domingo, 13 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5460: Agenda cultural (51): Concerto de solidariedade pela banda Bela Nafa, 18 de Dezembro, Instituto Franco-Português (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos com data de 7 de Dezembro: Malta, Procurou-me Braima Galissá, o exímio tocador de Korá. Ele agora tem uma banda, a Bela Nafa e vão dar um concerto de solidariedade a partir das 20 horas de 18 de Dezembro, no Instituto Franco-Português, na Avenida Luís Bívar, n.º 91, perto do Saldanha. O concerto tem por objectivo a angariação de fundos para a compra de material hospitalar destinado à nova maternidade do Gabú. O ingresso são 10 euros

Lisboa > Museu da Farmácia > 11 de Novembro de 2008 > Lançamento do livro Diário da Guiné, 1969-1970: O Tigre Vadio > Um dos maiores representantes, na diáspora, da cultura guineense actual, o mestre, tocador de Kora e cantor (didjiu) Braima Galissá, mandinga do Gabu. (Recorde-se que o didjiu era, no passado, o tocador e cantor que ia, de tabanca em tabana contando estórias e transmitindo as últimas notícias)…Foram os seus tetravós que inventaram este instrumento único que é o Kora. Na festa do Beja Santos, ele tocou, cantou e encantou. Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados. __________ Nota de CV: Vd. último poste de 10 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5441: Agenda cultural (50): Apresentação do livro História de Portugal em Sextilhas, de Manuel Maia, na Tabanca de Matosinhos

Guiné 63/74 - P5459: Tabanca de Matosinhos (14): Jantar de Natal no Restaurante do Café das Artes, dia 12 de Dezembro de 2009 (Carlos Vinhal)

1. Ontem, dia 12 de Dezembro aconteceu mais um jantar de Natal da Tabanca de Matosinhos. Porque a sala de jantar do Milho Rei já se está a tornar pequena, o local do convívio foi transferido para o Restaurante do Café das Artes, ali para os lados do Campo Alegre, já na cidade invicta.

Desta vez houve um 3 em 1, porque antes do jantar, cerca das 19,30 horas, procedeu-se à reunião da Assembleia Geral da "Tabanca Pequena - Grupo de Amigos da Guiné-Bissau - Apoio e Cooperação ao Desenvolvimento Africano", sob a presidência da Comissão instaladora, para se proceder à eleição dos primeiros Corpos Gerentes, através de voto secreto depositado em urna. Feita a contagem de votos e elaborados os respectivos autos, pelas 21 horas os eleitos tomaram posse perante o Presidente da Assembleia Geral.

2. Ao jantar propriamente dito compareceram muitos camaradas e respectivas famílias que praticamente encheram a sala. Segundo pude apurar junto do Álvaro Basto, o grande administrador destas actividades, compareceram 80 pessoas das 82 que se tinham inscrito.

Nunca é demais realçar o bom ambiente de camaradagem vivido, a presença de inúmeras senhoras, e até algumas crianças, que deram um ar mais familiar ao evento.

Não se pode esquecer nunca o grande ausente fisicamente, mas sempre presente na lembrança da maioria, o Luís Graça a quem se deve estas reuniões, pois sem ele e este seu blogue sobre a Guiné, jamais teríamos estes momentos de convívio que já atingiu um cunho familiar, onde quase toda a gente se conhece. As pessoas deslocam-se propositadamente de várias localidades do país, algumas têm de percorrer uns bons quilómetros, para participarem e conviverem em volta de um ideal, o amor à Guiné do nosso tempo e à Guiné-Bissau de hoje.

O nosso camarada Manuel Carmelita, fotógrafo oficial da Tabanca de Matosinhos, enviou-me umas dezenas de fotografias, das quais destaquei ao acaso estas:

Um grupo de bonitas senhoras

Panorâmica da sala com 80 convivas

Marques Lopes acompanhado de sua família

O camarada António Barroso

David Guimarães e sua esposa Lígia

O sempre presente António Baptista, Paulo Santiago e António Pimentel

Álvaro Basto, a par de José Teixeira, grande impulsionador das actividades da Tabanca de Matosinhos, ladeado pela esposa Fernanda e pelo pai, senhor Rolando. Por trás o camarada Lobo.

Vasco Ferreira e esposa Margarida

António Carvalho e o seu bonito rebento.

António Pimentel e o nosso médico, Francisco Silva.

Camarada Peixoto, o feliz contemplado com o quadro a óleo de autoria de Jaime Machado.

José Teixeira procede à distribuição das prendas de Natal, coadjuvado pela sua simpática filhota.

Fotos de Manuel Carmelita


Que venha o Natal de 2010 onde seremos muitos mais que oito dezenas.
Como diria Fernando Gouveia, até para o ano camaradas.
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Nota de CV:

Vd. poste de 20 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5306: Tabanca de Matosinhos (13): Jantar de Natal de 2009 no dia 12 de Dezembro no Restaurante do Café das Artes, Porto (Álvaro Basto)

Guiné 63/74 - P5458: Estórias avulsas (20): Formigas vermelhas e formigas castanhas (Armandino Alves)



1. Em 13 de Dezembro de 2009, recebemos um texto do nosso Camarada Armandino Alves, que foi 1.º Cabo Auxilitar de Enfermagem na CCAÇ 1589 (Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé, 1966/68) e que passamos a transcrever:


Formigas vermelhas e formigas castanhas

Camaradas,

Eu não sei o que aconteceu depois de eu ter regressado da Guiné. Mas há uma coisa a que eu acho muita graça. Já li muitos postes sobre operações realizadas após eu ter vindo de lá. Já li o que foi escrito sobre os ataques de abelhas (que eu também sofri), mas nunca ouvi falar em ataques de… formigas.

Rainha e obreiras (in Wikipédia, enciclopédia livre)


Entre os vários tipos de formigas, existiam, no meu tempo, dois tipos delas caracterizadas pelas suas cores, umas vermelhas que se encontravam no Pilão, em Bissau, e que, atacando em conjunto, matavam uma galinha em poucos minutos segundo diziam os naturais locais.


Outras eram de cor castanha e encontrávamo-las no mato, quando andávamos em operações ou patrulhas nocturnas, pois elas só apareciam de noite. Se tínhamos o azar de fazer uma paragem junto de um dos seus formigueiros, era um ver se te avias. Toca a despir o camuflado para as arrancar do corpo, pois elas possuíam umas garras em forma de tenaz que se enterravam na carne e, quando as tirávamos, a cabeça ficava lá presa. Cabeça essa, que depois caía, pois, como é óbvio, tinha sido decepada do corpo.

Para evitar que elas trepassem pelas nossas pernas acima, é que os intervenientes nestas operações, eram previamente avisados para apertarem bem os cordões existentes no fundo das pernas das calças do camuflado, por cima dos plainitos, ou por cima dos bordos das botas de lona.

Em Béli, elas atacavam os nossos abrigos aos milhares e a única maneira de nos defendermos, era fugir cá para fora e esperar o regresso delas aos seus ninhos, o que se dava mal nascia o dia.

Nós esperávamos por elas com um bidão de gasóleo, espalhávamo-lo por cima dos seus corposs e lançávamos-lhes o fogo.

