua função: havia os apontadores de RPG, os de metralhadora pesada, os de morteiro, os atiradores de kalash... quando avançaram para a organização de operações.

Guiné > "Frente Sul" > s/d >

O secretário-geral do PAIGC Amilcar Cabral, à direita, com Nino (Bernardo Vieira), à esquerda, "no comando da Frente Sul".

Foto: PAIGC. Fonte: DAVIDSON, Basil. The liberation of Guiné: aspects of an African revolution. (With a foreword by Amilcar Cabral). Harmondsworth, G.B.: Penguin Books, (Penguin African Library; 27), 1969 (Imagem gentilmente cedida à tertúlia por Jorge Santos, 2005).

A necessidade de dispersão da guerrilha, para ocupação de território e também para fazer face à dispersão das NT por quartéis e destacamentos, com a consequente táctica de ataques dispersos, rápidos e variados, não se coadunava com a existência de unidades daquelas dimensões.

Penso que nem em Guidage os usaram: aí tiveram a vantagem dos apoios e abastecimentos vindos directamente da fronteira com o Senegal. Além de que, se as tivessem, não acredito que, por exemplo, os ataques feitos aos destacamentos da CART 1690 não tivessem tido o mesmo sucesso que aquele de Cantacunda...

Também não me parece, nem conheço exemplo nenhum, que as bases do PAIGC tivessem tão grande número de combatentes. Se assim fosse, não teria sido possível que duas companhias nossas e um grupo de combate (o meu) conseguissem destruir a base de Samba Culo (2)... O PAIGC não tinha, aliás, efectivos em número suficiente para constituir unidades dessa dimensão. Como sucedeu noutros casos também. O caso de Sinchã Jobel (3) foi especial, devido à sua localização geográfica privilegiada, onde nem os comandos conseguiram entrar. Daquela dimensão, ou maiores, só na guerra do Vietnam, mas aí eram unidades formadas na base de toda a população de um país, o Vietnam do Norte. Não era a mesma situação na Guiné (...).
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Notas de L.G.

(1) Vd post de 1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXI: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968

(2) Vd. post de A. Marques Lopes > 8d e Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II

(3) Vd. posts de A. Marques Lopes:

30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII

segunda-feira, 9 de janeiro de 2006

Guine 63/74 - P415: O que os outros (blogues) dizem de nós (1): Caminhos por onde andei (Manuela Gonçalves)


Guiné > "Frente Sul" > Fevereiro de 1968 > Carmen Pereira, comissária política do PAIGC

(Foto: John Sheppard, Granada TV. Fonte: DAVIDSON, Basil. The liberation of Guiné: aspects of an African revolution. (With a foreword by Amilcar Cabral). Harmondsworth, G.B.: Penguin Books, (Penguin African Library; 27), 1969 (Imagem gentilmente cedida à tertúlia por Jorge Santos, 2005)


1. Manuela Gonçalves (Nela) mandou-nos a seguinte mensagem, que nos honra e que eu agradeço vivamente em nome dos amigos e camaradas de tertúlia. Reproduzo, com a devida vénia e para conhecimento de todos, o que ela escreveu sobre nós e a sobre a sua Guiné revisitada, no seu próprio blogue.

Devo sublinhar quão importante é o seu ponto de vista, já que nos faltam testemunhos (escritos) das nossas companheiras, que viveram a guerra de África através das fotos e dos aerogramas que mandávamos pelo SPM, tendo elas aprendido a ler nas entrelinhas. Aliás, faltam-nos também os testemunhos das corajosas mulheres que, do outro lado, nos combateram... como foi o caso, por exemplo, de Carmen Pereira (n. 1937), cuja foto publicamos, como um pequeno gesto de homenagem à única mulher que, na sua qualidade de comissária política da Frente Sul, pertencia ao Comité Executivo da Luta.


Cópia da mensagem:

Não posso deixar de enviar os meus parabéns pela excelente ideia deste blog! Também nós temos muitas recordações de Bissau! Vou recordar alguns desses momentos no meu blog. Continuem o vosso blog!

Blog: Caminhos por onde andeiPost: Guiné- Bissau (1)

Manuel Gonçalves (Nela)
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Sábado, Janeiro 7, 2006

Guiné- Bissau (1)

Esta noite, ao navegar pelos blogs que visito habitualmente, fui parar , através de hiperligações de posts, ao Blogue Fora-Nada, que reúne documentos e memórias de ex-combatentes da Guiné-Bissau!

Não fui combatente na Guiné, mas esses caminhos foram percorridos por mim de modo e tempo diferentes... Tornaram-se mesmo decisivos na minha vida de jovem estudante universitária rebelde , namorada de um alferes miliciano que para ali fora enviado para a guerra , mais tarde meu companheiro de vida (já lá vão 35 anos) e de mulher e mãe, que considerou importante ir para Bissau, como cooperante!

A Guiné dos aerogramas despertara um desejo imenso de conhecer a Guiné das bolanhas, das tabancas, dos mosquitos, dos rios e pântanos e das gentes que ali viviam, dos felupes, dos mandingas, dos papéis, de Amílcar Cabral, dos guerrilheiros do PAIGC...

Nunca tinha aceite a Guerra Colonial, mas uma vez que ela tinha entrado nas nossas vidas abruptamente e deixado incapacidades físicas ao maridão, senti uma vontade imensa de viajar para aquele pequeno país e conhecê-lo bem!

Era como que uma necessidade intrínseca de compreender bem uma etapa importante da vida vivida pelo companheiro de route!

Bissau, Bafatá, Mansoa, São Domingos, Ingoré eram locais que precisávamos (re)visitar.

E fomos lá! Também os nossos filhos nos acompanharam , crianças ainda, viram e pisaram as picadas que, anos antes, o pai cruzara, sempre alerta! Agora podíamos circular livremente, apesar do mau estado das estradas, mas em paz e liberdade!

Gostei da Guiné-Bissau! Voltar lá foi um modo de "exorcizar" fantasmas de guerra que habitavam a nossa casa!

Hei-de voltar ao tema!

Manuela Gonçalves
Blog > Caminhos por onde andei

Guiné 63/74 - P414: As mesmas andanças (A. Marques Lopes)

Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > CART 1690 > Destacamento de Cantacunda > 1968 > Caminho para Cantacunda. A sede da Companhia, em Geba, ficava a 50 Km.

