1. Mensagem do Luís Carvalhido:
Ao receber este texto (*), tenho que reflectir, acerca daquilo que em baixo fica escrito. É que às vezes eu também me canso de não entender certas coisas, certas atitudes. E se é certo que começo a perder algumas capacidades do meu modesto intelecto, também é certo que conheci muitos FIGURANTES, nas minhas andanças, alguns dos quais fazem parte desta tua cadeia. E se a memória não perdeu de vez a lucidez, anda por aí gabiru.
- faço sempre as coisas com sentido altruísta;
- tive desde sempre intuitos firmes e sérios que paguei bem caro;
- lutei durante muitos anos numa luta desigual, sem nada pedir em troca;
- gosto de alertar aqueles de nós, (muitos), que apenas dormem;
- por isso às vezes sou incómodo, sobretudo se sinto ou pressinto alguma coisa que me fira a alma;
- por isso e se por acaso alguma minha atitude num passado recente te incomodou, não peço desculpa porque nunca faço nada com o intuito de ofender, ultrapassar ou obter qualquer benefício pessoal.
No meu conceito, os participantes do teu blogue, entre os quais me incluo, devem e têm que obedecer a regras, mas - e porque para mim isto é muito mais que um local de encontro -, os responsáveis do mesmo, antes de informarem, devem fazer uma viagem histórica por forma a não ofenderem aqueles que conhecem por dentro outras Histórias.
Caro Companheiro:
Acabo de receber o teu e-mail, no qual referencias a notícia de que os corpos dos companheiros, ou o que resta deles, acabam de ser transladados de terras da Guiné para solo Português. (**)
Naturalmente que essa notícia me comoveu e me encheu de uma alegria triste. Acompanhas a notícia, com algumas considerações pessoais, entre as quais salientas o dia 14 de Novembro e as comemorações nele contidas.
Vou tentar ser breve, mas antes deixa-me retirar do contexto os restos mortais dos nossos companheiros de armas, a quem deixo um minuto do meu silêncio. Depois passo a perguntar-te o seguinte:
- Porque estão os corpos, ou aquilo que resta deles em mais um dia dos Generais?
- Será para darem uma medalha de ferro às famílias e ficarem bem na fotografia?
- Porque é que tu, companheiro, que presumo seres de boa formação, não incentivas a que a própria Liga [dos Combatentes] pague as despesas dos que já vieram, bem como as do outro corpo que por lá ficou, uma vez que eles também se aproveitam da memória e da presença física dos nossos companheiros mortos?
Sinto-me triste por saber que esse dia é uma farsa para povo ver e por isso deixa-me dizer-te que a culpa é dos interesses maiores que movem muita gente que se arvora em defensor dos reais e legítimos valores de todos aqueles que suaram a bandeira.
É culpa das várias pessoas, associadas e dependentes de pequenos tachos e da valorização da imagem que alguns teimam em conseguir.
É culpa daqueles que, devido a uma antiga ruralidade, ainda se aninham ao poder corporativo, seja ele fardado ou não.
É culpa da presença daqueles que “pseudamente” se dizem muitas coisas e são outros dos tais.
Sabes, companheiro, a culpa não é das Associações, mas sim culpa das “presidenciações” que apenas vivem para os seus próprios interesses.
Por isso deixa-me dizer-te que pessoalmente o 14 [de Novembro] dos Generais, nunca. Nem desses nem de outros que se digam defensores dos Veteranos de Guerra e que depois se associam para que a água corra pró seu moínho.
EU, NÃO ESTAREI PRESENTE!
A memória dos restos mortais desses e de tantos outros que tombaram, assim mo exigem.
Saudações
Luís Carvalhido (***)
Barcelos 2009/09/12
3. Comentário de L.G.:
Há muito que não sabia de ti, camarada de Bambadinca (desencontrámo-nos lá por uma diferença de um ano...). Também, é verdade, não nos tens escrito, mas seguramente que vais acompanhando o nosso blogue, nem que seja à distância, e nem sempre concordando, necessariamente, com a nossa linha editorial. Não quero, nem devo, comentar o teu poste, e muito menos responder às tuas críticas. Quero apenas contextualizar as tuas duas mensagens.
A maior parte dos camaradas do nosso blogue não sabe que já foste dirigente (vice-presidente, em 2003) da APVG, e que deste o melhor do teu esforço à causa da dignificação de todos nós enquanto antigos combatentes. Está escrito, na coluna do lado esquerdo do nosso blogue, que "somos sensíveis aos problemas (de saúde, de reparação legal, de reconhecimento público, de dignidade, etc.) dos nossos camaradas e amigos, incluindo os guineenses que combateram, de um lado e de outro. Mas enquanto comunidade (virtual) não temos nenhum compromisso para com esta ou aquela causa por muita justa ou legítima que ela seja"... Isto não significa que cada um de nós, individualmente, não possa tomar posição sobre estas e outras questões. Não queremos, no entanto, substituir-nos à Liga dos Combatentes, à APVG e às demais associações.
Quanto ao teu protesto em relação às comemorações do dia 14 do corrente, não o publicámos na altura por manifesta incapacidade material... A efeméride, entretanto, passou e a própria notícia que originalmente publicámos sobre as trasladações não era verdadeira, era falsa (não há notícias parcialmente falsas ou parcial mente verdadeiras, há apenas notícias falsas e notícias verdadeiras).
____________
Notas de L.G.
(**) Vd. postes de:
12 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5261: Efemérides (29): Às custas dos seus familiares (Magalhães Ribeiro)
17 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5284: Dando a mão à palmatória (24): Os editores do blogue têm que ter rigor e espírito crítico em relação às suas fontes (Luís Graça)
(...) Entrevista a Luís Carvalhido, por Zita Fonseca e José de Coelho. Jornal de Barcelos. 9 de Julho de 2003 (com a devida autorização)
Alguns excertos:
(...) JB - O país foi ingrato para convosco?
LC - O país foi ingrato! O país não teve a capacidade de reconhecer isso e fez uma coisa ao contrário que foi tentar ocultar. Quando um povo não é capaz de reconhecer o seu próprio mérito, mesmo na adversidade, fraco é este povo ou fraco é quem o lidera. Actualmente, as coisas estão a vir ao de cima, o movimento está a crescer. A prova disso é esta Associação que é a maior com 40 mil membros, mas há outras com alguns milhares. Isso quer dizer que este movimento não vai parar. Isto assumiu proporções de bola de neve.
LC - Que veio marado, cacimbado, ninguém o pode aturar.
LC - Enorme. Há dois tipos de feridos e de feridas. Há os chamados deficientes das forças armadas, que estão à vista, e há os deficientes encobertos. E a própria família, sendo vítima do sistema - e o sistema era de encobrimento - tinha de acobertar os seus doentes suportando tudo à luz do modelo duma pretensa família católica. Ou seja, se o marido era um stressado, um indivíduo cacimbado como se diz na gíria, batia na mulher ela, porque era uma boa católica, tinha de aguentar. Se o marido batia nos filhos pedia-lhes que tivessem paciência. Durante muito anos foi assim. Finalmente, há cerca de meia dúzia de anos, fruto das lutas de pessoas mais atentas, está reconhecido o stress pós-traumático de guerra. Isto veio ajudar a quebrar os tabus. Começou a encarar-se com naturalidade a possibilidade de cada um transmitir ao seu psiquiatra ou psicólogo um fenómeno que estava associado a efeitos recorrentes. (...)