Só assim é que as conseguíamos matá-las.

Mas pelos vistos devemos tê-las matado todas, pois, até hoje, não ouvi mais ninguém falar nelas.

Como me parece que de 1966/68, sou o único sobrevivente em acção, não devo ter mais nenhum Camarada que me ajude a comprovar esta "formigada".

Um Abraço,
Armandino Alves
1º Cabo Aux Enf CCAÇ 1589
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

13 de Dezembro de 2009 >

Guiné 63/74 - P5457: Estórias avulsas (63): O regresso (José Marques Ferreira)

Guiné 63/74 - P5457: Histórias de José Marques Ferreira (12): O regresso



1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 11 de Dezembro de 2009, a seguinte mensagem:


A todos os camaradas desta tertúlia;

Aqui vai mais um dos meus modestos contributos para o blogue, que a inspiração e a boa forma encefálica ainda me permite.Nesta época, como digo abaixo, quero desejar a todos (mas a todos mesmo), que passem mais um dos bons momentos que possamos ter na vida: um Santo e Feliz Natal. Até um dia destes…

O regresso

Por acaso tenho presente todas as datas da minha prestação do serviço militar obrigatório. Mesmo quem as não as lembre, tem nas suas cadernetas militares de que são titulares, referidos esses tempos e os relatos de todo o seu percurso na tropa, como é do conhecimento geral.

Eu fui incorporado em 28 de Janeiro de 1963. Embarquei em Lisboa em 14 de Julho de 1963, no navio Sofala com destino ao C.T.I.G. (Comando Territorial Independente da Guiné), fazendo parte da CCaç 462, tendo desembarcado em Bissau em 21 de Julho. Em 7 de Agosto de 1965, embarquei em Bissau no navio Niassa de regresso a Lisboa, em 14 de Agosto.
.....
Depois desta, tenho outras pequenas histórias destas viagens, que não faz mal nenhum partilhar e convosco o farei. Começo pela última (o regresso), embora tenha na forja a da partida para a Guiné, sobre a qual, a 40 e tal nos de distância, apetece-me (agora) comentar. Digo entre parêntesis «agora», porque antes não podia, e se o fizesse cruel destino me esperararia.

Como já disse aqui várias vezes, chegamos à Guiné e ficamos (todos) "alojados" numa escola primária em Bissau (Escola Teixeira Pinto), próximo do Pilão, junto do depósito de água. Ali permanecemos uma semana. Após esse período, organizou-se uma coluna auto e lá fomos em direcção ao mato. Armados de G3 novas em folha, creio que as primeiras armas automáticas a serem utilizadas na Guiné, com destino a Ingoré.

Foi um tormento para lá chegar, menos de 100 Kms de distância! Hoje já não acontece isso, pela existência das pontes de João Landim e de S. Vicente.

O resto da Companhia foi distribuída por Sedengal, S. Domingos, Susana e Varela. Uma área enorme. Não vou agora falar de cada uma destas localidades. Uma região sempre junto da fronteira com o Senegal.

Nesta região, com algumas alterações pelo meio, aqui permanecemos durante dezasseis meses, «Na pousada do sossego!»

Na altura em que se começava, com aquele tempo, a pensar na contagem decrescente para o regresso, enfiaram-nos na zona de Bula, onde a Companhia que substituímos ficou reduzida a quase metade entre mortos, feridos, hospitalizados, evacuados, etc.
Imaginem o quanto sofreu aquela gente, cuja companhia já não lembro qual era, mas da qual tenho aqui próximo (no concelho) um camarada. Era condutor e chegou a andar pelo ar com uma mina na sua GMC, na estrada Bula-Binar-Bissorã.

Todos se interrogavam o porquê, com aquela «idade» de Guiné, terem-nos metido num local daqueles, quando até aí nunca tivemos de dar tiros contra o que quer que fosse.

Pouco tempo lá estivemos. De Bula, fomos ocupar a área compreendida entre Có, Ponate, Jolmete e Pelundo, onde não havia nada que permitisse um mínimo de condições de habitabilidade humana. Tivemos de construir tudo a partir do zero.

Passados uns meses, lá fomos novamente de tralha às costas para Mansoa. Para aqui já eu não me desloquei, porque era um período de permanência, para a espera de regresso a casa.

Como tinha sido 'aproveitado' para «administrador» da Companhia e como já referi em anteriores postes, essa administração era feita a partir de Bissau e então aqui permaneci até ao dia da chegada do Niassa. Inclusivamente estive com o alferes da área administrativa a fechar as contas do BCAÇ 507, que entretanto tinha terminado a comissão de serviço.

Fiz a lista identificativa do pessoal a embarcar (que ainda guardo), assinada pelo capitão Luís Manuel das Neves e Silva, que substituiu o Cap. Mil. Jorge Saraiva Parracho entretanto regressado à Metrópole. Entregue nos vizinhos da Amura (QG) e como estava na secretaria, mantinha-me sempre de ouvido alerta para saber quando chegava o barco e quando poderíamos embarcar.

Um dia chega chegou uma circular a anunciar o tão ansiado facto. Fui o primeiro a lê-la e fiquei assustado, porque não via na lista a identificação da minha Unidade Militar. Tive um assomo de lucidez e virei a página. Porra, no verso lá estava a CCAÇ 462... Era a última da lista... que alívio!

Recebida a ordem de embarque, fui o primeiro da Companhia a entrar no navio, após o almoço. Durante a tarde começaram a chegar os meus camaradas de Mansoa. E quando todos foram para a farra, em Bissau, comemorar a felicidade de regressar e gastar os últimos "pesos" que tinham no bolso, desafiaram-me a ir com eles também. Respondi negativamente, porque dali, de dentro do Niassa, já ninguém me tirava.

Efectivamente foi assim. Já dormi no navio nessa noite e até à saída no dia 7 de Agosto de 1965, ali permaneci. Quer dizer que terei entrado no navio Niassa, que me transportou até Lisboa, no dia 6 de Agosto de 1965.


Navio Niassa


Para todos um abraço,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:


Guiné 63/74 - P5456: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (1): Esta noite fomos ao Fiofioli

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo, da CCAÇ 2405, junto a um dos helicópteros. O número de evacuações, por insolação, desidratação, doença, ataque de abelhas e esgotamento foi enorme: mais de uma centena de casos.

Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados


1. Texto, de nove do corrente, enviado pelo nosso camarada António José Pereira da Costa (Cor Art na reserva, na efectividade de serviço), ou António Costa, tout court, que comandou a CART 3494 (Xime, 1972/1973):

Camarada: Aqui vai um texto que escrevi a propósito das aventuras de um dos meus alferes.

Em anexo segue umas fotos do mesmo.

Depois de muitas aventuras e, principalmente desventuras, está no Telhal, numa situação psicológica que lhe permite sair, viver fora do hospício, mas em regime de república junto de outros doentes. Vi que reagiu mal à mobilização e que nunca aceitou a guerra como uma necessidade, mas sim como algo, tipo pincel, que era necessário fazer, por não haver saída. Sofria muito, mas pareceu-me sempre que recuperaria e, à chegada, chegou a ser o meu dentista.

Se puderes publicar, será uma homenagem?!