© A. Marques Lopes (2005)

1. Há um bocado telefonou-me o Jorge Cabral, o único de nós que não levou a guerra a sério e que se divertiu (à grande e à fula...) com a sua (co)missão... como comandante do famoso Pelotão de Caçadores Nativos nº 63... Já temos um almoço mais ou menos marcado para inícios de Fevereiro próximo. Dizia-me ele que se sente honrado por pertencer à nossa tertúlia; em contrapartida, acha que somos todos muitos sérios, que temos uma postura dramática, que ainda fizemos o luto da Guiné e que ele, pelo seu lado, gostaria de contar mais umas estórias divertidas, só que algumas são impublicáveis... Desafiei-o a pô-las em letra de forma, pelo que à volta cá o espero... Entertanto acabo de receber uma prosa, bem-humorada, do nosso coronel A. Marques Lopes que, espero, apreciem e tomem como exemplo e referência... Saibamos também recordar e reconstituir as peripécias, mais ou menos divertidas, por que passámos... Nem tudo foi sangue, suor e lágrimas... Ou foi ?

2. Texto do A. Marques Lopes:

Amigo Marques do Santos, caro camarada das mesmas andanças:

Fico contente por ter encontrado alguém que, como eu, também participou num dos maravilhosos cruzeiros daquele magnífico paquete de luxo que era o Ana Mafalda. Hás-de lembrar-te - eu nunca me hei-de esquecer! - daquela calma e serena saída da barra do Tejo (não sei se tu encontraste o Gregório, eu não, apesar de me fartar de chamar por ele durante a viagem), dos dias de gozo no imenso oceano Atlântico, antes de chegar à entrada do Geba. Comida farta, instalações maravilhosas, gente feliz, momentos inesquecíveis!

E também passaste, como eu, umas ricas férias naquela estância de Cantacunda. Quando eu lá estive as instalações não eram grande coisa, e parece que tu também tens algumas queixas a apresentar, mas, olha, não havia livro de reclamações (só agora o governo do Sócrates é que pensou nisso, mas nem o Salazar nem o Marcelo tinham pensado...).

Desculpa este sarcasmo logo de entrada. Mas o facto de (r)estarmos vivos depois daqueles tormentos passados é que nos dá a capacidade de conseguirmos relevar alguns aspectos irónicos que também tiveram (muitos dos nossos camaradas infelizmente não o podem fazer, porque morreram). São maravilhosos, por exemplo, os relatos do Cabral no nosso blogue.

Quanto ao Ana Mafalda, tu sabes do martírio daquela estadia, e eu também já contei.

Falando a sério de Cantacunda: Depois do ataque IN a este destacamento (na noite fatídica de 10/11 de Abril de 1968), o qual ficou quase totalmente destruído, teve de se proceder a construção do mesmo, com a ajuda do Pelotão de Sapadores da CCS/BCAV 1905:

- Reparação das fiadas de arame farpado;

- Início da construção da pista para DO ficando quase concluída, quando a CART 1690 de lá saíu;

- Reparação de abrigos;

- Construção de 3 abrigos-caserna;

- Construção de abrigo para metralhadora Breda;

- Construção de abrigo para morteiro;

- Reparação do celeiro e cozinha;

- Colocação de duas fiadas de arame farpado;

- Desmatação de uma densa zona arborizada com árvores de grande porte;

- Limpeza e capinagem do aquartelamento;

(Fonte: "História da Unidade - CART 1690")

Mas, como constataste, não terá sido suficiente. Mas penso que terão valido alguma coisa estas obras, dado que, em 26 de Outubro de 1971, já com outra companhia, portanto (ainda não descobri qual era), o destacamento foi atacado, tendo o IN ultrapassado a primeira linha de arame farpado, mas não conseguindo ir mais além; o destacamento aguentou-se e uma coluna que foi em seu auxílio, no dia seguinte, foi emboscada na estrada para Cantacunda (a tal da fotografia já colocada no blogue) e teve 7 mortos e 12 feridos.

"Delila", do Tom Jones, "Puppet on a string", da Sandy Shaw, e "O vento mudou", do Eduardo Nascimento, mas com outra letra (O vento mudou e ela não voltou, e ela partiu, puta qua pariu, nunca mais ninguém a viu...)... também cantámos disso com o giradisco roufenho, ligado ao frigorífico a petróleo! Mais que surrealista, acompanhadas do emborcamento das latas mandadas pelos americanos, de cerveja com cocacola, rum com cocacola, gin com cocacola... Tudo isto dava um filme (também nesta área, não temos aproveitado a fabulosa matéria-prima, burlesca, trágico-cómica, que temos).

Um abraço amigo e até sempre.
A. Marques Lopes

domingo, 8 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P413: Caminhos entrecruzados: Ana Mafalda, Cantacunda...

Guiné > N/M Ana Mafalda >

Foi neste "luxuoso paquete" que companhias como a CART 1690 (Geba, 1967/69), do A. Marques Lopes, ou a CART 2339 (Mansambo, 1968/69), do Carlos Marques dos Santos, partiram de Lisboa com destino à Guiné ...

Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2000)

Texto do Carlos Marques dos Santos

Bravo, Marques Lopes:

Afinal os nossos percursos entrecruzaram-se. Tu antes, eu depois. À tua descrição poderia só acrescentar: Faço minhas as tuas palavras e, concerteza, vivências:

(i) Ana Mafalda e vómitos de 5 dias (1);

(ii) Cantacunda e fome de 15 dias, depois de terem levado alguns, não poucos, dos nossos (2);



Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Cantacunda
1968 > As precárias condições em que se vivia no destacamento

© A. Marques Lopes (2005)

Carne de macaco era o que nos restava para comer se não nos tivessem rendido. O "meu" pelotão esteve lá.

Nos buracos, que eram os dormitórios, tinhamos que dormir com os "ponchos" para não apanharmos água da chuva. As botas, quando acordávmos, boiavam nesses abrigos. Fomos para lá, em coluna, ao som de Delila, a famosa canção do britânico Tom Jones, [muito popular na época]. Surreal!
Um abraço.
Marques dos Santos
Coimbra
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Notas de L.G.

(1) vd post do A. Marques Lopes, de 28 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)

(2) Vd. posts de A.Marques Lopes, de 18d e Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXI: "O ataque e assalto do IN ao destacamento de Cantacunda (1968)"

Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Cantacunda > Um balneário improvisado pelo pessoal da CART 1690, aqui destacado...