Ora informa.
Um Ab. do
António Costa


2. Mandei ao António Costa o seguinte desafio:

António: Adorei!!! Andaste a esconder, este tempo todo, o teu talento literário... Se me garantires, no mínimo, mais cinco textos, vou abrir para ti uma série (exclusiva) que pode ser qualquer coisa (irónica) como Um Capitão do QP gozando as delícias do sistema; ou: O quotidiano da guerra de um Capitão do QP...

O título és tu a escolhê-lo e deve incluir o teu nome... O que vai variando é o subtítulo... Estás nessa ?

O mito (e o papão) do Fiofioli já vinha do meu tempo... Procura na I Série do Blogue... A malta foi lá n aLança Afiada (Março de 1969)... A minha malta (CCAÇ 12) andámos lá perto mas nunca lá fomos... Esses 19 km eram fatais, a nossa artilharia não chegava lá...do Xime ou de Mansambo ou do Xitole.

Um abraço. Luís

3. As Idas ao Fiofióli
por António Costa

Não sei, mas gostaria de saber, o que quer dizer Fiofioli. Talvez signifique algo que nada tem a ver com violência ou com guerra, numa qualquer língua primitiva dos povos da Guiné...

Durante a guerra, no Xime, ouvíamos falar de uma base muito poderosa que o inimigo teria na mata do Fiofióli e, a fazer fé na carta topográfica, a mata era banhada a Sul pelo rio Corubal e circundada por bolanhas pelo Norte, Oeste e Leste. Uma bolanha é, essencialmente, uma zona alagável, geralmente aproveitada para o cultivo do arroz. Podemos, por isso, dizer que a mata do Fiofióli era quase uma ilha que distava, em linha recta, cerca de 19 km do nosso quartel. Não tenho memória de nenhuma acção ofensiva (*) sobre esta base, o que levantaria problemas graves na aproximação que lhe fosse feita. E, contudo, ela existia, não passando, talvez de um pequeno conjunto de moranças. Às vezes a fama não corresponde à realidade...

A messe de oficiais do quartel do Xime era constituída por quatro rulotes, que serviam de quartos, imobilizadas nos vértices de um rectângulo de terreno acimentado. As rulotes, já bastante degradadas, tinham sido utilizadas pelo Amílcar Cabral, quando trabalhava para o Estado Português, integrado numa brigada para o estudo da agricultura da Guiné.

No centro do rectângulo acimentado, cravado no solo, havia um alto tronco de palmeira que servia de apoio central ao telhado de quatro águas, em colmo e rachas de cibe. Junto do tronco de palmeira estava a mesa onde almoçávamos e jantávamos, à luz de um candeeiro com três lâmpadas dentro de garrafas sem fundo e pendurado no telhado daquela espécie de gigantesca morança.

Alguém havia criado um “espaço de lazer” constituído por uma mesa baixa, de forma oval e quatro maples baixos em madeira. O conjunto estava envernizado a escuro e a madeira era, quase de certeza, de bissilon. Alguém tinha construído também um “espaço desportivo” numa pequena mesa de pernas bastante altas. Era um tabuleiro para jogar damas ou xadrez, desde que alguém trouxesse as respectivas peças, claro. O tabuleiro tinha os habituais quadrados pretos e brancos e era circundado por uma faixa verde-alface, onde se podiam depositar as peças fora de jogo. A esta distância não me lembro de outro mobiliário que, por ali houvesse.

A entrada da messe era larga e eu nunca a vi fechada, embora tivesse dois portões (chamemos-lhe assim) em chapa de zinco ondulado. Pela altura que tinham, pouco mais de um metro, não sei bem qual seria a sua utilidade, mas decoravam e muito... Daí que a messe, vista daquele lado mais se assemelhasse a uma garagem com telhado de capim. Na parede oposta à entrada, havia três portas: a do centro dava acesso a uma casa-de-banho rudimentar, a da esquerda à, muito pomposamente designada, copa e a que se situava bem no canto do lado direito era a entrada para o gabinete do comandante da companhia. Este era exíguo, com o mapa do sector pregado na parede atrás da cadeira rotativa e de madeira. Tinha uma secretária pequena, feita de madeira de má qualidade e que o ocupava em grande parte. O gabinete tinha janela, mas já não me recordo se tinha porta para o exterior do “edifício” da messe.

Assisti, enquanto criança, à construção de, pelo menos, uma das rulotes. Pude confirmá-lo ao ver uma pequena chapa que atestava que havia sido construída na Auto-industrial da Amadora, situada na avenida Santos Matos. A oficina tinha uma espécie de pátio, onde ficavam arrumados os carros e onde eram feitos certos trabalhos, como foi o caso da construção da rulote. Os meus pais disseram-me que o Mercado Municipal havia funcionado no edifício e pátio da oficina.

Vi, pois, construir a rulote que, entre Junho e Novembro de 1972, me serviu de quarto. Estava muito degradada, assim como todas as outras. Já só tinha uma divisão utilizável e aquilo que fora a casa-de-banho era agora um monte de bocados de madeira e alumínio ou outro produto parecido. Utilizei o mobiliário de que o quarto ainda dispunha, já mais que gasto pelo uso e maus tratos dos outros utilizadores. Tinha a sensação de viver num lugar estranho, numa espécie de sótão pleno de restos de coisas indescritíveis em que avultavam os bocados de alumínio, de contraplacado e restos de colchões, num ambiente fortemente temperado pela humidade. Enfim, como era só para dormir, talvez não tivesse de que me queixar...

A esta distância no tempo, não consigo acrescentar outros detalhes à descrição às “rulotes do Amílcar”. Naquela altura ouvi dizer que ainda havia uma outra, abandonada em Pirada, transformada em posto de sentinela.

Na messe havia também um bar, que não passava do aproveitamento do espaço entre duas rulotes, onde fora construído um balcão em madeira e verga. Atrás do balcão, funcionava um frigorífico a petróleo, cuja mecha se apagava sempre que a artilharia fazia fogo. Recordo-me que tinha prateleiras, cuja utilidade não descortinei, por estarem sempre vazias. Não serviam para nada, mas decoravam. Já se imaginou um bar sem prateleiras?

Era naquele espaço que ficávamos, depois do jantar, a conversar acerca de tudo o que fosse surgindo. Passaram vários por ali, mas, normalmente éramos quatro ou cinco. Recordo o Gomes, o Carneiro, o Pinho da Artilharia, rapidamente substituído pelo Viegas, o Sousa e o Pereira. Enquanto lá estive, passou por lá o Correia, muito activo e animado, mas que, ao fim de poucas semanas, foi transferido, não sei para onde, após uma visita do brigadeiro adjunto-operacional.

O ambiente era triste e lúgubre. As conversas banais ou profundas, sem que para isso houvesse intenção dos participantes. Tinha de ser assim, entre tão poucas pessoas forçadas a conviver num espaço tão reduzido. Muitas vezes falávamos da guerra e da política do país. Debatíamos a guerra quer na Guiné, quer no sector que nos tinha tocado. Neste último tema não havia grandes inovações e acabávamos sempre a comentar as “últimas notícias do Batalhão”. Eram normalmente histórias cómicas, que resultavam de mal-entendidos ou situações pouco claras.