Na noite de 10 para 11 de Abril de 1968, o destacamento foi surpreendido por um ataque do PAIGG, seguido de assalto, de que resultaram 1 morto e 11 prisioneiros, levados mais tarde para Conacri...

© A. Marques Lopes (2005)

Guiné 63/74 - P412: Comentário de Afonso Sousa ao texto sobre a retirada de Madina do Boé

Caro José Martins:

Emociona este seu testemunho. Eu só faço uma pequena ideia do sofrimento de todos vocês, naquele momento trágico, nas horas e nos dias seguintes - em terras de solidão, em paragens dos confins da Guiné.

É por isso que lhe fiz algumas perguntas sobre a sua vivência deste momento tão triste, porque qualquer um se emociona ao recordá-lo e o espírito, quer queiramos ou não, é forçado a deixar-se invadir por esta ou aquela interrogação.

Aqueles homens, tão martirizados pelo fogo constante do opositor, meses e meses, quase ininterruptamente, quase isolados do resto da Guiné, estariam certamente a viver momentos de alívio e de alegria quando se encaminhavam para a margem esquerda do rio Corubal.

Num ápice, esses semblantes toldaram-se no fundo do rio. Que triste fim para quem, generosamente, tanto tinha dado já ao seu país. É como diz Iero Camará, antigo guerrilheiro e actual tenente-coronel do exército guineense : "Todos aqueles que combateram em Madina do Boé podem ser considerados heróis !"...

Também o coronel Aliú Camará, ex-comandante da unidade de artilharia que regularmente bombardeava o quartel do Boé, falando por si e pelos seus antigos camaradas, afirmou: "Nós rendemos homenagem aos ocupantes de Madina, porque era muito difícil viver naquelas circunstâncias. Sempre à espera dos bombardeamentos, em horas alternadas, às vezes à meia-noite, às vezes ao meio-dia, às vezes no período da tarde, tantas vezes que ninguém pode imaginar aquele sacrifício".

E estes bravos, à altura dos melhores da nossa história, ficaram ali para sempre, não mais voltaram à sua terra, nem ao menos para uma singela homenagem de despedida. Mas eles hão-de permanecer para sempre como exemplo de abnegação em favor da Pátria. Cabe-nos a nós fazer com que a História não os esqueça. O seu tão precioso testemunho escrito e outros (como o de José Pimenta) não o vão permitir.

O meu muito obrigado, José Martins. Tal como o amigo, eu estava lá por essa altura [1968], também sobre uma linha de fronteira, mas a Norte, em Guidage que, em 1973, também haveria de ser palco de momentos difíceis.

O meu obrigado mais uma vez. Haveremos de voltar ao contacto. Receba, caro José, um grande abraço.

Afonso Sousa
(ex-Furriel Miliciano de Transmissões da CART 2412,
 Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70).

Guiné 63/74 - P411: A retirada de Madina do Boé (José Martins)

Texto de José Martins, ex-furriel de transmissões da CCAÇ 5 (Canjadude, 1968/70):

1. Caro Afonso Sousa

Obrigado pelo facto de, sem nos conhecermos e apenas tendo em comum o facto de sermos combatentes, como se não fosse "qualidade" mais do que suficiente, me pedires a opinião sobre a retirada de Madina do Boé.

A minha "ligação" a Madina é pequena mas muito intensa.

Por agora apenas envio um texto escrito em 2000 (trinta anos após o meu regresso)de um livro, não editado, que escrevi e escrevo, pois que todos os dias surgem histórias e estórias que faz desta compilação de emoções um livro nunca acabado.

Um abraço do camarada
José Martins


2. A retirada de Madina do Boé (por José Martins)

O mês de Fevereiro de 1969 tivera inicio há poucos dias quando passou, no aquartelamento de Canjadude (1), uma coluna cuja missão era retirar a Companhia de Caçadores nº 1790 do seu destacamento de Madina do Boé. Paralelamente a guarnição do posto do Cheche, pertencente à Companhia de Caçadores nº 5, também retiraria e juntar-se-ia à nossa companhia em Canjadude.

Esta operação cumpria, da Directriz nº 1/68 do Comandante-Chefe, apenas na retirada desta martirizada e heróica companhia da sua isolada posição. A base inicialmente prevista para a região do Cheche, ficar-se-ia pela reunificação da Companhia de Caçadores nº 5 no seu aquartelamento em Canjadude, ficando esta a ser o posto militar mais avançado, no leste, desde Nova Lamego até á zona do Boé.

Esta operação contava com cinquenta e seis viaturas, uma vez que a retirada de Madina envolvia a recolha e transporte de todo o material que fosse possível recuperar.

Em 6 de Fevereiro, as tropas até então estacionadas em Madina do Boé e as das companhias que tinha escoltado o comboio de viaturas, iniciavam o regresso. Estava, assim, consumado o abandono do local.

Chegados à margem sul do Rio Corubal, do lado oposto ao Cheche, tinha de se utilizar uma jangada constituída por um estrado assente em três grandes canoas e auxiliado, na travessia, por um barco com motor fora de borda.

A operação era perigosa, dado que as viaturas tinham de descer uma rampa em direcção ao rio, entrando na jangada utilizando pranchas e, após a travessia, sair de novo sobre pranchas e subir a ravina que partia do rio.

Eram cerca das seis da tarde quando se iniciou a travessia, que se estendeu por toda a noite e pela manhã do dia seguinte.

As companhias estacionadas em Canjadude (CCAÇ 5 e CART 2338) estavam em alerta e preparadas para prestar todo o apoio necessário e possível a esta operação. Havia que estabelecer um controlo para o parqueamento das viaturas dentro do perímetro do arame farpado e, em conjunto com os comandantes das companhias empenhadas na operação, indicar-lhes os locais em que deviam pernoitar, estas sim, em zonas em redor do destacamento e aldeamento.

Na operação estavam envolvidos dezenas de efectivos e, sendo conhecedores de que na região não havia água, foi destacada, para a estrada entre Canjadude e Cheche, uma viatura com cerca de quinze bidões de água, para que os soldados fossem abastecidos.

Tocou-me o comando da escolta a esta viatura, tendo-me posicionado a cerca de cinco a sete quilómetros de Canjadude. Quando começaram a passar os militares que vinham na frente da coluna, notei que algo de estranho se tinha passado. Os soldados passavam cabisbaixos e praticamente ninguém aproveitou para se abastecer de água. Constatara, também, que havia um silêncio rádio, apesar de ter entrado na frequência da operação.

No regresso ao aquartelamento, soube que tinha havido um desastre na travessia do Rio Corubal, com um elevado número de mortes. As causas ainda eram muito obscuras. O necessário era providenciar apoio aos militares das companhias que tinham sofrido as baixas, alguns dos quais ainda se encontravam em estado de choque.

Fui, na qualidade de furriel de transmissões [da CCAÇ 5], encarregado de saber, interrogando os graduados das companhias atingidas, os nomes e patentes das vítimas, afim de ser dado conhecimento aos escalões superiores, nomeadamente ao Quartel General, em Bissau.

Fui anotando, um a um, os nomes das vítimas. Entrecortados por soluços, os nomes foram sendo recordados pelos camaradas e, terminada a pesquisa, contei quarenta e sete nomes: quarenta e seis militares – dois furriéis, sete cabos, trinta e três soldados metropolitanos, quatro do recrutamento provincial - e um milícia (2).

Era um dia negro. Sentei-me no Centro Cripto, peguei no livro de codificações rápidas e transcrevi, para o impresso de mensagem, o texto cifrado que indicava que os nomes a seguir pertenciam aos militares mortos no acidente.

Procurei o comandante do destacamento, Capitão Pacífico dos Reis e, em silêncio, entreguei-lhe a mensagem para assinar, sendo esta devolvida sem que fosse trocada qualquer palavra.

Momentos depois, no mais profundo silêncio possível, no posto de rádio, a voz pausada e comovida do radiotelefonista lançava ao ar, via VHF, os quarenta e sete nomes, como se fosse um toque a finados.

Pouco tempo depois, como que impulsionados por uma mola, começaram a chegar ao Centro de Mensagens pedidos de envio de telegramas para a Metrópole, em que os remetentes diziam estar de boa saúde, embora cheios de saudade.

Pretendiam com isto serenar os seus familiares, para que ao receberem o telegrama soubessem que estavam bem e de saúde. Esses telegramas não foram emitidos. Não valia a pena. Na metrópole só muito mais tarde se soube deste desastre, e, se os telegramas saíssem da companhia, decerto que os escalões seguintes nunca lhes dariam seguimento.

Mais de vinte e cinco anos depois, o Diário de Notícias editou uma cassete vídeo, com uma reportagem no local, em que intervinham o tenente coronel José Aparício e o jurista Gustavo Pimenta (3), ao tempo capitão e alferes miliciano da CCAÇ 1790.

Já não era o primeiro vídeo que via sobre a Guerra do Ultramar, mas este falava de algo que eu tinha vivido, este reproduzia uma fase da minha própria vida de militar, e não me trazia boas recordações. Só nessa altura soube que a queda desordenada na água de muitos dos militares que se encontravam na jangada estava relacionada com o som de uma saída de morteiro, não identificado nem localizado, que tinha lançado o pânico.

Entretanto o meu filho mais velho, o Tiago, entrou na sala e respeitou o que viu. Eu estava a chorar. As lágrimas corriam-me pela face sem as poder conter. Pelo ecrã corriam os nomes que, anos antes, no desempenho das minhas funções de sargento de transmissões, tinha manuscrito em mensagem.

Os heróis de muitos combates tinham morrido afogados e, ainda hoje, os onze que foram recuperados três semanas depois, descansam lá longe, em país agora estrangeiro, nas ravinas que servem de margem ao Rio Corubal (4).

José Martins, 3 de Setembro de 2000
_____________

Notas de L.G.

(1) A sul de Nova Lamego, na estrada que vai pai Cheche e Madina do Boé (vd. carta geral da Província da Guiné, 1961)

(2) Vd post de 24 de Outubro de 2005 > Guiné 63/64 - CCLVII: A contabilidade dos mortos na operação de retirada de Madina do Boé

(3) Vd post de 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)

(4) Vd post de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (6 de Fevereiro de 1969)

sábado, 7 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P410: Estórias cabralianas: O básico apaixonado (Jorge Cabral)

Guiné > Fá Mandinga > Novembro de 1969 > Alguns dos elementos do Pel Caç Nat 63 >

Legenda: Soldado Django, Furriel Branquinho, Soldado Carvalho Atibeti, Soldado Duá, Alferes Cabral, Soldado Preto Turbado, 1º Cabo Rocha, Soldado Samba, 1º Cabo Injai, 1º Cabo Monteiro, 1º Cabo Marçal, Soldado Alfa (?), Soldado Maqueiro Adão, (?), 1º Cabo João, Soldado Alfa.

© Jorge Cabral (2005)

Texto de Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71) (1):


O básico apaixonado

O Pel Caç Nat 63 esteve quase sempre em Destacamentos. Comigo em Fá e Missirá. Antes no Saltinho, e depois no Mato Cão.

Para os Destacamentos eram mandados os "especialistas" que a CCS [do Batalhão sediado em Bambadinca] não queria. Assim, tive maqueiros que não podiam ver sangue, motoristas epilépticos e até um apontador de morteiros cego de um olho. Tudo boa rapaziada, aliás!

Como cozinheiros, eram enviados os básicos, dos quais me lembro especialmente de um, pastor em Trás-os-Montes, semi-analfabeto, de uma ingenuidade tocante. Foi este que me pediu para escrever uma "bonita" carta à namorada. E assim fiz.

Ainda recordo algumas frases: "Beijo-te nos rins desta espingarda, bebendo-te no ventre da bazuca. Contigo celebro o orgasmo do canhão. Serei seta no teu alvo aberto à volúpia do sempre. Nunca mais eu, nunca mais tu, apenas um corpo, o nosso, no êxtase da eternidade...".

Enviada a carta, também eu fiquei à espera da resposta. Quinze dias depois, procurou-me o básico, entristecido:
– O meu Alferes é pecador?
– Eu? Porquê? - Estendeu-me então um aerograma com três linhas:
– Não escrevas mais poucas vergonhas. O Senhor Padre disse-me que pecou não só quem as escreveu, mas também quem as leu… Confessa-te, que eu já me confessei…
Arminda.

Ainda ganharei o céu?
___________

(1) Vd posts anteriores, de 5 de Janeiro de 2006 >

Guiné 63/74 - CDXXII: Rally turra ? (estórias cabralianas)

Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...