Entre essas histórias surgiu uma verdadeiramente insólita com o nosso comandante de batalhão. A dado momento da comissão, foi promovido, mas manteve-se em funções. Como é natural não havia possibilidades de comprar um par de galões de coronel, no interior da Guiné. Daí que, um dia ou dois depois de ter sido promovido, tivesse ido ao Xime, sem nenhum distintivo que o identificasse pelo posto. Ao vê-lo assim, perguntei-lhe se fora despromovido, crendo que a falta dos galões se devia a simples distracção. Quando me respondeu negativamente, sinceramente, não acreditei que tivesse sido promovido e, gozando interiormente com a “distracção”, limitei-me a desejar-lhe felicidades no novo posto. Porém, vim a saber que a esposa dele, diligentemente havia tentado colmatar a falta de galões do marido, cozendo junto dos de tenente-coronel, um galão de alferes. Por esses dias o chefe do Serviço de Intendência da Guiné visitou o Comando do Batalhão e, logo ao descer do avião, ao ver os extravagantes distintivos do novo posto, perguntou-lhe:
- Olha lá, oh T... agora és um coronel entre parêntesis?

Descrito o ambiente e as rulotes, passemos aos seus habitantes.

O “Manel” Gomes tinha andado comigo no liceu Passos Manuel. Dois ou três anos mais novo, era um miúdo agressivo, sempre em actividade e que não podia deixar de chamar a atenção para os seus cabelos louros encaracolados e os olhos azulíssimos. Era aquilo a que podíamos chamar um malandreco reguilote.

Passados dez anos, ali estava ele, praticamente só, no comando de mais de meia-companhia. Quando cheguei, estava a braços com os restos da emboscada na Ponta Cóli, que tinha dado vários feridos e a morte ao furriel Bento. Havia tarefas burocráticas a cumprir e prazos a respeitar e o Gomes sofria por não saber o que fazer, parecendo não ter apoio de ninguém. Suava quase permanentemente e vivia numa tensão que não abrandava. Amava profundamente a mulher e a filha e, numa pequena embalagem de plástico, levava para as operações, num bolso do camuflado, uma frase escrita no reverso do retrato das duas:
- Abandonne-toi à ma providence et ne doutes jamais de mon amour. [Entrega-te à minha providência e nunca duvides do meu amor].

Era um jovem generoso a pedir que o guiassem. Quando retirámos da água o corpo sem vida do Sousa afogado no Geba, queria, recorrendo aos toscos conhecimentos dum primeiro ano de medicina incompletíssimamente estudado, retirar do corpo, a água que impedia que fosse metido no caixão. O Sousa acabou por ser sepultado em Bambadinca, dentro de um caixote de bacalhau, ao fim de vários dias de espera pelos ferros e luvas de autópsia que permitissem aproximar o corpo das suas dimensões normais. Vi, num programa da televisão portuguesa, o estado em que a sepultura está, passadas que foram quase quatro dezenas de anos. Com poucas defesas a nível psíquico, o Gomes sofria cada vez mais. Voltei a encontrá-lo, na terra onde ambos vivemos. Era dentista, bem afreguesado e foi o dentista da minha família até que o consultório fechou. O resto todos sabemos.

O Viegas gritava, de vez em quando, que “queria andar de eléctrico”. Era natural. Para ele “Portugal era Lisboa” (sua cidade natal) e a “capital era Boa-Hora” (o bairro onde residia e que era bem servido de eléctricos). Era um rapazinho de cidade, um produto da Lisboa daquele tempo. Frequentado o Liceu, preparava-se para iniciar a sua carreira de cidadão suburbano no país triste do tempo, entre as habituais “vitórias do Benfica” arduamente discutidas no escritório, à segunda-feira, e a monotonia da programação da televisão que dava ainda os primeiros passos. Parecia ainda uma criança, que não entendia o que lhe tinha sucedido, ao cair naquele local. O Gomes tinha dado uma ajuda para que assim fosse.

No dia da chegada do Viegas, o Gomes resolveu disfarçar-se de “apanhado do clima”. De camuflado, com o dolman desabotoado de alto a baixo arrastava os longíssimos atacadores das botas por atacar. Ao ombro trazia um periquito com quem vinha a conversar. Parou junto do Viegas e perguntou-lhe:
-Tu, estás aqui porquê? Também vens resolver o problema do balanta?

Mais que surpreendido, Viegas nem respondeu:
- Anda TóTó, não ligues ao gajo, que é maluco - disse para o periquito e virou as costas em direcção à messe de sargentos.

O “piriquito” (nome que se dava, na Guiné, aos militares recém-chegados) Viegas não sabia o que fazer. Disse-nos, depois de refeito, que chegou a admitir que o Gomes estava mesmo “apanhado pelo clima” e interrogava-se como iria lidar com alguém naquele estado de espírito. Foram realmente uns minutos infernais, com o Gomes a entrar e a sair da messe e a interrogá-lo sobre o “problema do balanta”. Esta expressão era utilizada por um industrial de Bafatá, com quem conversávamos, às vezes quando vinha ao cais do Xime, despachar madeira. Era a sua explicação para a guerra, naquela área da Guiné. Segundo ele, no dia em que se compreendesse o povo balanta e o seu modo de pensar, a guerra terminaria. Não sei se o dizia sentindo-o ou se pensava estar a ensinar-nos qualquer coisa. Captámos-lhe a expressão, que tantas vezes usava, e adoptámo-la quase como “bordão” nas conversas diárias.

O Sousa era mais velho, talvez o mais velho de todos nós. Com físico de lutador, do alto do seu metro e oitenta tinha um aspecto grave, falava baixo e parecia envelhecido e marcado pela vida. Talvez por isso, não exercia uma crítica muito aberta ao meio que o rodeava, mas via-se claramente que não “fora feito para aquilo”. Um dia perguntei-lhe o que fazia ali sendo licenciado em engenharia têxtil pela Universidade de Leeds. Quais seriam as razões que o teriam feito voltar para Portugal com uma habilitação tão válida? Compreendi, então o seu ar sério, a sua falta de alegria própria da idade e, ao mesmo tempo, um certo estoicismo com que se conduzia. Tinha um irmão deficiente mental e preparava-se para passar a gerir a fábrica que a família tinha na Covilhã, quando voltasse a Portugal. Estava a atravessar o deserto, desde que fora incorporado em Mafra. Já licenciado, tinha sido considerado apto para comandante de companhia e, na Guiné, fazia um estágio de quatro meses. Seria promovido a tenente, à chegada a Lisboa, e embarcaria como capitão graduado, à frente de uma companhia. Esta era uma situação que dava o indício da falta de meios humanos com que o Exército se debatia e da maneira atamancada como a administração estava a resolvê-la.

Conheci mal o Carneiro, com quem estive pouco tempo. Tenho ideia de que foi transferido para uma companhia de tropa africana. Depois do 25 de Abril, encontrei-o junto ao Palácio da Independência, onde funcionava a Associação de Deficientes das Forças Armadas. Fiquei a saber que foi atingido, num olho, por um estilhaço minúsculo que lhe limitou a visão.

Também não conheci bem o Pereira de quem guardo uma imagem de maturidade, quer na vida, quer na tropa. Julgo que foi tardiamente mobilizado, mas a que motivos isso se deveu, não sei.