Guiné 63/74: P409: Comentário do Zé Neto sobre "O Meu Diário", do José Teixeira

Texto do José Neto, capitão (reformado), o patriarca da nossa tertúlia: era o Sargento da CART 1613, em Guileje, tendo feito uma comissão entre 1967 e 1968.

Tenho acompanhado com interesse especial o Diário do José Teixeira por uma simples razão: Eu estava em Buba, com a CART 1613 (Os Lenços Verdes) quando a companhia dele [a CCAÇ 2381] lá desembarcou. Éramos a companhia de apoio ao novo Batalhão (BCAÇ 2835),"dita" em descanso depois de onze meses em Guileje.

A flagelação de 22 de Julho ao quartel de Buba que ele descreve foi "realmente uma brincadeira", pois foi efectuada a partir do outro lado do rio e dali "até com uma fisga se acertava no cu dum cozinheiro", mas não acertaram uma. Fraca pontaria? Não sei.

Desse evento guardo dois momentos hilariantes: (i) um capitão do comando do Batalhão (morreu há dias,Coronel) envergando um colete anti-balas vermelho que fazia parte do seu enxoval, acachapado numa vala e a guinchar como um desalmado; (ii) e a sessão fotográfica dos "maçaricos" (Comandantes incluídos) junto dos invólucros canelados de transporte das
granadas que o IN lá deixou.

Portanto o Zé Teixeira pisou o mesmo chão e ao mesmo tempo que eu.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P408: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (5): Mampatá, Agosto-Setembro de 1968

Guiné > Mampatá > 1968

O 1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381

©José Teixeira (2005)

1. Comentário de L.G.

Zé Teixeira:

Olha, estou muito sensibilizado pela leitura do teu diário. Apesar da tua juventude, revelaste na guerra, na Guiné, ser um grande homem, um grande português, um grande profissional e um grande cristão... Como homem e como português, eu também tinha as mesmas angústias éticas do que tu...

O meu diário não era tão detalhado. Só escrevia de tempos a tempos... Tenho aqui publicado alguns excertos... Os meus parabéns pela tua postura… Tu transmites, pela escrita, simples, sincera, a quente, em cima dos acontecimentos, muito do que todos nós sentíamos e pensávamos...

Sei que havia mais jovens, como tu e eu, que passavam para o papel as suas perplexidades e angústias, ao longo da comissão na Guiné... Não era fácil: havia um censor em cada de nós, tínhamos medo de expressar, por escrito, o que víamos, ouvíamos, sentíamos e pensávamos... Houve cartas que nunca cheguei a pôr no correio... Eram tempos de castração mental, de repressão política, de intimidação...

Bom, espero que os nossos camaradas hoje saibam contextualizar a tua escrita, e sobretudo tenham sensibilidade para te ler e compreender, sem preconceitos... Podes mandar mais fotos da época se as tiveres: eu vou publicando o teu diário, por meses e lugares…

2. Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):


Mampatá, 12 de Agosto de 1968

Mais uma vez mudei de sítio. Agora pertenço ao Destacamento de Mampatá, para onde vim ontem de tarde com o meu pelotão. Cerca de 50 tabancas e alguns abrigos para militares. As camas são colchões pneumáticos colocados no chão dos abrigos. A cozinha e a Enfermaria são tipo estrela.

Não sei o tempo que estarei por aqui. Em princípio será por um mês e isto não me desagrada. Pelo menos estamos mais livres do fogo IN pois os abrigos são muito seguros.


Mampatá, 14 de Agosto de 1968

Hoje acordei ao som do Morteiro e das costureirinhas (2). O IN atacou ao amanhecer. Estava a lavar-me quando ouço um rebentamento perto de mim. Dei um salto, entro no abrigo. Aguardei uns minutos e quando acalmou saí para preparar o Posto de Socorros. Felizmente não houve qualquer azar.

Segundo se apurou estavam emboscados no cruzamento à espera da viatura que ia a Aldeia Formosa e no momento de rebentar a emboscada faziam fogo sobre Mampatá para que não fôssemos em socorro dos colegas. Felizmente um africano localizou-os e ao verem-se descobertos atacaram a povoação sem provocar danos.


Mampatá, 19 de Agosto de 1968

Hoje pelas 20 horas, tivemos a segunda visita do IN a Mampatá. Acabava de chegar da Tabanca com o Rodrigues de Torres Novas quando ouvi a primeira saída. Em cerca de 10 minutos mandou-nos 106 granadas de canhão sem recuo, como confirmámos pelos invólucros que deixaram na mata ao pressentirem a nossa perseguição. Queimaram uma Tabanca (3).

De Aldeia Formosa as NT mandaram algumas granadas de obus que assustaram o IN. Mampatá defendeu-se com os Morteiros 81 e 60 e com a Breda. Montei rapidamente o Posto de Socorros, mas não chegou a ser necessário.


Mampatá, 23 de Agosto de 1968

Mais uma etapa díficil para a CCAÇ 2381. Quem diria que, após uma coluna a Gandembel na qual se levantaram 57 minas A/P e quatro fornilhos depois da passagem por Xamarra (4) e sem ninguém contar, surge a terrível emboscada que provoca cinco feridos.

É sempre assim, onde menos se conta, quando a calma e a confiança volta ao espírito, quando se julga que o perigo já passou, surge de entre o arvoredo, traiçoeiramente o inimigo.

Um viver constante em estado de guerra arrasa o espírito. A parte física ressente-se , as conversas entre camaradas tornam-se por tudo ou nada exaltadas, pequenos quezílias, tornam-se problemas.

O homem é fruto do ambiente em que vive. Se o ambiente é de paz, sente-se a vida nos corações, a calma e a confiança no "outro ", vive-se a paz. Quando o troar dos canhões se ouve longe ou perto, quando existe guerra entre os homens, existe guerra no seu espírito. O espírito torna-se selvagem. Trava-se uma luta entre o antigo e o novo, entre o amor e o sangue. Um jovem que ainda ontem só pensava em amar, hoje não vacila em disparar sobre um inimigo, mesmo ferido inofensivo, inutilizado, a precisar de uma mão salvadora...

Antes de ontem e ontem, Buba foi atacada. Os Páras têm tido um trabalho intenso. Hoje bateram a zona de onde costumam atacar Aldeia Formosa. Há alguns dias que patrulham a zona envolvente de Gandembel e com bons resultados. vários mortos, manga de feridos e material apreendido.

Hoje escrevi para a Metrópole. As minhas últimas cartas não me agradam. Será que o meu amor está a diminuir ?... ou a ânsia de amar mais, me faz julgar que não consigo dar a entender quanto amo ?


Mampatá, 26 de Agosto de 1968

Estou preocupado. Seguiu hoje nova coluna para Buba e o Sector continua infestado de IN. Antes de ontem atacaram Aldeia Formosa, Gandembel e Nhala. Desta vez em Aldeia Formosa destruiram o morteiro 120. Nem os roncos dos Páras conseguem acalmar a situação, bem pelo contrário parecem enfurecidos.

Em Mampatá tudo está calmo. Os espíritos estão voltados para a estrada de Buba. Os ouvidos estão atentos a qualquer rebentamento... São camaradas que atravessam o perigo.

Senti uma enorme alegria aquando do ataque a Xamarra: vi os meus camaradas correrem em socorro dos que estavam em perigo.

Ontem recebi uma carta de um amor em férias. Que bem me fez esta carta...

Mostravas preocupação por estar magro, a mim parece-me o contrário, mas o mais importante foi o que escreveste "se precisares de alguma coisa diz, tua mãe ou eu mesmo te mando". ão preciso de nada a não ser voltar, no entanto não calculas quanto fiquei intimamente satisfeito e feliz com a tua atitude.

Parece incrível, desde manhã que há feridos na coluna para Buba, um dos quais sem um pé e só às 17 horas é que o Hélio fez a sua aparição para a evacuação. Não admira que haja mortos na Guiné.

Vivem-se horas angustiantes na guerra.


Mampatá, 27 de Agosto de 1968

A coluna para Buba passou a noite em Nhala. De lá foi feita a evacuação do Alzira que ficou sem um pé numa A/P que pisou quando saltou da viatura ao cair debaixo de fogo, numa emboscada. Acabou a guerra para ele.

Manga de fogo durante o dia de ontem. A coluna de Buba foi atacada na bolanha, os páras estacionados em Gandembel andavam a patrulhar a zona e encontraram um caminho, seguiram-no e penetraram sem saber num acampamento IN, ainda desconhecido. Apanhados de surpresa , o IN reagiu. Mesmo assim sofreram 29 mortos. Os Páras tiveram dois feridos.

O IN atacou Aldeia Formosa, Gandembel (grande ataque), Guileje e Buba.


Mampatá, 31 de Agosto de 1968

Acabaram-se as colunas para Buba e Gandembel durante uns meses e ainda bem. Era um bom quebra cabeças, pois sempre que havia colunas havia emboscadas e minas A/P e A/C para nossa diversão.

Na última coluna a Gandembel foram detectadas 57 minas A/P [antipessoal] e alguns fornilhos num pequeno espaço. A coluna teve de regressar, sem atingir o objectivo (levar mantimentos à Companhia estacionada em Gandembel e Ponte Balana), depois de duas tentativas de encontro com os camaradas que em sentido oposto tinham vindo montar a proteção à minha Companhia.

Na primeira tentativa, há a lamentar seis mortos e um desaparecido na Companhia de Gandembel. Na segunda tentativa rebentou uma A/P que feriu um colega meu. Tudo porque havia minas na estrada, fornilhos nas bermas e a floresta estava armadilhada.


Mampatá, 7 de Setembro de 1968

Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ?

Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não.

Tenho de encarar as situações com naturalidade. Confiar. Reagir... reagir com todas as minhas forças.

José Teixeira
_____

Notas de L.G.:

(1) Iniciado em 1 de Janeiro de 2006. Vd post > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968

(2) Costureirinha, a célebre pistola-metralhadora PPSH

(3) Julgo que o autor quer dizer uma palhota ou morança (agregado familiar). O conjunto das moranças (diversas palhotas de um agregado familiar) correspondia a uma tabanca (povoação)

(4) Chamarra, a sul de Guebo (Aldeia Formosa), segundo os Serviços Cartográficos do Exército: vd. mapa geral da Província da Guiné (1961)

Guiné 63/74 - P407: Curriculum vitae de um atirador de artilharia (Carlos Marques dos Santos)

O Carlos Marques dos Santos, em 2005. Vive em Coimbra, é professor de educação física (reformado).

© Carlos Marques dos Santos (2005)

Curriculum Vitae (abreviado) :

Assentou praça em Mafra (EPI) em Setembro de 1966. Especialidade de Atirador de Artilharia em Vendas Novas.

Iniciou a formação da Companhia (CART 2339) no RAL 3, Évora, em 28 de Agosto de 1967.

É natural de Coimbra, da Freguesia de Santo António dos Olivais; estudou no antigo Liceu Normal de D. João III e no Colégio S. Pedro em Coimbra; foi atleta federado de Basquetebol e Andebol, treinador e dirigente desportivo na modalidade de Basquetebol; presidente da Direcção e da Assembleia Geral do Olivais F. Clube e Vice-Presidente da Associação de Basquetebol de Coimbra.

Diplomado em Educação Física, voltou ao Liceu D. João III como professor (hoje Escola Secundária José Falcão, nome alterado depois do 25 de Abril de 74, fazendo parte da Comissão de Gestão). Efectivou na Esc. Sec. de Avelar Brotero, onde integrou como Vice-Presidente o Conselho Directivo.

Foi professor de Mobilidade (técnicas de Orientação e Bengala) de alunos invisuais durante 32 anos. É actualmente aposentado e reside na Rua Gago Coutinho, 17 A-6.ºA – 3030-326 Coimbra (...).

Guiné > Mansambo > 1968 > O Fur Mil Atirador de Artilharia Marques dos Santos junto a um dos abrigos do aquartelamento


Na Guiné onde chegou a bordo do navio Ana Mafalda (parecia uma traineira!) (1), em 21 de Janeiro 1968, esteve em Fá Mandinga e Mansambo, onde foi rendido pela CCAÇ 2404.

Regressou a casa, em Dezembro de 1969, no navio Uíge, a 13 desse mês, dois anos após a partida para a Guiné.

Realizou treino operacional com a CART1746 (Xime) , entrando em intervenção no Sector L1 (2) até 22 de Novembro de 1969 .

Em 25 de Fevereiro de 1968, participa pela 1.ª vez numa operação de grande envergadura (Op Grão Mongol), com as CART 1646 e 2338, pelkotões de milícia e Pel Caç Nat. Esta acção foi elogiada pelo BART 1904 (Bambadinca) (1).