À noite, depois do jantar, sentávamo-nos a conversar e bebíamos aguardente Antiqua, cuja garrafa tinha a forma de um esguio funil de vidro. Quando uma garrafa se esgotava, metíamo-la numa vasilha com água e retirávamos-lhe o rótulo que colávamos na parede exterior da rulote do Gomes. Assim, íamos fazendo um painel com mosaicos negros com letras douradas. Era uma forma de decoração barata e... própria de um local de convívio. Às vezes havia música. Era sempre a mesma, mas era música. Viegas anunciava:
- Agora, senhoras e senhores vamos ouvir o conhecido “Gomes dos Autos” na popular canção: Quem eu Quero não me Quer.”

O Gomes dedilhava a viola e lá ia cantando. Era a única canção que sabia tocar completamente. “Arranhava” outra, mas quase nunca chegava ao fim. Era em inglês e isso complicava a tarefa. E começava “Nights in White Satin...”

Outras vezes ouvíamos o “Pê-Fê-Á Noctuuuurno”, feito pelo locutor 1º cabo João Paulo Dinis. Era a edição nocturna do Programa das Forças Armadas, que terminava cerca da meia-noite. A partir daí, a rádio só recebia parasitas ou, esporadicamente, alguma longínqua estação africana, a emitir numa língua que não entendíamos. Durante o dia ainda conseguíamos ouvir a rádio do Senegal que tinha um programa cujo genérico era a Françoise Hardy a cantar “Je Veux qu’ils reviennent”, mas de noite era melhor poupar as pilhas do rádio.

O Sousa e eu recolhíamo-nos relativamente cedo. Terminados os temas de conversa, íamos para os nossos quartos. Normalmente o Gomes e o Viegas ficavam mais um bocadinho a conversar e para um último cálice. Durante algum tempo ainda os ouvia a conversar. Mas havia noites em que a conversa se prolongava numa catorreira repetitiva. Era uma conversa monótona, tanto pelo tema, como pelo ritmo e altura da voz. As conversas dos (cada vez mais) bêbedos duram muito e aquelas podiam chegar a uma noite inteira.

No dia seguinte, quando lhes perguntava a que horas se tinham deitado a resposta era sempre a mesma:
- Tarde! Esta noite fomos ao Fiofióli!

Vim a saber, um dia, que às vezes conversavam e bebiam até o Sol nascer. Depois iam ao padeiro da companhia que, por volta das seis da manhã, já tinha o pão a sair do forno. Era um pão de boa qualidade, como era habitual nas unidades do mato. Os dois conversadores, bem conservados em álcool, comiam pão às fatias bem barradas com manteiga e café quente. Depois, iam então descansar de mais um golpe de mão à Mata do Fiofióli.

Talvez fosse a maneira de resistir que, instintivamente, tivessem descoberto, num sítio onde o inimigo não seria a nossa maior razão de queixa... Mas isso são outras histórias.
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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)

(...) Publica-se a quarta e última do extenso relatório da Op Lança Afiada, que decorreu entre 8 e 18 de Março de 1969, na região compreendida entre a linha Xime-Xitole e a margem direita do Rio Corubal, até então considerada como um "santuário do IN".

A operação, comandada pelo coronel Hélio Felgas (o patrão do Agrupamento 2947, mais tarde comando operacional de Bafatá, COP 7, se não me engano), coadjuvado por dois tenentes-coronéis, Jaime Banazol (liderando o Agrupamento Táctico Sul, com mais de 500 homens que partiram do Xitole e de Mansambo) e Manuel Pinto Bastos (comandante do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70), que encabeçava o Agrupamento Tático Norte (com cerca de 750 homens, que partiram do Xime). Ao todo 1300, entre soldados metropolitanos, milícias e carregadores...

Foi uma das últimas grandes "operações de limpeza", realizadas no primeiro ano de Spínola, enquanto Governador Geral e Comandante-Chefe (que fez questão de estar presente, junto das NT, no Dia D + 9, ou seja, 17 de Março de 1969, partilhando inclusive o transporte naval que levou os nossos esgotadíssimos camaradas da Ponta Luís Dias à Ponta do Inglês, no regresso ao Xime.

Apesar dos elevados meios humanos e materiais envolvidos, a correlação de forças não se modificou e, depois de um rápido processo e reorganização, a guerrilha voltava a obrigar as NT a acantonarem-se nos seus aquartelamentos onde flutuava a bandeira verde-rubra (Bambadinca, Xime, Mansambo e Xitole) e destacamentos dispersos. A população civil, sob a administração do PAIGC, foi a grande vítima desta megalómana e descoordenada operação.

Os soldados portugueses serviram, por sua vez, de cobaia num teste de resistência, a que o autor do relatório, sem despudor, chama processo de "selecção natural" (sic)... Num total de 700 e tal homens metropolitanos (o resto eram milícias e carregadores, habituados às duras condições do terreno), conclui-se que um sétimo fora mal seleccionado para o TO da Guiné, já que no decorrer da operação teve de ser evacuado, de helicóptero, por "insolação, ataque de abelhas e doença" (sic).

É o próprio relatório a reconhecer que, nesta época (tempo seco), as temperaturas andarvam entre os 39 e os 44 graus, à sombra, e entre os 55 e os 70º ao sol, e que nesas condições, (i) a guerra tinha que parar das 10 da manhã às 16h da tarde, precisando um soldado metropolitano de 8 a 10 litros de água (!)...

Nesta operação em que os guerrilheiros e a população por eles controlada passaram simplesmente para o outro lado do Rio Corubal (com os cães, os porcos, as galinhas...) (não havia paras, comandos nem fuzos do outro lado...), o verdadeiro inimigo das NT foi, de facto, a desidratação, além dos problemas alimentares: o tipo de rações que deram aos nossos soldados (a ração dita normal) era tão má que provocava uma sede horrível: ao segundo dia, já não se comia; ao terceiro, começava a haver problemas...

Tratou-se de uma operação onde se foi a lugares míticos, como a mata do Fiofioli, junto ao Corubal, mas ninguém encontrou médicos e enfermeiras cubanas... Hospitais de campanha, sim, mas já abandonados, uns meses antes. Destruiram-se muitas toneladas de arroz, mataram-se milhares de animais, queimou-se tudo o que era tabanca... Em contrapartida, houve 24 flagelações do IN, mas os guerrilheiros seguiram as regras da guerrilha: retirar quando o inimigo, ataca: atacar, quando o inimigo retira... O autor do relatório, irritado, queria que os tipos do PAIGC se apresentasse de peito feito às balas e dessem luta...

O mais caricato e divertido desta operação é que o pessoal deitou fora as rações de combate e desatou a comer leitão assado no espeto!

Este é um cínico relato da dura condição da guerra da Guiné, vista pelo lado dos tugas. Por outro lado, há críticas veladas, do autor do relatório, ao Comandante-Chefe, ao Quartel General e à Força Aérea (que se teria comportado como uma verdadadeira prima dona...).

Há coisas, pouco abonatórias para as NT, que se passaram neste operação e que eu deixo à atenção e consideração dos tertulianos e demais visitantes deste blogue. Cada um de vós que faça a sua leitura desapaixonada... Aqueles de nós, que foram operacionais, rever-se-ão mais facilmente no cenário que foi o da Op Lança Afiada... Sobre o desempenho dos actores, já não vale a pena assestar as bateria da crítica... Felizmente que a guerra acabou! War is over, baby!

Seria interessante ouvir, entretanto, o depoimento de camaradas do BCAÇ 2852 que participaram na Op Lança Afiada. Infelizmente, ainda não temos [não tínhamos em Novembro de 2005] ninguém dessa unidade, na nossa tertúlia.

Para uma correcta localização das povoações ao longo da margem direita do Rio Courbnal, consulte-se o mapa, dos Serviços Cartográficos do Exército, relativo ao Xime, disponibilizado, mais uma vez, pelo nosso amigo e camarada Humberto Reis, ex-furriel miliciano da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71). O mapa do Xime deve ser complementado por outros como Fulacunda, Xitole e Bambadinca, também disponíveis on line.

Deixem-me só lembrar que, dois meses depois desta operação, o PAIGC retribuiu a visita das NT e apareceu às portas de Bambadinca em força: mais de 100 homens, três canhões sem recuo, montes de LGFoguetes, morteiros... Esse ataque ficou célebre: os tipos de Bambadinca foram apanhados com as calças na mão, faziam quartos de sentinela sem armas; enfim, um regabofe... Claro que no dia seguinte o Caco Baldé deu porrada de bota a baixo, nos oficiais todos, do tenente-coronel (o célebre Pimbas) até ao capitão da CCS...

Um caso exemplar, divertido e hilariante, da guerra da Guiné... A sorte dos gajos de Bambadinca foi os canhões s/r terem-se enterrado no solo e a canhoada cair na bolanha... Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, uma semana depois, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de18 meses de inferno...quando fomos justamente colocados no Sector L1), os nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda estavam sem pinga de sangue...

"Podíamos ter morrido todos", dizia-me 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, da minha terra, Lourinhã... Fomos depois nós , para lá, com os nossos nharros, e em 18 meses nem um tirinho: que o respeitinho (mútuo) era muito bonito... Porrada, porrada, era só quando a gente se atrevia a meter o bedelho na terra deles, que já estava "libertada"... Eu faria o mesmo, na minha terra...

Na história do BCAÇ 2852, o ataque a Bambadinca é dado em três linhas, em estilo telegráfico:

"Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr In de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros". (L.G.).

Vd. também , 6 de Julho de 2006 >Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

sábado, 12 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5455: Memória dos lugares (60): O Rio Geba e o navio Bubaque, do meu pai (Manuel Amante da Rosa)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o Rio Geba ao fundo e o cais fluvial. Foto tirada do quartel de Bambadinca.

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados



1. Comentário de Manuel Amante da Rosa, cidadão cabo-verdiano, embaixador, ex-militar dos serviços de intendência (Bissau, 1973/74), membro da nossa Tabanca Grande desde Maio de 2007 (*) (Infelizmente desencontrámo-nos por ocasião do IV Encontro Nacional do Nosso Blogue, em Junho passado. Temos, pelo menos, dois amigos comuns do mundo lusófono: Pepito, em Bissau; Isabel Brigham Gomes, na Cidade da Praia. Saudações lusófonas, pelo seu reaparecimento. L.G.)



Caro Arsénio Puim (**), alegrou-me muito saber que fez uma viagem no Bubaque,  de Bambadinca para Bissau. Muito provavelmente, se a sua jornada foi num fim-de-semana eu deveria estar a bordo. Se assim foi, deveremos ter saído do sempre atulhado e improvisado cais de Bambadinca às 11 da manhã. Uma a duas horas antes da vazante. Factor regular (horário das marés) que muito nos preocupava para não ficarmos em seco no meio do Mato Cão. 


O Bubaque era do meu Pai que o adquirira à Marinha Portuguesa e o transformara em barco de passageiro com capacidade para 140 ou 180 passageiros, após ter sido abatido à carga. Teria sido antes uma traineira algarvia que foi transformada ainda em Portugal em Lancha Patrulha (o LP4) com uma pesada casamata blindada, em ferro, a meia nau e enviada para a Guiné em princípios de 1960. Muito patrulhou os rios da Guiné tendo inclusivamente participado na batalha do Como. 


Com a chegada regular das LDM e LDP as 4 LP tornaram-se absoletas e foram abatidas por Decreto do Ministro da Marinha. Eram robustas, aguentavam bem o mar e todas possuiam bons motores. O Bubaque era muito conhecido na região do Leste. Era a carreira mais regular entre Bissau e Bambadinca e exclusivamente destinada ao transporte de passageiros e suas cargas. 


Era também conhecido por Djanta Kú cia pela sua rapidez na jornada. Significava que se podia almoçar em casa e chegar ao seu destino ainda a tempo de jantar. Fiz muitas e muitas viagens nesse navio, mais de dia que de noite, algumas com acidentes e avarias graves no percurso mas, estando a bordo, nunca fomos vítimas de ataque. Meu Pai,  sim, numa madrugada em pleno Mato Cão, por erro de identificação. 


Não me parece que tivesse havido alguma vez um acordo ou pagamento de passagem. Era sabido que só transportavámos passageiros e muitos deles seriam familiares próximos de quem estava na luta,  quando não fossem mesmo guerrilheiros ou mensageiros a caminho de Bissau e vice-versa. Transportei muitas vezes militares que demandavam e/ou outro porto.  Sentiam-se seguros no Bubaque. A viagem directa Bambadinca-Bissau demorava em média de 5 a 6 horas, duas das quais na auto-estrada do Mato Cão a parte que mais encanto me dava. A subir era sempre menos.

No Geba largo, no tempo das chuvas e tornados, a preocupação era evidente devido às vagas curtas, sempre de través e instabilidade da massa humana a fugir da chuva ou a agachar-se do vento a sotavento dele. Nessas ocasiões aproximavamo-nos da margem oposta passando por Jabadá e Enxudé até cortar directo para oeste de Cumeré, passar entre a ponte cais e o ilhéu do Rei e atracar no Pidjiguiti. No outro dia, a favor da maré, lá se iniciava uma outra jornada. Tenho ainda vivas as mesmas imagens que tão bem descreveu das margens do Geba apertado.


Um forte abraço
Manuel Amante da Rosa


____________


Notas de L.G.:


(*) Vd. poste de 27 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1787: Embaixador Manuel Amante (Cabo Verde): Por esse Rio Geba acima...


(...)Na minha infância e adolescência fiz muitas viagens pelo interior da Guiné-Bissau durante a luta de libertação. Mas o que mais me encantava (70/73), pelas paisagens e desafios, era subir o Rio Geba, nas férias ou mesmo nos fins de semana, num dos barcos de passageiros do meu Pai [o Bubaque] (...)

A jornada começava com a enchente da maré, passando por 
PortogolePonta Varela, Xime e daqui para a frente quase sempre a rasar as margens, ora de um lado ora de outro, ver passar o Mato Cão e Nhabijões até chegar ao pequeno mas movimentado porto de Bambadinca, onde sempre havia lanchas e batelões.