Guiné > CART 2339 (1968/69) > Brazão

© Carlos Marques dos Santos (2005)

Em Fevereiro de 1968 inicia-se a construção, de raiz, do futuro aquartelamento sede de Mansambo, com a construção e ocupação programada para operacionais e serviços. O meu Grupo de Combate (o 3º) só em Julho de 1968 se deslocou definitivamente de Fá para este aquartelamento fortificado.

Foi inaugurado oficialmente em 21 de Janeiro de 1969, com a presença de diversas entidades e grande festa. A nova iluminação - até aí era com bazookas [garrfas de cerveja de 0,6 l] e mechas embebidas em óleo – foi inaugurada com "fogo de artifício” – balas tracejantes a serem disparadas de G-3.

O projecto era do BENG [Batalhão de Engenharia] 447.
Mansambo ( a Cart2339)foi atacado em 28 de Junho de 1968, pela primeira de muitas vezes.

Guiné > Mansambo > 1968/69 >

Esquema dos vários abrigos do aquartelamento fortificado, projecto do BENG 447, construído pela CART 2239 ao longo de 1968 e inaugurado oficialmente em 21 de Janeiro de 1969. Baptismo de fogo: 28 de Junho de 1968.

© Carlos Marques dos Santos (2005)

Nota importante:

Em 3 e 4 de Fevereiro de 1968 estivemos envolvidos no cordão de tropas que, à volta de Bafatá, fez segurança ao Presidente da República, Américo Tomaz. Laranjas apanhadas das árvores e bolachas foi a nossa comida, em dia e meio.

Samba Silate, Demba Taco, Taibatá, Galo Corubal, Salicuta, Dando, Nova Lamego, Che-Che, Canjadude, Enxalé, Mato Cão, Geba, Cantacunda (onde os turras levaram 11 dos nossos – Abril de 1968), Sarabanda, Sincha Setu, Camamudo, Sare Gana (4), Banjara, Sambulacunda, Bantajã, Finete, Satecuta, Xitole, Burontoni, Poidão, Ganguiró, Bissaque, Moricanhe, Mussa Iero, Belel, Sinchã Camisa, Sambulacunda, etc., etc., etc.,: pelo menos um terço do Leste da Guiné (hoje Bissau) foi feita a pé. Sem água, sem comida, com abelhas e formigas, com mortos, feridos e desaparecidos.

É a Guerra. É tempo de haver Paz. Só quem lá esteve é que percebe.

Coimbra, 5 de Janeiro de 2006.
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Notas de L.G.

(1) Vd pots de A. Mareques Lopes > 27 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)

(2) Vd. post de 28 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VIII: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1);

e post de 3 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XI: O Sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (2)

(3) Julgo ter sido este Batalhão que construiu o aquartelamento de Bambadinca, tendo sido rendido pelo BCAÇ 2852 (1968/70). O BART 1904 tem feito encontros anuais de convívio do seu pessoal: vd. página da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas, ponto de encontro

(4) Vd meu post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu
(2) Vd. post de A. Marques Lopes, de 28 de Maio de 1969 > Guiné 69/71 - XXIX: Um ataque a Sare Ganá (1968)

Guiné 63/74 - P406: A Op Nada Consta vista pelo lado da CART 2339 (Carlos Marques Santos)

Texto do Carlos Marques dos Santos (ex-furriel miliciano da CERT 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/70)

Amigo Albano:

Li a mensagem de saudação da minha entrada na tertúlia, mas não estou só para ir buscar memórias ao baú das recordações. Interessa-me mais o encadear dos factos ocorridos na guerra colonial.

Acontece que, ao ler um relato de uma operação realizada em conjunto com Paras - CCP 122 e 123 (1), eu me tenha revisto no "outro lado". O que quero dizer? É simples.

A descrição que li, levou-me a perceber que "alguém" das NT esteve a empurrar o IN para o nosso lado, CART 2339, que tinha uma emboscada montada para esse efeito (Op Nada Consta)(2). As emboscadas servem para isso mesmo.

Eu estava lá, atento, atrás de um baga-baga, de arma na mão. Dois IN aparecem à minha frente, a 30 metros. O carregador da minha G-3 cai e não consegui disparar. Hoje penso: ainda bem.

A bazuca da minha secção é disparada, talvez para a linha de progressão da coluna do bigrupo que viria atrás. Informações posteriores dão conta que Mamadu Indjai, o comandante, tinha sido atingido.

Esta acção foi louvada pelos altos responsáveis. Mas, há que regressar a Mansambo e passar um pontão (rio Bissari), que era vital para atingir a sede da Companhia, sob pena de lá ficarmos todos.

No regresso, rápido, porque o tempo era escasso, tendo em vista uma retaliação do IN, leva-nos a descobrir um campo de minas - 10 antipessoais e uma anticarro(?). Esta era redonda como uma roda de um carro de mão. O relato de operações diz que é uma A/P reforçada. Seria ?

Tínhamos passado por cima delas no caminho de ida para a tal emboscada. No dia seguinte (21 de Agosto de 1969) fomos fazer o reconhecimento. Levantámos todas. Eu próprio levantei uma, com uma faca de mato que andava sempre comigo. Recebi 1.000$ por esse feito (que hoje digo, de grande irresponsabilidade).

Um carregador nativo, depois de levantada a mina A/C (?), transportava-a para a sede da Companhia, à cabeça, depois de ter sido desactivada a espoleta. Mas, havia outra (tal como na canção…) espoleta..... E mina estoirou.

Desapareceu parte do carregador nativo, houve feridos (um soldado do meu pelotão ficou totalmente surdo de um ouvido e, até hoje, ainda não foi ressarcido desse trauma, não psicológico, mas físico).

Em suma, vou continuar a ler e a relacionar factos que tenham a ver com a minha vida "vivida".

Um abraço do Marques dos Santos.
Coimbra
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 21 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXIII: Os anjos da morte

(2)Vd post de 30 de Jukho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)

Guiné 63/74 - P405: Capelão, precisa-se, para tertúlia de ex-combatentes (Sousa de Castro)

Mensagem do Sousa de Castro:

Pe. Costa Pereira:

Temos uma tertúlia virtual formada na Net que escreve estórias reais, passadas por cada um de nós, do tempo da guerra colonial na Guiné (e só na Guiné). Somos mais de quarenta ex-combatentes, desde 1963 a 1974, que vai escrevendo e digitalizando fotos da época para publicação no Blogue-fora-nada que é da autoria do ex-Furriel Luís Graça que pertenceu à CCAÇ 12 sediada em Bambadinca [169/71].