Não raras vezes, no regresso, saíamos de noite de Bambadinca rezando, tripulantes e passageiros, para que nada acontecesse até passarmos o Mato Cão. Salvo raras ocasiões as preces foram escutadas. O encanto era absorvente em noites de luar a descer o Geba a favor da maré, com o maquinista a ficar satisfeito, em termos de rotações do motor, só quando via faíscas e fumo espesso a sair da chaminé. Parecia que andávamos numa estrada cheia de curvas tal a velocidade com que descíamos o rio. As apreensões só desapareciam, na última curva, quando víamos as luzes do quartel do Xime. De noite 
Ponta Varela não constituía perigo. Passávamos a uma razoável distância.

Faço estas referências porque acabei por rever muitas imagens de Bambadinca e das suas gentes, onde passei férias com mais colegas estudantes e ia à caça, idas à boleia em viaturas militares ou civis, sem escoltas até ao Xime para ver o macaréu passar, 
cambanças para a outra margem do porto de Bambadinca de canoa, visita ao aquartelamento de Nhabijões que muito impressionou pela vetustez das instalações e más condições que facultava. (...)


Abraços e votos de que as memórias, por mais dolorosas que possam ter sido, não sejam apagadas mas se possam erigir numa teia que envolva ainda mais a todos os que nasceram, viveram ou tenham passado pela Guiné.


___________


(...)  Manuel Amante da Rosa nasceu em Bissau a 19 de Dezembro de 1952. Foi militar (1973/74), do recrutamento local, no CIM de Bolama onde fiz a recruta e especialidade antes de ser colocado no QG (Chefia dos Serviços de Intendência) em Bissau.

Graduado pela Academia Diplomática Brasileira –Instituto do Rio Branco – (1977/80), foi:



 (i) embaixador de Cabo Verde em Angola, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, Namíbia, Zâmbia e Zimbabwe, 
(ii) observador Internacional da OUA no processo de democratização na República da África do Sul (1993-1994),
(iii) encarregado de Negócios junto do Governo da ex-URSS, 
(iv) membro da Missão Permanente de Cabo Verde junto das Nações Unidas em New York, 
(v) Delegado de Cabo Verde na Segunda Comissão da Assembleia Geral, entre muitas outras funções ou cargos...


É actualmente Secretário Geral Adjunto do Secretariado Permanente do II Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa.


(**)  Vd. poste de 12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5453: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917. Dez 69/Mai 71) (5): O grande Rio Geba

Guiné 63/74 - P5454: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (15): Tabanca de Matosinhos, Tertúlia do Cozido à Portuguesa e viva a amizade (Juvenal Amado)

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 11 de Dezembro de 2009:

Carlos
Fiquei com ideia que o endereço do blogue seria outro por o LuisGraça ter atingido o limite.
Assim envio-te esta pequena crónica da nossa deslocação aí à Tabanca de Matosinhos no dia 9.12, que também será um pré-convite para um almoço em Monte Real que oportunamente faremos notícia.

Um abraço
Juvenal Amado


O lançamento do Livro do Manuel Maia* foi o pretexto para um dia bem passado em que voltamos uns anos atrás, pois jovens só não somos na aparência.

Eu e Mexia cedo nos fizemos ao caminho, que a viagem era longa.

Em Buarcos apanhámos o Vasco e em Aveiro o Reis. Calmamente galgámos quilómetros em alegre convívio.

Nunca nos calámos. Falámos da Guiné, do blogue, de Deus, de religiões e do prazer de estarmos juntos.

Finalmente chegámos a Matosinhos e junto ao restaurante lá estavam já alguns camaradas da Tabanca de Matosinhos. Trocámos abraços apresentámo-nos, uma vez que as fotos do blogue não são por vezes facilmente identificáveis com a realidade.

Alguns dos madrugadores: Antonieta Sardinha, Vinhal, Jorge Picado e o seu amigo, Mexia Alves, senhor Rolando (pai do Álvaro Basto), Baptista e, de costas, José Manuel Dinis.
Foto de Juvenal Amado


Não interessa o que comemos, pois o verdadeiro prato era a companhia uns dos outros.

Revi o Vinhal, o Pimentel, o Zé Manel, o Picado, o Dinis, o Guimarães e o Carvalho. Conheci fisicamente o Jorge Teixeira, o Tavares, o Faria, o Marques Lopes, o Hélder, o Belarmino e esposa, o José Teixeira, o Bastos, o Maia e outros camaradas, que me perdoem pois não me lembro do nome de todos.

Ri e emocionei-me.
Era impossível não acontecer quando o Maia agradeceu a presença de todos.

Quem chega pela primeira vez à Tabanca de Matosinhos assina o quadro de honra. Juvenal Amado não fugiu à tradição
Foto de Jorge Teixeira


Lamentámos quando as horas se impuseram e as despedidas foram inevitáveis.
Mais um abraço ao Maia, despedimo-nos da esposa e filho já só restávamos nós.
A caminho de regresso, foi da mesma maneira feito com alegria. Quem é que pode estar triste ao pé do Vasco e do Mexia?

O Mexia declamou uns versos que nós baptizamos de neo realistas, moderadamente existencialistas e a puxar para o psicadélico. Enfim tinham tudo!

Foi mais ao menos aprovado na generalidade e lançada a primeira pedra da Tertúlia Do Cozido à Portuguesa.

O acontecimento será efectivo lá para Janeiro, em Quarta-Feira a indicar, assim que baixe o colesterol devido às festas natalícias e para o efeito, estão convidados todos os camaradas que se queiram fazer presentes na referida cerimónia(1).

E assim se passou um dia de convívio que lembrarei sempre, estreitámos mais os laços que nos unem como irmãos, que foram de armas e hoje são de afectos.

Um abraço
Juvenal Amado

(1) O local será Monte Real e desde já avisamos, que as marcações terão que se fazer com uns dias de antecedência.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5441: Agenda cultural (50): Apresentação do livro História de Portugal em Sextilhas, de Manuel Maia, na Tabanca de Matosinhos

Vd. último poste da série de 20 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5302: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (14): Alcobaça. Doces. Licores. Coisas do Céu e da Tabanca. Paixão. Amizade. Camaradagem. JERO

Guiné 63/74 - P5453: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917. Dez 69/Mai 71) (5): O grande Rio Geba





Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1969 > O sortilégio e a beleza do Rio Geba, entre o Xime e e Bambadinca, o chamado Geba Estreito, numa das fotos aéreas magníficas do Humberto Reis, ex- Fur Mil Op Esp, CCA 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). nosso querido amigo e camarada Humberto que é também aniversariante este mês. (LG)


Fotos: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados




Guiné-Bissau > Zona Leste > Xime > 2001 > Rio Geba. O famoso macaréu. No Rio Amazonas é conhecido por pororoca. Em termos simples, o macaréu é uma onda de arrebentação que, nas proximidades da foz pouco profunda de certos rios e por ocasião da maré cheia, irrompe de súbito em sentido oposto ao do fluxo da água. Seguida de ondas menores, a onda de rebentação sobe rio acima, com forte ruído e devastação das margens. Pode atingir vários metros de altura, mas tende a diminuir a sua força e envergadura à medida que avança (LG)


Foto: © David Guimarães (2005). Direitos reservados





Guiné > Zona Leste > Bafatá > Geba Estreito > O pescador e a sua canoa. Magnífica foto do nosso amigo e camarada Fernando Gouveia, do Porto,  ex-Alf Mil Rec Inf, Bafatá, 1968/70. (LG)


Foto:  © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.