Já temos um Cmdt (Coronel), já temos alferes, furriéis, cabos e soldados, precisamos de um Alferes Capelão, função que o Pe. Costa Pereira desempenhou (e bem) no BART 3873 em Bambadinca, de 1972 a 1974.

Por isso, em nome da tertúlia, venho convidá-lo a visitar o nosso blogue e a participar no nosso grupo virtual.
Aproveito para lhe dizer que sou o António Manuel Sousa de Castro da CART 3494 (Xime) que viveu em Baroselas.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P404: Mansambo revisitado (Novembro de 2000) (Albano Costa)

Texto do Albano Costa, o nosso homem de Guidage e de... Guifões!

1. Amigo Luís Graça:

Quero deixar aqui a minha satisfação em termos estado juntos, nas vésperas de Natal, com o Marques Lopes, o José Teixeira, o Allen e o Hugo Costa, numa amena cavaqueira em casa dos teus estimados cunhados (o meu muito obrigado pela simpatia com que eles nos receberam, assim como a tua esposa), mas isto é mesmo assim, a «nossa» Guiné tem destas coisas.

Aquilo que muitos dos nossos camaradas que por lá passaram, e que ainda hoje não conseguem esquecer, aqueles tempos muito difíceis, espero que este blogue (em que és, e muito bem o seu comandante) sirva para fazer com que esses mesmos camaradas ao ter o conhecimento deste invento - cada vez maior - os faça mudar de opinião e possam, a partir do dia em que entrem nele, ver a Guiné, outrora muito má (por causa dos políticos da época), agora com outros olhos, e que sintam o povo guineense e português um só povo. Acho que vale a pena transmitir esta mensagem.

Quem tiver possibilidades em lá ir, e puder passar pela zona aonde esteve, que vá porque vale a pena. Luís, como dizes no blogue e muito bem, em Março o Allen vai à Guiné com o seu jipe e eu, claro, gostava muito de lá voltar, que estas coisas o que custa é a primeira vez, porque depois o «bichinho» está sempre cá dentro e quer lá voltar. Que o digam o Casimiro do Porto, o Armindo de Moreira de Cónegos, o Camilo (algarvio): estes são alguns dos que foram «mordidos», assim como o Hugo Costa que me disse:
- Pai, gostava de fazer uma viagem de jipe à Guiné. - E eu não resisti e já estou a preparar-me para o deixar ir, o Hugo Costa também foi daqueles que ficou apaixonado por aquele povo.

2. Agora para o nosso novo tertuliano Marques dos Santos [ex-furriel miliciano da CART 2339, Mansambo, 1968/70, afecta ao BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70].

Em primeiro de tudo estou a escrever estas letrinhas para te felicitar pela tua entrada neste blogue. É que estas coisas estão a fazer com que nós possamos desabafar aquilo que tem andando dentro de nós e que procuramos esquecer, mas não conseguimos. Foram momentos passados e com o andar da idade mais vai saltando para a nossa mente e, tirando as nossas «caras metades» que lá vão fazendo um esforço para nos aturar, mais ninguém quer saber de nós. E aqui que eu vou encontrando um bom passatempo para relembrar aqueles tempos de menino e moço.

Tenho lido as [tuas] memórias, e fiquei a pensar como está a fazer tão bem ao Marques dos Santos a ir ao fundo do baú buscar todas aquelas recordações. Eu por mim quando vou ao fundo do meu, sinto-me bem.

Agora eu quero informar que quando voltei à Guiné - foram das coisas maravilhosas por que passei na minha vida, e adorava lá voltar, quem sabe - quando estive em Mansambo, andámos atrás do dito quartel e só encontrámos um pequeno monumento à entrada do mesmo.

Só agora é que dá para entender porque não existiam as casernas, é que pela tua descrição eram abrigos, claro, esses ficaram com o tempo todos tapados, e não se via nada. Mas não desanimes, que agora existe lá muita população e muito hospitaleira como vai demonstrada nas fotos que envio, do quartel, e as outras, quem sabe se ainda recordas alguém, os meninos esses são filhos de guineenses do teu tempo. Há imagens muito interessantes, quem sabe talvez um dia as possas ver.

Se tiveres possibilidades de ir à Guiné vai sem qualquer receio: aquele povo adora-nos, eu aqui falo por aquilo que senti. Foi um dilema muito grande dentro de mim para me decidir a ir e confesso que mesmo quando lá cheguei ainda tinha um certo receio mas ao fim de umas horas apercebi-me que aquele povo gosta mesmo dos «irmãos» portugueses.

Albano Costa

Legendas das fotos de Mansambo


Estrada nova, fica a 50 metros, ao lado da antiga que passa pelo meio das belas tabancas

Lúcio, Casimiro, Armindo e Carlos [quatro dos camaradas que fizeram a viagem à Guiné com o Albano e mais outros tantos em Novembro de 2000], posando ao lado da placa que indica a povoação de Mansambo, do lado do antigo quartel

A pequena picada que dá, pelo meio das belas tabancas, em direcção ao antigo quartel

A entrada do quartel de Mansambo é isto ou o que resta...


A entrada do quartel de Mansambo também tem este monumento, o brazão da CART 2714 ("Bravos e Leais"), pertencente ao BART 2917 (1970/1972). Já em 1996, era o único que restava de pé.

População de Mansambo. Em 1969/71, apenas existia meia dúzia de famílias, ad dos guias e picadores que trabalhavam para as NT.


Na despedida da população de Mansambo... Era sempre o momento mais triste sentido por todos nós...


Um camião avariado na estrada Mansambo-Xitole... Isto faz-te lembrar alguma coisa, ó Marques dos Santos ? Sim, as colunas logístics Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho...

Créditos fotográficos : © Albano Costa (2006)

3. Comentário de Carlos Marques dos Santos, depois de visualizar estas imagens:
Mansambo, antes e agora. Até eu fiquei de boca aberta. Mansambo, aquilo??? Mas está explicado. No meu tempo só havia uma tabanca com meia dúzia de pessoas. O Leonardo era o chefe. O Lali Baló - ou Baldé (?) - e uma mulher lindíssima mais um filho pequenino.

Um Abraço,
Marques dos Santos
(Cart 2339, 1968/69)