1. Mensagem do Arsénio Puim ,

Luis Graça

Mando mais um «recordando», desta vez, o Geba, nosso vizinho em Bambadinca.

O nosso blogue está continuamente a enriquecer-se, com trabalhos muito válidos e com alguma variedade, que constituirão importante documento histórico.

Como velho capelão, cuja missão é defender sempre a paz justa, não gosto de algumas pequenas quezílias e ataques que surgem, aqui ou acolá, entre os camaradas da Guiné. Acho que há lugar para todos no blogue, com as suas experiências, ideias e diferenças. É neste presuposto que eu também colaboro.

Saudações à Alice.
Um abraço
Arsénio Puim



2. RECORDANDO... V >  O GRANDE RIO GEBA
opor Arsénio Puim

Considero a Guiné uma terra bonita, pela beleza simples da sua paisagem e as suas singularidades muito próprias, pelo seu complexo faunológico, bastante rico e interessante, nomeadamente no domínio das aves, pela sua flora, com variadas espécies arbóreas, onde sobressaem as palmeiras esguias e esbeltas, disseminadas por toda a selva, emprestando-lhe um tom de exotismo tropical. Mas um dos aspectos mais bonitos, para mim, do território da Guiné são os seus rios, com a sua rede extensa de afluentes e pequenos cursos, principalmente na época das chuvas, que deslizam em admiráveis serpenteados entre a selva luxuriante e as bolanhas que alagam e fertilizam.

São disso um exemplo os dois grandes rios que passam na zona interior: o Corubal e o Geba. O primeiro, que nasce na Guiné Conacri e vai desembocar no Geba, a sul do Xime, é navegável até à região do Xitole. A partir daqui, surgem alguns rápidos: primeiro, em Cusselinta – bonita estância onde um longo braço do rio forma uma piscina natural com condições privilegiadas – e, depois, já de proporcões maiores, na pitoreca zona do Saltinho.

O Geba, que vem lá dos lados do Senegal, demarca o norte e o sul da Guiné, visitando-nos em Bambadinca, e vai-se encontrar com o Atlântico num estuário de grande extensão e largura, que se prolonga num longo Canal, muito para além de Bissau. Largo e comportando a navegação de barcos de significativas dimensões até ao Xime, como as LDG de transporte das tropas, apresenta ainda condições de navegabilidade, para embarcações pequenas, até Bambadinca e Bafatá. E estas não são só as pirogas nativas, longas e esguias – cheguei a ver uma, capturada aos «turras» no Xime, que media mais de 30 metros - engenhosamente feitas num único tronco de árvore e movidas com uma pá ou um remo de esparrela manobrados por um homem, sentado à ré.

Em Bambadinca podíamos observar, com muito agrado, um interessante serviço particular de canoa para transporte das pessoas para a outra banda do rio, onde muitas vezes vivem familiares, há negócios a tratar ou trabalhos a realizar nas bolanhas. Os passageiros, formando autênticas «bichas» vistosas e coloridas, perfeitamente respeitadores das precedências, acondicionam-se em grande número acocorados no fundo da canoa, todos em fila e num equilíbrio perfeito, enquanto o timoneiro, de acordo com cálculos relativos à direcção e sentido da corrente, faz um desvio, paralelo à margem, antes de aproar ao outro lado, para ir atracar no sítio preciso com uma perícia de mestre.

Mas as embarcações que circulavam no Geba Estreito são também barcos a motor, para transporte de pessoas e de carga, que faziam viagens regulares e prestavam um importante serviço entre a capital do território e Bafatá.

Vim, uma vez, num destes barcos da carreira civil desde Bambadinca até Bissau, numa longa e pitoresca viagem que hoje ainda recordo.

Alguns militares usavam, uma vez ou outra, este meio de transporte para se deslocarem à capital. Penso que o grande Machadinho, e meu grande amigo, também ia nesta viagem, mas não tenho a certeza.

No «Bubaque», apinhado de pessoas – muitos africanos e africanas e alguns soldados portugueses –, galinhas, porcos, cabras, (tudo em muita paz), navegámos ao longo do Geba Estreito, ladeado de mato denso e misterioso e cheio de curvas muito apertadas que obrigavam o barco a manobrar bastante próximo das margens. Depois entrámos no Geba largo, cada vez mais espaçoso e aberto aos nossos olhos curiosos, de margens arborizadas e baixas, ponteado com os seus quarteis militares estrategicamente disseminados dum lado e outro do território.

Sete horas depois, agradavelmente vividas em conversação amena e, sobretudo, a olhar, profundamente, a terra da Guiné e desfrutar da sua natureza, o «Bubaque» havia passado a grande ria do Geba e entrava no porto de Bissau, quando eram cinco horas da tarde do dia 8 de Março de 1971.

Fácil se tornou para nós pensar que, não obstante serem alvo de um ou outro ataque esporádico, não seria possível estes pequenos barcos civis, indefesos e para mais trasportando elementos do exército português, circularem regularmente numa tão extensa e recôndita área fluvial se não existisse um acordo secreto entre a empresa e a guerrilha, como aliás era voz corrente.

Mas além deste possível e mais ou menos controlado obstáculo humano, todo o movimento de barcos no Geba é condicionado por um interessante fenómeno natural que dá pelo nome de macaréu.

É, em linguagem simples, uma onda, provocada pelo choque da maré com a corrente fluvial, que avança rio acima, impetuosa e com grande ruído, operando à sua passagem a transição brusca e imediata da baixamar para a preiamar, numa amplitude que pode atingir dois metros ou mais.

Neste interior da Guiné, a mais de 100 quilómetros de Bissau, várias vezes me detive junto do grande Geba para ver passar o macaréu, poderoso e cheio de mistério, admirável e sempre benvindo.

____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série:  25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5338: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (4): O pacto de Deus... com os 'turras'



(...) Ao capelão militar é atribuída uma função específica, que é prestar assistência religiosa aos militares do Batalhão e testemunhar, na medida do possível, os valores do Evangelho, e ele não é, compreensivelmente, um combatente da guerra, independentemente da justeza ou não desta, posição que eu assumi e demarquei logo de início, renunciando à posse de arma de combate, que me era proposta. Nem, de resto, a preparação elementar ministrada no Curso de Capelães Militares durante um mês e meio, na Academia Militar da Rua Gomes Freire, me habilitava para esse desempenho


Vivi, no entanto, durante um ano, dia a dia, no teatro de acção do Batalhão 2917, deslocando-me assiduamente a todas as Companhias e permanecendo nestas por vários dias e, às vezes, algumas semanas - visitei 6 vezes a Companhia de Mansambo [CART 2714], 5 vezes a do Xime [ CART 2715] e 4 vezes a do Xitole [CART 2716], que ficava a 40 quilómetros - para além das minhas idas a todos os Destacamentos, mais abreviadas mas com permanência em alguns, como o Enxalé (3 vezes), Missirá (1 vez), e a Ponte dos Fulas (1 vez). (...)